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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.1 Rio de Janeiro abr. 2010

 

ARTIGOS

 

Amizade e experimentação política: solidariedade e resistência entre amigos nas classes populares

 

Friendship and experimentation politics: solidarity and resistance between friendas in the popular classrooms

 

 

Lívia Godinho Nery Gomes; Nelson da Silva Junior

Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende descrever e discutir alguns resultados de uma pesquisa que investigou a possibilidade da amizade se configurar como espaço de experimentação política. A relação de amizade mostrou-se um importante vínculo de escuta e acolhimento, de troca de conhecimentos e aprendizagens. A solidariedade entre amigos revelou modos criativos, solidários e astuciosos de enfrentamento de condições espoliantes, fundamentais para a resistência e organização política, contribuindo para reverter situações de extrema dificuldade e penúria.

Palavras-chave: Amizade; Alteridade; Experimentação; Solidariedade; Resistência.


ABSTRACT

This paper aims to describe and discuss some results of a research that investigated the possibility of friendship is set up as an area of political experimentation. The relationship of friendship shown to be an important link of listening and reception, exchange of knowledge and learning. The solidarity among friends showed creative ways, fundamental to the strength and political organization, helping to reverse situations of extreme difficulty and destitute.

Keywords: Friendship; Otherness; Experimentation; Solidarity; Resistance.


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende descrever e discutir alguns resultados da pesquisa de mestrado “Semânticas da amizade e suas implicações políticas. Familialismo e alteridade entre amigos nas classes populares” (GOMES, 2005) que investigou as semânticas da amizade nos discursos contemporâneos e a possibilidae da amizade se configurar como espaço de experimentação política. Nele, a proposta é analisar os resultados concernentes à experimentação política da amizade.

A pesquisa foi realizada em cooperativas populares e buscou investigar se a amizade constitui um vínculo propício ao falar e agir – entendidos como experiências eminentemente políticas, das quais podem irromper movimentos coletivamente organizados implicados com práticas solidárias e de cidadania.   A amizade compreendida em sua qualidade política não pressupõe intimidade e familiaridade, constitui uma abertura ao outro numa relação de igualdade política cujo diálogo entre amigos designa a possibilidade de pôr em palavras os assuntos concernentes à vida em um mundo compartilhado – essa experiência discursiva da amizade torna o mundo humanizado, pois “humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao falar disso, e no curso da fala aprendemos a ser humanos” (ARENDT, 2008, p.34). A compreensão da amizade em sua qualidade política concerne à relação de abertura ao outro voltada para experimentação, cujo caráter de imprevisibilidade e indeterminação apontam para a possibilidade de deslocamentos e transformações da subjetividade que podem instaurar ações políticas inovadoras.

Alguns autores como Arendt (1993), Derrida (1997), Ortega (1999, 2000) propõem pensar a amizade desvinculada da tradicional semântica familialista1. Eles compreendem a amizade como relação privilegiada de experimentação política precisamente por sua qualidade de imprevisibilidade no vínculo com a alteridade. A compreensão da relação de amizade como abertura ao outro em sua alteridade, implica um espaço intersubjetivo agonístico que exige dor e esforço num contexto de inadaptação próprio do contato com a alteridade.

Derrida (1997) fala da amizade como um espaço aberto para o novo, para a experimentação, qualificado como uma condição de talvez (perhaps). Ele ressalta que a dimensão do talvez carrega a extrema alteridade, a possibilidade do outro. A amizade como talvez traz consigo a possibilidade do risco, da incerteza, da instabilidade, uma abertura para experimentar o novo e o indeterminado.

A imprevisibilidade é a marca dessa amizade instável, dinâmica, como espaço aberto para o acontecimento, para invenção, a qual nos faz pensar autores como Arendt (1993), Derrida (1997), Ortega (1999, 2000), entre outros. A amizade como talvez implica o movimento de desejo, de ação, constituindo, utilizando-se as palavras de Ortega (2000) a “experiência mesma do impossível” (p.96). Ortega (2000) utiliza o conceito de programa vazio”, conceito que Foucault relaciona à sua noção de amizade como experimentação, para ressaltar o caráter processual e imprevisto da amizade, como metáfora para uma amizade aberta, uma relação por vir, espaço que possibilita a imaginação e criação de novas formas de relacionamentos.

A solidariedade que floresce, nas relações de amizade, compõe laços essenciais de ruptura e resistência aos modos de subjetividade e relacionamentos dominantes engendrados pelo neoliberalismo. As narrativas dos sujeitos revelaram que a amizade pode abrir caminho para a experimentação de novas relações e modos outros de existir, impelidos pelo exercício de cidadania.

A generosidade que a amizade emana compõe relações de experimentação do sair-se de si para o outro, impelidas pela preocupação e consideração do outro que podem configurar laços coletivamente organizados cuja força aponta para a emergência de novos sujeitos sociais que podem desestruturar formas de relacionamento e subjetividade. Nesse sentido, a política é indissociável das relações afetivas. Quando os homens não se dispersam, solidarizam-se uns com os outros e podem juntos desestabilizar formas fixas de sociabilidade e subjetividade que resistam à massificação e nivelamento.

 

METODOLOGIA

Esta pesquisa foi desenvolvida com trabalhadores de cooperativas populares. Os dados provêm da participação no cotidiano de três cooperativas durante o período de um ano, registrada em diário de campo, e da análise das sessões de entrevistas com os cooperados. Todas as entrevistas foram gravadas, com prévia autorização dos sujeitos, os quais também assinaram termo de consentimento livre informado que garante a não identificação pessoal dos sujeitos e da instituição. Todos os sujeitos entrevistados são adultos com faixa etária maior que 20 anos e moram em bairros periféricos de São Paulo.

Antes de começar a etapa da entrevista propriamente dita, houve um período no qual se acompanhou o cotidiano de cada uma dessas cooperativas para informar sobre a pesquisa e para conhecer os cooperados participando, na medida do possível, de espaços de reunião e acompanhando o trabalho de alguns deles. Momentos que foram relatados em diário de campo. Portanto, as primeiras entrevistas só foram realizadas após dois meses de convivência com os cooperados e quando eles mesmos apontaram o momento de realização dessas, solicitando-me para entrevistá-los. Inicialmente, entrevistaram-se 12 (doze) pessoas individualmente, dentre os quais foram escolhidos 7 (sete) sujeitos para a pesquisa. A escolha dos sujeitos pautou-se numa dimensão afetiva, selecionando aqueles que se sentiram mais à vontade com a pesquisadora no momento da entrevista, contando mais aberta e longamente suas histórias de amizade, configurando um espaço mais “relaxado” de conversa – tal como informa a amizade. Com estes 7 (sete) sujeitos escolhidos foi realizada, posteriormente, uma segunda sessão de entrevista na qual foram retomados histórias e fatos relatados na primeira entrevista para aprofundá-los, esclarecendo possíveis dúvidas que tenham ficado ou fazendo novos comentários ou perguntas.

Este trabalho utilizou a descrição etnográfica como metodologia interpretativa das narrativas de amizades. De acordo com a descrição etnográfica, os discursos de amizades dos sujeitos são entendidos com narrativas de significados (BRUNER, runer 1986; GEERTZ, 1989). Nesse sentido, as narrativas de amizades dos sujeitos desta pesquisa iluminam as semânticas da amizade bem como contribuem para elucidar a qualidade política da amizade. Estas narrativas contemporâneas dão significado à experiência da amizade, além de produzirem novos vocabulários e sentidos – como compreendem Bruner (1986) e Geertz (1989).

As histórias de amizade foram relatadas em sessões de entrevistas nas quais as perguntas se configuraram apenas como um iniciador para um espaço de conversas. Esta relação comunicativa na qual o sujeito entrevistado não é tomado como alvo, mas como interlocutor, implica um encontro cuidadoso de dedicação no testemunho dos outros, no gosto pela opinião do outro - como informa a amizade (ARENDT, 1993, 2001). O contexto de entrevista possibilitando conversa na acepção política e ética do termo, configurando um aproximar-se-de-alguém que tem rosto - no sentido Levinasiano do termo, pois, conforme atenta Bosi (2003), a qualidade da entrevista depende da qualidade do vínculo com o narrador. A entrevista compreendida com a qualidade de um encontro atencioso, que envolve responsabilidade pelo outro e “deve durar quanto dura uma amizade”, segundo ilumina Bosi (2003): “a entrevista ideal é aquela que permite a formação de laços de amizade; tenhamos sempre na lembrança que a relação não deveria ser efêmera.” (p. 60). Portanto, a entrevista concebida como encontro no qual o depoente não é tomado como alvo de interpretações, mas que seja tomado como intérprete, ele mesmo, através de suas narrativas de amizades.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Amizade, Alteridade, Experimentação

O inesperado e o surpreendente são qualidades inerentes à concepção política arendtiana de ação e discurso. Agir, no sentido arendtiano do termo, significa iniciar, começar algo novo humanamente revelado por meio de palavras. Através da ação e do discurso os homens distinguem-se singularmente revelando-se e manifestando-se uns aos outros. Agir é uma iniciativa que tem como ponto de partida um iniciador, envolvendo um caráter utópico: a preposição daquilo que ainda é sem lugar entre nós. Nesse sentido, a ação constitui um movimento de natalidade e de milagre, instaurando o inesperado.

Com a sua teoria performativa da ação, Arendt (2001) aponta uma ação política como acontecimento e começo, como interrupção de processos automáticos. As ações humanas se caracterizam pela ausência de limites e pela imprevisibilidade das conseqüências. O agir constitui uma história cujo desenlace é desconhecido. Em outras palavras, na esfera da ação política é precisamente o inesperado que acontece. Arendt (2001) utiliza a metáfora do milagre e da dimensão de natalidade para caracterizar a ação política, pois a capacidade de produzir milagres é inerente ao agir.

Como experiências intersubjetivas, o agir e o falar implicam a parceria, a companhia dos outros, a conquista da adesão dos outros mediante persuasão e não pela violência ou coerção, para que a ação desempenhe um ciclo completo de experiência inaugural, inovadora. É nesse sentido que aquele que age não é somente agente, mas precisa esperar pelos outros. “Pelo fato de que se movimenta entre e em relação a outros seres atuantes, o ator nunca é simples ‘agente’, mas também, e ao mesmo tempo, paciente. Agir e padecer são como as faces opostas da mesma moeda (...)”. (ARENDT, 2001, p.203).

Segundo Arendt (2001) os discursos e feitos da ação só são deixados quando testemunhados e guardados pela memória dos outros. A ação se liga a alegria de aparição, de glorificação; a glória corresponde a uma luz incidente no agente pelo testemunho dos outros. O testemunho dos outros ilumina o agente. A glória é a luz que vem dos outros, o rosto do outro que ilumina.Retomando Lévinas (1993), é a luz pública que parte do testemunho das ações por outros. Essa luminosidade política aparece por meio de uma iniciativa através de palavras, que somente se perfaz em companhia dos outros, em presença de quem as palavras ficam como que iluminadas, brilham. “Dada a tendência intrínseca de revelar o agente juntamente com o ato, a ação requer, para sua plena manifestação, a luz intensa que outrora tinha o nome de glória e que só é possível na esfera pública.” (ARENDT, 2001, p.193).

Portanto, agir entendido como experiência política, implica a parceria, a companhia dos outros. A ação, nesse sentido arendtiano, possui caráter não violento e não coercitivo, na medida em que ela necessita dessa parceria, alcançada pela persuasão, por meio de conversas e não pela violência, para desempenhar um ciclo completo de experiência inaugural, de experiência inovadora. É nesse sentido, de espaço de experimentação e diálogo, que a amizade é por excelência uma atividade política que potencializa o agir - no aspecto arendtiano do termo – em outras palavras, a amizade instaura o agir, possibilitando iniciar, perfazer com os outros a iniciativa, conquistando a adesão destes mediante a palavra e não mediante a coerção ou mando.

O Espaço Compartilhado daAamizade como Seiva da Memória

A experiência discursiva da amizade na qual existe uma relação de igualdade política, e os amigos como agentes e falantes compartilham perspectivas de como se põe na vida, torna o mundo humanizado. “Esse humanitarismo a que se chega no discurso da amizade era chamado pelos gregos de filantropia, o “amor do homem”, já que se manifesta n presteza em compartilhar o mundo com outros homens”. (ARENDT, 1986, apud Bauman, 2004, pág. 177).

A qualidade discursiva da amizade implica uma relação de abertura ao outro, em que a troca de opiniões no diálogo possibilita a experimentação do deslocamento de perspectivas e uma relativização das idéias e pensamento, diante dos incalculáveis posicionamentos sobre o que é próprio deste mundo. Nesse espaço de compartilhamento da vida, num vínculo de acolhimento e escuta, a prazerosa e desconcertante conversa entre amigos possibilita o alcance da solidariedade, da comunidade.O que a amizade alcança é justamente a comunidade” (p.99), disse Arendt (1993). Essa dimensão da comunidade, aquilo que é próprio da coletividade, é atingido pelo espaço de compartilhamento de conversas da relação de amizade, pois “nós humanizamos o que se passa no mundo e em nós mesmos apenas falando sobre isso e no curso desse ato aprendemos a ser humanos” (ARENDT, 1993, apud BAUMAN, 2004, p.177). Essa fantástica experiência foi mostrada na história de Pedro que, em conversas com seus três amigos, pôde produzir sentido para os momentos bons e ruins vividos na periferia, as “cenas boas” e as “cenas ruins”:

Ah, vou falar de onde eu moro: tem três amigos meus assim que, são, dispensa comentários, são amigos de infância, a gente já viu muita cena junto, cenas tristes, cenas boas, e eu posso falar que a gente tirou de cenas ruins a gente tirou lição, tirou proveito e fizemos tipo um espelho pra não acontecer com a gente isso, e das cenas boas a gente fez aquele momento valer a pena e cada momento de hoje quando vejo eles no local onde moro, a gente joga futebol e tudo mais, alguns trabalham também, a gente se vê final de semana, a gente aproveita o máximo possível assim porque, as coisas ruins, assim, que a gente via, pelo lugar que mora, periferia e tal, hoje está mais sossegado, então a gente olha para o passado e às vezes a gente conversa assim, três amigos mesmo, nossa mais a gente já passou por isso e aquilo outro, então a gente fala do tempo de antigamente. (PEDRO)

As coisas ruins, a gente retorna no passado e fica falando como exemplo que está hoje, a gente fala de vários episódios assim que aconteceu quando a gente era pequeno, fatos engraçados, as coisas que são mais tristes a gente tira como exemplo que pode acontecer hoje, que está acontecendo, a gente fala olha, lembra quando a gente era criança, aconteceu isso, está acontecendo do mesmo jeito, e é assim, como eu falo hoje todo mundo está maior está com a cabeça, está assim bem estruturado, é conseguiu relevar tudo isso que aconteceu, assim, pelo fato de a gente morar em periferia, a gente viu bastante coisa, então as coisas boas a gente rir hoje, brinca e as coisas ruins graças a Deus foi ruim porque aconteceu, mas serviu de exemplo, a gente vê venda de droga, até hoje a gente vê, assim escancarado, onde a gente mora, criança, menina de oito anos já sabe falar palavrão, já sabe xingar, sai na rua convive mais de 24 horas na rua do que em casa, então a gente lembra que no nosso tempo também era assim, mas bem mais difícil e a gente conseguiu sair desse tempo. (PEDRO)

O laço de amizade de Pedro e seus três amigos possibilitou que eles conversassem anos mais tarde, compartilhando e resignificando os momentos vividos na infância. O espaço de conversa amiga tornou possível a resignificação das “cenas boas e ruins”, a produção de sentido dos momentos compartilhados na infância, além do importante exercício político de resgate da memória da vida da periferia onde moram. A espirituosa conversa entre amigos permitindo o resgate da memória – que mais do que um reviver as imagens do passado, conforme ilumina Bosi (2003), possibilita uma intuição revigorante de um presente desvendado, na qual o grupo de amigos exerce uma função de apoio como testemunha e intérprete das experiências vividas na infância que são revividas, atualmente, com uma intensidade nova, como “[...] intuição de um devir, do seu próprio devir de homem envelhecendo, enquanto sentimento de um tempo que, simultaneamente, passou a se re-apresentar à consciência e ao coração.” (BOSI, 2003, p. 45). Os laços de amizade, portanto, são como seiva que nutrem a memória como forma de resistir ao isolamento social, à dispersão dos amigos que sustentam as lembranças.  Bosi (2003) lembra-nos essa importante qualidade da coletividade como alimento que nutre a memória:

Mas a memória rema contra a maré; o meio urbano afasta as pessoas que já não se visitam e já se dispersaram. Daí a importância da coletividade no suporte da memória Quando as vozes das testemunhas se dispersam, se apagam, nós ficamos sem guia para percorrer os caminhos da nossa história mais recente: quem, nos conduzirá em suas bifurcações e atalhos? (BOSI, 2003, p. 70).

Essa fascinante qualidade discursiva da amizade permite compartilhar o especial da vida, a memória, aquilo que marca a existência de cada ser humano em sua singularidade. Na experiência de conversa entre amigos, é dessa produção de sentido do que nos é marcante, que irrompe o imprevisto. Essa dimensão de imprevisibilidade da concepção derridiana e arendtiana de amizade indica que é, precisamente, da resignificação das “cenas” da vida compartilhada por Pedro e seus amigos, que o imprevisto irrompe - o que caracteriza a relação de amizade como espaço privilegiado de experimentação política. O inesperado é a marca da amizade como espaço para a experimentação, na qual nos faz pensar Arendt (1993), Derrida (1997), Ortega (1999, 2000) etc. Amizade que traz consigo a alteridade, a possibilidade do risco, da incerteza, numa abertura para o acontecimento, para aquilo que ainda é sem lugar entre nós, aquilo que nos faz sonhar. O diálogo entre amigos possibilita a produção de uma estrutura discursiva de sonhos, relação em que o outro me faz sonhar, mobiliza-me a desejar - como podemos notar no relato de Margarida, que diz sentir saudade de uma amiga da juventude, com a qual conversava muito sobre os sonhos, sobre a dimensão imprevista do futuro, fazendo-a sonhar:

A gente compartilhava muito essa história de sonhos, de objetivos. Na hora do almoço a gente descia no estoque, as duas cruzavam a perna e ficava lá, falando a respeito disso, de desejo, de vontade, de realizações, e eu acho que eu estou precisando de alguma coisa assim, porque, que nem a (Camélia) é uma excelente amiga, mas ela tipo assim, ela é casada há mil anos, assim com um cabra, ela já é uma senhora e que literalmente se aposentou em termos de sonho, realizações A (Açucena) é uma amiga muito querida, é nova até, ela tem 43 anos, mas aparenta ter bem menos, mas é um ser humano que não tem sonhos, assim, não é uma pessoa que luta por objetivo, sabe, e eu sou uma pessoa que tenho muito isso, eu alcanço um, aí quero outro, alcanço outro, aí quero outro, então tipo assim, sempre aprendendo, sempre buscando, sempre se renovando e aí eu to sentindo muito a falta dela, porque ela tinha muito isso, assim, eu tinha muito isso com ela, então, acho que é por isso que eu estou sentindo, tanto que acho que a semana passada, que eu ficava cantando uma música, tipo assim, ‘como vai meu velho camarada, quanto tempo não vejo mais você, conte sua vida e como vai’, porque a gente contava, falava aquela história de namoradinho e tal, aí, que saudade que eu tenho de você (Liz).” (olhos marejados). (MARGARIDA)

Na segunda entrevista, quando pedi para retomar essa história de amizade com Liz, Margarida ressaltou:

Depois dela, amizade, tipo parecida com a dela eu não tive mais, não sei se por causa da idade também, mas talvez porque hoje eu esteja num processo de transformação interna e estou querendo novos objetivos, que, nem, eu voltei estudar, quero prestar vestibular, então talvez isso tenha feito eu me lembrar muito, e muitas vezes eu tentei entrar em contato com ela, procurei, não consegui, e eu sinto muita saudade dela, sinto muita falta porque eu me lembro das conversas, a gente ficava imaginando como é que seria quando a gente fosse casada, como é que seria o nosso relacionamento com marido, com filhos, que tipo de trabalho que a gente ia ter, que tipo de profissional, como é que a gente ia está trabalhando, como ia ser nosso salário, se a gente ia ter casa, se ia ter apartamento, então tudo isso era muito compartilhado, entendeu, e às vezes você faz amizade hoje, as pessoas tão meio paradonas assim, não tem muito objetivo, sabe, está tão cansada da vida, tão cansada assim de sofrer, de trabalhar, de não ver, é, conseguir algo mesmo, trabalha, trabalha, a vida inteira quer ter alguma coisa e não consegue, então as pessoas desanimam e tipo não sonha, sabe, elas literalmente não sonham mais, não tem sonhos, não tem mais objetivo”. (Margarida)

Não é à toa que Margarida destaca a amizade com Liz como sendo muito marcante, especial, vibrando ao lembrar desta amiga de forma bastante emocionada, pois nesta relação era possível sonhar. Em suas conversas, Margarida e Liz mobilizam uma a outra, instigam-se a sonhar por uma vida melhor, configurando um espaço singular de compartilhamento de desejos (“eu tinha muito isso com ela”), diferentemente de suas outras amigas - “aposentadas em termos de sonhos”. Portanto, a memória saudosa de sua amiga Liz, vincula-se à vontade de sonhar, ao momento atual de Margarida em que ela busca mudar de vida, estimulada a realizar seus sonhos, voltando a estudar, desejando passar no vestibular. O que ilumina a dimensão política da memória – apontada por Bosi (2003) - que revigora sonhos, que recupera o entusiasmo, devolvendo o que o passado vislumbrou e o presente esqueceu. É como se Liz pudesse compartilhar melhor este momento de Margarida do que com suas outras amigas que se encontram “paradonas”, cansadas e conformadas com a vida. É nesse sentido, de atiçamento de desejos, daquilo que ainda é sem lugar entre nós, que a amizade se configura como espaço discursivo privilegiado do agir e falar na acepção política arendtiana. É essa instigação de sonhos e idéias, vividos por Margarida e Liz, que possibilita a irrupção do imprevisto, permitindo que a relação de amizade caracterize-se como espaço iminente de experimentação política. Portanto, a conversa entre amigos, como relação na qual é possível sonhar, desejar juntos, possibilita a formação de uma comunidade politicamente organizada.

Modos de Resistência Entre Amigos nas Classes Populares: Invenção do Cotidiano em Suas Lutas Diárias

O movimento de resistência, de rompimento com a economia capitalista dominante pode ser instaurado pela conversa - como fibra contra a dominação, possibilitando que a experiência discursiva da amizade configure uma relação de potência - no sentido Nietzschiano do termo, pois, conforme adverte Arendt (2001), o poder humano advém do espaço de diálogo, da condição de igualdade política - incompatível com a violência, ou seja, da reunião não violenta dos homens.

A relação de amizade como espaço privilegiado de ação e discurso - compreendidos como experiências essencialmente políticas, além de permitir um vínculo de escuta acolhida em que se compartilha e significa a vida, pode possibilitar um movimento de desvio, de rupturas na economia dominante, estabelecendo um espaço de experimentação política através da troca de experiências, de informações e conhecimentos, configurando um espaço repleto de trocas de aprendizagens e de experimentação do imprevisto. O que pode ser constatado nas histórias dos sujeitos:

Nós compartilhamos conhecimento na área de informática, entre meus amigos, a gente compartilha. Tem um amigo que é programador, eu fiz programação, mais o básico, aí vai me dar ajuda, passa coisa que eu não aprendi, aí tem coisa que eu sei que ele não sabe, eu ensino pra ele, uma coisa mais avançada que ele fez faculdade na área de informática, aí passa conhecimento pra mim, entendeu, compartilhando as idéias, projetos. (MATEUS)

Olha, é muito importante porque, eu vou voltar a falar, tipo quando a gente sai aqui fora, sem está em casa, você está em convivência com os amigos, então, você está sempre aprendendo no dia a dia, está aprendendo algo novo. Algum amigo é mais experiente em certas coisas, você é inexperiente, e ele te ensina.O amigo também não sabe muita coisa, você também ensina pra ele o que você tem Vou colocar um exemplo: eu não sabia jogar futebol, aprendi com amigos, eu não sabia nadar, aprendi com amigos, eu não sabia subir num pé de árvore, um amigo foi lá e falou tu sobe assim com segurança e desce com segurança que é assim. Aprendi com amigo, muitas coisas você não aprende com irmão, pai e mãe, aprendi aqui fora, então você aprende com amigo. Mas, como assim amigo? Assim, foi de momento, foi um amigo que apareceu e sumiu na tua vida, foi. Tudo bem, sumiu mas, o momento que a gente teve junto, seja um minuto, ele me ensinou alguma coisa que vale a pena. Esses eu tiro todos como amigos, então, dia a dia você está aprendendo com vários amigos. Eu não sei pilotar moto, amanhã eu posso encontrar um amigo que saiba, aí eu tiro a carta e ele pode me ensinar, não precisa nem chegar a fazer uma auto-escola, ou se for fazer já está mais apto a, então sempre você está aprendendo. Então, é muito importante, até em trabalho, tem caso de amigos que ajuda você muito no trabalho, mas é muito importante isso daí.”

Porque eu sempre fui uma pessoa, sou muito comunicativo, gosto de fazer uma experiência em certas coisas. Então, quando eu trabalhava em firma que eu trabalhava em metalúrgica, eu sempre procurei aperfeiçoar meu serviço e, com a ajuda dos colegas eu aprendi bastante coisa. Hoje o que eu não sabia hoje eu sei fazer, igual fazer uma parte de encanamento, uma parte de pedreiro, uma fase de eletricista, isso aí eu mesmo faço, isso foi com ajuda dos colegas, eles me ajudaram, eles eram amigo porque me ensinaram fazer isso aí, porque se não, qualquer coisinha que eu fosse fazer hoje, eu teria que pagar.” (FRANCISCO)

Essas relações solidárias, que o vínculo de amizade instaura, de trocas de conhecimentos, de aprendizagens, constituem práticas desviantes no modo de viver a experiência cotidiana, conforme apontado por Certeau (1994). As trocas solidárias de experiências e informações entre amigos possibilitam rupturas com o modelo de economia dominante, permitindo a irrupção das táticas desviantes (CERTEAU, 1994), articuladas com maneiras outras de proceder na vida cotidiana, que não correspondem às determinações de uma ordem econômica dominante. Nesse processo de “invenção do cotidiano”, destacado por Certeau (1994), os amigos de Francisco, ao passar conhecimentos de serviço de pedreiro, de eletricista, levam-no a adquirir certa autonomia, pois como ele afirma, quando necessita destes serviços não precisa mais pagar. A solidariedade que o vínculo de amizade informa possibilita a irrupção desses mecanismos dotados de astúcia, inventividade e criatividade nas formas de proceder nas práticas do dia-a-dia, constituindo um movimento de microresistências através de procedimentos populares minúsculos e cotidianos que jogam com os mecanismos de disciplina e não se conformam com ela, não havendo uma condição de assujeitamento e passividade.

As práticas astuciosas e desviantes que os vínculos de amizade possibilitam numa relação de igualdade política a qual permite a circulação de conhecimentos, informações e experiências, num contexto repleto de trocas de aprendizagens em que as subjetividades dos amigos são mutuamente afetadas e implicadas, configuram a relação de amizade como espaço intersubjetivo privilegiado de experimentação política. É nesse espaço de experimentação de irrupção do inesperado que os discursos e ações políticas podem se perfazer, através da companhia e adesão dos outros, alcançando a realização de experiências inéditas, como adverte Arendt (2001). Segundo ela, as ações políticas iniciadas por meio de palavras, num espaço dialogante, precisam da adesão e testemunho dos outros para fecharem um ciclo completo de experiência inovadora, possibilitando o surgimento do surpreendente, o que ainda é sem lugar entre nós.

É nesse sentido que a experiência discursiva de condição de igualdade política da amizade permite que ações políticas perfaçam-se, configurando-se como espaço de experimentação.  Portanto, a relação de amizade entendida como vínculo de diálogo no qual existe gesto de abertura ao outro, sendo possível processos de transformações e deslocamentos na troca e compartilhamento de idéias e opiniões, configura-se como espaço propício para que ações fortaleçam-se e se perfaçam contra a dominação, potencializando movimentos de resistência e de cidadania. O apoio e a ajuda entre amigos, a força para “lutar juntos”, informam a necessidade da companhia e adesão dos outros para o fortalecimento e realização de ações políticas como nos fala Arendt (2001). Rosa fala-nos desse espaço de experimentação ao contar que muitas conquistas já foram alcançadas para a cooperativa através da união e engajamento dos seus laços de amizade, não só colocando uma idéia, mas com a adesão dos amigos, colocando-a em prática.

Agora a gente não, a gente fala nós vamos fazer, junta gente e faz. A gente faz assim, nós já chegamos a comemorar várias reuniões, assim, junto, porque a gente fala: hoje foi a gente cara, foi a gente, a fama pode estar neles mas foi a gente que fez hoje. Entendeu? Assim, é difícil; de dar uma idéia, de aceitar a idéia. Entendeu? De acatar a idéia da gente e botar ela em prática, porque também só você dar a idéia não adianta, ela tem que ser praticada. (ROSA)

O engajamento, entendimento entre seus amigos, segundo Rosa, possibilitou que eles colocassem em prática suas idéias, provocando mudanças na cooperativa, inclusive a conquista de matérias e ferramentas de trabalho doados pelo Banco do Brasil. Marques (2001) também enfatiza que é no âmbito das relações cotidianas que se constroem as efetivas e mais eficazes condições das aprendizagens indispensáveis à singularização - que Guattari e Rolnik (1986) enfatizam para o processo de recusa da produção de “subjetividade capitalística” - do sujeito e às micro-revoluções políticas. Nos relatos dos sujeitos, a força e o apoio entre amigos possibilitam movimentos de resistência e de práticas de cidadania, estando as relações de ajuda entre amigos atreladas com movimentos que visam ganhos para a coletividade.

O apoio de amigos, a companhia dos outros, iluminada por Arendt (2001), aparecem nos discursos como sendo fundamentais nas práticas de cidadania, em que o “lutar junto” dá o tom na busca pela realização de interesses coletivos. Ações políticas podem se perfazerem através da “força”, da ajuda dos amigos, configurando a relação de amizade como espaço de experimentação política, que permite o surgimento do imprevisto. Foi com a ajuda dos amigos que Margarida conseguiu apoio necessário para que a cooperativa “não fechasse as portas”. Todos os sujeitos afirmam que a relação de amizade contribui com esses movimentos coletivos de resistência e cidadania, precisamente porque ela implica ajuda mútua entre amigos, maior união e uma escuta melhor, possibilitando a formação de laços de parcerias e engajamento político.

Encontros Férteis, o Florescimento do “Amor sem Concupiscência”

As relações de amizade podem não bloquear, mas, sim, potencializar esses processos de singularização, na medida em que se configuram como vínculo em que os amigos encontram-se mutuamente implicados e comprometidos. O amigo olha para o outro como alguém que sofre, tem rosto, no sentido Levinasiano, responsabiliza-me como pessoa, configurando um espaço de sensibilização, solidário, incompatível com a lógica e práticas excludentes e individualistas da economia capitalista. As narrativas demonstram que a solidariedade  menciona um movimento de recusa das maneiras individualistas e excludentes de relacionar-se que dão suporte ao modelo neoliberal pautado no individualismo. Além das histórias de solidariedade já citadas, as relações solidárias aparecem nos discursos articuladas às situações em que os amigos oferecem ajuda em momentos de extrema escassez econômica e de saúde. Os obstáculos e privações produzidos pela dominação econômica são, muitas vezes, contornados pelas relações de amizade em que o amigo, numa atitude ética e política, responsavelmente, desperta para a atitude concreta de reconhecer o outro como cidadão. É com grande emoção e saudades que Miosótis fala de sua amiga Carmelita que lhe acolheu quando ela não tinha onde morar ao chegar a São Paulo. O gesto solidário de Carmelita permite que Miosótis e sua família morem em sua casa até achar um lugar para morar, informa a generosidade dos outros da qual nunca se esquece. Miosótis fala com muitas saudades da querida Carmelita, que também a ajudou encontrar e arrumar a casa onde vive hoje, ressaltando que mesmo de longe ainda mantém contato, sempre querem saber como a outra está, destacando que se trata de uma amiga muito especial, informando a solidariedade da relação de amizade em que o querer bem ao outro possibilitou que Miosótis “vivesse melhor” - como destacado por ela:

Foi, quando eu cheguei aqui, e ela não me conhecia, poucos dias que a gente estava junto ela me convidou pra morar na casa dela. E eu fui morar na casa dela: ela e o marido dela e as três filhas, e eu, meus três filhos, a minha filha e meus dois filhos moramos na casa, dois cômodo, a casa dela era grande, e eu fiquei, morei nove meses com ela, até quando eu comprei onde eu moro, então quer dizer que ela confiou na minha pessoa, de pôr eu dentro da casa dela, porque ela não me conhecia. E é uma amizade assim, que a gente considera muito também uma a outra, porque ela falou que eu nunca dei problema pra ela, então é uma coisa assim, que a gente, ajuda a gente caminhar também, a pessoa confiar na gente, ajuda a gente até viver melhor. (MIOSÓTIS)

Eu tinha três filhos e não tinha onde morar, ela me acolheu na casa dela, a casa dela era dois cômodo e um banheiro, e ela me levou pra lá com meus filhos. E eu sou muito grata a isso porque ela me ajudou muito. Aí depois disso eu comecei trabalhar aqui de dia, a noite eu trabalhava na casa de família pra poder juntar o dinheiro pra comprar onde eu moro. Aí com dois mês que eu tava trabalhando assim, eu conseguir juntar o dinheiro pra mim comprar onde eu moro (MIOSÓTIS)

Essa história de amizade em que Carmelita responsabiliza-se por Miosótis não a deixando só diante de sua solidão e seu drama, acolhendo-a com sua família, não nos fala senão da gravidade do amor sem concupiscência, iluminado por Lévinas (2005)? Do apelo irresistível que o outro me interpela, exigindo-me uma resposta, uma responsabilidade que requer o esforço de sair-se-de-si para o outro, este outro cuja condição importa antes que a minha. Carmelita ao responder ao apelo da amiga Miosótis com socorro gratuito informa a dimensão ética do encontro inter-humano elucidado por Lévinas (2005) no qual o sofrimento imperdoável do outro questiona-me e me chama, convoca-me preocupação pelo outro, solicitude com seu comer, com sua saúde, com seu abrigar-se. Condição de não indiferença por este que me interpela, que faz apelo à minha responsabilidade por sua morte, convocando-me a não abandoná-lo, a não deixá-lo morrer só:

A morte do outro homem me concerne e me questiona como se eu me tornasse, por minha eventual indiferença, o cúmplice desta morte invisível ao outro que aí se expõe; e como se, antes de ser eu mesmo votado a ele, tivesse que responder por esta morte do outro e não deixar outrem só, em sua solidão mortal. É precisamente neste chamamento de minha responsabilidade pelo rosto que me convoca, me suplica e me reclama, é neste questionamento que outrem é próximo. (LÉVINAS, 2005, p.194).

A gratuidade do cuidado de Carmelita com Miosótis ilumina a responsabilidade por este outro que me diz respeito – informada por Lévinas (2005), responsabilidade impelida pelo encontro com o outro que me convoca, exigindo-me resposta que requer esforço em sair da primordialidade do eu para a possibilidade de existir para outro.

A atitude de se compadecer, de partilhar, que o laço de amizade inspira, emana do gesto de solidariedade, como reconhecimento da situação do outro, onde se “respira” a vida a partir do seu lugar, como relação que me põe em contato com o exercício político de comprometimento com a dignidade do outro - condição que afeta todo tecido social diretamente. Os laços de amizade suscitam essas relações solidárias, o cuidado com o outro em situações de privação das condições básicas necessárias à sobrevivência. As relações de amizade que instauram a solidariedade entre as pessoas que vivem em situação de pobreza, mencionam o maior grau de interdependência entre elas, registram o aspecto político da dependência da companhia dos outros para recusar a condição de opressão, para resistir à dominação econômica. Pode-se contar com a ajuda de amigos e vizinhos nos momentos de escassez advindos da condição de espoliação econômica. É nesse sentido de dependência de solidariedade que Gonçalves Filho  (1998) aponta que as camadas populares mantém a interdependência política que nos faz humanos e ao mesmo tempo recusam a opressão:

Os pobres não esperam pela riqueza para serem homens: esperam pelos homens que também esperam por eles. Desde então, lutam pelas casas e, quem sabe, venham a lutar pela natureza. Dependem de nós na mesma medida em que os homens dependem dos homens pra saberem-se humanos. Digamos melhor: digamos que o homem pobre encontra-se mais do que qualquer outro homem na dependência da solidariedade inter-humana, de que todos dependemos. Mais do que qualquer outro, experimenta-se dependente. Pode alienar tal dependência sonhar um dia, enriquecido, já não mais depender – é compreensível que aspire por tal libertação, uma vez que sua dependência do outro homem geralmente supõe sua servidão ao outro homem. A vida comunitária – altamente politizadora sob este aspecto – é o que ao mesmo tempo, pode manter nossa dependência inter-humana e recusar toda servidão. (GONÇALVES FILHO, 1998, p. 24).

Essas práticas solidárias mobilizadas a partir do reconhecimento da condição do outro, situação na qual movimentos e desejos são impelidos não por conveniência pessoal, mas para beneficio de um outro, configurando um vínculo pautado num “querer bem” ao outro - expressão utilizada por Miosótis, é o que pode ser observado na história ressaltada por Margarida como muito bonita, pois contou com a  ajuda dos amigos num momento de fragilidade, em que esteve doente, precisando ficar internada num hospital:

Eu nunca fiquei doente, e o ano passado eu tive um problema de apêndice que precisei ficar internada, e aí eu vi que realmente, que eu podia contar com meus amigos, de verdade. Eles que me internaram, eles que ficaram comigo o tempo inteiro assim, ao ponto dos médicos do HU ter que falar assim: por favor, só pode um acompanhante. Mas foram várias pessoas, eu me senti, assim, querida, amada, sabe? Pelo fato de morar sozinha, eu fiquei meio com medo assim, e quando eu estava internada a (Açucena), mais outras duas amigas limparam toda a minha casa, quando eu chegasse do hospital tivesse tudo limpinho, limpou toda casa, lavou roupa, então quando eu cheguei tava tudo limpinho, é foi muito bom isso.” (MARGARIDA)

Com a (Açucena), ah, meu Deus do céu, ah, a gente é amiga, assim, muito tempo, desde que a gente trabalhou junto numa loja, e até hoje assim, permaneceu,  amizade e a gente mora no mesmo quintal, e a gente conversa muito assim, e ela fala das coisas  dela, eu falo das minhas coisas, quando ela precisa de alguma coisa, se eu posso ajudar eu ajudo, se ela precisa de alguma coisa também do mesmo jeito, quando eu fiquei internada, também ela me deu uma força, tipo arrumando a casa. Limpou a casa, chamou um monte de gente, limpou toda casa pra mim, foi me visitar no hospital, levou baralho, porque como eu gostava muito de jogar buraco, aí como eu tava lá sozinha, aí foi ela e outras amigas levaram baralho, aí jogamos.” (MARGARIDA)

Essas práticas solidárias que brotam nas relações de amizade inspiram o zelo das amigas de Margarida quando ela adoece, esse cuidado dedicado das amigas que fazem companhia a Margarida no hospital e ainda cuidam de sua casa, essa atenção especial que faz Margarida se sentir querida, amada, só pode mesmo ser mobilizada por esse sentimento de “querer bem” ao outro, informado por Miosótis, sentimento que nos humaniza; ou ainda, com as palavras de  Lévinas (2005), pela gravidade do amor sem concupiscência. A consideração pelo outro, o reconhecimento do outro como alguém que tem rosto é o que mobiliza Açucena a acolher Margarida em sua casa quando ela foi expulsa de casa por estar grávida:

Ah, (Margarida) porque que você não falou que você tava grávida, eu falei, mas eu não tinha pegado nem o resultado ainda, a bomba estourou, minha mãe descobriu antes, e eu não desmenti, eu tinha certeza que eu tava mesmo. Falei que tava, então, aí, mas pra onde você vai, eu vou lá pro jardim. Rosana (disse a Margarida): não, pega suas coisas e vem aqui pra minha casa, você não vai ficar na rua. Então está bom, aí, fui em casa peguei minhas coisas e fui pra casa dela, a gente ficou de três acho que três a quatro meses fiquei morando com ela, então, esse tipo de coisa, entendeu, você sabe com quem contar, assim, realmente, verdadeiramente, entendeu, e eu acho que amizade é isso. (MARGARIDA)

Esse ‘gosto pelo outro’, mencionado pela amizade, que instaura sentimentos de cuidado e responsabilidade pela dignidade do outro, estimula Açucena acolher Margarida, quando ela estava grávida e foi expulsa de casa, não permitindo que ela ficasse na rua. Essa afeição pelo outro brotada na relação de amizade proporciona apoio solidário que permite viver experiências novas, como a possibilidade de viagem para um encontro de economia solidária em Recife que não poderia ter sido realizada, se Rosa não tivesse o apoio de sua amiga Margarida e dos amigos da cooperativa. Esse amparo solidário entre amigos presenteou Rosa com a possibilidade de viajar,  experiência que por si mesma possibilita deslocamentos voltados para a abertura de novos horizontes:

Ah, eu tive sim o apoio da primeira viagem que eu fui pra Recife, e eu só fui por causa dos meus amigos, entendeu, porque se fosse depender só da minha casa eu não tinha ido e nessa época. A (Margarida) me ajudou muito, entendeu, ela comprou a minha briga, porque eu tinha ganhado, e aquele você não vai, você não vai, você não vai, e ela não, ela vai, ela vai, ela vai e na época ela fez tudo por mim. E aí, quando eu fiquei sabendo, assim, a viagem vai ser tal dia tal hora, era muito em cima, vai ser tal dia, tal hora e o motorista vai te pegar na porta e vai te devolver na porta, entendeu, ah, ela me deu muita força, cara. Foi muito legal, assim, e lá eles me fizeram uma surpresa assim de me levar pro restaurante cinco estrelas, fora o quarto que era belíssimo. (ROSA)

Esta dimensão de solidariedade inter-humana da amizade proporciona a ajuda entre amigos, estabelecendo vínculos comprometidos com o outro, num movimento de recusa do individualismo e práticas excludentes, próprias do neoliberalismo, em que o partilhamento dá o tom de ‘união de forças’, mencionando aquilo que Arendt (1993) afirma: que a amizade alcança justamente a comunidade. É nesse sentido que os amigos de infância tão zelados por Pedro (aqueles que compartilharam as cenas boas e ruins do passado na periferia), ajudam uns aos outros, passando informações sobre serviços, sobre a possibilidade de lugar de trabalho, visando contornar as dificuldades advindas da falta de emprego, estabelecendo uma relação de amizade preocupada com a condição de Pedro, na qual os amigos tentam contribuir para que Pedro não “fique duro”. É também com ajuda de um amigo que Pedro diz ter conseguido fazer o curso de cooperativismo para entrar na cooperativa em que trabalha:

Hoje em dia a mesma coisa, pro lado de serviço, se um dos três, eles estão trabalhando, eles falam está precisando disso ali, vai lá dar uma olhada, leva um currículo lá, olha lá no meu serviço, vai lá fazer um extra, que um trabalha em lava rápido, registrado, vai lá final de semana pra você não passar liso, ficar duro e tal. Mais essa é uma das amizades que eu zelo, assim, prezo muito é deles dois, o nome deles são (Tom) e (Vinícius), então é uma assim que marca também pra mim. (PEDRO)

“Aí passou o primeiro sábado, não veio, eu falei acho que ele não vai ir não, ele não está interessado com meus problemas  Quando foi no outro final de semana, ele falou, eu nem esperava, que eu já tinha perdido a esperança, então vou deixar pra lá isso aí; aí do nada ele falou, vamos lá, vamos lá que hoje eu estou disponível, vamos lá ver o lugar onde você vai fazer o curso. Aí, andamos tudo isso aqui, antiga veterinária, não conheço,  chegou aqui, andamos, andamos, aí veio aqui cuidou de tudo,  mostrou, o lugar é esse, se quiser no outro dia também estou de folga eu venho, aí ele veio comigo, veio de carro, me deixou aqui, fiz a inscrição e tudo mais e tipo assim, é um exemplo que eu posso dar, assim, de que ele falou e cumpriu, o que ele falou comigo, ele falou combinei com você, eu sabia onde era o lugar, te levei lá, agora esse foi o amigo mesmo”. (PEDRO)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar a possibilidadea amizade como espaço de experimentação representa um convite a uma forma de contato desafiadora e inquietante, na qual é possível vivenciar o sentimento de certo mal estar, de “perda de referencial”, trazidos pela experiência de revelação e alargamento de opiniões no encontro com outros. Essa experiência desestabilizadora, na qual o familiar passa a ser interrogado, não é vivido sem reflexão, e o que era estranho pode parecer familiar. Essa experiência na qual se é devolvido pelos outros possui um caráter inesperado e imprevisível. As narrativas revelaram que as relações entre amigos não só se expressaram como viabilizadores da experimentação da qualidade política da amizade naquilo que concerne à possibilidade de deslocamento e relativização do pensamento, mas também porque engendraram gestos com o vigor da solidariedade inspiradores da vontade e coragem para ação.  A amizade compõe uma relação privilegiada de estima ao amigo na qual os sujeitos são motivados a questionar seus pensamentos e valores, a ampliar seus horizontes de interesses e conhecimentos, bem como a engajar-se em ações condizentes com a afirmação da vida. A relevância política da experiência discursiva da amizade mostrou-se como constitutiva dos vínculos de amizades na medida em que estes constituem relações de diálogo onde os sujeitos são sensivelmente afetados pelo discurso do amigo que engendra efeitos da ordem do aumento da potência de pensar e agir.

 

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Endereço para correspondência
Livia Godinho Nery Gomes
E-mail:liviagng@ig.com.br

Nelson da Silva Junior
E-mail:nesj@terra.com.br

 

Submetido em: 25/03/2009
Revisto em: 14/03/2010
Aceito em: 15/03/2010

 

1As vicissitudes históricas das semânticas da amizade podem ser mais bem contempladas em Gomes e Silva Junior (2008) onde consta uma desnaturalização do discurso amizade-fraternidade; e em Gomes e Silva Junior (2005) a partir da análise das implicações políticas da semântica familialista da amizade.

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