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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.68 no.2 Rio de Janeiro ago. 2016

 

ARTIGOS

 

As noções construídas por adolescentes sobre feminilidade nas redes sociais

 

The notions of femininity constructed by teenagers on social networks

 

Las nociones construidas por los adolescentes sobre la feminidad en las redes sociales

 

 

Nádia Laguárdia LimaI; Ronaldo Sales AraújoII; Ellen Rose Fernandes FigueiredoIII; Karina Almeida CasulaIV; Fabiana CerqueiraV; Ernesto AnzaloneVI; Viviane Marques Alvim C. BarbosaVII; Mirella Carolina César NunesVIII

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
IIPsicólogo. Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
IIIMestranda. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
IVPsicóloga. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
VMestranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
VIDocente. Curso de Atualização em Psicanálise. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
VIIMestranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
VIIIGraduanda. Curso de Psicologia. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta o resultado de uma pesquisa que buscou investigar as noções construídas por adolescentes com idades entre 13 e 18 anos sobre feminilidade nas redes sociais da internet. Utilizou-se, como método, a pesquisa qualitativa a partir dos textos por elas publicados. As discussões teóricas que orientaram a leitura dos escritos das adolescentes giraram em torno de quatro eixos principais: adolescência, corpo, feminino e contemporaneidade, tendo sido utilizada a psicanálise de orientação lacaniana como principal referencial teórico. A hipótese defendida neste artigo é a de que as adolescentes utilizam os objetos de consumo ligados ao corpo como uma forma de construir uma identidade supostamente feminina na atualidade.

Palavras-chave: Adolescência; Feminino; Corpo.


ABSTRACT

This article presents the results of a research which aimed investigating the notions of femininity presented by adolescents aged 13 to 18 years old on social networks. It was used, as method, qualitative research based on texts published by these teenagers on web. The theoretical discussions which guided researchers' interpretation of adolescents' texts were based on four main axis: adolescence, body, femininity and contemporaneity and it was used Lacanian Psychoanalysis perspective as principal theoretical reference. The hypothesis presented by this article is that, nowadays, these adolescents utilize consumer objects related to the body as a form of constructing a supposedly feminine identity.

Keywords: Adolescence; Feminine; Body.


RESUMEN

Este trabajo presenta el resultado de una pesquisa que buscó investigar las nociones construidas por adolescentes con edades entre 13 y 18 años sobre la feminidad en las redes sociales de internet. Se utilizó, como método, la pesquisa cualitativa desde textos por ellas publicados. Las discusiones teóricas que orientaron la lectura de los escritos de las adolescentes se dieron bajo cuatro ejes principales: adolescencia, cuerpo, femenino y contemporaneidad, teniendo el psicoanálisis de orientación lacaniana como principal referencial teórico. La hipótesis defendida en este artículo es la de que las adolescentes utilizan los objetos de consumo ligados al cuerpo como una forma de construir una identidad supuestamente femenina en la actualidad.

Palabras clave: Adolescencia; Femenino; Cuerpo.


 

 

Introdução

A adolescência pode ser definida como um tempo lógico em que o sujeito se vê confrontado com as exigências de se posicionar na partilha dos sexos, de reconstruir a imagem corporal, de escolher um novo objeto de amor que não os pais e de se lançar no universo social mais amplo (Freud, 1905/1974a). A internet é hoje um dispositivo cultural que favorece a identificação e a formação de grupos sociais na adolescência (Lima, Castro, & Melo, 2011). Freud aborda o feminino como um enigma indissolúvel: não há no inconsciente uma inscrição para o feminino, mas há uma diferença irredutível entre os sexos (Lacan, 1985). Ser mulher é uma invenção singular que envolve condições socioculturais e subjetivas. Essa invenção requer uma escolha do sujeito, a qual se dá a partir do encontro contingente com o real do sexo. A época atual é marcada pelo declínio dos semblantes que até então sustentavam as diferenças entre os sexos no campo das identificações. Como consequência, consideramos que o jovem encontra hoje maiores dificuldades para situar-se no campo das identificações sexuais. Diante desse impasse social, buscamos investigar as noções que as jovens têm construído sobre feminilidade nas redes sociais da internet.

Existe um grande número de redes sociais de adolescentes do sexo feminino voltadas especificamente para o público adolescente. Neste espaço virtual, elas escrevem para os seus pares sobre diferentes temas, dentre eles o amor e a moda. Neste artigo, levantamos a hipótese de que as adolescentes utilizam os objetos de consumo ligados ao corpo para tentar construir uma identidade supostamente feminina.

 

A metodologia de pesquisa

Utilizamos, como método, a pesquisa qualitativa. Realizamos a leitura de escritos de adolescentes do sexo feminino em algumas redes sociais da internet para conhecer as soluções criadas por elas no campo das identificações sexuais. Assim, no primeiro momento da pesquisa, fizemos uma leitura das narrativas de adolescentes de diferentes redes sociais da internet, abertas ao público, que têm como tema a feminilidade, selecionadas através de amostra não probabilística. Para selecionar as redes sociais utilizamos as palavras-chave: adolescência, feminino, feminilidade, mulher, menina.

No segundo momento da pesquisa, selecionamos três espaços do âmbito virtual nos quais adolescentes escrevem sobre feminilidade. A partir dessa seleção, buscamos investigar as noções que as adolescentes constroem sobre feminilidade nessas redes sociais. Estas noções são construídas a partir da oferta da cultura, já que o sujeito se constitui no campo simbólico, cultural.

Para a análise do material, utilizamos a teoria psicanalítica. Recortamos os principais temas abordados pelas jovens, os significantes privilegiados em seus textos, considerando, entretanto, as contradições, os atos falhos, os equívocos e outras falhas dos discursos como formas de manifestação subjetiva.

A psicanálise opera, em seus procedimentos metodológicos, sustentada pela linguagem e pelo campo da fala, tomando o sujeito na sua dimensão radical de sujeito do inconsciente (Lima, 2014). Em decorrência dessa especificidade, esta pesquisa buscou extrair dos discursos das próprias adolescentes as noções que elas constroem sobre a feminilidade, que permitiu compreender as suas respostas aos impasses impostos pelo confronto com a puberdade e com a formação discursiva do momento atual da civilização.

 

Resultados

Inicialmente realizamos uma leitura dos escritos de adolescentes em diferentes blogs, páginas e grupos de redes sociais da internet. Os grupos pesquisados têm como títulos: Garotas Misteriosas (http://garotas-misteriosas.blogspot.com.br/p/adolescencia-feminina.html), Adolescência feminina (http://adolescencia-feminina-participe.blogspot.com.br/), Diário de uma adolescente estranha (https://diariosdeumaadolescenteestranha.wordpress.com/), Diário de adolescentes (http://diriodeadolescentes.blogspot.com.br/2008/01/10-dicas-para-vc-ter-mais-estilo.html), Diário ciumento (http://diariociumentomeublog.blogspot.com.br/), Coisas de Carol (http://coisasdecarol.com/tag-espelho-espelho-meu/), Meninas Gatas Malvadas (http://meninas-gatas-malvadas.blogspot.com.br/), Espelho, espelho meu (http://espelhotodomeu.blogspot.com.br/), Mas eu sou meiga, porra (http://eusoumeigaporra.blogspot.com.br/), Uma garota adolescente (http://umagarotaadolescente2012.blogspot.com.br/), Papo de menina (http://www.papodemenina.com.br/blog/), Coisas de mulher (http://www.blogcoisademulher.com/), Todos os meus sonhos (http://todososmeussonhos.blogspot.com.br/), Frases de uma menina (http://frasesdeumameninama.blogspot.com.br/), Conversa de menina (http://conveersademeniina.blogspot.com.br/), Diário de uma adolescente (http://diarioumaadolecente.blogspot.com.br/), Feminina (http://www.afeminina.com.br/), Apenas coisas de garotas (http://apenas-coisas-de-garotas.blogspot.com.br/), dentre outros. Consideramos que, ao se dirigirem a outras adolescentes para abordar coisas de mulher, elas estão buscando circunscrever o que é específico do gênero feminino, diferenciando-o do masculino.

Não selecionamos para esta pesquisa os blogs de adolescentes que foram capturados pelas indústrias da moda, pois acreditamos que a partir do momento em que são contratadas pelas empresas, as adolescentes passam a trabalhar para as marcas que as patrocinam, e os seus textos deixam de ser autorais. Buscamos identificar textos que pudessem revelar o pensamento de adolescentes da nossa época sobre o que é ser mulher.

Selecionamos três espaços do âmbito virtual nos quais adolescentes escrevem sobre feminilidade: Diário ciumento, Uma garota adolescente e Coisas de amor, sendo dois blogs e uma página de Facebook, abertos ao público. Recortamos os significantes que aparecem com maior frequência nos textos das adolescentes nestes espaços virtuais. O procedimento metodológico incluiu um programa, construído por um dos pesquisadores do grupo, que identifica o número de vezes em que cada significante aparece no texto. Organizamos os significantes dentro de categorias temáticas. As categorias organizadas foram: grau de parentesco, sexo masculino, sexo feminino, sentimentos, moda, temporalidade, termos da internet e relacionamentos. Como exemplo, na categoria "grau de parentesco", inserimos os significantes: mãe, pai, família, irmão, prima, filho, tia; na categoria "moda": cabelo, estilo, usar, loja, moda, roupa, cores, vestido, calça, look, tendência, produtos; na categoria "termos da internet": blog, facebook, twitter, site, post, tag. A categoria moda foi a que teve maior número de significantes recortados. Esse foi o tema mais frequente nos textos das adolescentes. Nesta categoria, o significante "cabelo" surge em primeiro lugar, aparecendo 223 vezes nos textos, seguido pelo significante "estilo", que surge 212 vezes nos textos.

Os blogs são redes sociais privilegiadas pelas adolescentes para a escrita mais pessoal, pois oferecem maior liberdade para a escrita (Di Luccio & Nicolaci-Da-Costa, 2010; Lima, 2014; Lopes & Poli, 2006; Recuero, 2003; Sibilia, 2005). O Facebook, por sua vez, é uma rede social que privilegia a imagem e apresenta regras mais bem definidas de funcionamento (Lima et al., 2011). De uma maneira geral, os textos são mais curtos e menos autorais. No Facebook, as imagens e mensagens publicadas visam transmitir uma ideia geral de alegria, bem-estar, beleza e sucesso, valores da nossa cultura (Kehl, 2009).

Nos três espaços selecionados, as adolescentes escrevem sobre o universo feminino, dando conselhos e dicas sobre assuntos diversos, escrevem e compartilham poemas, frases de escritores famosos, letras de música, fotos, imagens, vídeos e charges. Além disso, comentam sobre temas como amor, moda, amizades, família, sexo, adolescência, esportes e escola. Cada uma das três páginas possui mais de dois mil membros. Consideramos que os temas abordados, os significantes utilizados, as imagens e mensagens divulgadas fazem tanto sucesso entre as adolescentes porque estão em consonância com a cultura atual, atendem às demandas e interesses das jovens na contemporaneidade. Os significantes lançados nestas redes fisgam as adolescentes, favorecendo a criação de grupos de identificação. Assim, estas autoras representam um grupo de adolescentes da nossa época.

Como a moda foi o tema mais frequente nas redes sociais pesquisadas, surgiu o nosso interesse em refletir sobre a moda na adolescência. Consideramos a moda como uma oferta do mercado de consumo, um significante que leva à formação de grupos na internet. A nossa hipótese é a de que as adolescentes utilizam os objetos de consumo ligados ao corpo como uma forma de construir uma identidade supostamente feminina. Para fazer esta discussão, privilegiamos os seguintes temas: adolescência, corpo, feminino e contemporaneidade.

Em seus escritos sobre moda, as adolescentes dão dicas sobre como vestir, usar diferentes peças de roupa, se arrumar e se maquiar para as diferentes ocasiões. Algumas mostram certo desprendimento em relação aos ditames da moda, outras tentam criar peças mais originais dentro das ofertas do mercado, mas existem aquelas que só reproduzem as tendências atuais ditadas pelas grandes marcas internacionais e/ou nacionais.

Algumas frases de adolescentes em seus blogs:

Gente, quem nunca quis pintar o cabelo dessa cor? Eu já quis várias vezes, várias vezes eu quis que meu cabelo ficasse rosa.

O dia em que eu visto essa calça eu me acho muito poderosa, mas, gente, qualquer uma fica com essa calça.

Adolescente é foda, um dia tá bem, outro dia tá mal, mas é só passar um batom vermelho que já fica linda, gata, feminina. AMOOOO! Minha receita.

Todas as adolescentes esperam receber curtidas em suas páginas da internet, signo de aprovação social na web. Sabemos que algumas adolescentes elaboram suas páginas com o objetivo de serem descobertas por olheiros contratados pelas grifes. No entanto, há também aquelas que visam especialmente escrever para outras adolescentes. Estes textos revelam uma escrita mais pessoal, próxima de um diário íntimo (Lima, 2014), como vemos a seguir: "Olá queridos leitores, que saudades de estar aqui com vocês, de poder compartilhar meus pensamentos, sentimentos, minha vida".

A nossa hipótese é a de que as adolescentes, ao falarem sobre roupas e adornos corporais, tentam construir um saber sobre o que é ser mulher, e/ou se posicionar como aquelas que detêm esse saber. Algumas acabam por se constituir como referências de identificação para outras adolescentes nestes espaços virtuais, ocupando um lugar de mestria junto a seus pares.

Estes textos escritos no ambiente virtual constituem um fértil material de investigação sobre a adolescência na contemporaneidade, mas é importante levar em conta os limites dessa pesquisa. Em primeiro lugar, não pretendemos analisar os sujeitos, autores desses textos. Ao trabalhar com esse material escrito, buscamos apreender os significantes que circulam na época atual, tentando relacionar tais significantes com a adolescência contemporânea. Em segundo lugar, os textos pesquisados não representam a totalidade do universo de adolescentes que utiliza a internet, mas apenas uma pequena parte dele. Assim, o resultado analisado deve considerar tais limites. Não se trata de uma pesquisa quantitativa, mas qualitativa. Ao trabalhar com a produção escrita, aproximamos a psicanálise da literatura. Soler (1998) sublinha que, ainda que a psicanálise não se aplique à literatura, aquela pode tirar uma lição desta. Podemos aprender a partir da obra do artista, de sua pessoa e de sua vida, ou seja, a psicobiografia é possível, mesmo que seja incapaz de explicar a obra de arte. Segundo a autora, há uma impossibilidade de se deduzir a obra de arte da vida do autor.

Ao utilizar a teoria psicanalítica para a leitura do material pesquisado, esbarramos nas dificuldades que advêm da inter-relação da psicanálise com o campo da ciência, pois o modo de abordagem do real que a psicanálise revela é inédito no campo das ciências (Pinto, 2008). A ciência progride tentando escrever o real a ser controlado. Ela opera sobre o real pela manipulação de fórmulas, tornando-os universais. Entretanto, a psicanálise revela que o real surge como trauma, como um excedente ou fuga do que se inscreve como saber (Pinto, 2008). Freud buscou inserir a psicanálise no campo científico, mas, apesar de seus esforços, ela sempre teve uma relação de exterioridade com a ciência, por considerar os efeitos do real em sua elaboração teórica e clínica. A psicanálise parte do pressuposto de que se deve considerar, em toda teoria, aquilo que orienta a clínica psicanalítica: a castração enquanto impossibilidade real de simbolização (Lima, 2014). Segundo Soler (1998), Freud viu nos artistas seus precursores, e nos textos literários a oportunidade de validar o método analítico. Entretanto, segundo Soler (1998), "o texto escrito não deve ser psicanalisado, antes é o psicanalista que deve ser bem lido" (p. 14). Um enigma sempre permanece do lado da obra de arte ou do texto escrito. Qualquer trabalho ou texto tanto resiste quanto se presta à interpretação. Assim, não são os textos virtuais que devem ser interpretados, mas eles provocam no sujeito o surgimento da palavra, eles fazem falar. Buscamos, portanto, fazer uma leitura desses textos a partir da forma como nós fomos por eles tocados.

 

Adolescência

Segundo Ariès (1986), o conceito de adolescência surge no final do século XVIII e se difunde no século XX. Ao pesquisar o sentido da palavra Adolescens, Freda (1996) relata que o único sentido que permanece de forma constante é o de passagem. A adolescência "é uma verdadeira zona de passagem: um período que encontra sua razão de ser em sua resolução. É o ponto final da adolescência que dá sentido a esse lapso de tempo: seja porque o sujeito se prepara para a vida ativa, seja pelas modificações físicas que o tornam apto à procriação, e pela pressão de algumas figuras mais ou menos definidas, em função da época ou do contexto social onde ele evolui" (Freda, 1996, p. 23).

Se a puberdade é uma noção biológica, a adolescência é um tempo lógico de resposta à puberdade (Stevens, 2004). Tempo de desconexão entre ser criança e ser homem (ou mulher). É também o encontro do sujeito com o desejo sexual, com a passagem do autoerotismo para o encontro com o objeto sexual (Freud, 1905/1974a).

Em 1917, na Conferência XXI, Freud (1917/1996a) afirmou que a escolha amorosa, orientada pelo período da infância, é renovada na puberdade. Se os primeiros objetos de amor de uma criança são os pais, no momento da puberdade o sujeito precisa reatualizar as escolhas de objeto da infância e sua relação com o Ideal, além de escolher uma posição quanto à sexuação. O afeto pelos pais irá apontar o caminho para a escolha de objetos de amor.

Lacan (2003a), em seu prefácio sobre a peça O despertar da primavera, aborda as questões da adolescência como reveladoras de um impasse subjetivo, resultado do encontro do sujeito com o real do sexo. A adolescência seria, então, um trabalho a ser realizado, pelo sujeito, de construir uma resposta ao real da puberdade.

A irrupção do real provoca um desarranjo da imagem corporal e uma impossibilidade de nomear esse acontecimento. Há uma dificuldade do sujeito em se localizar no discurso utilizado até então para designá-lo, sendo preciso criar um novo discurso em que possa alojar o seu mal-estar no laço social.

O adolescente percebe que as identificações no meio familiar já não são suficientes para conferir-lhe uma identidade. A adolescência é o momento fundamental de separação do seio familiar. É necessário, nesse momento, que surja a figura de um novo Outro que substitua o primeiro, como, por exemplo, o professor. Nessa substituição, destaca-se importância da instituição escolar, não só para impedir os jovens de se aventurarem pelo caminho da pulsão de morte, mas para indicarem a estes uma razão para viver (Freud, 1914/1974b).

Essa transição é ainda mais delicada na contemporaneidade, quando o Outro se torna mais inconsistente e desacreditado. Os ideais não constituem mais um eixo norteador para o adolescente, e, em lugar destes, elevam-se como prioridade os objetos de consumo (Lima, 2014).

Diante do imperativo de gozo e do empuxo à fama a qualquer custo, os jovens exploram as diversas possibilidades de exibição pública por meio dos dispositivos midiáticos. O declínio da autoridade tem como consequência a verticalização dos laços, multiplicados infinitamente nas redes sociais da internet. Nesses espaços de socialização, vê-se uma ausência nítida do Outro como eixo vertical das identificações, com a expansão das relações especulares, virtuais, ordenadas pelo eu ideal (Lima et al., 2011).

A lógica especular nas redes sociais é especialmente presente entre as meninas, pois, para estas, a pulsão escópica é mais acentuada que para os meninos. Segundo Rassial (2005), há na adolescência das jovens uma maior regressão ao narcisismo, quando o olhar do outro é fundamental para a valorização da própria imagem corporal. Nesses agrupamentos especulares, observa-se grande intolerância com relação às diferenças.

O corpo almejado pelas garotas é ditado pelo Outro de sua época. A busca pela silhueta ideal torna-se um imperativo na atualidade, quando o corpo ideal é aquele que está em conformidade com o padrão estabelecido pela cultura. Para isso, as meninas tanto criam como seguem diversos tutoriais nas redes sociais existentes. A postagem de fotos pelas adolescentes nas diferentes redes sociais visa obter a aprovação do Outro pela via das curtidas (Rassial, 2005).

Diante da inexistência de um saber sobre o que fazer diante do outro sexo, a internet pode ser utilizada para manter os relacionamentos à distância, sem a inserção do corpo, uma vez que a tela do computador ou do notebook serve como anteparo que dificulta o encontro com o Outro, bem como o encontro com a própria castração (Rassial, 2005). Mas, qual o estatuto de corpo para a psicanálise?

 

O corpo na teoria psicanalítica

A noção de corpo para a psicanálise remete aos limites entre o psíquico e o biológico e está centrada na noção de pulsão, presente no inconsciente através de sua representação psíquica e constituída a partir do campo do Outro. Ou seja, a dimensão psíquica da pulsão é o que dela é linguagem e que pode ser formulada em termos de significante. Assim, o corpo pode ser articulado aos três registros da realidade psíquica: o corpo como imagem (Imaginário), o corpo marcado pelo significante (Simbólico) e o corpo como campo de gozo (Real).

A concepção de corpo como imagem se dá no ensino de Lacan a partir do estádio do espelho. Sua primeira versão foi no ano de 1936 e sua segunda versão em 1949. Para elaborar a teoria sobre o estádio do espelho, Lacan parte da concepção de constituição de corpo próprio elaborada por Henri Wallon, acrescida da teoria de Freud sobre o narcisismo. Lacan aborda o espelho como o semelhante, transformando o estádio do espelho numa estrutura ontológica. Em 1949, Lacan desvincula o corpo do processo de maturação, estabelecendo um distanciamento das concepções desenvolvimentistas sobre o humano. Para o autor, trata-se do domínio do imaginário do corpo prematuro em relação ao domínio real, cujo registro se constitui em relação ao narcisismo no estádio do espelho (Lacan, 1949/1998b). Entretanto, a constituição da imagem corporal ocorre a partir da confirmação do olhar desejante do Outro, ou seja, o campo simbólico sustenta a imagem. A partir do Seminário 10, Lacan (2005) chama atenção para as peculiaridades anatômicas do corpo, para os detalhes, colocando em cena a função do corte. Esse seminário demonstra que, na estrutura da linguagem, há algo que não pode ser reduzido ao significante, destacando um ponto não especularizável na imagem, o objeto a.

Em Radiofonia, Lacan (2003b) aborda o corpo como sendo, em primeiro lugar, tudo o que pode levar a uma marca apropriada para ordená-lo em uma série de significantes. O corpo é marcado pelo gozo, um gozo corporificado pelo significante. O corpo é portador de traços que o riscam, é marcado em sua superfície e afetado essencialmente por seu gozo.

É importante considerar que o corpo é também fonte de sofrimento e mal-estar. Freud (1929-1930/1996b), no texto O mal-estar na civilização, esclarece:

O sofrimento nos ameaça a partir de três dimensões: de nosso próprio corpo, à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens (p. 84).

Uma das fontes de mal-estar no homem é, pois, o corpo, que ganha contornos específicos em cada cultura. Qual o lugar do corpo na cultura atual? Como a internet interfere na relação do sujeito com o próprio corpo e com o corpo do outro? Para realizar essa discussão, recorreremos às elaborações teóricas do antropólogo Le Breton sobre o corpo na atualidade.

 

O corpo na contemporaneidade

O corpo é atravessado pela cultura, que lhe imprime valores e significados. Le Breton (2011b) destaca, na atualidade, a significativa intervenção das tecnociências no corpo, que, vinculadas às ideologias do aprimoramento corporal, transpõem a dimensão física e alcançam um valor social. O corpo hoje se torna uma espécie de alter-ego, o lugar do bem-estar e do bem-parecer, bastante divulgado pelas mídias.

Na busca do bem-estar, o homem, através da maleabilidade corporal, faz do seu corpo um palco de encenação, de demonstração do físico saudável, jovem e perfeito, que passa a ser desejado pela sociedade atual. Dessa maneira, o corpo já não é tido mais como um arcabouço limitado em sua forma biológica, pois, com a ciência moderna, até mesmo os signos corporais tradicionalmente atribuídos ao masculino e ao feminino podem se deslocar de um gênero para o outro, tornando possíveis aparências femininas no homem, e vice-versa: "A expressão corporal é socialmente modulável, mesmo sendo vivida de acordo com o estilo particular do indivíduo" (Le Breton, 2010, pp. 8-9).

Atualmente, o corpo real parece assumir o lugar da imperfeição, que é denunciada pela ciência e pela sociedade. Por meio do desenvolvimento tecnológico e do conhecimento científico, acompanha-se uma constante oferta de interferências médicas no corpo humano. O conhecimento construído pela medicina, juntamente com o desenvolvimento tecnológico, defendem um poder supostamente ilimitado sobre o corpo que objetiva a realização do projeto a ser alcançado: o corpo perfeito e imortal. Segundo este discurso da ciência, é possível superar a condição humana, alterando as relações do corpo com a temporariedade e com a sua forma, através das biotecnologias, dispositivos contemporâneos para o aperfeiçoamento do corpo.

Ao refletir sobre o discurso científico contemporâneo, Le Breton (2011a) postula que o corpo é pensado como uma matéria indiferente, um simples suporte do sujeito, como se fosse um rascunho a ser corrigido. Neste contexto, o corpo é um objeto que deve tornar-se imune ao envelhecimento, à morte, ao sofrimento e à doença. Para isso, o sujeito serve-se de ferramentas técnicas que se encontram no cotidiano: os psicotrópicos para regularizar sua tonalidade afetiva, produtos para dormir, para acordar, para malhar, para a memória, para o estresse etc. Le Breton (2011a) considera esses objetos como próteses químicas para um corpo percebido como falho diante das exigências do mundo contemporâneo.

O espaço cibernético repercute nas dimensões da vida social, cultural, científica e política, introduzindo novas formas de relação humana com o mundo e com o corpo. Para Le Breton (2011a), o corpo no espaço virtual passa a ser "supranumerário", ou seja, transforma-se em artefato, numa carne da qual convém se livrar. Segundo o autor,

a navegação na internet ou a realidade virtual proporciona aos internautas o sentimento de estarem presos a um corpo estorvante e inútil o qual é preciso alimentar, do qual é preciso cuidar, o qual é preciso manter etc..., enquanto a vida deles seria tão feliz sem esse aborrecimento (Le Breton, 2011a, p. 24).

O corpo se torna obsoleto e sem valor; deixa de ser a sustentação de um sujeito e passa a ser mais um objeto do ambiente, na medida em que o espaço cibernético se apresenta como um lugar sem corpo e sem limites que tenta tamponar a precariedade da vida humana: "O corpo não é somente um acessório a ser retificado; percebido como um anacronismo indigno, um vestígio arqueológico ainda ligado ao homem, é levado a desaparecer para satisfazer àqueles que buscam a perfeição tecnológica" (Le Breton, 2011a, p. 211).

Le Breton (2011a) acrescenta que o ciberespaço desobriga os imperativos da identidade, livrando o sujeito de seu corpo. Diante de uma tela de computador, o pudor e a inibição são diminuídos ou até mesmo extintos, tendo em vista a invisibilidade do interlocutor, e, portanto, uma impossibilidade de olhar e sem o poder de julgar. A "presença" mútua no ciberespaço para ele "não passa de um feixe de informações destituído de qualquer carne" (Le Breton, 2011a, p. 175). Para o autor, internet tornou-se carne e sistema nervoso para aqueles sujeitos que não conseguem ficar sem ela e que desvalorizam o seu corpo. O corpo é purificado, remanejado, reconstruído ou eliminado pela tecnologia.

O homem contemporâneo, para Le Breton (2011a), é convidado a construir um corpo, conservar uma forma, modelar sua aparência, ocultar o envelhecimento ou sua fragilidade e manter sua saúde potencial. Assim, diante da crise de significação e de valores que abala a modernidade, o autor assegura que a fisiologia do corpo se tornou provisória, plástica.

Concordando com as considerações de Le Breton, questionamos as incidências dessa representação atual do corpo sobre os sujeitos, especialmente os adolescentes. O tempo lógico da adolescência supõe uma relação especial do sujeito com o próprio corpo. Na puberdade, o corpo se apresenta estranho ao sujeito, sendo agitado por um gozo desconhecido e incontrolável, havendo uma quebra da imagem corporal em consequência das rápidas e profundas modificações sofridas (Lima, 2014). O sujeito adolescente precisa reconstruir sua imagem corporal e situar-se na partilha dos sexos, como homem ou mulher.

Numa época em que o corpo real é considerado desprezível, já que remete à finitude, as questões sobre o corpo que ressurgem na adolescência assumem um peso maior: O que é ter um corpo feminino? Como ser mulher hoje, quando o corpo ideal está cada vez mais distante do corpo real? A mídia expõe, a cada dia, novos objetos de consumo, feitos especialmente para as mulheres, que alimentam a ilusão de que a posse desses objetos é necessária para o acesso à feminilidade, para que as mulheres se tornem atraentes e desejáveis para os homens. Assim, as adolescentes tentam construir uma relação possível entre a identidade feminina e o corpo, pela via dos objetos de consumo ligados a ele. Os objetos fetiche se ligam ao corpo nas imagens das redes sociais, e, tomados como signos de gozo, visam a preencher a ausência do falo.

Lacan (1985) destaca que a mulher inscreve-se na sexuação a partir da significação fálica, mas há uma dimensão do gozo que não se submete ao significante fálico. Lacan (1985) comenta: "Não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá à toda. Mas há algo a mais" (p. 100).Tornar-se homem ou mulher implicam, portanto, num certo uso da função fálica, que divide o gozo em duas modalidades, um totalmente circunscrito à significação fálica e outro que vai além. A mulher busca dar consistência à falta de uma identificação que dê suporte ao corpo sexuado da mulher, recorrendo, por exemplo, às identificações no espaço virtual. Atentas a isso, as grandes marcas buscam fisgar as mulheres através dos seus fortes apelos na mídia: "Yves S. Laurent torna especial qualquer mulher", "Veja como produzir um corpo cada vez mais feminino e atraente", "Moda feminina: como se tornar uma diva", "Veja o batom que a deixa mais feminina e atraente", "Vista a roupa que a faz mulher". Outra publicidade sugere que a roupa substitui os braços do amado: "A roupa mais bonita para vestir uma mulher são os braços do homem que ela ama. Para as que não tiveram essa felicidade, eu estou aqui" (http://almanaque.folha.uol.com.br/saintlaurent.htm).

 

O feminino na teoria psicanalítica: Freud e Lacan

A sexuação humana é atravessada pela dimensão simbólica. Como salienta Kehl (2008), "homem" e "mulher" são os primeiros significantes que nos designam assim que chegamos ao mundo. Uma mínima diferença inscrita em nossos corpos sustenta a designação cultural que nos localiza no campo das identidades sexuais, como homem ou mulher, antes de qualquer possibilidade de escolha pelo sujeito. Assim, algo do real do corpo permite diferenciar os sujeitos quanto ao gênero, que é investido dos valores e significados que a cultura lhe atribui.

No plano imaginário, a masculinidade e a feminilidade podem ser tomadas pelas identificações que estruturam o eu, mas também pelas estratégias particulares com que cada sujeito se organiza em relação ao trinômio: falo/falta/desejo (Kehl, 2008). Para Freud (1933/1974g), a questão do feminino e masculino não se confunde com o gênero, visto que, devido à bissexualidade constitutiva do ser humano, todos possuem uma combinação das partes masculina e feminina.

Em Sexualidade feminina, Freud (1931/1974f) discorre sobre o Complexo de Édipo da menina e suas peculiaridades em relação ao menino. Ambos possuem a mãe como primeiro objeto de amor, mas desenvolvem seu desejo de formas diferentes. No caso do menino, ele mantém o seu objeto de amor do período pré-edípico durante o período edipiano, e tem o pai como rival. Por outro lado, a menina deve passar, segundo Freud, por duas mudanças decisivas. A primeira, a alteração da zona genital por excelência: do clitóris para a vagina. E a segunda, a mudança de objeto de amor: da mãe para o pai.

Freud (1931/1974f) atribui à fase pré-edipiana das mulheres um valor que até então havia sido subestimado. A atividade sexual das meninas estaria basicamente ligada ao clitóris e seria tipicamente masculina. Posteriormente, na puberdade, haveria o acesso a uma atividade sexual tipicamente feminina, sendo esta a primeira grande diferença entre o Édipo masculino e o feminino. A segunda diferença estaria, então, centrada na troca de objeto de amor, feita pelas meninas. A mãe se coloca para ambos os sexos, porém, no caso da menina, o pai, posteriormente, deve se tornar o novo objeto de amor. Freud (1931/1974f) ressalta, entretanto, que a ligação da menina com a mãe adquire uma importância fundamental para a vida erótica feminina.

O complexo de castração na mulher apresenta-se de forma própria. Diante de sua condição de castrada, a mulher pode ter três específicos destinos: a inibição completa da sexualidade; a manutenção de sua masculinidade, da qual em casos extremos pode advir uma escolha de objeto homossexual; e a feminilidade, tomando o pai como objeto de amor. Sendo assim, diferentemente do menino em que o complexo de castração encerra o Édipo, no caso da menina, tal complexo a lança na vivência edípica (Freud, 1931/1974f).

Freud ressalta o lado ativo da feminilidade, retirando esta do domínio completo da passividade. Em sua conferência sobre feminilidade, Freud (1933/1974g) postula que a realização da masculinidade ou da feminilidade é algo que foge ao orgânico e à anatomia, ressaltando que a feminilidade pode ser colocada como uma preferência aos papéis passivos, mas, mesmo para alcançá-los, é necessária uma boa dose de atividade.

De acordo com Freud (1933/1974g), a tarefa de dizer o que é uma mulher é uma tarefa impossível à psicologia e à psicanálise. O que se pretende é conhecer a maneira como um ser de disponibilidade bissexual se desenvolve para o caminho da feminilidade, verificando-se a importância da fase pré-edípica em que a mãe é o objeto de amor primordial da menina e o pai não passa de um intruso na relação. A ligação com o objeto materno persiste em todas as fases de desenvolvimento libidinal, e, por isso, o afastamento que a menina precisa fazer de sua mãe é acompanhado por grande hostilidade e agressividade dirigidas ao objeto materno.

A distinção anatômica entre os sexos tem consequências psíquicas, segundo Freud (1925/1974e). A visão do órgão sexual do gênero masculino faz com que a menina se sinta injustiçada. Surge, então, a inveja do pênis, que faz com que a menina vá em direção ao pai, desejando que este lhe dê o órgão masculino que lhe foi negado pela mãe. Contudo, para o autor, a feminilidade só será consumada se esse desejo de obter um pênis for substituído pelo desejo de ter um filho do pai, momento de entrada da menina no Complexo de Édipo.

À mulher, Freud (1914/1974c) atribui maior narcisismo. Tal fato, naturalmente, influencia na escolha de objeto da mulher, para quem ser amada é muito mais importante que amar. Os cuidados com a aparência feminina são também explicados por Freud (1914/1974c) como uma tentativa de compensar a deficiência do órgão sexual, e a escolha objetal feminina pode ser feita por meio do ideal de homem que a menina um dia quis se tornar.

O falo ocupa lugar de destaque nas construções psíquicas da mulher, sendo o termo penisneid utilizado por Freud (1925/1974e) para marcar a relação da menina com o falo durante o período do complexo de Édipo. Esta relação é percebida a partir de três fenômenos edípicos: uma fantasia construída a partir do anseio de que o clitóris seja um pênis; o desejo por possuir o pênis do pai; e, finalmente, o desejo de ter um filho do pai, como um substituto do pênis.

Lacan, em 1958, destaca que no Complexo de Édipo é inaugurada a lógica do desejo, "que comporta uma relação terceira, a qual faz intervir, para além da mãe, ou mesmo através dela, a presença do personagem desejado ou rival, mas sempre terceiro que é o pai" (Lacan, 1998a, p. 284). Temos, assim, um triângulo simbólico em que é desenhado o lugar de desejo da criança. Para Lacan (1995), a mulher, na sua evolução psíquica, faz da ausência do pênis uma marcante presença: "este falo, a mulher não o tem, simbolicamente. Mas não ter o falo, simbolicamente, é dele participar a título de ausência, logo, é tê-lo de alguma forma" (Lacan, 1995, p. 155). Esta falta que se inscreve psiquicamente marca as experiências infantis e seus desdobramentos.

Lacan (1998c) afirma que o falo "é o significante que dá a razão do desejo" (p. 700) e ressalta que o complexo de castração inconsciente tem uma função de nó, tanto na estruturação dos sintomas, quanto na instalação, no sujeito, de uma posição inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo (p. 685). Cada sujeito assume seu sexo em função de sua relação com o significante da castração, o falo, e essa assunção subjetiva da diferença sexual é decisiva para a orientação sexual dos sujeitos.

Lacan (1998a) reconhece, entretanto, que "a mediação fálica não drena tudo o que pode se manifestar de pulsional na mulher" (p. 739) e caracteriza o feminino como o lugar da falta de um significante fálico. Existe uma dimensão de gozo que não passa pela mediação do significante fálico, que é o gozo feminino (Lacan, 1985).

As mulheres, no campo da sexualidade, são referenciadas à lógica fálica e, ao mesmo tempo, se encontram mergulhadas num vazio de palavras. A lógica fálica se instaura como resultado da lei da castração, mas há um gozo que escapa à referência fálica. Tendo estas premissas como base, Lacan elabora o aforismo: A mulher não existe, ou seja, não há representação do que é ser mulher no inconsciente. O feminino é caracterizado pela sua não exceção, logo, não há o conjunto das mulheres: "E também por isso que é como única que ela quer ser reconhecida pela outra parte: isso é mais do que sabido" (Lacan, 1985, p. 467). A mulher só pode ser contada uma a uma. Cada mulher terá que inventar o que é ser uma mulher, ou seja, construir uma saída singular frente a essa ausência.

Assim, no seminário Mais, ainda, Lacan (1972-73/1985) descreve a partilha sexual a partir da distinção entre dois tipos de gozo, fálico e suplementar. Ele afirma que a mulher é não-toda inscrita na lógica fálica. As mulheres possuem um gozo suplementar ao fálico, impossível de ser dito, fora do discurso civilizatório. Lacan afirma que nada se pode dizer da mulher, pois não há o que a represente, o que diga a respeito dela. Assim, as mulheres são não-todas fálicas, pois apresentam sua referência ao falo, mas, por outro lado, estão relacionadas a uma dimensão de exterioridade absoluta.

Lacan (2009) utiliza o conceito de semblante como "uma roupagem que confere discursividade às experiências vivenciadas pelo sujeito com o objeto" (p. 53). Já Miller (2012) define o semblante como algo "que tem a função de velar o nada" (p. 65), afirmando que "o véu é o primeiro semblante" (p. 65). Para Miller (2012), quando Lacan diz que A mulher não existe ele o faz frente ao eterno vazio em que ela se localiza. Entretanto, encontramos nesse vazio seus véus e máscaras, que fazem valer a ligação da mulher, sua relação com o vazio e seus semblantes. O velar, segundo Miller (2012), possibilita à mulher se inventar.

André (1998) afirma que "a mulher deve ser praticamente fabricada através de um longo trabalho psíquico" (p. 191). A imagem do corpo toma traços, para a mulher, de uma função ambígua e problemática. Com efeito, uma possibilidade que existe é a construção de uma imagem que deve, ao mesmo tempo, mascarar e sugerir: ela deve, por um lado, recobrir o real, por onde o corpo se liga ao órgão e ao objeto da fantasia masculina, e, por outro, sugerir a presença para além do véu. Assim, os adornos que recobrem o corpo da mulher podem operar como um véu que mascara e sugere, num jogo que vela e desvela a ausência, ligando-se ao objeto da fantasia e despertando o desejo masculino.

Os objetos de consumo podem ser tomados como fetiches pelas mulheres. Para Lacan (2005), "O fetiche é uma transposição do imaginário. Ele se torna um símbolo" (p. 49). O fetiche é, então, um símbolo do falo, uma imagem que viria preencher a sua ausência. A mídia oferece não só o objeto, mas especialmente a sua marca. As grandes indústrias da moda lançam no mercado objetos que passam a ser desejados pelas marcas que eles ostentam.

Nessa perspectiva, a moda, como um mercado, veicula imagens que envolvem o objeto de consumo transformando-o em signo de gozo, ou seja, em um objeto-fetiche, cuja intensa oferta na mídia eletrônica produz a ilusão de que a falta estrutural pode ser preenchida com esses gadgets que estão à disposição de todos.

 

O declínio do Outro no contexto contemporâneo

A época atual é marcada pela ascensão do objeto e pelo declínio do Ideal (Lacan, 2003b). O Outro tem se revelado na contemporaneidade como ficção, visto que o gozo já não se encontra regulado pela relação com ele. Há, então, o que poderíamos chamar de uma recusa fundamental ao Outro, que se dá em um sentido duplo: o sujeito recusa o Outro, e também o Outro recusa o sujeito.

A voz do discurso capitalista é a do mercado global, que produz o mal-estar contemporâneo, expresso por meio da preocupação pela identidade. Diante da inexistência do Outro, se manifesta a impossibilidade de se estabelecer uma regra válida para todos. Os modos de gozo contemporâneos se afastam da ordem do falo, numa recusa da solução totalizadora dos significantes mestres antigos que regulavam o gozo. Este, desregulado, se encontra ao lado do que Lacan (1985) chama de gozo feminino, o gozo do não-todo, que escapa à ordem fálica. Miller (2006) denomina como feminização do mundo contemporâneo essa nova época do reino do não-todo (p. 109), ou seja, essa via atual de recusa da castração e da regulação do gozo imposta por ela.

O Ideal do eu, ressaltado por Freud (1923/1974d), do qual depende a identificação do sujeito, traz implícita a necessidade de um sacrifício. O Ideal do eu permite uma contenção do gozo e confere uma consistência ao Outro. Em nossa época, o objeto do mais-gozar é desvinculado de qualquer Ideal, levando a uma satisfação direta, sem mediação do Outro, fazendo emergir o imperativo do Supereu contemporâneo: "goza!" (Lacan, 1985). O Ideal tem perdido a capacidade de dirigir o desejo e vincular o gozo. Os processos de identificação não se apresentam definidos, mas são sustentados por redes múltiplas e variáveis, não ordenadas em torno de um Ideal. Além disso, o desprezo pelo corpo real, que remete o sujeito à castração, favorece o apego às imagens virtuais, às identificações imaginárias.

Para Miller e Laurent (2005), a inexistência do Outro leva ao surgimento dos Comitês de ética que não se sustentam mais em um Ideal do eu, mas se constituem a partir da ética do eu ideal, sem perdas, numa preservação do gozo narcisista.

Nesta perspectiva, podemos inferir que, pela via das identificações no espaço virtual, essa rede múltipla, fluida e variável de agrupamentos virtuais, as adolescentes buscam uma identidade feminina pela via do gozo narcisista. Contudo, ordenados em torno de um eu ideal que visa o alcance de um padrão de beleza corporal cada vez mais inatingível, esses grupos, desvinculados de um Ideal, não suprem de forma consistente o déficit significante do sujeito acerca do seu ser, nem conferem uma solução ao enigma do feminino. Apoiados nos objetos mais-de-gozar ligados ao corpo, os sujeitos buscam a satisfação direta, sem a mediação do Outro, o que os coloca como prisioneiros dessa lógica consumista, convertendo-se, eles mesmos, em produtos.

 

Considerações Finais

A adolescência pode ser definida como um tempo lógico em que o sujeito se vê confrontado com as exigências de se posicionar na partilha dos sexos. Para se localizar no campo das identificações sexuais, os adolescentes buscam se apoiar nos significantes ofertados pela cultura. Diante do declínio dos semblantes que até então demarcavam as diferenças sexuais no campo das identificações, as adolescentes, muitas vezes, tentam se apoiar nos objetos de consumo ligados ao corpo para construir uma identidade supostamente feminina.

O espaço cibernético se apresenta como um lugar sem corpo e sem limites, que vende a ilusão de que é possível prescindir do corpo real, para tamponar a precariedade da vida humana. As tecnologias da imagem aliadas aos objetos de consumo ligados ao corpo permitem que a jovem hoje alcance uma imagem corporal supostamente ideal, sem falhas, como uma forma de se esquivar do encontro com a impossibilidade da relação sexual.

Freud (1931/1974f) afirma ser o feminino um enigma indissolúvel, visto que não há no inconsciente uma inscrição para o feminino, embora haja uma diferença irredutível entre os sexos. Ser mulher é uma invenção que envolve condições socioculturais e as relações de poder numa dada cultura, mas resulta de uma posição subjetiva singular construída a partir do encontro contingente do corpo com a língua materna, e de uma decisão do ser ao encontro contingente com o real do sexo (Fuentes, 2012).

As comunidades sobre o feminino nas redes sociais da internet operam a partir da lógica da identificação, uma vez que as redes sociais funcionam hoje como veículos dessa identificação. Toda a dinâmica das identificações passa pelo sistema significante, e, portanto, reinscreve o feminino do lado fálico. Assim, a igualdade se dá pela via da lógica fálica. Diante da ausência de um significante no inconsciente que defina o que é ser mulher, as adolescentes buscam, através das ofertas de identificação na rede, uma forma de se localizarem na partilha dos sexos. Para Brodsky (2008) masculinidade e feminilidade são posições que o sujeito encontra no Outro em forma de semblantes. Tais semblantes são necessários para aparelhar o modo de gozar de cada um, fornecendo formas de satisfazer a pulsão. Entretanto, tais semblantes não são fixos e se inserem num contexto social e cultural, como aparatos para rodear o real. Na época atual, assistimos a um apagamento dos semblantes tradicionais que até então eram utilizados para diferenciar os sexos.

O consumo de objetos ligados ao corpo tem um lugar de destaque nas redes sociais e na cultura atual. Os objetos de consumo promovem um ciclo, uma série, que alimenta a esperança de que algo possa completar o sujeito. Cria-se um movimento cíclico que captura o sujeito nessa malha de sedução, intensificando o seu desejo por aquisições diversas e alimentando a ideia ilusória de que é preciso consumir para ter e ser. O sujeito encontra no campo do Outro os semblantes necessários para seu modo de gozar, ou seja, suas formas de satisfazer a pulsão (Brodsky, 2008). Essa produção de semblantes, dos quais o sujeito se serve, é variável segundo a época e a cultura.

Se não há uma representação para o feminino no inconsciente, cada mulher constrói uma resposta frente a essa ausência. No lugar desse vazio do significante na mulher, no seu inconsciente, que a designe como tal, surgem distintas possibilidades de suplência (Brousse, 2001). As identificações são respostas que permitem uma solução parcial ao enigma do feminino. Lacan (2009), no Seminário 18, aborda as identificações como semblantes: "Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer homem" (p. 31); e a mulher "tem uma enorme liberdade com o semblante" (p. 34). As mulheres têm um ponto de vista exterior, em função de sua relação com o Outro gozo, o que lhes outorga essa maior liberdade em relação aos semblantes (Rabinovich, 2015).

As identificações (ou os semblantes da cultura) permitem certo apaziguamento da angústia que surge diante do confronto, na puberdade, com o gozo indizível, com a dimensão real do gozo. Se essa solução é parcial, é porque algo do real não se submete ao significante, exigindo uma resposta para esse impossível de simbolizar, que implica saber operar com o vazio da castração.

Nos grupos e comunidades de diferentes redes sociais que têm como tema a feminilidade, jovens do sexo feminino escrevem sobre o que é ser mulher hoje, sobre o amor, amizades, além de comentarem e divulgarem objetos de consumo. Nesses grupos, a forte presença dos objetos de consumo ligados ao corpo nos levou a considerar que, diante da tentativa das adolescentes de circunscrever uma identidade feminina, elas se apoiam nestes objetos-fetiche, ofertados pelo mercado. Diferenciamos, portanto, o feminino da feminilidade. Se o feminino é o irrepresentável, a feminilidade é uma construção simbólica que tenta dizer do feminino. Diante do enigma do feminino, as mulheres escrevem sobre a feminilidade. No entanto, a tentativa de dizer do feminino pela via dos objetos de consumo ofertados a todos não toca o que há de propriamente feminino, ao contrário, só as distancia da dimensão singular do gozo.

Contudo, não podemos desconhecer a possibilidade de as roupagens e adornos corporais serem utilizados por algumas mulheres como semblantes que velam o nada, como o resultado de uma criação singular que toca o feminino. Trata-se da criação que, na trama psíquica, toca um ponto de gozo, um buraco, algo irrepresentável, como uma criação artística ou literária. Barthes (1993) comenta que, na literatura, o ponto de gozo visa essencialmente o texto, que é o tecido dos significantes que constitui a obra, e acrescenta que o texto é o próprio aflorar da língua. Para o autor, o texto aponta para a corporeidade da letra, que remete à escritura, que aborda o ponto de impossibilidade da língua.

Nessa perspectiva, Maia (2012), em Textualidade Llansol, destaca que a descoberta da letra coincide com a descoberta da inscrição do próprio corpo do escritor no texto. Se o feminino é o real como impossível de ser representado, como cada mulher inventa uma solução para o ser mulher? A autora nos aponta, então, uma direção, ao descrever a textualidade em Llansol: trata-se de uma textualidade que escava em direção ao real, não para encobri-lo em nova camada de sentido, mas em direção ao texto que produz uma mutação da língua, sendo esse texto um ato transformador. O próprio texto é sujeito do ato, e a escritora desaparece no gesto de criação. Assim, "o texto faz-se tecido vivo" (Maia, 2012, p. 88).

Questionamos, portanto, se as roupagens, assim como as criações literárias, poderiam compor um corpo, constituindo um tecido vivo, que operaria na escritura de cada um. Neste caso, as roupagens seriam o resultado de algo inédito, fora do campo das identificações. Se a indústria da moda tenta capturar os corpos para circunscrevê-los dentro de um campo universal, cada mulher pode servir-se desta oferta de modo próprio. Uma mulher pode colher, recortar, desfazer e reconstruir os tecidos significantes da cultura, criando algo novo, que não faz série, que toca algo do gozo mais singular, fora do campo do sentido, elaborando uma solução inédita para o ser mulher.

 

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Endereços para correspondência:
Nádia Laguárdia Lima
nadia.laguardia@gmail.com

Ronaldo Sales Araújo
rsales.psi@gmail.com

Ellen Rose Fernandes Figueiredo
ellenrose.psi@gmail.com

Karina Almeida Casula
karinacasula@hotmail.com

Fabiana Cerqueira
fabianaacer@gmail.com

Ernesto Anzalone
eanzalone@gmail.com

Viviane Marques Alvim C. Barbosa
vialvim@hotmail.com

Mirella Carolina César Nunes
mirabellaferraz@gmail.com

Submetido em: 14/06/2015.
Revisto em: 12/10/2016.
Aceito em: 13/10/2016.

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