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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versión On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.spe Rio de Janeiro  2023  Epub 20-Mayo-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.80460 

DOSSIÊ PSICANÁLISE E POLÍTICA: A INSISTÊNCIA DO REAL

Discurso do Analista e Democracia em Risco: Por Que o Psicanalista Não Pode Ser Bolsonarista?

The Analyst Discourse and Democracy at Risk: Why Can’t the Psychoanalyst Be Bolsonarista?

El Discurso del Analista y la Democracia en Riesgo: ¿Por Qué el Psicoanalista No Puede Ser Bolsonarista?

Angela Cristina da Silva* 

Psicanalista, professora substituta do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Paraná).


http://orcid.org/0000-0002-2622-7815

Livia Alves Ferreira** 

Psicanalista, Mestra em Psicologia Social (Universidade Federal de Sergipe) e doutoranda em Psicologia (Universidade Federal Fluminense).


http://orcid.org/0000-0002-4240-536X

*Universidade Estadual do Centro-Oeste, Irati, PR, Brasil

**Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil


RESUMO

O objetivo deste trabalho é responder por que um psicanalista não pode ser bolsonarista. Para isso, partimos da articulação entre a noção de pós-verdade e verdade sob uma perspectiva psicanalítica. Por meio de uma revisão teórica, discorremos sobre tais perspectivas tendo como cenário o contexto brasileiro das últimas eleições presidenciais e da gestão da pandemia de COVID-19. Articulamos pós-verdade e verdade a uma terceira noção, a autoverdade, a partir da discussão sobre a importância que assume o discurso do psicanalista quando este se posiciona diante dos outros discursos propostos por Lacan, sobretudo em um contexto de risco à democracia. Concluímos que a partir da dimensão clínica, eixo central de sua prática, o psicanalista não pode ser bolsonarista porque, ao ocupar o lugar de a, não estabelece com o outro uma relação de manutenção de um gozo destrutivo, gozo que não leva em conta a responsabilidade subjetiva cujas incidências mais prementes se dão sobre a vivência da alteridade.

Palavras-chave: psicanálise; política; pós-verdade.

ABSTRACT

The objective of this work is to answer why a psychoanalyst cannot be a bolsonarista. For this, we start from the articulation between the notion of post-truth and the truth in a psychoanalytical perspective. Through a predominantly psychoanalytical theoretical review, we discuss such perspectives against the brazilian’s last presidential elections and the management of the COVID-19 pandemic background. We intend to articulate the discussion about the importance that the psychoanalyst's discourse assumes when it takes a position in relation to other discourses, proposed by Lacan, especially in a democracy risk’s context. We conclude that from the clinical practice, the central axis of his job, the psychoanalyst cannot be a bolsonarista because, by occupying the place of a, he does not establish with the other a relationship of maintenance of a destructive jouissance, jouissance that does not take into account the subjective responsibility whose most pressing incidences are on the experience of alterity.

Keywords: psychoanalysis; politics; post-truth.

RESUMEN

El objetivo de este trabajo es responder por qué un psicoanalista no puede ser bolsonarista. Para ello, partimos de la articulación entre la noción de posverdad y la verdad en una perspectiva psicoanalítica. A través de una revisión teórica predominantemente psicoanalítica, discutimos tales perspectivas en el contexto brasileño de las últimas elecciones presidenciales y la gestión de la pandemia de COVID-19. Nosotros partimos de la discusión sobre la importancia que asume el discurso del psicoanalista cuando toma posición en relación a otros discursos, propuestos por Lacan, especialmente en un contexto de riesgo para la democracia. Concluimos que desde la dimensión clínica, eje central de su práctica, el psicoanalista no puede ser bolsonarista porque, al ocupar el lugar de a, no establece con el otro una relación de mantenimiento de un goce destructivo, goce que no tomar en cuenta la responsabilidad subjetiva cuyas incidencias más apremiantes son sobre la experiencia de la alteridad.

Palabras clave: psicoanálisis; política; posverdad.

Luiz Inácio Lula da Silva venceu as últimas eleições presidenciais por uma diferença de pouco mais de 2 milhões de votos. A vitória foi prontamente anunciada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e reconhecida pelos presidentes da Câmara e do Senado e mandatários de outros países com objetivo de validar o processo democrático brasileiro. Apesar disso, depois do resultado, iniciaram-se pelo país manifestações que envolveram o bloqueio de rodovias e ocupação da frente dos quartéis. A vitória não foi reconhecida e nem negada pelo oponente, que afirmou: “os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral” (BBC, 2022). Apesar destas manifestações terem sido consideradas criminosas, elas sucedem uma série de atos reforçados antes de 2022. Corroborando o supracitado pronunciamento ambíguo, o Partido Liberal (PL) pediu a anulação de mais de 200 mil urnas eletrônicas “não auditáveis” (Falcão et al., 2022), o que daria a vitória a Bolsonaro. O TSE o instou a pedir anulação dos votos destas urnas no primeiro turno, quando elegeu a maior bancada de deputados e senadores. Como isso não foi feito, imputou multa aos litigantes por má-fé.

Essas eleições aconteceram depois da pandemia de COVID-19, cuja gestão no Brasil é difícil sintetizar. Em fevereiro deste ano, o país somava quase 700 mil mortes; estas foram decorrentes de um descaso inicial, somadas à cruzada anti-científica, à falta de medicamentos, leitos e oxigênio e, finalmente, agravada pela corrupção e compra insuficiente de vacinas, culminando na instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, cujo relatório requisitou a punição de 80 responsáveis, incluindo o ex-presidente. Ademais, o país voltou a integrar o mapa da fome e, no ranking da Organização das Nações Unidas de 2022, os dados mostram que 61,3 milhões de brasileiros sofreram algum grau de insegurança alimentar e mais de 15 milhões de habitantes (4,1% da população) encontram-se em situação de subalimentação. Entre 2019 e 2021, 15 milhões de pessoas passaram fome no Brasil (eram menos de 4 milhões entre 2014 e 2016), situação que começou a recrudescer em momento anterior à pandemia. As razões disso começam a aparecer com o trabalho da equipe de transição, que identificou retrocessos na articulação entre as pastas com Estados e municípios e forte aparelhamento de instituições, como as polícias. Nos Direitos Humanos, foram prejudicadas políticas públicas de igualdade racial e das mulheres. Na área ambiental, a partir de decreto presidencial, o garimpo foi transformado em “atividade artesanal”.

Essa contextualização é a base das interrogações que nos levam a elaborar este artigo. Isso porque, apesar do amplo desmonte da democracia, das instituições e dos Direitos Humanos no país, a vitória de Lula foi acirrada e deu-se apenas no segundo turno. Diante disso, as perguntas que justificam este texto são: por que foi tão difícil derrotar Bolsonaro? O que acontece agora com o bolsonarismo? Haverá aplacamento dos ânimos e mudança de posicionamento de bolsonaristas à luz dos fatos?

São perguntas incômodas, sobretudo porque partimos do princípio da descoberta freudiana que nos impede de recorrer à crença de que a racionalidade tem grandes efeitos sobre a forma como as pessoas percebem a realidade. A questão que propomos investigar neste artigo é qual o lugar do discurso do psicanalista diante do discurso bolsonarista que, para Kalil (2018) e De Paula et al. (2021), sintetiza os seguintes sentimentos: ódio ao PT e partidos tradicionais; esperança de uma “nova” política; criminalidade; uso de armas; estrutura da família tradicional e liberdade religiosa; desconforto com novas identidades de gênero e educação sexual; liberalismo econômico; saudosismo da ditadura; críticas ao STF e à mídia; anticomunismo; flexibilização de leis ambientais; crítica às recomendações científicas.

O desconforto e o mal-estar diante dessa conjuntura foram sintetizados por Brum (2019) na expressão “doente de Brasil”, condição decorrente da invasão do campo político na vida privada a partir da identificação, definida por Freud (1921/2011, p. 60) como a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa. O que determinaria que essa identificação tenha incidência sobre as relações pessoais e familiares seria o que a autora chama de autoverdade. O psicanalista Rinaldo Voltolini a define como a amputação da palavra no sentido pleno, em que o sofrimento decorreria de uma posição fora das possibilidades de leitura do mundo: “O que você diz não tem valor, não tem sentido, não tem significado. É como se, de repente, você já não tivesse lugar na gramática” (Voltolini como citado em Brum, 2019). Para o autor, a ausência de lugar pode ser comparada à guerra, que extrapola o limite em que a palavra serve como mediação, abrindo espaço para a violência.

No dia 08 de janeiro de 2023, testemunhamos cenas grotescas de invasão, pichação e destruição de prédios emblemáticos da democracia brasileira. O efeito imediato dos atos terroristas foi a reação enérgica das instituições. Quando puxamos os fios do novelo narrativo do bolsonarismo, as considerações são perturbadoras e uma das vias para a compreensão de tal fenômeno pode ser circunscrita no termo pós-verdade (Oxford, 2016), que abarca afirmações disseminadas na internet que prescindem da factualidade, que ganham relevância porque são compartilhadas exponencialmente e que são tratadas como verdades em plataformas que não regulam a qualidade dos dados. Contudo, para Brum (2018), essa palavra não abarca o que vivemos e sugere o que chama de autoverdade: “[...] a valorização de uma verdade pessoal e autoproclamada, uma verdade do indivíduo [...]” (Brum, 2018). É pensando sobre a incidência desses dois termos sobre a noção de verdade para a psicanálise que, por meio de uma revisão teórica, objetivamos situar como o discurso do psicanalista opera em um contexto de risco à democracia, questionando a posição deste discurso diante de manifestações que pregam totalitarismo.

Contra Fatos Há Opiniões

De acordo com o dicionário Michaelis (2023), o termo “opinião” se refere a: uma maneira de pensar, ver e julgar; um ponto de vista ou posição; um parecer sobre determinado assunto; um juízo de valor sobre alguém ou algo; um conceito; um consenso; ideia ou hipótese sem fundamento ou certeza; a liberdade de ter e adotar preferências e convicções religiosas e políticas, a despeito de estarem sujeitas a dúvidas e questionamentos sobre sua validade e seus pressupostos; um capricho voluntarioso; birra, teimosia; e finalmente, um sentimento pretensioso sobre si mesmo. As considerações de Brum (2018; 2019) destacam que o valor das opiniões é intensificado em um cenário dominado pela pós-verdade.

Miranda e Caldas (2021, p. 565) sob uma perspectiva arendtiana, afirmam que a verdade factual é política por natureza porque diz respeito a acontecimentos e circunstâncias nas quais muitas pessoas se implicam, seja enquanto agentes seja enquanto testemunhas. A verdade é, portanto, isso sobre o que se fala. Por isso, ela pode ser manipulada de acordo com interesses de quem detém o poder, produzindo mentiras estratégicas. Nessa perspectiva, verdade e opinião não se distinguem e, se uma verdade factual é perturbadora, pode ser alçada à categoria de opinião, possibilitando que o interlocutor afirme ser de opinião diversa da expressa pelo emissor. O dicionário de Oxford (2016) define pós-verdade como aquilo que reforça emoções e crenças pessoais, sem manipular ou mudar opiniões. Miranda e Caldas (2021) pontuam que a noção de realidade psíquica já se detinha sobre como os afetos determinam as crenças e afirmam: “[...] o apelo emocional sempre esteve ligado à construção da verdade, o que não teve início a partir da recente formulação do conceito de pós-verdade de nossa época” (Miranda & Caldas, 2021, p. 565).

Siebert e Pereira (2020) situam o surgimento do termo em 1992, forjado pelo escritor Steve Tesich, que a definia como uma “[...] inclinação social em que a verdade não era tão importante quanto o que se imaginava verdadeiro” (Siebert & Pereira, 2020, p. 239). Sua reemergência no ano em que Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos leva a questionamentos sobre os sentidos gerados quando se trabalha para a manutenção de valores e crenças. Para os autores, o termo retorna vinculado à campanha presidencial que elegeu o norte-americano e ao referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit). A pós-verdade como acontecimento discursivo os leva a lançar mão da visada pecheutiana, que convida que nos voltemos ao ordinário das materialidades discursivas, dos rituais ideológicos, dos discursos filosóficos, dos enunciados políticos, culturais e estéticos. Trata-se de um posicionamento que também encontramos em Lacan quando ele nos convoca a abrir “[...] os ouvidos para [...] os maravilhosos diálogos de rua... Neles vocês recolherão o estilo através do qual o humano se revela no homem, e o sentido da linguagem sem o qual vocês nunca libertarão a fala” (Lacan 2003a/1953, p. 152). Estar atento ao que é produzido nas ruas pela via discursiva é um ato político: liberar a fala. Essa assertiva vai ao encontro do que Miranda e Caldas (2021, p. 566) afirmam sobre a pós-verdade, que “deve seu advento aos efeitos da teoria psicanalítica desde o início do século XX, influenciando o pensamento de várias teorias conexas, em especial, as da linguagem e discurso”. Eles apresentam John Langshaw Austin, para quem a linguagem descreve ou constata os enunciados, implicando-os como verdadeiros ou falsos. Siebert e Pereira (2020) destacam que no Brexit e nas eleições norte-americanas, os meios de comunicação de massa projetaram resultados diferentes. As razões estariam vinculadas à internet, que possibilitou novas formas de comunicação e informação, cujos conteúdos podem ser contrários aos atestados pela mídia, colocando em xeque o trabalho jornalístico. Em seu contraponto, Brum (2018) diz que a autoverdade “[...] desloca o poder para a verdade do um, destruindo a essência da política como mediadora do desejo de muitos”. Trata-se de um predomínio de valor sobre o ato de dizer e não sobre o conteúdo, aproximando-se da posição de Austin.

Em junho de 2020, quando atingimos o índice de 1.349 mortos em 24 horas, o Ministério da Saúde passou a atrasar a divulgação dos dados de mortos e infectados. Além disso, o boletim oficial não fornecia mais o total acumulado de mortos e infectados, destacando casos registrados como “recuperados”. Nessa época, Bolsonaro afirmou que a medida era “boa para o país” e que impediria o Jornal Nacional de veicular os números de mortes e infectados. A imprensa, então, reuniu-se em um consórcio de veículos para apurar os dados. A partir daí, o número passou a ser questionado, além do aumento da circulação de histórias sobre casos de atestados de óbitos indevidos. Isso faz com que concordemos com Siebert e Pereira (2020), quando afirmam que a significação do termo pós-verdade atrela-se ao aumento de velocidade de veiculação das informações, ao número de informações, e o cansaço e mal-estar diante delas: “Nessa perspectiva, acreditar na informação ou classificá-la como mentirosa de imediato representa um reforço de posicionamento possibilitado pelo caráter ideológico do processo de interpretação” (Siebert & Pereira, 2020, p. 242).

A produção de sentido e a interpretação são caros ao campo psicanalítico, no qual a ênfase se dá sobre a fala. A virtude freudiana é o valor que se atribui à inauguração da cadeia significante, isto é, a partir da noção que constrói sobre a realidade psíquica e sobre as formações do inconsciente como vias possíveis de termos acesso a ela. Dito de outro modo, “[...] a prática psicanalítica, nos mostrou o caráter radical da incidência do significante nessa constituição do mundo” (Lacan, 1972, p. 5). Isso evidencia que o mundo possui estrutura de ficção e situa a prática do analista referida à divisão constitutiva (Lacan, 1966/1998b, p. 869). Essa prática é balizada pela fala e tem seus efeitos porque seu campo conceitual estrutura-se na falta e não na integridade do indivíduo.

A conscientização é contrária à perspectiva que situa a divisão estrutural do sujeito, encarando a demanda como algo que precisa ser resolvido de acordo com os critérios universais. Isso não significa que a experiência psicanalítica não seja moral em que ela enuncia-se assim: Wo Es war soll Ich werden [Onde isso estava, deve o eu advir] (Lacan, 1960/1988, p. 16). Ela é moral porque permite ao eu se perguntar sobre o que quer, pergunta que substituirá os imperativos superegóicos vinculados à demanda. A análise torna mais claros esses imperativos, dando lugar à escolha de se submeter ou não a eles. Lacan recupera o enunciado freudiano, destacando a concepção moral da psicanálise que se dá sobre os efeitos da cisão subjetiva. A frase de Freud convoca, portanto, à responsabilidade.

Diante disso, pensamos que, se a verdade tem estrutura de ficção e estamos imersos na pós-verdade, há que se questionar sobre a via pela qual ela opera. É quando nos deparamos com as fake news: “apostamos que esta seja, pelo menos em parte, relacionada aos tempos necessários para que se possa subjetivar a cadeia associativa no sentido de se tornar responsável por ela” (Miranda & Caldas, 2021, p. 567). Elas têm alcance maciço e potencializado pelas redes sociais, pois carregamos a ferramenta que nos aproxima das informações. Os smartphones equiparam-se à satisfação de se portar um objeto fálico e à satisfação a toque de caixa em que novas versões respondem ao sem sentido rapidamente, sempre que uma nova verdade precisa ser tirada da manga. O tempo imediato entre veiculação e acesso indicam um modo de gozar a partir de “[...] mentiras que se dizem verdades que apontam para o mal que há no Outro, o gozo que não deixa de estar em mim” (Miranda & Caldas, 2021, p. 567). Mas para estes autores não podemos equiparar realidade psíquica às fake news, que se pautam na crença no absurdo e na fomentação do ódio, tendo como efeito ameaçar a democracia. Assim, enquanto a realidade psíquica é uma construção singular de um sujeito, a pós-verdade é a construção imaginária de um indivíduo.

Para Siebert e Pereira (2020), essa posição é reforçada porque os acontecimentos não têm um sentido per se, mas remetem a “[...] elementos subjetivos que conduzem a significação, que por sua vez só pode existir enquanto materialidade perceptível, como notícias, comentários ou previsões” (p. 243). A significação do mundo se dá pela linguagem, via pela qual agimos, “[...] atravessados pelo inconsciente, o interdiscurso, a história, enfim, pelo conjunto de circunstâncias sociais, históricas e simbólicas que chamamos de condições de produção do sentido” (Siebert & Pereira, 2020, p. 243). Eles indicam que quando Tesich falou sobre pós-verdade, o fez sob os efeitos do caso Watergate, que revelou abusos de poder do governo Nixon, gerando um mal-estar que, defensivamente, reforçou a posição em prol de políticas totalitárias. O termo nasce vinculado ao campo político, evidenciando a escolha em fazer vista grossa à verdade. Poderíamos chamar essa posição de cinismo.

É a existência da posição do cínico, que mantém alguns fatos de realidade comodamente em uma posição de ponto cego, como fazem os bolsonaristas em relação às contradições de seu líder, que permite afirmarmos que a psicanálise não se sustenta sob a égide de governos totalitários e não tolera totalitarismos individuais. A esse respeito, Goldenberg (2002) desenvolve sua concepção sobre o cinismo, discorrendo sobre as consequências subjetivas decorrentes da satisfação libidinal que advém do uso e manipulação do outro pelo cínico. Para ele, o cinismo resulta “[...] do fracasso das promessas libertárias da crítica da ideologia de cunho marxista e da concomitante desilusão política e desencanto a respeito das suas alternativas sociais” (Goldenberg, 2002, p. 16). Essa pode ser uma via possível de análise se lembrarmos das características identitárias que definem um bolsonarista segundo Kalil (2018) e De Paula et al. (2021). Se a ideologia é uma falsa consciência, pontua Goldenberg (2002), o cinismo é a falsa consciência ilustrada que não pode ser afetada pela crítica, pela razão, pelo factível. As subjetividades são afetadas por essa formação discursiva, já que há nela uma satisfação libidinal vinculada ao deleite decorrente da manipulação do semelhante. A liberdade, então, é usada cinicamente, justificando transgressões, logo, os atos perpetrados logo após o resultado das eleições e após a posse, encontram-se justificados por uma torção retórica do que seria a liberdade de expressão, o direito à livre manifestação e assim por diante. Ao exercerem a lógica em que a verdade é afirmada “como bem quiserem”, retomamos Brum (2018), que situa o termo autoverdade enquanto “[...] fenômeno que converte a verdade numa escolha pessoal, e portanto destrói a possibilidade da verdade”. As tentativas argumentativas ficam esvaziadas porque sobra nenhum espaço para a alteridade, conceito essencial à psicanálise. Nesse contexto, o valor da autoverdade não reside na ligação com fatos, mas no ato de dizer. Enquanto na pós-verdade as mentiras produzem realidades, na autoverdade poder “dizer tudo” é o que importa, valor atribuído, segundo Solano (2018), a Bolsonaro, que “não tem medo de dizer a verdade”, diferentemente de outros políticos. Por isso, para Brum (2018), na autoverdade a estética é convertida em ética. Se confrontamos um bolsonarista com dados, estes não passam de perseguição e quem questiona é o inimigo, conforme atestaram Silveira et al. (2022).

A psicanálise leva a uma modificação na noção da responsabilidade e situa esta em relação à alteridade, o que significa que o outro não precisa ser amado - elemento essencial às formações identitárias - mas reconhecido. Isso nos faz pensar, por exemplo, sobre o quanto é considerado agressivo, pelos bolsonaristas, o reconhecimento de novas identidades de gênero, de Direitos Humanos, de direito ao território, etc.. A verdade a partir da qual o sujeito opera começa com uma demanda que, ao buscar o universal, submete-se à lei particular. O desafio da análise quanto à demanda é a verdade que ela contém e que se articula ao desejo. O amor à verdade caracteriza a psicanálise porque, ao buscar a verdade do sujeito, ela mantém a ideia de responsabilidade, essencial para o progresso da experiência humana. Se o analista posiciona-se a partir de uma verdade una, uma das marcas essenciais do movimento bolsonarista, ou seja, se faz uso da transferência, prescindindo da verdade que revela o mais além do princípio do prazer, agirá como um canalha. O preço a se pagar por essa canalhice é a psicanálise. O sentido político que se atribui à ética é marcante nos textos lacanianos e fazem referência ao analista que assume sua posição responsável no mundo.

“A verdade como causa, irão vocês psicanalistas, recusar-se a assumir sua questão, quando foi a partir disso que se alçou sua carreira? Se existem praticantes para quem a verdade como tal supostamente age, não são vocês?” (Lacan, 1966/1998b, p. 883). A esse trecho soma-se outro: “[...] enquanto perdurar um vestígio do que instauramos, haverá psicanalistas para responder a certas urgências subjetivas, ainda que qualificá-los com o artigo definido fosse [...] desejar demais” (Lacan, 1966/1998c, p. 237). A verdade da psicanálise reconduzindo esta práxis ao dever que lhe compete no mundo: o de intérprete na discórdia das línguas. Essa função é originalmente assumida por Freud.

Quem tem algo a perder compromete-se porque não pode fazer diferente, e este é o rigor ético que Freud (1937/2018) atesta em Análise terminável e interminável, quando afirma que a relação analítica se baseia no amor à verdade que não tolera o engano e a aparência. Esta frase sintetiza que na análise que visa a um analista, a responsabilidade é grande, afinal, a imprescindibilidade em se abrir mão da bela alma é seu maior e mais particular desafio: “antes é para lembrar-lhes que, como sujeitos da ciência psicanalítica, é à solicitação de cada um desses modos da relação com a verdade [magia, religião, ciência e por que não, bolsonarismo?] como causa que vocês têm de resistir” (Lacan, 1966/1998b, p. 891). As últimas palavras explicitam o compromisso ético (vocês têm de) e o político (resistir).

Vimos que a pós-verdade advém como defesa ao mal-estar diante do totalitarismo de Nixon. Num efeito rebote, os dados vazados inflam o sentimento de soberania nacional e de lógicas totalitárias. Miranda e Caldas (2021, p. 568) situam as fake news como uma ferramenta paradoxal em tempos de pós-verdade porque, ao mesmo tempo em que geram desamparo, destacado na sensação de que “não se pode crer em nada”, oferecem a saída que o sujeito escolhe e que restabelece a tradição e o totalitarismo, [...] pela crença numa verdade supostamente estabelecida, natural, inata, como, por exemplo, a identidade sexual, a família tradicional, ou uma verdade divina incorporada nas palavras de Deus [...]” (Miranda & Caldas, 2021, p. 568). Trata-se da tentativa de construção de uma totalidade imaginária, sobre a qual se remetem a Lacan (1970/2003d), que discorre sobre a burocracia como meio do poder político sustentar a ilusão de garantir o todo. Como essa utopia é um entrave ao trabalho da psicanálise, no próximo tópico discorreremos sobre as especificidades do discurso do psicanalista. Será ele um contraponto ao discurso do cínico, proposto por Goldenberg (2002)?

Discurso, Cinismo e Verdade

No tópico anterior, abordamos o valor que assume para a psicanálise a significante na constituição do mundo ao demarcar sua especificidade diante das noções de pós-verdade e autoverdade. Agora apontaremos como a verdade incide sobre o fazer analítico e o político, práticas que se sustentam sobre bases discursivas, matrizes das relações humanas, cujas peculiaridades evidenciaremos a partir do lugar que atribuem ao significante mestre (S1), ao saber (S2), ao sujeito ($) e ao gozo (a), elementos imbricados na compreensão da ficção que construímos do mundo a partir da posição de cada elemento na fórmula. Discurso é o que faz função de laço social e evidencia uma lógica coletiva. Ele decorre da dianteira do significante sobre o significado, condição do ser falante que não dispõe de um saber sem conhecimento, que é o instinto. Temos, então, de nos virar com a pulsão e seu saber-gozo pautado nas experiências corporais. Para Lacan (1974, p. 06) não há discurso com que fazer laço social, por isso, quando a convivência falha, incita-se as ciências humanas a buscar soluções que desconhecem a estrutura da violência para a qual não existe solução simples.

Essa é a razão porque Goldenberg (2002) diz que, para o psicanalista, a função do discurso implica a posição a partir da qual se responde ao Outro da linguagem. A descrença no elemento capaz de constituir laço social, subsumindo o humano a uma verdade una é indicativa da posição teórica e metodológica da qual parte Lacan (1972, p. 20). O significante estrutura o mundo do ser falante, ou seja, o saber que ele coleciona sobre o mundo (S2). O protagonismo do significante e a ausência de um significado último tornam a linguagem responsável pela produção da causa do desejo. O discurso cria um limite e se considerarmos a verdade como falha do saber, o saber que falha é o do inconsciente, que situa em S2 a verdade. O discurso do mestre carrega a verdade a ser desdobrada e a essência desta posição é a castração. Essa verdade se produz na estruturação da cadeia significante, cujo efeito é $. Mas, por mais que $ seja efeito de S1, desdobra-se nos subsequentes dessa cadeia, isto é, S2.

Para Lacan (1960/1998e, p. 824), por constituirmos uma relação imaginária com o outro, desequilibramos a lógica do espírito da razão e seus imperativos, evidenciando-se o conflito da relação Senhor-Escravo, diante da qual intervém o Estado. Lacan (1948/1998a, p. 123) explicita que a agressividade decorre deste conflito porque contamos com o trabalho do outro, evidenciando o risco do reconhecimento de um humano pelo outro, em uma dinâmica que exclui o recurso à moral do homem bom. Por isso, a segregação retorna, originando a fraternidade, constituída por traços identificatórios, possível diante do isolamento dos diferentes pela via do ódio (Lacan, 1956/1998d, p. 482). Essa é uma conclusão de Freud (1921/2011), quando afirma que a melhor forma de coesão é o ódio pelo outro. O imperativo do amor ao próximo leva ao ódio extremo, basta que não consigamos construir com ele algum elo de identificação. Não à toa, as prisões decorrentes dos atos terroristas de 8 de janeiro levaram à satisfação intensa até dos mais anti-punitivistas. Ao mesmo tempo, é esse o fator que torna tão difícil o diálogo com os bolsonaristas que ficam siderados nas autoverdades que lhes convém. Quanto mais identificados uns aos outros, maior é a univocidade a partir da qual os integrantes do grupo respondem. A fraternidade não é automática, por isso Lacan (1970/1992, p. 120) situa a “obstinação com a fraternidade, liberdade e igualdade” como recobrindo o gozo destrutivo voltado ao outro, locus do mal e sede dos problemas.

A religião inventa um pai para amar, inaugurador do discurso do mestre, pois reúne amor, ódio e ignorância (Lacan, 1970/1992, p. 137), três paixões das quais o psicanalista se exime, evidenciando o único sentido possível à “neutralidade do analista”. Contudo, a busca por um pai, aponta Goldenberg (2002), é uma via para garantir a própria filiação e, consequentemente, um lugar no mundo. Assim, a pós-verdade é a tentativa arraigada de não se deparar com o desamparo e falta de referências; um esforço em manter as referências inabaláveis, apesar de todas as circunstâncias. É o que Brum (2018) chama de confusão entre ética e estética. Se o mandatário diz algo absurdo, o conteúdo não deve ser levado em consideração: o importante é que ele diga e não o que ele diz. Para Lacan, o inconsciente se porta como mestre porque é um saber que fala por contra própria.

No discurso do capitalista, o lugar do saber muda porque o proletário não detém o saber, tornando-se consumível. O Outro é repleto de saber do qual o ele foi excluído, base para a fantasia de um saber-totalidade (S1). Nossa hipótese é que reside na ilusão de ter ou defender um saber em sua totalidade a dificuldade em apresentar argumentos contrários a ele, o que torna o interlocutor surdo. Por isso, os atos terroristas podem ser lidos como sendo efeito de seus impetrantes, sendo eles mesmos produtos do discurso que os referencia - mas isso, é claro, não deve desresponsabilizá-los disso, seja do ponto de vista penal seja do ponto de vista subjetivo, porque a boa-fé não salvaguarda ninguém. A argumentação construída no tópico anterior permite-nos afirmar que uma análise impede o recurso à boa-fé e isso é verdade para demarcar a posição do analista frente a atos que colocam em risco à democracia e também na maneira como isso se presentifica nos tratamentos que dirige.

O discurso do capitalista vive uma crise porque ele funciona enquanto sua ação consome a mais-valia, porém, está destinado a colapsar (Lacan, 1972, p. 18). Pensamos que os movimentos de extrema direita seriam resultantes da tentativa de evitar esse colapso, não importa se o preço a pagar é submissão de muitos e a destruição (de comunidades inteiras, do planeta, da convivência). Ceder a pautas vinculadas aos Direitos Humanos e à preservação ambiental descaracteriza o lugar do humano como produto consumível. Para que este discurso do capitalista se mantenha, conta com o do universitário, construtor do conhecimento necessário à alienação e que alicerça a ação da ciência, em que o lugar dominante é o de S2. Não à toa, se o conhecimento universitário não agrega ao discurso do capitalista, ele é desmerecido em sua função e deve ser extinto, e isso nos permite antever porque a cruzada anti máscaras e vacinas virou uma das pautas predominantes do bolsonarismo. A psicanálise, embora contrária às tentativas reacionárias de travar o desenvolvimento científico, não se sustenta sobre a ilusão de que, por essa via, alcançaremos um laço social de verdade. Quanto ao campo da pós-verdade, se o que a ciência tem a oferecer é contrário ao que sustenta determinada posição, ela será desacreditada. Na pandemia, em prol da liberdade do exercício da profissão, médicos foram amparados em decidir por tratamentos ineficazes contra a COVID, reforçados pela autoridade máxima do país que negava ter se vacinado.

Se nossa pergunta é como o psicanalista se situa frente a isso e a característica desse discurso é abrir mão da mestria, ele opera enquanto os mestres se proliferam através do discurso do capitalista, que se apoia sobre saberes mais ou menos técnicos. Por isso, é uma incoerência ética e epistemológica um psicanalista posicionar-se ao lado daqueles que se empenharam em pautas negacionistas quanto à COVID-19. O psicanalista deveria ser um contraponto a eles, fundamentado em seu objeto de investigação ser o mais arguto dos mestres, cujas incidências se dão sobre essa ficção chamada realidade. Então, a psicanálise fará seu papel se os psicanalistas assumirem seu lugar na confusão de línguas que condenou os humanos a não se entenderem, abandonando a boa-fé, a esperança e a caridade e questionando toda posição que se paute nesses três preceitos. É nas descobertas fundamentais freudianas que vemos as fórmulas lacanianas se movimentarem, indicando a mudança do discurso da histérica, que parte da condição de sujeito dividido e pelo desejo de saber sobre as incidências do significante, para o discurso do analista, que se coloca em relação ao analisante como a, capaz de suscitar o desejo de saber sobre o inconsciente:

No lugar de a, ela busca um mestre que dê a resposta (S1), desse modo, o que conduz ao saber (S2) é o discurso da histérica. O do analista, marcado pelo lugar de a, provoca o desejo de saber no analisante, incentivando-o a associar livremente. Ele assume o lugar de causa do desejo, convidando o outro a abandonar as referências anteriores, apresentando-se em oposição à vontade de dominar, único contraponto ao mestre, já que questiona para que serve esse saber que exclui a verdade. A palavra é dada ao analisante e a posição de mestre é ocupada por ele. O analista contribui com o seu ser, com a interpretação e com seu juízo, mas seu destino é ser eliminado, investido o analisante como sujeito suposto saber.

Ao colocar-se como a, o analista remete-se ao outro como $, o que na fórmula escreve-se a → $, em que o analista como causa do desejo busca alcançar, no indivíduo, sua condição de fragilidade, a partir da qual se complica a relação entre as pessoas e aponta constantemente para as contradições que envolvem o desejo, incluindo-se aí o desejo de destruir o outro. O amor universal obstrui a verdade porque não comporta a castração e porque une via identificação. Se não há castração, falta espaço para questionamentos em relação a si e aos outros. Por isso, a forma com que o significante mestre induz e determina a castração, instala no sujeito a dúvida sobre si mesmo, sobre suas certezas. A verdade é para ser amada e questionada porque somos todos afetados por ela: “a verdade não é outra coisa senão o que o saber só pode aprender que sabe ao pôr em ação sua ignorância” (Lacan, 1960/1998e, p. 812). Para tratar a verdade, devemos colocar em suspenso o saber, permitindo ao sujeito ultrapassar o individual e se deparar com o outro.

Goldenberg (2002) retorna a Sócrates que, ao se recusar a fugir da sentença de morte, atesta a posição ética de não recuar da premissa, que seria o início do pensamento ocidental. Em oposição a isso, o Cinismo, movimento der Diógenes, pretendia fazer da filosofia um ato de improviso e do filósofo um bobo da corte. Os cínicos rejeitavam as exigências sociais, regras e autoridade, mas eram extremamente dependentes. A liberdade que buscavam era a da palavra, isto é, de poderem falar o que bem entendessem sem sofrer as consequências, em que seria possível se livrar das leis de forma performativa. Pensamos que essa perspectiva vai ao encontro da noção de autoverdade, em que o ato de dizer é mais importante do que o conteúdo, gracejo do bobo da corte que não tem medo de dizer porque não está preso ao “politicamente correto”, e o argumento impetrado é sempre o mesmo: liberdade de expressão.

Quanto ao analista, ocupar o lugar de a é o mais opaco dos efeitos de discurso, o de causa do desejo. Porém, para que o efeito da verdade se propague, a queda do saber é imprescindível: “Quanto mais a procura de vocês envereda pelo lado da verdade, mais vão sustentar o poder dos impossíveis [...] governar, educar, analisar eventualmente”. (Lacan, 1970/1992, p. 198-199). O psicanalista não pode ser bolsonarista e fazer vista grossa aos discursos que visam eliminar as diferenças porque trata-se de uma posição em que o saber unívoco se encontra no lugar da verdade, sem espaço para questionamentos, e para a possibilidade de existência do diferente. Dito de outro modo, uma via discursiva segundo a qual a minoria tem que se dobrar à maioria, contrariando a própria Constituição e evidenciando uma posição típica de autoverdade.

Lacan (1967/2003c, p. 264) relata ter ouvido de um analista que este jamais atacaria as instituições porque elas asseguram uma vida cômoda. A fala aliena a psicanálise de seu dever na sociedade e torna seu autor conivente com as arbitrariedades em nome do poder: “[...] diz-se [...] que os psicanalistas [...] nada querem saber da política. O chato é que eles são tão empedernidos que eles próprios se vangloriam disso [...]” (Lacan, 1970/2003d, p. 438). Se há um papel a ser desempenhado pelo analista, seu engajamento político se dará a partir da própria psicanálise para que ela continue possível, porque a psicanálise exige condições sociais, políticas e econômicas para existir. Isso significa dizer que não basta ao analista alinhar-se às arbitrariedades do poder porque o que ele consegue com isso é no máximo salvar a própria pele, demarcando a psicanálise como mera ferramenta do capitalismo, que pode se transformar em ferramenta poderosa manipulação (Goldenberg, 2002, p. 96).

A psicanálise é um instrumento que rasga o véu da fantasia: “[...] e a angústia de descobrir que ‘quem sabe de mim não sou eu’ provoca imediata corrida ao pai (qualquer pai) para garantir a própria filiação, isto é, um lugar no mundo” (Goldenberg, 2002, p. 99). Podemos pensar que a pós-verdade é profusa por acenar em direção a essa garantia. O ideal do bem comum, o amor ao próximo, e o controle social contrapõem-se ao discurso do analista, pois a relação pautada em ideais cobra o preço do acesso ao desejo. Freud e Lacan evidenciam a via da psicanálise, cuja relação com a política engaja-se na articulação do plural e o singular, local para a palavra. Lacan compreende que, na psicanálise, o inconsciente se ordena como discurso e pontua que este - o discurso analítico -, coloca os demais à luz ao revelar como um agente se dirige ao outro; ele introduz uma novidade.

A novidade reside em esta ser uma operação que não pensa, não calcula e não julga, extraindo da prática o bem-dizer. O dizer de Freud é sua descoberta que permitiu com que ele fosse visto e reconhecido. Lacan situa esse discurso referido ao sujeito, efeito de significação e resposta ao real contidos em um “dizer não” ao universal, ou seja, uma verdade que responda a todos, tornando a felicidade um fator da política à medida que para fazer parte do todo seria preciso ser como todo mundo (Lacan, 1970/1992, p. 76). A verdade está vinculada ao ideal e sua dimensão política destaca-se nos modos de obtê-la e a quem atribuímos a nossa própria infelicidade. É isso o que torna essencial nos atentarmos à formação do psicanalista, que oferece uma opção às formas usuais de lidar com o mal-estar. Evidenciamos que o saber do inconsciente é a verdade, que nunca pode ser dita por inteiro. Estamos sujeitos à determinação de suas incidências e essa sujeição é a própria marca do processo humanizador. Mas destacamos também que não podemos ser desresponsabilizados por essa lógica que nos engendra. Quando Lacan enuncia os discursos, o situa não em oposição, mas com os outros discursos, tendo também ele a função de fazer um arremedo de laço social, de dimensionar as incidências dos demais sobre a vida e permitir novos posicionamentos em relação a eles, questionando o saber. Como então, um analista, efeito de uma análise, pode posicionar-se a partir de uma dimensão discursiva como a do bolsonarismo? Do ponto de vista da posição ética cuja alegoria é Antígona, seria da ordem do impossível. Para finalizar, recorremos a Goldenberg (2002) que diz haver no Brasil razões históricas para a tendência à servidão voluntária e o cinismo consegue se enraizar nesse tipo de solo, já que “cresce e floresce no meio desta nostalgia do pai, que já nos empurrou para braços militares e para os de todo tipo de aventureiro que sustente uma retórica messiânico-autoritária” (Goldenberg, 2002, p 101). A partir dessa retórica, é atraente se posicionar de forma acéfala, a ponto de as palavras soarem como uma espécie de dissonância cognitiva. A defesa arraigada a tudo aquilo que reforça o que já acreditamos, independentemente das considerações factuais, cria uma vida de sonho, mas que, pontua Goldenberg (2002), “como no conto de Borges, alguém nos está sonhando e a irresponsabilidade de não fazer nada nos tranqüiliza e nos adormece” (p. 101).

Considerações Finais

Durante a campanha eleitoral a candidata ao senado Damares Alves fez um relato em um culto evangélico, afirmando ter imagens de crianças submetidas a uma série de violências sexuais. O vídeo se tornou viral e nele a ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos afirmava que tais atos seriam emblemáticos do que chama de “guerra espiritual” contra Bolsonaro. Quando incitada a comprovar a veracidade de suas afirmações e por que não protegeu essas crianças, levando-se em conta o cargo que ocupava, ela não foi capaz de apresentar as imagens ou outras comprovações. Limitou-se a dizer que seu relato partiu de denúncias que “se ouvem nas ruas, na fronteira”. Para enriquecer sua retórica contra a violência sexual infantil, valeu-se “do que se diz”, abrindo mão da factualidade e compartilhando suas fantasias envolvendo as crianças violentadas.

Meses depois, Machado et al. (2023) veicularam com exclusividade fotos que retratam a condição de extrema desnutrição de crianças indígenas yanomami. No governo Bolsonaro, 29% a mais de crianças yanomami morreram em decorrência de causas evitáveis e tais informações são ilustradas. As diversas fotografias tiradas por profissionais de saúde, jornalistas e indígenas são chocantes. A tragédia yanomami foi chamada pela atual gestão de genocídio, palavra que foi, segundo Ventura (2023), criticada e revisada pelos entendidos que, fazendo uso amplo do discurso universitário, explicam que o termo não se aplica à dimensão da tragédia. Para eles, a morte de centenas de crianças não justifica a palavra. Em contrapartida, Bolsonaro afirmou que nunca nenhum governo dispensou tanta atenção aos indígenas quanto o dele. Ele diz, e é o que conta, apesar das fotos, dos dados, do número de mortes e o de desnutridos. Ele reitera a negação das mortes e do fato vinculado a ela: o objetivo deliberado de acabar com essa população. Ele nega a própria responsabilidade em relação, colocando em descrédito não o que aconteceu, mas quem denunciou o que aconteceu.

Esses dois recortes são emblemáticos do que discutimos neste artigo. Eles exemplificam tanto a profusão de acontecimentos com que nos vemos inundados quanto a rapidez com que a internet é capaz de veicular informações e mentiras. As duas situações também destacam como as atualizações das narrativas vinculadas a elas acontecem de forma disparada a partir de teorias e posicionamentos que vêm acompanhados do imperativo de se emitir uma opinião. Diante da profusão desses discursos e das dificuldades em fazer frente a eles, doentes de Brasil que estamos, nos vemos imersos em um mal-estar, efeito de um limite que parece ser intransponível, que é o limite da razão e da verdade, porque, diante desse discurso, não parece haver diálogo possível. Se esse diálogo não é possível é porque a fala ultrapassa qualquer conteúdo, ponto central da noção de autoverdade que aqui apresentamos. Em nossas relações cotidianas, diante das diversas situações em que o outro se apresenta para dialogar, o debate é feito de fatos, provas e argumentos, a partir dos quais se constrói um saber minimamente razoável, que permite a sensação de ouvir e ser ouvido. A partir da perspectiva que apresentamos aqui, esse caminho usual não serve de nada porque o ouvido do interlocutor é surdo. Entendemos com nossas articulações que isso acontece porque a linguagem nessas situações é de outra ordem. A prática analítica ensina que, sob transferência, é possível manejar essa linguagem outra, que é gozo e não é diálogo.

Contudo, o fenômeno sobre o qual nos debruçamos ocorre em ampla escala. Por isso é assustador, levando ao limite da impotência, o que explica porque o sofrimento diante dele é palpável. Foram tantos os limites transpostos no governo Bolsonaro que pensaríamos que poderiam ser o bastante para demover seus eleitores do estado de servidão. Mas não. Ele foi derrotado nas urnas por muito pouco. Não somos capazes de dizer, por meio deste artigo, quais serão os desdobramentos do bolsonarismo nos próximos anos, sobretudo levando em conta a eventual responsabilidade que a ele seja atribuída pelos atos impetrados por alguém que teve certeza que o Estado era ele. Sabemos que o movimento Bolsonarista se organiza para eleger um próximo candidato, não necessariamente vinculado ao clã familiar, pois o bolsonarismo não se restringe à figura enfraquecida e descolorida de Bolsonaro, seus filhos e esposa, mas a uma oposição radical ao diferente, oposição que ele foi capaz de encampar bem o bastante para que isso fosse reconhecido como sua principal virtude: a de ser movido por e movimentar um gozo destrutivo. Uma pesquisa futura deverá analisar o desdobramento do cenário nos próximos quatro anos.

Como se autoriza a dizer tudo, sempre que ele fala, isso o inflama a dizer ainda mais coisas sem sentido. E se diz de forma raivosa, sem conteúdo e sem proposta, isso não faz diferença para os apoiadores, que não entendem isso como falta, mas como qualidade. O que pode ser o puro retrato da incompetência, da maldade, do despreparo, do horror, reitera seu atestado de força e de caráter, de modo que o líder foi alçado à categoria de totem sem ter sido devorado. Diante disso, concluímos nossas elaborações retomando duas perguntas que serviram de justificativa para elas: há algo capaz de aplacar o furor bolsonarista? Há alguma dimensão de esperança? Do ponto de vista das instituições que garantem a democracia, a partir do que aqui defendemos pela perspectiva da psicanálise, uma via importante de ação é a imputabilidade, isto é, as pessoas serem responsabilizadas pelo o que dizem e pelo o que fazem. Não cremos que os apelos ao aplacamento das diferenças e convivência pacífica com posicionamentos destrutivos seja viável porque pensamos que tentar unir pela via do amor é um reforço ao ódio e às identificações dele decorrentes, o que, na perspectiva psicanalítica, não parece justificável. Outrossim, respondemos à pergunta-norte desse trabalho que é: por que o psicanalista não pode ser bolsonarista? Ora, a partir da dimensão clínica, eixo central de sua prática, ele não pode porque, ao ocupar o lugar de a, não estabelece com o outro uma relação de manutenção de um gozo destrutivo, que não leva em conta a responsabilidade subjetiva cujas incidências mais prementes se dão sobre a vivência da alteridade, caminho melhor que o amor, porque exclui o recurso à moral do homem bom. A alteridade permite auxiliar o outro a atravessar a solidão inerente à condição de castração. A política é um fazer inventado pelos humanos para poderem viver juntos e por isso atrelam-se à felicidade. Somos marcados pela linguagem e ela falha sempre, razão porque os discursos não fazem mais do que uma tentativa de laço social, tendo a função de suplência àquilo que se perdeu quando nos humanizamos. Assim, se a democracia está em risco, um psicanalista aliar-se ao lado daqueles que impetrar tal risco é, para dizer o mínimo, uma incoerência epistemológica.

Referências

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Recebido: 14 de Maio de 2023; Revisado: 17 de Agosto de 2023; Aceito: 31 de Agosto de 2023

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Livia Alves Ferreira Av. Professor Acrísio Cruz, 147, Bloco Mooera, ap. 704, Salgado Filho, Aracajú - SE, Brasil. CEP 49020-210, Endereço eletrônico: livia.a.ferreira@gmail.com

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