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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versión On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.65 no.2 Rio de Janeiro 2013
ARTIGOS
Feminilidade: enigma e semblante
Feminine: enigma and semblance
Feminidad: enigma y semblante
Valesca Rosário CampistaI; Heloísa Fernandes CaldasII
IDoutoranda. Programa de Pesquisa e Clínica em Psicanálise. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Programa de Pesquisa e Clínica em Psicanálise. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
Este artigo aborda o feminino a partir da indagação de Freud sobre o enigma da mulher, expressa pela célebre frase: "A mulher é o continente negro da psicanálise". O tema do feminino é abordado desde a concepção de Freud até a retomada da lógica fálica freudiana por Lacan, localizada em dois tempos de seu ensino. Nos anos 50, ele desdobra o ter/não ter o falo em ser/não ser o falo; nos anos 70, ele propõe outra lógica além da fálica. Com a frase "A mulher não existe", ele afirma não haver um significante que nomeie o feminino. Este surge pelo viés de um semblante e responde por uma modalidade de gozo diversa da fálica. O artigo traz duas representações do feminino na literatura - Medeia e Madeleine Rondeaux - para tratar a articulação do feminino com o semblante e o gozo, uma vez que elas romperam com a lógica fálica e descortinaram a face de horror do feminino transbordando de gozo.
Palavras-chave: Feminino; Semblante; Gozo; Medeia; Madeleine.
ABSTRACT
This paper approaches the feminine from Freud's question about the woman's enigma expressed in the famous phrase "The woman is the black continent of psychoanalysis". Lacan addressed the feminine issue from the Freudian conception up to the retake of the Freudian phallic order in two moments of his teaching. In the 50s, when he unfolded having/not having the phallus into being/not being the phallus; in the 70s, when he proposed a logic other than the phallic order. By coining the phrase "the woman does not exist", he shows that there is no significant to name the feminine. That significant emerges by means of a semblance and responds by means of a jouissance modality different from the phallic logic. This paper brings two literary feminine representations - Medeia and Madeleine Rondeaux - to treat the articulation between jouissance and semblance, since they broke up with the phallic order and unveiled the horror face of feminine overflowing jouissance.
Keywords: Feminine; Semblance; Jouissance; Medeia; Madeleine.
RESUMEN
Este artículo aborda el femenino a partir de la indagación de Freud, sobre el enigma de la mujer expresada por la célebre frase "La mujer es el continente negro del psicoanálisis". El tema de lo femenino es abordado desde la concepción de Freud hasta la reanudación de la lógica fálica freudiana por Lacan, para abordar el tema del femenino en dos tiempos de su enseñanza. En los años 50, desdobla el tener/no tener el falo; en los años 70, él propone otra lógica más allá de la fálica. Con la frase "La mujer no existe", dice que no hay un significante que nombre el sexo femenino. Este surge por el sesgo de un semblante, y responde por una modalidad de gozo diferente de la fálica. El artículo trae dos representaciones de lo femenino en la literatura -Medea y Madeleine Rondeaux- para tratar la articulación de lo femenino con el semblante y el gozo. Ellas rompieron con la lógica fálica y desplegaron la fase de horror de lo femenino en su transborde del gozo.
Palabras clave: Femenino; Semblante; Gozo; Medea; Madeleine.
Introdução
O melhor modo de despistar é dizer a verdade.
Clarice Lispector (1969/1998, p. 31)
A mulher tem sido até hoje uma questão para a psicanálise. Algo de misterioso a envolve e escapa à significação. Freud (1932/1988f) constata não ser possível decifrar o enigma da feminilidade e recomenda consultar a experiência das próprias mulheres ou os textos dos poetas sobre o assunto.
O propósito deste artigo é discutir questões que concernem ao feminino, segundo as teorias freudiana e lacaniana. Abordaremos, inicialmente, a concepção freudiana do falo em sua primazia na diferenciação sexual que rege o caminho da feminilidade. Em seguida, abordaremos a concepção de Lacan sobre o feminino tomando como referência dois tempos de seu ensino: a reformulação da primazia do falo operada por ele na década de 50 e, posteriormente, nos anos 70, a partir de seu aforismo "A mulher não existe".
Ao final do artigo duas mulheres são apresentadas como exemplos do feminino lacaniano. Uma delas é figura da mitologia grega. Para Freud, os mitos deviam ser considerados como "vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejo de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade jovem" (Freud, 1907/1988b, p. 157). Nesse sentido, o mito de Medeia será aqui exemplar de uma figura do feminino, que serviu de fonte à criação da personagem da tragédia grega de Eurípedes. A outra, também destacada por Lacan, é Madeleine Rondeaux, uma mulher do século XIX, apaixonada pelo renomado escritor André Gide (Lacan, 1998b).
Desesperadas e devastadas pela perda do objeto amoroso, ambas realizam atos extremados, causados pelo que despenca da força da vida para elas, deixando-as sem uma referência dada pelo amor que pudesse funcionar como suporte à sua falta estrutural de identidade. Elas atestam uma enorme dificuldade em perder aquele que amam porque o que encontram nele não é "uma marca que poderia ser encontrada em qualquer objeto, mas do próprio objeto que causa o desejo do sujeito" (Maia & Caldas, 2011, p. 112).
Embora sejam exemplos de outra época, elas podem elucidar a teorização do feminino em psicanálise. Estudá-las ajuda a pensar em algumas situações que chamam atenção na atualidade, em que, por exemplo, mulheres abandonam, cometem violência ou não conseguem cuidar dos próprios filhos. A imprensa falada e escrita (O Globo, 2010), não raro, veicula informações sobre essas mulheres que cometem "loucuras" envolvendo pessoas muito próximas. São esses fatos inquietantes que nos levam a interrogar o feminino à luz desses exemplos de Lacan. Desejamos com isso contribuir para o que a clínica psicanalítica, sobretudo com as mulheres, revela ainda hoje: uma angústia específica do feminino ao redor das dificuldades amorosas, da falta de atenção dos parceiros, do desamor e do medo de abandono.
A verdade e o dom de iludir
Ao longo de suas construções teóricas, Freud (1905/1988a) afirma que a estruturação sexual humana não pode ser totalmente determinada pela biologia. Ele faz uma clara disjunção entre a sexualidade ligada à anatomia e à reprodução e a sexualidade sob a perspectiva da psicanálise. Sua principal contribuição foi transformar o pênis em falo, ou seja, tomá-lo não como órgão, mas como um símbolo privilegiado da sexualidade psíquica (Freud 1923/1988c). O falo se apresenta, então, como o único representante da diferença sexual, o que faz com que, na dialética da castração, entre em cena a relação do sujeito com o falo, e não com o órgão, uma vez que o menino não perde o que tem, assim como a menina não pode perder o que não tem. No entanto, como símbolo, o falo indica o que se pode perder. Nesse sentido, tanto os meninos como as meninas passam pelo complexo de castração. Eles se sentem ameaçados de uma perda possível, do ponto de vista lógico. Elas caem vítimas da "inveja do pênis", sofrendo uma estranha nostalgia - penisneid - por algo que jamais tiveram. Além disso, se o falo para Freud funciona como uma referência única, só permite que a feminilidade aceda a partir de uma incerteza, e não como algo que de fato irá se concretizar.
Freud, ao escrever Sexualidade feminina (1931/1988g) e Feminilidade (1932/1988h), reafirma o que ele havia articulado em 1925, em Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925/1988e), a saber, que não há semelhança entre a estruturação psíquica do menino e a da menina. Para Freud, o ponto central da feminilidade diz respeito à dificuldade da menina em romper o laço afetivo com a mãe, que foi estabelecido na relação pré-edipiana, e o afastamento da figura materna não acontece de forma tranquila, sendo permeado por hostilidade. O autor ainda afirma que é o reconhecimento da mãe como castrada e a sua própria castração que se mostram como os principais motivos do rompimento da relação amorosa intensa da menina com a mãe, permitindo sua entrada no complexo de Édipo. Na menina, portanto, o pré-Édipo com a mãe precede o Édipo com o pai; o complexo de castração prepara o complexo de Édipo, e a "inveja do pênis" é a sua alavanca, ao invés de destruí-lo, como acontece no menino.
O mais relevante a depreender da obra de Freud é que a mulher está, sobretudo, do lado da falta-a-ter. Segundo ele, só há saída para a mulher do lado do ter relacionada, portanto, à presença do falo. No entanto, ele próprio afirmou, ao definir a mulher como "continente negro" (Freud, 1926/1988f, p. 242), que essa teorização não lhe bastava. Como comenta Bernardes (2012), essa expressão não evoca apenas o desconhecido do negro da noite, o que não se vê nem se sabe, mas é também uma alusão de época à África, que ocupava em relação à Europa um lugar de diferença.
A abordagem lacaniana sobre o feminino produz modificações e avanços na teoria. A fidelidade de Lacan a Freud é marcada por uma constância enganosa (Morel, 1993). A constância se deve ao fato de que para ambos o falo é o único significante para os dois sexos. O engano é possível de ser encontrado no ensino de Lacan, como será evidenciado neste artigo. A diferença de Lacan em relação a Freud aparece logo no início do seu ensino, na Significação do falo (1998a), quando afirma que "o complexo de castração inconsciente tem uma função de nó" (p. 692) na dinâmica dos sintomas e na regulação do desenvolvimento, no que se refere à tomada de posição sexual. Ao retomar a concepção freudiana sobre a fase fálica, Lacan se afasta de Freud com relação à problemática da localização no corpo do gozo da mulher e da saída pela substituição fálica.
Para Lacan, não há saída para as mulheres do lado do ter, visto que nessa posição elas permanecem no que se costuma considerar como seu dom: elas iludem, mentem, não são autênticas. Podemos diferenciar dois momentos cruciais do ensino de Lacan, no que concerne à mulher e à diferença sexual. O primeiro encontra-se bem representado em seu escrito A Significação do falo (1998a), quando ele desdobra a lógica freudiana de ter o falo para ter e ser o falo. A dimensão de ser o falo é abordada originalmente pelo viés do valor fálico que a criança possa ter para a mãe. Essa seria a posição original de todo sujeito, sua posição como falo que interessa ao Outro. Efetivamente, para que o sujeito possa advir, é preciso deslizar dessa posição para a de ter o falo, operação que Lacan situa como a da metáfora paterna. Assim, o referido valor que se possa ter sendo o falo para o Outro precisa ser ressignificado pela função paterna, ao indicar que o desejo da mulher se situa alhures em relação ao desejo da mãe, fazendo com que um filho não lhe seja suficiente. No entanto, aponta Lacan, a posição de ser o falo para o Outro pode ser frequentada pelo sujeito em um jogo. Ele considera essa forma de se articular ao falo como feminina. É, portanto, a partir de ser ou não ser o falo que Lacan situará o feminino.
Lacan chega a essa formulação pautado na mascarada, termo que ele retoma da psicanalista Joan Rivière, consagrando assim uma posição de valorização do caráter significante do falo, ou seja, sua função em vez de sua essência. O falo é, então, um significante velado, e sua significação é aquela que dá a um objeto qualquer um valor de feitiço (significado original de fetiche), enfeitiça na direção do desejo sexual.
A mascarada é apresentada por Rivière (1929/2004) a partir de um caso clínico. Trata-se de uma mulher muito bem-sucedida profissionalmente, em cujo sucesso se verificava a identificação com o pai no exercício fálico de ser aquela que tem. Todavia, após suas belíssimas conferências, colocava-se diante dos homens que a haviam assistido num certo jogo sedutor. Ela buscava, sobretudo, atrair elogios e, simultaneamente, flertar com eles como uma mulher frágil diante de um homem forte. Em seguida, era acometida de forte angústia, pois acreditava ter dito algo inapropriado. Rivière aponta para essa posição, aparentemente feminina, como sendo uma máscara que encobria seu temor de ter desafiado o homem em seu território. Apresentar-se em falta e provocar seu desejo, ocupando o lugar daquela que não tem, fazia parte de sua estratégia de se disfarçar de feminina, a fim de não provocar a ira masculina pela sua ousadia. A máscara usada para despertar o desejo do homem acaba por reduplicar a sua falta. Assim como um adereço, um véu que cobre o corpo feminino, a função da máscara é de causar desejo justamente porque não mostra e, assim, leva a supor a existência de algo, quando, na verdade, não há.
Lacan vai destacar nesse jogo que o engodo da mulher consiste em pretender ser desejada e amada pelo que ela não é - o falo. O autor ressalta que, ao ser o falo, a mulher repudia uma parte de sua feminilidade, especialmente seus atributos, na mascarada (Lacan,1998a). Assim, na mascarada, trata-se de parecer o falo para encarná-lo, para mostrar o que não tem.
Nesse primeiro momento de seu ensino, Lacan ainda se vale apenas do falo e concebe a posição feminina como aquela que permite pôr em cena o desejo fálico. Aquele que se pode apreender bem na famosa pergunta de Freud formulada a Marie Bonaparte: "O que quer uma mulher?" (Bertin, 1989, p. 250). A resposta só tem sentido pela via do enigma de um desejo que deve permanecer não realizado para que se sustente como tal.
É preciso avançar para outro tempo do ensino de Lacan sobre o feminino, quando ele o situará numa posição além da lógica fálica, para aprendermos com a mascarada que ela "realiza uma encenação imaginária do não-todo: a representação da mulher castrada funciona aí como signo que protege contra a falta de significante da feminilidade" (André, 1994, p. 283). A partir do Seminário De um discurso que não fosse semblante, Lacan (2009) avança ainda mais em relação às teses freudianas sobre o feminino, apresentando a lógica do não-todo e as modalidades de gozo que nortearão a engrenagem na qual os semblantes variam e as categorias homem e mulher são construídas pelo discurso.
Em francês, semblante (semblant) possui vários sentidos, como fingimento, parecer, dar mostras, simular, enganar (Azevedo, 1989). Já na língua portuguesa, semblante significa rosto, face. No sentido figurado, porém, quer dizer aparência, um sentido similar ao do francês (Holanda, 2000). Na psicanálise lacaniana, no entanto, o termo semblante adquire um sentido diferente. Ele está mais próximo da verdade, uma verdade da qual "só se sabe alguma coisa quando ela se desencadeia" (Lacan, 2009, p. 68). A palavra verdade deve ser lida aqui no sentido que Lacan lhe atribui, ou seja, apresentando duas faces: uma diz respeito à verdade e outra, à mentira. Para sustentar o que está elaborando, Lacan recorre à lógica matemática, na qual é possível articular o sim e o não sem que isso implique uma contradição. Lacan, em um jogo de palavras como lhe é peculiar, afirma:
Se vocês afirmarem que não se pode ao mesmo tempo dizer sim e não sobre o mesmo ponto, sairão ganhando. [...] Mas, se apostarem que sim ou não, sairão perdendo. [...]
Suponhamos que eu diga à verdade: "Não é verdade que você diga a verdade e minta ao mesmo tempo". A verdade pode responder muitas coisas [...]. Ela diz "Eu digo a verdade", e vocês lhe respondem: "Não te faço dizê-lo!". Então, para chateá-los, ela diz: "Eu minto". Ao que vocês respondem: "Agora eu ganhei, sei que você se contradiz" (Lacan, 2009, p. 68).
Como se pode notar, a verdade, para Lacan, se relaciona ao oculto, ao inconsciente, que, a um só tempo, diz a verdade e mente. A verdade, portanto, é da ordem do semblante. Ao discutir sobre o semblante e sua relação com a verdade, Lacan (2009) afirma que "a verdade não é o contrário do semblante. A verdade é a dimensão ou diz-mansão" (p. 25); ela é o que encobre o real. Sendo assim, a verdade é indissociável do semblante, pois ela oculta e sustenta o que é da ordem do real.
Para Lacan, há uma equivalência entre gozo e semblante que, como ele ressalta, a mulher sabe melhor do que qualquer outra pessoa:
[...] o que é disjuntivo entre o gozo e o semblante, porque ela é a presença desse algo que ela sabe, ou seja, que, se o gozo e o semblante se equivalem numa dimensão do discurso, nem por isso deixam de ser distintos na prova que a mulher representa para o homem, prova da verdade, pura e simplesmente, a única que pode dar lugar ao semblante como tal (Lacan, 2009, p. 34).
Segundo ele, o homem faz semblante de ter o falo, já que tem o suporte imaginário, o pênis. A mulher, por sua vez, como não o tem, é mais acessível a sê-lo, o que lhe permite uma "enorme liberdade com o semblante" (Lacan, 2009, p. 34). É justamente porque a mulher está no lugar de quem não tem o falo que ela pode sê-lo. Mas seria o falo um semblante? Justamente ao discutir o semblante e o discurso, Lacan aponta que o semblante é o significante com toda sua produção simbólica e imaginária. Dessa forma, Lacan destaca que o falo, como da ordem do gozo sexual, é "solidário a um semblante" (Lacan, 2009, p. 33).
Acerca dessa discussão sobre o falo e o semblante, Lacan (1997) retoma o conto de Alan Poe A carta roubada e afirma que "a castração, tal como a carta, está suspensa ali, mas perfeitamente realizada" (Lacan, 2009, p. 97). Assim, a carta não importa pelo que diz, mas como testemunho do dizer. Endereçar-se é seu destino. Cada um que a detém se feminiza, sublinha Lacan (1997), indicando que ter a carta é portar seu enigma: o que se quer dizer ali? Trata-se de uma estratégia de feminização semelhante à da mascarada (Rivière, 1929/2004), que faz de conta que não se sabe o que se tem nem o que é. Menos ainda sabe o que se diz (Lacan, 1998a). Ela é um semblante. Na abordagem de Lacan sobre a letra (Lacan, 2003a), ganha relevo o que a carta toca do que resta sem medida, ao infinito, compatível com a lógica do não-todo (Caldas & Barros, 2012, p. 199). A mulher, afirma Lacan, não é castrada; ela é não-toda castrada; ela está, portanto, em suspensão.
Miller (2011) interroga o que se chama semblante e afirma que se trata do que tem "a função de velar o nada. Por isso, o véu é o primeiro semblante" (p. 65), ilustrando uma preocupação da humanidade de cobrir as mulheres. Para ele, "as mulheres são cobertas porque A mulher não pode ser descoberta. De tal maneira que é preciso inventá-la. Nesse sentido, chamamos de mulheres esses sujeitos que têm uma relação essencial com o nada" (Miller, 2011, p. 65).
Essa relação com o nada parece ser a causa do enorme valor que uma mulher pode dar à sua posição de amada, uma vez que nesse lugar ela encontra uma identificação. Essa forma de lidar como a falta pode, no entanto, reverter em desastre quando ela deixa de ser amada. Diante dessa perda, modos distintos de enfrentamento podem ocorrer, e encontramos mulheres como Isolda, Julieta, Medeia. São heroínas que encenam o deslumbramento de uma mulher por um homem, mas que também passam rapidamente a atos devastadores quando eles se afastam delas. Como Lacan (1998c) já havia comentado, a forma feminina erotomaníaca de amar se deve à precariedade da identificação. A demanda de ser amada pede uma nomeação para a mulher que não existe, a fim de suprir a impossibilidade lógica de alcançar uma identificação de valor universal. Ser amada, porém, é o avesso de ser odiada. Assim, Lacan aponta ao que há de loucura nas mulheres quando se trata de amor:
[...] o universal do que elas desejam é a loucura: todas as mulheres são loucas, como se diz. É por isso mesmo que não são todas, isto é, não loucas-de-todo, mas antes conciliadoras, a ponto de não haver limites às concessões que cada uma faz a um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens [...]. Ela se presta, antes, à perversão que considero ser d'O homem, o que a leva à mascarada que conhecemos, e que não é a mentira que lhe imputam os ingratos, por aderir a O homem. É mais o haja-o-que-houver do preparar-se para que a fantasia d'O homem que há nela encontre a sua hora de verdade. Isso não é exagero, visto que a verdade já é mulher, por não ser toda - não toda a se dizer, em todo caso (Lacan, 1974/2003c, p. 538).
Lacan (2009, p. 69) ressalta que, na parceria com um homem, a mulher se apoia de forma falsa devido às leis da sexuação que trabalharemos adiante. Ao lançar, pela primeira vez, o axioma "A mulher não existe", ele aponta que não existe relação sexual e mostra a ambiguidade que o semblante de mulher guarda em relação à ordem fálica. A mulher se desdobra, diante do parceiro, em sujeito e em semblante de objeto, o que facilita que ela seja enlaçada, nessa parceria, pelo amódio, deixando-se devastar como objeto resto, lixo, em uma posição que se aproxima da sua inexistência. Isso é o que acontece, por exemplo, com Medeia e que ensina sobre a clínica das mulheres desamadas. Além disso, ao se desdobrar nessa dupla posição, o feminino também a ameaça. Ela se encontra então como Outra para si mesma em um desdobramento que não escapa aos paradoxos do gozo nem aos problemas da identificação.
Miller explicita o paradoxo da inexistência d'A mulher em sua articulação com o vazio:
"A mulher não existe" não significa que o lugar da mulher não exista, mas que esse lugar permanece essencialmente vazio. E o fato de ele ficar vazio não impede que algo possa ser encontrado ali. Nesse lugar se encontram somente máscaras; máscaras do nada, suficientes para justificar a conexão entre mulheres e semblantes. [...] Nesse sentido, chamamos de mulheres esses sujeitos que têm uma relação essencial com o nada. Trata-se de uma expressão prudente, de minha parte, porque todo sujeito, tal como Lacan o define, tem uma relação com o nada. Mas, de certo modo, esses sujeitos que são mulheres têm uma relação mais essencial, mais próxima com o nada (Miller, 2011, p. 65).
É no Seminário 20, Mais ainda, que Lacan traz à luz uma discussão sobre a mulher pela via do não-todo. É nesse momento mais avançado de seu ensino que Lacan também faz novo corte em relação a Freud ao definir a existência de um mais além do falo cuja função é de suplemento. Isso lhe permite reconhecer a mulher como não-toda em relação à castração. Para Lacan (1985): "quando um ser falante qualquer se alinha sobre a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica" (p. 98). Aqui há um avanço em relação à teoria do significante para uma ênfase na modalidade de gozo. Com a lógica significante, estamos no plano da linguagem e da marcação presença-ausência. Trata-se de uma lógica de atributos que "muda a ênfase que antes estava posta na relação do sujeito com o desejo, regulado pela falta cujo significante príncipe era o falo, para um domínio de uma nova modalidade de gozo, denotando um outro regime de regulação da civilização" (Besset, Gaspard, Doucet, Veras, & Cohen, 2010, p. 1260). Ao privilegiar a modalidade de gozo, o que conta é a lógica do não-todo, na qual temos um gozo que, pela via significante, torna-se distinto e se destaca de um gozo Outro indistinto. Ao primeiro, Lacan chama de gozo fálico; ao segundo, Outro gozo. É diante desse Outro gozo que o enigma da mulher se formula.
As modalidades de gozo
A lógica matemática e a gramática permitem a Lacan (1985) discutir o não-todo e propor em seu ensino uma escrita da sexuação. Considerando as ideias de Frege, Lacan repensa a lógica clássica de Aristóteles (2005) sobre as afirmações de caráter universal em sua articulação com o particular. Ele vai passar da lógica de atributos aristotélica para uma lógica matemática, na qual o par de oposição desaparece, dando lugar a um significante sozinho, fora do sistema de oposição, recortado sobre o vazio do zero que logicamente lhe precede.
Na lógica clássica, Aristóteles se propõe a discutir a relação entre o que se escreve e o pensamento, considerando um como símbolo do outro. É através de argumentos lógicos que Aristóteles trabalha com o raciocínio dedutivo e cria proposições com o intuito de demonstrar se as mesmas são verdadeiras ou falsas. A teoria proposta por Aristóteles é a do silogismo, na qual o raciocínio formalmente estruturado parte de uma premissa para chegar a uma conclusão. Assim, em sua sistematização de pensamento encontram-se duas premissas e uma conclusão. As premissas são: 1) Todos os homens são mortais; 2) Sócrates é um homem. A conclusão que se tira é que Sócrates é mortal. Aristóteles mostra que a conclusão carrega qualidades da primeira premissa, a saber, a qualidade de ser mortal, e o sujeito da segunda premissa (Sócrates). Assim, ele conclui que há um sujeito representado por Sócrates e um predicado representado por mortal, e essa constatação leva Aristóteles a trabalhar com a distinção entre o universal, que se refere a tudo ou nada (sujeito), e o particular, que se refere a alguma coisa do sujeito (predicado). O que se pode depreender de Aristóteles é que o processo de negação recai sobre o predicado da frase, e não sobre o sujeito da proposição; o universal e o particular se encontram numa mesma dimensão, visto que ambos tratam da negação sobre o predicado da frase.
Frege pretendia eliminar o mal-entendido e a ambiguidade da linguagem, e o seu pensamento lógico pode ser representado por elementos da aritmética. Ele parte da lógica dos predicados proposta por Aristóteles e evolui para a lógica matemática, introduzindo os quantificadores existenciais. É a partir de Frege que Lacan (Checchia, 2004) repensa a lógica de Aristóteles. Frege parte da matemática e postula que a ordem dos números só pode ser dada pelo fundamento do zero. Não se trata do nada que se opõe ao ser, como na lógica aristotélica, mas do vazio logicamente necessário para que o número Um se funde. Dessa forma, ressalta Lacan, "Frege foi levado a basear o número 1 no conceito de inexistência" (Lacan, 2012, p. 54).
Ao se servir das ideias de Aristóteles à luz da formalização de Frege, Lacan propõe então uma nova modalidade de diferenciação sexual. Considerando que negar um sujeito é inadmissível na lógica clássica, a novidade de Lacan consiste em negar a proposição existencial e afirmar uma não existência, criando as fórmulas quânticas da sexuação que são formalmente apresentadas no Seminário, Livro 20, Mais, ainda (Lacan, 1985).
Nessa perspectiva o falo é o advento de um S1, uma cifra fortuita, que se estabelece como existente no campo vazio da inexistência. Em função dessa cifra inaugural e singular para cada sujeito, isolada do sistema da linguagem, surge uma distinção sobre um campo de gozo indistinto (Lacan, 2012, p. 181). Tal distinção promove uma diferença que instaura o Um em alteridade absoluta ao zero anterior ao seu advento. "Há Um sozinho" é uma expressão de Lacan (Lacan, 1985, p. 91) para designar a marca que traça um limite à experiência de gozo. Além desse limite, há o que não se sabe: o feminino. O feminino deixa de ser a falta de um atributo e passa a se situar como o que está além do limite de saber organizado pelo falo. O feminino é uma ultrapassagem; está além do falo.
A diferença sexual lacaniana é, portanto, uma diferença absoluta, sem comparação, num plano que não passa pelo especular (Rêgo Barros, 2012), pois o material do qual advém cai sobre a carne, literalmente, escrevendo nela um campo de gozo. Lacan reconhece nisso a posição do sujeito como resposta do real diante do desamparo traumático da posição original de objeto de um gozo desconhecido, alheio, que ele denomina de gozo Outro.
Nesse sentido é que A mulher, como complementar ao homem, não existe. Desse lado em que se espera um significante que pudesse escrever matematicamente uma relação de oposição, de proporção, complementar ao desejo do sujeito, encontra-se um vazio. Falta uma formulação que permita construir um conjunto universal para as mulheres. Consequentemente, a relação sexual entre homens e mulheres não existe como prescrição. Tampouco A mulher se escreve da mesma forma para todos. Ela precisa ser inventada uma a uma, em cada parceria que supre a falta da relação sexual. Para cada sujeito, de forma singular, o sexo é experimentado a partir de uma borda traçada no corpo, e nela objetos, muitas vezes partes do corpo de outros, podem se encaixar e sustentar uma ficção de complementaridade, no plano da fantasia, que organiza falicamente o desejo e o gozo. No plano do amor, diz Lacan, o gozo da fantasia pode condescender ao desejo, conectando-se também à falta de um significante que diga o que é A mulher. O amor é, portanto, o elo entre a fantasia fálica de um sujeito com A mulher que não existe. Para que se faça uma parceria, não se pode prescindir de suportar o vazio daquilo que da relação sexual não se escreve, porque ultrapassa a fantasia do sujeito.
O enigma de como articular a fantasia ao que a ultrapassa é o enigma da mulher que desafia a todos os sujeitos. Tanto os homens como as mulheres têm que se haver com a questão do que é uma mulher. Com essa lógica, Lacan inaugura o ponto de partida do sujeito em relação ao sexo e norteia a acepção que se pode edificar em torno disso. É a partir dessa escrita original que o sujeito se volta para a gama de semblantes oferecidos pela cultura que lhe possam servir para sua identificação.
Ao estabelecer as referidas fórmulas, Lacan (1985) propõe o masculino e o feminino como posições subjetivas encontradas no próprio discurso do sujeito, o que pode estar em desacordo com o anatômico. Se, por um lado, o autor propõe o registro edipiano como suporte para uma posição masculina, fálica, por outro, ele assinala a posição feminina e a situa além do Édipo, além do falo. Assim, a lógica que se estabelece é a do todo fálico do lado da constituição do sujeito e não-todo fálico do Outro lado que escapa a esta constituição. Ele distingue então duas modalidades de gozo, a saber, o gozo fálico determinado pela linguagem, tributário do significante fálico, que pode vir a se articular com os semblantes da cultura, e o gozo além do falo, ou gozo Outro, um gozo a mais, suplementar, fora da linguagem, desconhecido, ameaçador, pois ultrapassa o limite do saber.
Como aponta Lacan, há um desdobramento para que um sujeito possa estar na posição feminina, ou seja, ser uma mulher na parceria:
O falo, portanto, o seu homem, como ela diz [...] não lhe é indiferente. [...] ela tem diversas formas de abordar esse falo, de guardá-lo para si. Não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá a toda. Mas há algo mais (Lacan, 1985, p. 100, grifo nosso).
Nesse gozo Outro, é possível localizar as mulheres em posição de excesso, em especial quando há dificuldade de estabelecer uma relação com a falta que o amor propicia. Assim como o gozo e a verdade se irmanam, o gozo feminino ultrapassa toda e qualquer confecção de verdade.
Medeia e Madeleine diante do enigma d'A mulher
Para tratar do enigma da feminilidade, duas mulheres se apresentam como ponto de referência mitológica: Medeia, que inspira a tragédia de Eurípedes, e a outra, do século XIX, Madeleine Rondeaux, amada do escritor André Gide. Diante da perda do amor de um homem, ambas encenam a rudeza e o estoicismo no ato de agressão ao amado, retirando-lhe o que ele tinha de mais precioso: no caso de Medeia, os filhos; no caso de Madeleine, as cartas de amor escritas por Gide.
Medeia é uma mulher que faz tudo por seu homem. Ela abandona a família, trai seu pai, seu país, foge com o amado Jasão, com quem passa a viver no exílio, em Corinto. Na tragédia, fica claro que Medeia consente com tudo o que Jasão quer, não havendo desavenças. Ela é uma esposa e mãe perfeita. O paraíso despenca, no entanto, quando Jasão, ao invés de honrá-la e fazê-la honrada em Corinto, anuncia que vai se casar com outra mulher, a filha de Creonte, rei de Corinto. Medeia vive essa situação como um ultraje. Ela perde a alegria de viver e é tomada pelo pranto. Desabafa afirmando que "entre todos os seres que têm alma e pensamento, as mulheres são as mais desgraçadas" (Oliveira, 2006, p. 53). Jasão lhe faz todas as ofertas possíveis, assegurando que nada faltará a ela e aos filhos.
Para Medeia, a ordem simbólica já não faz mais nenhum sentido, ela recusa os significantes e pela negação os entrona. É interessante pensar que sua posição referenda a afirmação freudiana de que as mulheres não são dóceis ao supereu paterno (Freud, 1924/1988d), da mesma forma que contempla o que Lacan destacou quanto à força do trauma original que permite pensar o supereu originalmente feminino (Lacan, 2003b). Como estrutura significante, o supereu se constitui do lado fálico, mas, por outro lado, sua vinculação à pulsão pode ser vista quando a demanda pulsional avança, chegando a transbordar o gozo que o falo convenciona, bebendo da fonte de gozo feminino e empurrando em direção à pulsão de morte. Quanto a isso, o supereu que se nutre do feminino pode ser deveras mais feroz do que aquele atrelado à fantasia fálica.
Medeia diz tanto a Jasão quanto a Creonte que não se deve temê-la. Afinal, ela é uma mulher. Todavia, não lhe sendo ofertado o fim de seu exílio, não lhe sendo possível permanecer em Corinto e não podendo retornar à sua terra natal, por ter desertado da mesma quando, em nome do amor por Jasão, ela traiu o pai e matou o irmão, ela é movida por um ódio mortal, uma paixão desmesurada. Medeia usa de seu dom e ilude, diz concordar com Jasão e Creonte, fazendo-os acreditar que ela havia aceitado suas imposições. Entretanto, ela não se submete às determinações dos mais fortes, pois, para ela, a força da vida já não existe mais. Na peça o coro profere: "Ouvi vozes, ouvi gritos da pobre vinda da Cólquida, ainda não mansa" (Oliveira, 2006, p. 46). Os gritos de Medeia representam um sinal de que já não há mais nada a fazer. Já não adianta dizer mais nada, pois falta a ela o amor que lhe permitia suportar a falta do Outro.
Em suas lições sobre a voz, Lacan aponta que apenas a voz, dentre os outros objetos, toca bordas, no plural. Ela está na borda da fonação e na da audição. Dá-se pela jaculação - cuja forma mais primitiva é o grito (Lacan, 2005, p. 354) - e toca em outra borda onde se introduz para produzir gozo pela ressonância no corpo. Ao emparelhar esse comentário com a conhecida frase lacaniana "que se diga resta esquecido por trás do que se disse no que se ouve" (Lacan, 2003b, p. 448), é possível pensar nos dois pontos de real que a voz como objeto faz semblante: o silêncio e a surdez. Esses pontos situam a voz no limite do real e equivalem ao ponto cego do objeto olhar: a mancha (Lacan, 1988, p. 75).
Os gritos de Medeia são então uma retomada da expressão original, mas também última da voz, ao colocar em cena um dizer impossível que não passa pelo amor e, portanto, não pode condescender ao vazio do desejo. Nem ela pode dizer o que experimenta de extravio por essa perda de amor, nem Jasão pode escutar o desmesurado de sua demanda. Há em seu grito um silêncio e na sua escuta uma surdez. Escuta-os o coro, numa posição terceira que testemunha. Esses gritos ilustram o ponto surdo da pulsão invocante, expressão soberana e intransitiva de uma demanda que, solta das amarras fálicas e do dom do amor, alimenta-se da pulsão de morte.
Medeia está fora do significante. O ápice trágico é aquele em que o olhar se torna beleza, último véu diante do horror, e o grito, silêncio, último sinal do inominável. Medeia grita revelando que ela não será capaz de aceitar o que lhe oferecem e organiza seus planos assassinos. Ela quer provocar em Jasão um sofrimento tão profundo como o seu. Ela decide retirar de Jasão o que lhe era mais caro, sua noiva. Todavia, ela vai além. Ultrapassando com isso o sofrimento que inflige a si própria, ela mata também os filhos que teve com ele. Dessa forma, ela destitui Jasão de suas insígnias fálicas: uma mulher que ele deseja e a linhagem que lhe garantiria sucessão.
Assim, Medeia protagoniza o gozo Outro. Ela goza além do seu amor pelos filhos, sinalizando que não existe apenas o falo que, neles, fazia dela mãe. Ela demonstra a dissensão entre a mãe e a mulher. Além da maternidade, ela destrói a mãe e afirma sua posição como mulher.
Madeleine Rondeaux mantém com o seu primo, André Gide, uma relação amorosa no nível do amor cortês. Ela não era mãe, mas carregava consigo a correspondência que André Gide por um longo tempo dedicou-se a escrever para a sua mãe e que abrangeu toda a sua vida de homem. Essas cartas, que se constituíam no seu bem mais precioso, foram entregues a Madeleine para guardá-las. Ela, todavia, as destrói, queimando-as, no momento em que se sente abandonada e põe em dúvida o amor de Gide por ela. A perda dessas cartas teve para Gide um efeito avassalador: "Sofro como se ela tivesse assassinado o nosso filho" (Gide, 1918/1951).
Lacan, ao discutir sobre a posição de Madeleine ao queimar as cartas de Gide, revela que se trata de um ato de "uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher" (1998b, p. 772). O autor compara a posição de Madeleine à de Medeia, considerando que na posição de ambas encontra-se a destruição do que há de mais precioso para um homem, sendo então possível pensar a carta e os filhos na dialética fálica.
O falo como um significante, segundo Lacan (1998a), faz com que o "furo permaneça na cadeia, porém bastardo, um filho fora da cadeia, ilegítimo" (Campista & Caldas, 2012, p. 3). O falo é aquilo que falta e, portanto, faz com que o sujeito necessariamente se confronte com o que é da ordem do desejo. Como foi visto anteriormente, essa leitura do falo feita por Lacan mostra que os objetos brilham, apresentam um valor fálico, a saber, o desejo de ir além. Em Medeia e Madeleine, os filhos e a carta são os objetos destituídos do valor fálico, fazendo emergir um gozo sem limites.
A posição que se evidencia, nos dois casos, é a posição feminina de quem perdeu tudo e que nada mais tem a perder. O que aí parece significativo é o fato, como assinala Lacan, de que há uma troca fatídica em que "a carta, os filhos assumem o lugar onde o desejo se retirou" (Lacan, 1998b, p. 773).
Miller (2011) afirma que, para Lacan, Medeia é uma verdadeira mulher, não pelo ato em si, mas pelo que ele apresenta de estrutura: "o sacrifício do que tem de mais precioso para abrir no homem o buraco que jamais será preenchido" (p. 71). Para o autor, o que há de mulher em Medeia supera o que há de mãe. Certamente não se deve imitá-la; todavia, ela constitui o exemplo radical do que significa ser mulher mais além de ser mãe.
A verdadeira mulher, destaca Miller (2011),
se mede por sua distância subjetiva da posição de mãe. Porque ser uma mãe, ser a mãe de seus filhos é, para uma mulher, querer fazer-se existir como A. Fazer-se existir como A mãe é se fazer existir como A mulher que tem (p. 69).
Todavia, o autor ressalta que não se trata de construir o conceito de uma verdadeira mulher. Afinal, as mulheres só podem ser ditas uma a uma, assim como "tyche", que se revela em "um grito de surpresa, seja de maravilha ou de horror" (Miller, 2011, p. 69). O autor revela que Medeia, após ser abandonada por Jasão, fica em um estado que, na atualidade, se define como depressão, um momento em que as palavras são inúteis. Medeia, assim como Madeleine, só sai da depressão com o seu ato, o que lhe restitui a dimensão de desejo.
Considerações finais
Como se pode perceber no curso deste trabalho, uma mulher, pelo dom de iludir, reveste seu corpo com semblantes femininos, por exemplo, um batom, de modo a atrair e receber do homem o amor. Mas não há garantias de que o amor lhe virá. Portanto, na impossibilidade de cobrir o real, ela resta no vazio a partir do qual precisa inventar, fabricar, criar.
Medeia e Madeleine, duas mulheres, diante do enigma d mulher, da falta de um significante que a defina, foram levadas por um gozo transbordante à destruição do que era valioso para seus parceiros e para elas mesmas. Deram exemplo das paixões erotomaníacas cujo excesso arrasta, na devastação do corpo próprio, seu entorno.
Uma mulher faz semblante sem precisar mentir, pois ela não acredita nas máscaras, apesar de precisar delas. Os homens, como mostra o poeta Carlos Drummond de Andrade (1930), se afirmam através dos óculos e do bigode, eles são sérios. Com Lacan, é possível dizer que eles tendem a estar mais firmemente posicionados na série produzida pela função fálica. Uma mulher, por não ser localizada por essa função, despista, mente, não é séria. Ela fala a verdade, e a verdade é sua ilusão.
Na sociedade atual, certamente, existem algumas mulheres cujos semblantes vacilam, deixando-as atravessadas pela angústia, devastadas. Foi inspirado pela tragédia antiga de Medeia que o poeta e compositor brasileiro Chico Buarque de Holanda, junto com Paulo Pontes (1975), escreveu a peça Gota d'água, adaptando-a ao cenário e ao tempo de um bairro carioca para mostrar que Medeia não é apenas uma ficção, e sim uma figura feminina possível de ser encontrada na atualidade.
Para encerrar, retomamos as palavras da melodia principal dessa adaptação moderna do mito da mulher, na qual a falta ou a dor da falta podem remeter ao sentido de causar desejo, parafraseando Miller, de maravilha ou de horror.
Já lhe dei meu corpo
Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor...
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água (Chico Buarque, 1975)
Referências
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Endereço para correspondência:
Valesca Rosário Campista
vrcampista@gmail.com
Heloísa Fernandes Caldas
helocaldas@terra.com.br
Submetido em: 11/01/2013
Revisto em: 15/05/2013
Aceito em: 16/05/2013