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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versión On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.spe Rio de Janeiro  2023  Epub 20-Mayo-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.80194 

DOSSIÊ PSICANÁLISE E POLÍTICA: A INSISTÊNCIA DO REAL

Reflexões Sobre o Corpo Estranho e a Política de Morte na Terra Indígena Yanomami

Reflections on the Foreign Body and the Politics of Death on the Yanomami Indigenous Land Yanomami

Reflexiones Sobre el Cuerpo Extraño y las Políticas de la Muerte en la Tierra Indígena Yanomami

Thais Barros de Andrade* 

Psicóloga, graduada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo.


http://orcid.org/0000-0002-5596-2376

Avelino Luiz Rodrigues** 

Professor Associado (Livre Docência) do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.


http://orcid.org/0000-0002-7989-5980

*Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, SP, Brasil

**Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, SP, Brasil


RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar a relação entre os conceitos de necropolítica, proposto por Achille Mbembe, e de unheimlich, desenvolvido por Sigmund Freud. Por meio dessa possibilidade de intersecção, coloca-se em análise a situação enfrentada pelos Yanomami no norte do Brasil, na qual diversos indígenas tiveram suas terras invadidas e seus direitos violados, levando-os a uma grave crise sanitária. A presença de uma lógica de gestão necropolítica, na qual corpos que não interessam ao Estado são deixados à margem, coloca em risco populações que não são incluídas no discurso hegemônico neoliberal. No encontro deste discurso com o estranho, pode-se inferir que é produzida uma experiência unheimlich, um deparar-se com o que há de mais incômodo e ao mesmo tempo familiar à sociedade. Reconhecer-se na diferença que há no outro cria um escape pela via da eliminação, faz-se desse corpo o inimigo e, assim, cria-se o respaldo para tirá-lo de cena. Desse modo, esta investigação destaca a necessidade de repensarmos as vias existentes para lidar com a diferença, isto porque, construir uma sociedade em detrimento de determinados grupos que a compõem é destruir também a si mesma.

Palavras-chave: necropolítica; unheimlich; yanomami; psicanálise.

ABSTRACT

This article aims to analyze the relationship between the concepts of necropolitics, proposed by Achille Mbembe, and unheimlich, developed by Sigmund Freud. Through this possibility of intersection, the situation faced by the Yanomami in northern Brazil can be analyzed, in which several indigenous people had their lands invaded and their rights violated, leading them to a serious health crisis. The presence of a necropolitical management logic, in which bodies that are not of interest to the State are left on the sidelines, puts populations that are not included in the hegemonic neoliberal discourse at risk. In the encounter between this discourse and the stranger, it can be inferred that an unheimlich experience is produced, an encounter with what is most uncomfortable and at the same time familiar to society. Recognizing oneself in the difference that exists in the other creates an escape through elimination, this body is made the enemy and, thus, the support is created to remove it from the scene. Furthermore, this investigation highlights the need to rethink existing ways of dealing with difference, because building a society to the detriment of certain groups that compose it is also destroying itself.

Keywords: necropolitics; unheimlich; yanomami; psychoanalysis.

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar la relación entre los conceptos de necropolítica, propuesto por Achille Mbembe, y unheimlich, desarrollado por Sigmund Freud. A través de esta posibilidad de cruce, es un ejemplo la situación que enfrentan los yanomami en el norte de Brasil, en la que varios indígenas vieron sus tierras invadidas y violados sus derechos, llevándolos a una grave crisis de salud. La presencia de una lógica de gestión necropolítica, en la que se dejan al margen cuerpos que no interesan al Estado, pone en riesgo a poblaciones que no están incluidas en el discurso neoliberal hegemónico. En el encuentro de este discurso con el extraño se puede inferir que se produce una experiencia unheimlich, un encuentro con lo más incómodo ya la vez familiar para la sociedad. Reconocerse en la diferencia que existe en el otro crea una evasión por eliminación, se hace de este cuerpo el enemigo y, así, se crea el soporte para sacarlo de escena. Así, esta investigación destaca la necesidad de repensar las formas existentes de enfrentar la diferencia, porque construir una sociedad en detrimento de ciertos grupos que la componen es también destruirse a sí misma.

Palabras clave: necropolítica; unheimlich; yanomami; psicoanálisis.

O presente trabalho tem como objetivo propor uma possibilidade de intersecção entre conceitos que habitam campos distintos, a necropolítica e o unheimlich, uma vez que, em seus enlaces, encontra-se também uma via para que os campos, ao interpelarem um ao outro, nos auxilie a pensar alguns fenômenos políticos e sociais.

A necropolítica, termo elucidado pelo autor Mbembe (2018a), explica uma forma de compreendermos as tecnologias presentes no exercício da soberania do Estado sobre populações que são postas em condições de vida ínfimas e muito próximas à morte, carregando a premissa de matar e deixar morrer. O outro conceito que aqui abordaremos trata-se do explorado por Freud (1919/2020), Das Unheimliche, que descreve o processo de encontro com um sentimento de estranheza e infamiliaridade ao deparar-se com algo que revive o elemento recalcado, que retorna por meio daquilo que se apresenta como um velho conhecido e ao mesmo tempo incômodo.

A partir da apresentação destes dois conceitos, faz-se uma leitura acerca da situação vivida pelos povos Yanomami, sobretudo devido à proporção midiática tomada no início deste ano ao ser evidenciada a gravidade da crise enfrentada por essa população. A presença do garimpo ilegal, que cerca os Yanomami em seu território de direito se impõe com violência, encaminhando os povos originários que lá vivem à uma crise sanitária dizimadora. De acordo com um relatório produzido pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana (SEDUUME), a evolução do garimpo, apesar de progressiva desde os anos 1980 no extremo norte do Brasil, tem seu pior momento registrado em 2021 (HAY E SEDUUME, 2022, p. 9), de acordo com Coll e Menezes (2023), a maior expansão da atividade garimpeira dos últimos 36 anos, “foram 15 mil hectares garimpados, sendo 1.556 na Terra Indígena Yanomami”. Além disso, o relatório enfatiza que a atividade do garimpo, sobretudo o ilegal, faz-se a causa das contínuas violações impostas às comunidades do Território Indígena Yanomami (TIY).

Além do desmatamento e da destruição dos corpos hídricos, a extração ilegal de ouro (e cassiterita) no território yanomami trouxe uma explosão nos casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, com sérias consequências para a saúde e para a economia das famílias, e um recrudescimento assustador da violência contra os indígenas. (HAY E SEDUUME, 2022, p. 9)

É importante ressaltar que, a atividade do garimpo se faz ilegal uma vez que a Terra Indígena Yanomami trata-se de uma região preservada por lei, sendo homologada pelo decreto de 25 de maio de 1992 e encontra-se, mais especificamente, na região norte do país, ocupando Roraima, Amazonas e parte da Venezuela. Assim, descreve-se os atos de invasão às terras dessa população, por meio das palavras de Davi Kopenawa - líder yanomami:

Se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios. Começaram onde moravam seus antepassados. Hoje já não resta quase nada de floresta em sua terra doente não podem mais beber água de seus rios. Agora querem fazer a mesma coisa na nossa terra. (Kopenawa & Albert, 2015, pp. 407)

Pensando acerca dos conceitos eleitos para a reflexão que o presente artigo se propõe, sabe-se que os conceitos de unheimlich e necropolítica não se originam em uma mesma base epistemológica, no entanto, entende-se que há uma fronteira que os aproxima ao refletirmos que ambos preveem a eliminação e/ou o afastamento de outrem, ou seja, tanto na necropolítica como no fenômeno do unheimlich, é produzida a retirada de cena de uma ameaça, de um componente inapropriado, insuportável ou, ao menos, há a elaboração das condições para o seu aniquilamento.

Assim vê-se as possibilidades que os conceitos oferecem para pensar o campo social, uma vez que o seu enlace nos permite contestar as saídas que a racionalidade neoliberal nos impõe - em seu sentido formador da subjetividade de um sujeito, a partir de discursos e práticas que atravessam a dimensão cultural (Silva et al., 2021) - e pensar quais os tensionamentos que podem, e devem, ser feitos a partir disso.

Para isso, adotamos também a psicanálise como método, nos respaldando na Psicanálise Extramuros explicada por Rosa (2004) como “uma abordagem [...] de problemáticas que envolvem uma prática psicanalítica que aborda o sujeito enredado nos fenômenos sociais e políticos, e não estritamente ligado à situação do tratamento psicanalítico” (Rosa, 2004, p. 331).

É possível alinhar este ponto colocado pela autora aos dos textos de Freud que datam as décadas de 1920 e 1930, produções estas que - debruçadas em questões relacionadas à sociedade, cultura e religião - são inevitavelmente atravessadas pela dimensão clínica e, portanto, a própria clínica também se demonstra ser “atravessada, de ponta a ponta, por aquilo que se precipita das formas da vida social na vida psíquica do sujeito” (Iannini & Santiago, 2021, p. 36). Ou seja, entende-se que a linha divisória entre os textos “clínicos”, “metapsicológicos”e “sociais” de Freud se torna cada vez mais tênue.

Vejamos em ‘Psicologia das Massas e Análise do Eu’, texto no qual podemos encontrar compreensões realizadas por Freud de que não há desassociação entre a psicologia individual e a social, ele diz:

Na vida psíquica do indivíduo, o outro é, via de regra, considerado como modelo, como objeto, como auxiliar e como adversário, e por isso a psicologia individual é também, de início, simultaneamente psicologia social, nesse sentido ampliado, mas inteiramente legítimo. (Freud, 1921/2021, pp. 137)

Portanto, o próprio precursor da psicanálise faz uso frequente da análise de fenômenos coletivos para compreender processos que são individuais (Rosa, 2004, p. 333).

Nosso interesse, portanto, na Psicanálise em Extensão, se dá pelas suas características metodológicas, ou seja, por ela tornar-se “um método de investigação que se vale justamente da metapsicologia e da técnica clínica como instrumento de investigação” (Estevão, 2018, p. 4). Além disso, de acordo com Rosa e Domingues (2010) faz-se importante entender que o método psicanalítico é também um caminho que se constrói pela escuta psicanalítica, mesmo que não necessariamente enfatize a interpretação ou a teoria por si só, mas que a envolve junto à prática e à pesquisa, construindo assim uma metapsicologia não isolada.

Com isso - e pensando, sobretudo, acerca do unheimlich, ao ser explorado para além das margens de seu campo de origem - entende-se que “o conceito psicanalítico deve sair da própria trama sem se descuidar de como se afirma no solo da teoria. Não há um sentido único para cada conceito, e sim uma articulação com a trama teórica, com a prática, com os pares” (Rosa & Domingues, 2010, p. 184). No caso, o ensaio de 1919, Das Unheimliche, apesar de ser um texto com cunho de uma investigação estética, nos aponta um caminho de possibilidades com seu uso em investigações acerca de fenômenos sociais.

Acerca do uso de um conceito suscitado por meio de investigações do campo da filosofia como a necropolítica, entende-se que colocá-lo diante e em relação à concepção elucidada por Freud em torno do unheimlich, cria a possibilidade de trazer sustenções para as descontinuidades inerentes a ambos. A psicanálise, ao se mostrar como um instrumento ‘invasor’ dentro da leitura de crises humanitárias como a que é vivenciada pelos povos Yanomamis - aliado ao conceito que corre na fronteira com a teoria, que é a necropolítica - sendo “convocada por outros campos do saber a dar conta de problemas que aparecem nos furos destes campos, ela se sustenta obtendo estatura de um saber para além da clínica” (Estevão, 2018, p. 11). Além disso, nos utilizamos da psicanálise não só para dar conta de furos de outros campos, mas, a partir destes furos, buscar sustentar as próprias questões em que a psicanálise se encontra em falta, principalmente quando em relação a outras áreas do saber.

É o que procura-se realizar no presente artigo, utilizando o unheimlich para além das investigações clínicas e estéticas e defronte a mútua interpelação que é possivel ser feita com o conceito de necropolítica. Fazer borda com outros campos, é o que se propõe aqui com o uso da teoria psicanalítica, não cedendo à nenhuma verdade incontestável e implicando o pesquisador em relação ao seu objeto.

Com isso, vê-se uma possibilidade do uso do ensaio freudiano, de modo que auxilie a compreensão de como o encontro com a experiência unheimlich na sociedade escoa em uma saída adotada pela via do aniquilamento, da gestão necropolítica, tirando de cena o estranho incômodo que perturba o discurso segregador e hegemônico de uma gramática neoliberal.

O Unheimlich na Gestão Necropolítica Brasileira

Sendo um termo usual no alemão, Freud (1919/2020) transporta o unheimlich por diversos âmbitos linguísticos e filosóficos dando-lhe um estatuto conceitual com o “selo perene da psicanálise” (Iannini & Tavares, 2020, p. 7). Traduzido no Brasil como O Estranho, O Inquietante, O Infamiliar e o O Incômodo, unheimlich extrapola seu caráter de intraduzível para um incessante trabalho de tradução, alcançando algo para além de seu campo de investigação estética.

Assim, Freud explica que se trata de uma palavra alemã, sendo ela “o oposto de ‘heimlich’ [cômodo], heimisch [acomodado] e vertraut [familiar], sendo evidente a conclusão de que algo é aterrador justamente por não ser conhecido e familiar” (Freud, 1919/2021, p. 50). Por outro lado, heimlich possui o significado que se desdobra em uma ambiguidade, coincidindo com unheimlich, sendo este último - o incômodo - além de seu contrário, também uma espécie de familiar e conhecido, de acordo com Freud (2021, p. 64).

Com isso, o que de fato vem a produzir a estranheza proporcionada pelo o unheimlich é o deparar-se com o heimlich, ou seja, o incômodo encontro com aquilo que é conhecido e simultaneamente negado como parte de si. O conceito é ilustrado por Freud (1919/2020) por meio de uma citação do filósofo alemão Friedrich Von Schelling na qual diz que o unheimlich “é o nome de tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”.

Esta definição de Schelling, por sua vez, nos remete ao que Lacan (1962/2005, p. 86) descreve acerca do conceito em questão. O autor francês define que o “magistral unheimlich do alemão, apresenta-se através de clarabóias” e que o termo também pode ser associado ao:

‘Súbito’, ‘de repente’ - vocês sempre encontrarão essas expressões no momento da entrada do fenômeno do unheimlich. Encontrarão sempre em sua dimensão própria a cena que se propõe, e que permite que surja aquilo que, no mundo, não pode ser dito. (Lacan, 1962/2005, pp. 86)

Dessa forma, a vivência inconsciente do unheimlich suscita em um retorno ao material recalcado que nos endereça às marcas pulsionais camufladas na consciência. É comum haver algo de incômodo no encontro com as diferenças no outro, pois nisto há também o barulho que ecoa de nosso próprio avesso. Na intimidade mais assustadora, no local mais conhecido e ao mesmo tempo mais estrangeiro, é onde mora o que nos incomoda. O unheimlich seria, portanto, “uma espécie de elemento aterrador que remonta ao que é há muito conhecido, ao que há tempos é familiar” (Freud, 1919/2021, p. 49).

De certo modo, pode-se dizer que o infamiliar associa-se ao fato de que há algo fora de lugar, um estrangeiro no ambiente, o que nos aponta um paralelo ao que Mbembe (2018a) escreve acerca do colonizado que, aos olhos do colonizador, a “vida selvagem” deste sujeito estranho é uma “experiência assustadora, algo radicalmente outro (alienígena)” (Mbembe, 2018a, p. 35).

No entanto, lembremo-nos da função do heimlich neste processo, a parte do conceito que indica que não é de fato o que o outro possui de alheio que provoca o incômodo e sim a ameaça da identificação. Seria, portanto, a experiência do unheimlich algo que permeia o que ocorre a partir do encontro com a inquietação provocada pela diferença, uma diferença no outro que encontramos em nós mesmos, que produz a angústia e busca resolvê-la na própria imposição da distinção, negando algo de si no corpo hostil.

A negação, por sua vez, se faz relevante neste processo pois atravessa a nossa discussão sendo um guia que aponta o caminho do elemento recalcado até a consciência, desde que esteja na condição de negado. Freud descreve o conceito da seguinte maneira: “A negação é uma maneira de tomar conhecimento do recalcado; na verdade, é já uma suspensão do recalcamento [Verdrängung], mas evidentemente não é uma admissão do recalcado” (Freud, 1925/2020, p. 142). Portanto, depara-se com o recalcado, mas nem por isso este se faz admitido, ele é o elemento familiar que não é bem-vindo em casa e que ao mesmo tempo se instala, e é a negação que denuncia sua estadia.

Neste sentido, o fenômeno da angústia é suscitado com a aparição deste estrangeiro que surge no enquadramento, mas em algum momento antes já esteve ali:

É o hóspede, dirão vocês. Em certo sentido, sim, é claro, o hóspede desconhecido, que aparece inopinadamente, tem tudo a ver com o que se encontra no unheimlich, mas é muito pouco designá-lo dessa maneira, pois, como lhes indica muito bem o termo em francês, assim, de imediato, esse hóspede [hôte], em seu sentido comum, já é alguém bastante inquietado pela espera. (Lacan, 1962/2005, pp. 87)

Para Lacan (1962-63/2005) não é o heimlich o habitante da casa e sim o hostil, o unheimlich, aquele que nunca passou pelas “peneiras do reconhecimento”. E, dessa forma, retornamos à conclusão que também havíamos demonstrado com Freud anteriormente, que seria a aparição do heimlich nesse engendramento que representaria a angústia. Assim, a experiência do unheimlich produz um laço social assentado no sentimento de infamiliaridade, na angústia do (re)encontro com o incômodo.

Entende-se então que, no fenômeno ocorrido no encontro com o unheimlich, ao depararmo-nos com a identificação dessa semelhança repulsiva e negada, se faz afastar aquilo que importuna a ordem social, mantendo o retorno do recalcado fora de alcance. No entanto, sabe-se que o recalcado não cessa de tentar retornar. O estrangeiro no qual nos pautamos aqui é o que aparece como uma pedra no sapato da sociedade que nele se vê refletida e é nesta aparição que este unheimlich pode se tornar o sinônimo de corpo hostil.

Com isso, pensando neste paralelo ao elemento recalcado, eliminado de cena, podemos traçar as relações possíveis ao corpo marcado pela necropolítica. Para introduzirmos a compreensão deste último conceito, vê-se que Mbembe (2018a) inicia sua escrita explicando sobre o que consiste a expressão máxima de soberania: “no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (Mbembe, 2018a, p. 5) e que, portanto, matar ou deixar viver delineiam os atributos fundamentais e também os limites da soberania exercida por meio de uma gestão necropolítica.

Ao trazer indagações sobre qual o lugar dado à vida e à morte, assim como qual espaço ocupa um corpo na ordem do poder, Mbembe (2018a) aponta para uma reflexão que envolve o fato de que determinados sujeitos estão na margem da mortalidade, relegados à uma forma de vida esvaziada. Dessa maneira, o autor declara que a sua preocupação “é com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e da destruição material de corpos humanos e populações” (Mbembe, 2018a, p. 10).

Apesar de Mbembe (2018a) reconhecer a origem do conceito na noção de biopolítica em Foucault (1978), para dar conta das formas atuais de relação de submissão da vida ao poder da morte o autor explica que o conceito de necropolítica dispõe a compreender as diversas maneiras em que as armas de fogo são instrumentos da destruição de corpos, auxiliares na criação de “mundos de morte”, sobre os quais ele define que são “formas únicas e novas de existência social” em que “vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’” (Mbembe, 2018a, p. 71).

Mbembe (2018a) segue um percurso elucidando o conceito de necropolítica para dar conta de explicar dinâmicas nas quais a morte se encontra como um mecanismo que reconfigura as relações e opera dentro de gestões, ou seja, o autor “volta seu olhar aos espaços de exceção em que o investimento do poder se endereça à destruição progressiva dos corpos” (Franco, 2021, p. 34). Segundo Franco (2021), pode-se dizer que Mbembe (2018a) promove um enfoque nas tecnologias de governo que recaem sobre o corpo, sobre o sujeito, pondo em risco as condições de sua existência “cadaverizando-o em vida”.

Assim, tem-se em vista um elemento crucial no funcionamento das necropolíticas: a percepção da existência de um outro como uma ameaça, ou atentado, sendo apenas por meio de sua eliminação que se instaura o potencial de segurança. Este outro “ameaçador”, por sua vez, remonta o unheimlich de Freud (1919/2020), esse estranho familiar com o qual a sociedade se depara, se incomoda e o recalca, tira de cena. Souza e Lagoas (2021) explicam isso, dizendo que seriam os povos indígenas a representação de uma ameaça, precisando, portanto, serem recalcados.

O infamiliar indígena que insiste em retornar desnuda a violência instituinte de uma sociedade brasileira fundada no recalque, colocando-se como ameaça às suas bases. Sua presença é potência desestabilizadora ao expor a falta estrutural na relação com o Outro em jogo na nossa cultura, desarticulando o laço social que nos une. (Souza & Lagoas, 2021, pp. 222)

O ponto de convergência que identificou-se, inicialmente, entre a crise humanitária vivida pelos Yanomami e os conceitos de necropolítica e unheimlich foi o descaso em relação aos pedidos de ajuda que foram emitidos pelos povos indígenas habitantes da região, 21 solicitações foram ignoradas pelo governo em exercício entre os anos de 2019 e 2022, segundo Coll e Menezes (2023). Assim, deixar que a exploração de minério pelo garimpo ilegal cresça em detrimento de uma população inteira à margem da morte, traz uma mensagem explícita sobre como se faz uma gestão necropolítica no Brasil.

No entanto, sabe-se que o governo de Jair Bolsonaro - o vigente no momento de maior desamparado enfrentado no TIY - representou, sem disfarces, o progressivo enfraquecimento dos diretos das populações indígenas (e também de outros grupos contra hegemônicos). Por exemplo, viu-se a Funai sendo desmontada em suas ações primordiais, incialmente devido às constantes interferências da bancada ruralista e, com o governo de Bolsonaro, a Fundação foi submetida ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandada pela pastora Damares Alves que, junto ao presidente, apoiava uma política nacional integracionista, muito alinhada ao discurso propagado na ditadura militar (Jucário & Coletta, 2018).

Além disso, Bolsonaro deixou claro sua postura sobre a demarcação de terras indígenas já em campanha eleitoral, dizendo que “não demarcaria mais nenhum milímetro de terra indígena se chegasse ao Planalto sob o argumento de que as áreas já demarcadas estavam superdimensionadas. Elas representam hoje 14% do território nacional” (Jucário & Coletta, 2018).

Portanto, pensando acerca da questão da soberania para Mbembe (2018a), o autor a desenvolve em sentido à relação com a violência, uma vez que ambos surgem como parte dos impactos da construção de uma dominação por meio da instituição de desigualdades e escravização. Sabe-se que a história dos povos originários no Brasil inicia-se neste mesmo sentido ao serem subjulgados pelos invasores europeus e, progressivamente, vão se atualizando as formas de soberania sobre essa população. Essa imposição dos limites cria-se, não ao acaso, por meio de um mito de superioridade, que constituem a relação diante do unheimlich, pois sabe-se que o aterrador produzido no insuportável reconhecimento da familiariadade - heimlich - no encontro com o estrangeiro são suscitadas as mais diversas formas de violar este outro corpo identificado.

Entende-se que este traço de identificação seria algo presente na margem entre o sujeito e um outro, um elemento que é próximo à intimidade deste sujeito a tal ponto que passa ao formato de recalcado, emanando, assim, a experiência do estranho no seu encontro, na eminência de sua familiaridade. Isto, por sua vez, nos leva a assumir que o unheimlich, ao retomar uma reminiscência, revisita a angústia produzida pela castração e, com isso, reconhecendo este incômodo como o retorno do recalcado, compreende-se que este retorno também pode ser visto como uma ameaça à subjetividade, o que faz com o que o sujeito se depare com a formulação “ou eu ou ele, não há lugar para nós dois” (Bartijotto, 2021, p. 5).

Faz-se assim do recalque um mecanismo para a realização de uma ordem, algo muito próximo a soberania nas palavras de Mbembe (2018a). Ele explica que a “soberania significa ocupação, e ocupação significa relegar o colonizado a uma terceira zona, entre o estatuto de sujeito e objeto” (Mbembe, 2018a, p. 39) e, com os efeitos de uma ocupação colonial, emerge a produção de uma ampla reserva de imaginários culturais que direcionam a imposição de direitos diferentes, para diferentes categorias de pessoas, para fins diferentes no interior de um mesmo espaço.

Este movimento de segregação e estabelecimento de hierarquias produz um norte para a construção dos sistemas de opressão atualizados no capitalismo e, neste caso, produz-se também a possibilidade de definição sobre quais corpos são descartáveis em um sistema e quais não, sendo a soberania capaz de discernir, portanto, “quem importa e quem não importa” (Mbembe, 2018a, p. 41). Com isso, entende-se que mesmo que ocupemos um mesmo país, a imposição de uma violência histórica e bem instalada em um Estado realiza a gestão de quem de fato usufrui dos direitos legalmente propostos, ou seja, quem é atendido ou não em 21 solicitações de pedidos de ajuda ao governo.

Vê-se que a imposição de um limiar muito tênue entre a vida e a morte para determinadas populações produz um incessante “fazer morrer” - deixar em condições de morte - uma vez que, na necropolítica a morte não é baseada apenas na execução ou na aniquilação abrupta da vida do sujeito. Por isso, Mbembe (2018a) elucida o fato de que faz parte dos processos das “tecnologias necropolíticas gerir o sofrimento dos corpos, fragmentando a morte em uma miríade de pequenas mortes, um morrer a conta-gotas, com o qual a dominação se intensifica e se perpetua” (Franco, 2021, p. 34).

Assim, Mbembe (2018a) explica, por meio de David Bates, que o exercício do terror - respaldado por ser uma expressão de soberania contra as ações do dito inimigo - é convertido em uma marca no corpo político, tornando o sujeito deste corpo uma aberração ou, através de nossas análises, um unheimlich.

Apesar da Terra Yanomami ser demarcada e homologada, ela não é uma terra protegida e é, sobretudo, a partir da deterioração do sistema político brasileiro que “a mobilização pelos direitos indígenas foi se fragilizando, agravada pela composição do Congresso Nacional, no qual predominam os interesses ruralistas e da mineração” (Coll & Menezes, 2023). Sabe-se que com os desmontes do cuidado com as populações indígenas, as invasões para exploração ilegal de suas terras foram intensificadas, assim como a contaminação de sua área preservada, dos rios e da fauna que sustentam suas vidas e história.

Com a ação do garimpo ilegal, vieram os abusos e violências contra mulheres e crianças, ataques armados, a ausência da possibilidade de caça e produção de alimento - devido às áreas contaminadas pelo processo da extração de minério - e acometimento de doenças e verminoses tratáveis, mas que não puderam ser atendidas pela impossibilidade da chegada dos profissionais de saúde até a população afetada devido o domínio do garimpo na região. Dessa forma, não havendo acompanhamento das equipes de saúde, também não há a possibilidade de coleta de dados exatos sobre números de doentes e mortos, “as crianças que passam fome, adoecem e com frequência morrem, foram também apagadas do sistema. O apagão estatístico é mais uma forma de promoção de morte” (Machado et al., 2023).

Este cenário vai ao encontro do que Mbembe (2018a) apresenta como uma racionalidade da vida que passe pela morte do outro, ou seja, que “a soberania consiste na vontade e capacidade de matar a fim de viver” (Mbembe, 2018a, p. 20). Desse modo, a necropolítica se traduz como a gestão da morte de sujeitos que não são vistos como vidas viáveis no neoliberalismo, sendo eles, de acordo com Rodrigues (2022, p. 24), vidas geridas como excedentes, em exclusão.

A partir do relatório realizado pela HAY e SEDUUME (2022), entende-se que as armas de fogo seriam a origem da gravidade dos problemas que assolam o TIY, uma vez que as mesmas são mais letais que o arco e flecha, produzindo assim

uma espécie de intensificação do sistema de vingança local. Mais mortos levam a mais ataques por vendeta, que, por sua vez, conduzem a mais mortes, gerando um ciclo vicioso que além das perdas humanas produz um cenário de permanente insegurança. As pessoas têm medo de sair para caçar, medo de cultivar roças mais distantes, medo de se locomover pelo rio, o que também impacta profundamente o sistema produtivo das famílias. (HAY & SEDUUME, 2022, p. 59)

Este ciclo, por sua vez, permitiu a instauração do pânico em boa parte dos grupos indígenas que compõe o TIY. Por exemplo, na região de Surucucus, há pistas de pouso e construções que eram anteriormente destinadas ao atendimento à saúde da população e foram tomadas pela atividade do garimpo. Sem os pontos de referência para o cuidado, os índices de desnutrição infantil crescem, números “próximos ou superiores a 70%” (HAY & SEDUUME, 2022), sendo a contabilização de mortes violentas ou por falta de assistência, igualmente expressivas.

Além disso, devido à esta impossibilidade de acesso das equipes de saúde às aldeias, leva-se em conta a ausência de contabilização de pessoas que necessitam de algum tipo de atendimento. De acordo com Machado et al. (2023), “Segundo as estatísticas, nenhuma criança está desnutrida ali, o que não corresponde à realidade”. Ainda de acordo com a matéria publicada na Revista Sumaúma:

Nos últimos dois anos (2021 e 2022), a região de Auaris, onde vivem 896 famílias, teve 2.868 casos de malária. Dados obtidos por SUMAÚMA apontam que, apenas em 2022, 6 crianças com menos de 1 ano morreram por causas que seriam facilmente evitáveis se houvesse acesso a serviços de saúde ou medicamentos. Na região, 6 de cada 10 crianças menores de 5 anos apresentam déficit nutricional, ou seja, têm peso considerado inadequado para a idade, a maior parte delas já em desnutrição severa. Na Maloca Paapiu, outra região do território Yanomami, acontece o mesmo: 6 de cada 10 crianças dessa faixa etária estão desnutridas. (Machado et al., 2023)

Os mecanismos de violentar os corpos Yanomami, portanto, se mostram diversos, a insegurança se instaura impedindo a livre circulação dos indígenas em suas terras, devido a presença constante e massiva dos garimpeiros armados.

Em muitos relatos, os membros das comunidades disseram sofrer com a restrição a seu livre trânsito na Terra Indígena, deixando de usufruir de áreas utilizadas para a caça, pesca, roça, e da comunicação terrestre e aquática com as comunidades do mesmo conjunto multicomunitário. (HAY & SEDUUME, 2022, pp. 111)

Ao passo que estes núcleos de atividade garimpeira se disseminam nas regiões do TIY, as pessoas relatam sentir “a perda do ‘controle’ sobre o seu espaço de vida” (HAY & SEDUUME, 2022).

Torna-se, portanto, evidente uma intencionalidade na minimização da repercussão acerca da gravidade dos conflitos, além de um desinteresse sitemático à vida de populações que são acoadas em suas próprias terras, entre outros mecanismos de apagamento que reservam aos povos Yanomami o estatuto de incômodos à expansão do garimpo ilegal e de sujeitos postos sob uma forma de necrogestão.

Acredita-se, então, que no processo do recalcamento encontram-se algumas explicações do que de mais obsceno num sujeito retorna para que haja uma autorização ao cerceamento do corpo de um outro. Dolar (2018), apresentando o unheimlich na figura do monstro, explica - por meio de Moretti (1983) - que esse “pode defender tudo o que nossa cultura tem de reprimir: o proletariado, a sexualidade, outras culturas, modos alternativos de viver, a heterogeneidade, o Outro” (Moretti, 1983 apudDolar, 2018, p. 182) e com isso, nasce a experiência que aflige a sociedade com algo da ordem do insuportável:

O surgimento desse sujeito impossível é o surgimento do olhar, a abertura de um buraco na realidade que é também o que vem imediatamente a preenchê-lo com uma presença insuportável, com um ser mais ser do que o ser, vacuum e plenitudo, tudo ao mesmo tempo, a plenitude como consequência direta do vazio. (Dolar, 2018, pp. 184)

Ao abordar a questão da pulsão de morte em sua resposta a Einstein, Freud (1933/2021) explica que essa opera em cada pessoa almejando uma condução da vida ao estado de matéria inanimada, sendo por esse motivo a sua denominação. No entanto, a pulsão de morte pode tornar-se pulsão de destruição e isso ocorre “na medida em que, com a ajuda de órgãos especiais, é voltada para fora, contra os objetos. O ser vivo preserva, por assim dizer, sua própria vida destruindo a vida alheia” (Freud, 1933/2021, p. 436).

Pode-se dizer que o incômodo cerceia o grupo que dita uma gramática hegemônica e necropolítica, uma vez que ele enxerga algo de si mesmo naqueles que ele julga como passível de ser colocado às condições ínfimas de vida. Como destacamos na explicação de Freud (1919/2021): para algo que ressoa unheimlich em nós, há, em paralelo, a ligação com algo de muito familiar e conhecido à vida anímica. É o que Katz e Dunker (2020, p. 42) irão chamar de “irrupções do estrangeiro” que seria, em outras palavras, “aquilo que perturba e ameaça nosso narcisismo, incluindo-se o narcisismo das pequenas diferenças, a paranoia sistêmica e as perturbações discursivas do laço social” (Katz & Dunker, 2020, p. 42).

Considerações Finais

Assim, uma questão paira no encaminhamento às conclusões do presente artigo: quais as vias possíveis diante desse mecanismo frente ao encontro com o unheimlich e a necrogestão de suas vidas?

Como vimos, sobretudo acerca da compreensão do papel do heimlich, não é o que no outro difere que produz o incômodo e sim o encontro com a familiaridade reconhecida neste outro, “a alteridade é aparentemente temida por nos ameaçar com a despersonalização” (Tavares, 2022, p. 34). Desse modo, é na diferença em que se opera o papel da angústia diante do incômodo, e, assim, vê-se também outras formas de identificação do outro como ameaça por seguirem ou serem de outra maneira que não o regime homogeneizado. Essa dinâmica, por sua vez,

São questões que nos dias atuais se traduzem em termos de necropolítica da vida cotidiana pelos altíssimos e alarmantes números de ocorrências de feminicídio, homofobia, transfobia etc., e cujo caso mais flagrante, evidentemente, permanece sendo o do racismo estrutural, traduzido no descaso com as populações de maioria negra e parda residentes nas favelas. (Tavares, 2022, pp. 34)

A formulação precária dada ao cuidado e fiscalização às ilegalidades que afligem os povos Yanomami se faz como um reflexo da degradação histórica dos corpos indígenas. Neste sentido, destas reminiscências - as articulações de como encaramos o distinto, o avesso que nos proporciona identificação - emerge uma variação de repetições ainda comprometidas com modalidades como as de branqueamento, higienização social, entre outros diversos caminhos produzidos e que podem ser vistos atualmente alinhados ao mito da democracia racial e do discurso integracionista. É através da criação de um inimigo ficcional - ou um unheimlich comum - como propõe Mbembe (2018a), que estas tecnologias de eliminação de subjetividades comparecem continuamente em novas roupagens.

Neste ponto, com esta explicitação, sobretudo quando abordamos a repetição e atualização das violências direcionadas à corpos contra hegemônicos como os Yanomami, pensa-se as saídas possíveis desse engendramento. A mais proeminente, em nossa compreensão a partir das intersecções realizadas, é a de que é preciso repetir-se - no âmbito particular e também social -, todavia, essa repetição não se constituiria sendo a mesma na repaginação de uma opressão histórica, e sim repetindo de outro modo na invenção de um caminho que nos permita ser atravessados pela diferença. A partir de um outro lugar se funda também outra posição perante ao encontro com o unheimlich, tensionando esse conceito para além da negação da identificação, voltado para uma interpelação do que do eu há no outro e o que no outro aponta a própria falta.

Assumindo os furos existentes na forma de gerir as vidas e mortes de determinados sujeitos, assume-se também nossas próprias falhas enquanto uma sociedade que continua a assistir atrocidades à corpos marcados, e, sobre este ponto, Mbembe (2018b) explica que o caminho de uma subversão da normativa se define pela “questão da produção, a partir da crítica do passado, de um futuro indissociável de uma certa ideia da justiça, da dignidade e do em comum” (Mbembe, 2018b, p. 348).

Desse modo, partimos de uma posição que busca apreender nossa parcela de responsabilidade, enquanto sociedade envolta à uma dinâmica de violência e omissão, para que assim não se perpetue um discurso de isenção de comprometimento e nem se dissimule nossa parte num Estado que é conivente na deterioração de populações e as mantém em vias de eliminação, as violentando física e discursivamente. Todavia, sabe-se que partir deste ponto de vista é complexo, sobretudo diante das formas vigentes de produção de vida sob o sistema capitalista, em outras palavras, pode-se tomar a questão posta por Guerra (2022): “Do corpo ao Outro e do Outro ao outro, como habitar o mundo em coexistência radical com a diferença, sem que ela se torne fonte de subalternidade, aniquilamento, epistemicídio e necropolítica?” (Guerra, 2022, p. 9). Perante a este tensionamento acredita-se que é possível encontrar algumas respostas (e, até mesmo, novas perguntas) nas palavras de Mbembe:

para chegar a esse mundo a cuja mesa todos são convidados a se sentar, ainda é preciso se ater a uma rigorosa crítica política e ética do racismo e das ideologias da diferença. A celebração da alteridade só tem sentido se ela se abrir para a questão crucial do nosso tempo, a questão da partilha, do comum e da abertura à exterioridade. (Mbembe, 2018b, pp. 348)

Em resumo, entende-se que o que passa pela reparação, pela saída em direção a ampliação ao nosso senso de responsabilidade é também concebermos que, no encontro com o contraponto, a questão não é assumi-lo inteiramente semelhante ou identificado, mas, primordialmente, admitir que partimos das diferenças “E são elas que, paradoxalmente, precisamos pôr em comum” (Mbembe, 2018b, p. 350). Não há, portanto, uma relação com o eu que não seja atravessada pela relação com o outro em sua semelhança e simutânea diferença. Admitirmos esta premissa nos coloca como constintuintes de um fazer subjetividades em si e em outrem, e também nos entrecruza com as múltiplas responsabilidades que carregamos conosco e com os nossos encontros unheimlich.

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora (CAPES No. Processo 33002010039M3)

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Recebido: 12 de Maio de 2023; Revisado: 19 de Agosto de 2023; Aceito: 04 de Setembro de 2023

Endereço para correspondência Thais Barros de Andrade Rua José Passarelli, 648, Jd. Belo Horizonte, Campo Grande - MS, Brasil. CEP 79090-200, Endereço eletrônico: thaisbarros.andrade@gmail.com

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