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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versión On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.1 São João del-Rei ene./mar. 2021
Formação inventiva em Psicologia: problematizações à luz dos novos paradigmas da ciência contemporânea
Inventive Formation in Psychology: Problematizations in the Light of the New Paradigms of Contemporary Science
Formación inventiva en Psicología: problematizaciones a la luz de los nuevos paradigmas de la ciencia contemporánea
Maria Clara Carneiro SantiagoI; Roberta Carvalho RomagnoliII
IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
IIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
RESUMO
Este artigo discute a formação acadêmica em Psicologia, lançando luz sobre os múltiplos atravessamentos no domínio da prática clínica. Seu objetivo foi problematizar a concepção de aprendizagem e ensaiar um movimento em defesa da invenção, da consideração dos fluxos heterogêneos e intensivos que operam incessantemente na experiência pessoal do psicólogo clínico. A partir do diálogo com as ideias novo-paradigmáticas de Humberto Maturana, percorremos também os trabalhos de Mony Elkaïm, no campo das terapias familiares, e sua interlocução com Gilles Deleuze e Félix Guattari. A pesquisa de campo consistiu na realização de um grupo de estudos com estudantes da graduação em Psicologia, tomado como um dispositivo de intervenção e conversações intersubjetivas coconstrutoras de novas e impensadas realidades: a consideração das singularidades e das diferenças que se sobrepõem ininterruptamente na prática e que nunca podem ser abarcadas por um conhecimento encerrado em definições absolutas e totalizantes.
Palavras-chave: Aprendizagem inventiva. Psicologia Clínica. Autopoiese. Ciência novo-paradigmática emergente.
ABSTRACT
This article discusses the academic background in Psychology, shedding light on the multiple crossings in the area of clinical practice. The aim of this study was to problematize the concept of learning and rehearse a movement in defense of the invention, the consideration of heterogeneous and intensive flows operating incessantly on personal experience of the clinical psychologist. From the dialogue with the new paradigmatic ideas of Humberto Maturana, we also cover the work of Mony Elkaïm, in the field of family therapies, and his interlocution with Gilles Deleuze and Félix Guattari. The field research consisted in a group of studies with graduate students in Psychology taked as a space for intersubjective conversations co-constructing of new and unthought realities: the consideration of singularities and differences that overlap uninterruptedly in practice and which can never be encompassed by a knowledge enclosed in absolute and totalizing definitions.
Keywords: Learning invention. Clinical Psychology. Autopoiesis. Emerging new paradigmatic science.
RESUMEN
Este artículo discute la formación académica en Psicología, arrojando luz sobre los múltiples atravesamientos en el dominio de la práctica clínica. Su objetivo fue problematizar la concepción de aprendizaje y ensayar un movimiento en defensa de la invención, de la consideración de flujos heterogéneos y intensivos que operan incesantemente en la experiencia personal del psicólogo clínico. A partir del diálogo con ideas nuevo-paradigmáticas de Humberto Maturana, hemos recorrido también trabajos de Mony Elkaïm, en el contexto de las terapias familiares, y su interlocución con Gilles Deleuze y Félix Guattari. La investigación de campo consistió en la realización de un grupo de estudios con estudiantes graduandos en Psicología tomado como dispositivo de intervención y conversaciones intersubjetivas co-constructoras de nuevas y impensadas realidades: la consideración de singularidades y de diferencias que se superponen ininterrumpidamente en la práctica y que nunca pueden ser abarcadas por un conocimiento encerrado en definiciones absolutas y totalizantes.
Palabras clave: Aprendizaje inventiva. Psicología Clínica. Autopoiesis. Ciencia nuevo-paradigmática emergente.
Introdução
Acerca do aprender
A situação da formação acadêmica atrai nossa atenção, sendo assunto presente tanto em discussões em nível formal, que abrangem aspectos do âmbito institucional, quanto em conversas informais entre estudantes e professores. O envolvimento dos graduandos com a entrada no campo dos atendimentos clínicos, a aplicação da teoria e as condições da transmissão do saber na universidade são temas frequentes. Permitindo-nos mergulhar mais profundamente no universo dos desassossegos do cotidiano acadêmico, identificamos duas linhas passíveis de análise: a primeira é a prática clínica e sua dimensão imprevisível e inventiva, que escapa ao engessamento das teorias; a segunda diz respeito à busca por papéis que podemos desempenhar no contexto de nossas práticas, como se houvesse modelos ou fórmulas prontas no território de nossas atuações. Em torno desses dois aspectos, percebemos um eixo comum que se revela por meio de indagações persistentes: o que é ser psicólogo? Como atuar na clínica? Qual é a maneira de se fazer Psicologia? Existe, afinal, uma única maneira de se fazer Psicologia?
A obra de Maturana, a qual contribuiu para impulsionar a construção do quadro novo-paradigmático da ciência contemporânea, certamente nos ajuda a refletir acerca desses dilemas, uma vez que busca esclarecer conceitos básicos que dizem respeito à compreensão da constituição da realidade e das capacidades de conhecimento do homem, a fim de alcançar a noção de ser vivo. Portanto, debruçar-se sobre seu trabalho é deparar com reflexões acerca de questionamentos do tipo: como é que conhecemos?
Com o propósito de entender os avanços da cultura contemporânea e seus processos generativos perpassados pela história sociocultural como contexto para a construção da subjetividade configurada no desenvolvimento dos paradigmas científicos, cabe uma breve apresentação do que chamaremos aqui de novos paradigmas da ciência contemporânea ou ciência novo-paradigmática emergente. Schnitman (1996, p. 12) situa a emersão desses espaços contemporâneos da seguinte forma: "O contexto da cultura contemporânea catalisou a formação de novas ciências e novas perspectivas sobre as ciências, promovendo assim um meio cultural e tecnológico cujos componentes se amalgamam e já não são configurações isoladas".
Desse modo, as novas perspectivas em ciências são frutos de múltiplas teorias contemporâneas advindas de diversos campos do saber e preconizam a consciência do crescente papel construtivo da complexidade, da auto-organização e da não linearidade. Essas modificações são pautadas pela dissolução dos discursos homogeneizantes e totalizantes da ciência e da cultura clássicas, revelando uma tendência novo-paradigmática da ciência contemporânea emergente, que propõe a ultrapassagem de uma dimensão epistemológica específica: a objetividade, pressuposto básico em torno do qual Humberto Maturana desenvolve seus trabalhos.
A partir de uma revisão bibliográfica da obra de Maturana, percebemos que o autor, ao elaborar a teoria da Biologia do Conhecer, revolucionou não somente a Biologia, como também diversos campos do saber, já que evidencia a inseparabilidade entre o viver e o conhecer tão bem expressa na seguinte afirmativa: "Viver é conhecer" (Maturana & Varela, 2001, p. 194). A proposta de Maturana, nesse contexto, revela-se ousada, rompendo com antigos paradigmas da ciência tradicional, ao conceber os seres vivos como sistemas fechados para a informação e abertos para os fluxos de energia, além de considerar o caráter auto-organizativo, autoprodutivo e autorreferente que estes apresentam.
Pensando nessa nova concepção de sistema, o neurobiólogo chileno pressupõe que aquilo que observamos é sempre a partir de nós mesmos, ou seja, é impossível separar o que observamos de nossas referências, de forma que "[...] somos conhecedores ou observadores no observar, e, ao ser o que somos, o somos na linguagem" (Maturana, 2009, p. 37). O autor, assim, também constata que, no processo de conhecer, a linguagem é uma ferramenta imprescindível, já que nossas ações são o tempo inteiro inscritas nas conversações que estabelecemos com o meio. Portanto, os seres humanos estão em constante interação com o contexto no qual se encontram, e o que resulta dessa interação é um encontro estrutural, a partir do qual nos tornamos o que somos, ao longo de nosso viver, em congruência com o meio, ao passo que o meio é o que está em congruência conosco. Na perspectiva de Maturana, a realidade emerge para nós com base em nossas distinções, que são realizadas de maneira particular, conforme a singularidade de cada indivíduo.
O caráter subjetivo das distinções de um observador pressupõe a coexistência de múltiplas realidades, destituindo a verdade ou a realidade universal. Dessa forma, o que Maturana busca esclarecer é a necessidade da coconstrução no domínio da convivência dos seres vivos. Nosso domínio de ação é, destarte, concebido a partir do respeito mútuo e da colaboração. Isso nos permite reconhecer um plano de sentido comum que diz respeito às interseções que fazem surgir o heterogêneo, a diferença.
Nessa referência, a aprendizagem supõe a expressão dos acoplamentos estruturais, ou seja, o encontro que resulta em mútuas modificações entre as partes em relação - organismo e meio - que não se confunde com o resultado de uma mera adequação à realidade exterior (Maturana & Varela, 2001).
Sendo assim, as concepções desse autor nos inspiram a buscar sentidos para nossa atuação, permitindo-nos reconhecer a responsabilidade que temos com as distinções perante o outro ao levar em conta a impossibilidade da neutralidade do terapeuta no sistema terapêutico. Mais do que isso: essa perspectiva pode desdobrar em caminhos que surgem como uma política que converge em críticas capazes de nos conduzir a uma nova maneira, ou novas maneiras, de tratar o problema da aprendizagem, agora com base no processo de produção de si.
Metodologia: como conhecemos?
Esta pesquisa se insere na perspectiva da análise qualitativa, uma vez que sua proposta gira em torno da construção de sentidos e significados para a experiência vivenciada no contexto das interações entendidas como dinâmicas relacionais. Assim, a busca desses aportes se deu a partir da teoria de Maturana, em uma indissociabilidade das relações intersubjetivas no cotidiano.
Nosso estudo é pautado na proposta contemporânea da ciência que se traduz na ideia do conhecimento em defesa das conexões, do caráter multidimensional da realidade, da complexidade: "É o pensamento que se esforça para unir, não na confusão, mas operando diferenciações" (Morin, 1999, p. 33).
Tomando a subjetividade como um processo no qual o sujeito se apresenta como resultado da convergência de vetores da ordem do coletivo, isto é, como uma multiplicidade "[...] que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos" (Guattari, 1992, p. 20), caminhamos na direção da produção do conhecimento a partir do reconhecimento do seu processo como produção de si e do mundo na esfera autopoiética, isto é, na consideração das constantes bifurcações e abalos que o meio promove em nossos territórios existenciais.
Para conhecimento e articulação da perspectiva novo-paradigmática de Maturana à formação do psicólogo clínico a partir desse referencial sistêmico, tivemos como dispositivo para coleta e análise de dados um grupo de estudos - promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia de uma universidade, com o apoio da Clínica-Escola de Psicologia da mesma instituição - realizado no período de março a maio de 2015. A inserção dos estudantes nesse espaço de conversação se deu de maneira espontânea, a partir de um único pré-requisito: terem cursado, pelo menos, metade da formação, estando, portanto, minimamente iniciados na discussão dos novos paradigmas da ciência por meio do contato com as disciplinas curriculares que os contemplam.
A proposta inicial foi baseada na leitura e na compreensão de textos do autor e de estudiosos de sua teoria - artigos, capítulos de livros, entre outras produções bibliográficas. Embora acreditemos na relevância de produções no âmbito das abordagens sistêmicas inspiradas em Maturana, tomando alguns autores como referência, não pretendemos, com essa experiência, nos ater a teorias e pressupostos sistematizados a priori. Lançamo-nos, assim, também na busca pela construção de novos ensaios, ou seja, de caminhos inventivos por meio das reflexões coletivas, gestadas nos encontros, perpassadas pela dimensão ética da obra desse autor.
O trabalho com os alunos se deu em seis encontros, revelando, em seu curso, um importante desdobramento de questões mais amplas e complexas relativas à prática clínica atrelada à formação do aluno graduando em Psicologia. Os registros, cuidadosamente feitos pelas pesquisadoras em um diário de campo, não se eximiram de necessária e inevitável impregnação por uma subjetividade diluída nos relatos dos alunos participantes, produzindo também, nesse sentido, relevante ressonância com os desconfortos denunciados por eles mesmos, dos quais trataremos adiante.
Nesse ponto, vale ressaltar que as construções que destacamos neste trabalho, emergentes das experimentações coletivas no espaço de nossas discussões, se deram a partir do entendimento da linguagem como forma de conhecer determinada realidade e como meio de produção de novos significados para as questões problematizadas por nós, além da aposta nos encontros como criadores de dimensões entre que afetam a construção de novos sentidos, na exterioridade que força a subjetividade a buscar novos mundos.
Ancorados em Grandesso (2000), compreendemos o papel fundamental da linguagem para a constituição de nossas narrativas, tendo a coconstrução de significados para as experiências no plano da clínica como chave para pensar o ensino e a prática ao buscarmos afastar a lógica propositiva e instrutiva constantemente geradora de desconfortos. Promovemos, assim, o processo de mudança de significados, associando-o à linguagem, com base nas histórias pessoais de cada participante e as relações particulares que estabelecemos com a prática: "Nesse processo de construção e reconstrução do significado, encontra-se o processo dialógico no qual coevolucionam a singularidade de uma produção individual e uma dimensão social dos atos da fala" (Grandesso, 2000, p. 201).
O processo de construção de significados se constituiu, sem dúvida, como uma importante dimensão para nós, à medida que possibilitou, associado à linguagem como função representativa da palavra, a reorganização e a ordenação de novos campos e realidades próprios das histórias pessoais dos alunos e das práticas de ensino e aprendizagem que circundam o universo acadêmico. Porém, entendemos que esse aspecto não foi o plano norteador primordial do nosso trabalho, uma vez que a proposta dialógica defendida pelo construcionismo social, apesar de avançar ao traçar a dimensão do intersubjetivo e do relacional, oferece apenas uma análise parcial de nossa realidade pessoal, como atestam Domènech, Tirado e Gómez (2001).
Assumimos, assim, que o dispositivo linguagem-discurso-significado, por si só, pode se revelar uma via de acesso reducionista para pensar a subjetividade, desconsiderando o universo de fluxos, conexões e agenciamentos que se encontram no plano do não discursivo, ou seja, agenciamentos que podem sustentar a atualização do virtual.
Segundo Lévy (1996), o virtual corresponde ao que existe em potência e não em ato, a um aglomerado de forças que acompanha situações. Nesse sentido, o virtual nunca está presente, desprende-se dos acontecimentos apenas no instante em que se realiza, em que acontece. Produtor de efeitos, o virtual inventa espaços e tempos. Seguindo essa linha de pensamento, Tedesco & Valviesse (2009) lançam luz sobre o processo de construção de sentido, no qual se realiza a presença de pressupostos implícitos às palavras gerados na exterioridade do que tradicionalmente é denominado de linguagem. Para além da prática centrada no uso de representações e de expressões que constituem o campo da representatividade, há a incorporação do entre, das afetações e da experimentação para a constituição de lugares e indagações, fazendo emergir questões anteriormente impensadas.
Nesse sentido, a abertura para novas expressões e novos territórios existenciais também se deu com a circulação dos afetos entre nós, para além das análises sistemáticas e dos modelos teóricos que estabelecem as significações. Com isso, captamos trajetórias singulares, fluxos invisíveis e de efeitos variados que teceram a trama dos nossos encontros, ideias, impressões, sensações que compuseram o campo de afetamentos construídos no entre a nossa formação acadêmica e a nossa condição de pesquisadoras e a realidade dos alunos. Essas relações desvendam algo que escapa, mas que é intenso, que não tem forma, mas é detentor de uma potência que subsiste na conexão com esses estudantes.
A teoria novo-paradigmática de Humberto Maturana e os desassossegos
O que traz vocês aqui? A pergunta dirigida aos participantes guardava o sabor de nossa própria curiosidade. O que faria aqueles estudantes abrirem mão de seus compromissos, sobretudo numa sexta-feira à tarde, quando muitos já poderiam estar desfrutando um merecido descanso depois de uma semana de intensas atividades acadêmicas? O que os movia à clínica-escola, estrutura física e cenário atualizador da dimensão da prática na formação? Perguntava, ao mesmo tempo, a nós mesmas: o que nos traz aqui? Parecia que algo para além da busca por ampliação do conhecimento teórico existia em nossos campos de interesse. No início, o silêncio. Ninguém se arriscava a revelar o sentido de sua presença ali. Será que sabíamos, ao certo, que sentido havia nisso? Quanto a nós, pesquisadoras, preocupava-nos em justificar a formação do grupo, ou seja, a necessidade do estudo para a elaboração de uma pesquisa de mestrado, e, de antemão, expressava nosso agradecimento a cada um deles pela participação. Foi quando um dos alunos se manifestou, intensificando o clima de tensão já propiciado pela pergunta inicial. Pronto. O instante seguinte já era tomado pela enxurrada de vozes trêmulas, queixas, desabafos.
O sorriso desconcertante de uma das pesquisadoras denunciava a densidade do encontro, que, imediatamente, traçou uma via de afetamentos entre nós. Inundados por falas reveladoras do descontentamento, nossos corpos sentiam o estranho tremor ocasional que o estar na universidade instaura quando nos vemos destituídos de nossa potência. Relações povoadas por sentimentos de desânimo e desamparo diluíam o contorno de nossas subjetividades, de maneira que, em poucos minutos, o que tínhamos era um estado de completa justaposição de experiências e, principalmente, de sensações. Fendas por onde a alteridade nos atinge se abriram, num movimento de desprendimento das formas e das ações que não podiam mais ser contidas pelo rigor da direção de uma cena com base em um roteiro preestabelecido. A condição de pesquisadora não abarcava, definitivamente, a dimensão da superioridade em relação ao grupo, e isso ficou claro para todos nós, pois nos sentíamos completamente envolvidos a ponto de entender que relutar contra essas desestabilizações não era uma possibilidade. Convocadas, então, a participar, vimos as metas traçadas para o grupo serem, pouco a pouco, desmontadas.
Nossas idealizações quanto à concretização desse projeto de estudos sofreram intensos abalos e transformações em cada reunião do grupo. Tomadas pela expectativa do primeiro encontro, jamais imaginaríamos que a pauta de nossas conversações poderia, em algum momento, convergir para discussões acerca da formação acadêmica. Contudo, sentimo-nos inevitavelmente disponíveis, convencidas de que só podemos existir, de fato, nas relações, nos acoplamentos que dão consistência aos fluxos da vida e se abrem às multiplicidades.
Detendo-nos aos incômodos revelados no primeiro encontro, a pergunta quem sou eu como psicólogo?, contaminada por uma lógica da ciência tradicional, se fez um refrão constante e apropriado para a busca de sentidos para a formação que os alunos tateavam, e que, inevitavelmente, perpassa as conversações em torno do tema da clínica. Assim, a tentativa de responder às várias indagações propiciadas pelas ideias de Maturana naquela ocasião reacendeu a chama do desconforto quanto à formação do terapeuta. Foi a partir daí que pudemos nos apropriar de uma procura de significados mais extensa, haja vista a necessidade de me reconhecer no exercício da densidade de nossa profissão, admitindo, no contexto do grupo de estudos como sistema em jogo, aquilo que Elkaïm (1990) denomina como ressonância. O que o referido autor preconiza é a noção de que, quando inseridos em determinado sistema, o que sentimos não diz respeito somente a nós e à nossa história pessoal, mas também se encontra vinculado a todo o sistema, e esclarece: "[...] diferentes sistemas humanos parecem entrar em ressonância sob o efeito de um elemento comum, assim como corpos podem colocar-se a vibrar sob o efeito de uma frequência determinada" (Elkaïm, 1990, p. 171). As ressonâncias, portanto, se deram com o pareamento das intersecções de distintas realidades e múltiplas experiências subjetivas: as nossas e as dos graduandos.
Mas, afinal, em que consistiam as queixas do grupo? No caso, os alunos faziam alusão à tendência que as experiências clínicas, em muitos momentos endossadas pelos professores e supervisores do curso, têm de fomentar intervenções engessadas na teoria. Tal queixa diz da necessidade arbitrária de fazer encaixar no campo de trabalho conceitos e definições previamente apreendidos sem um questionamento inicial que possa verificar sua validade, pensando nas singularidades que emergem em cada caso. Segundo relatos dos participantes, a busca indiscriminada pela adequação e pela afirmação da existência de um problema, por exemplo, quando nega a condição particular de cada situação e de cada encontro com os quais lidamos na prática, obscurece também a potência do psicólogo.
Com apego à noção de representação, as expectativas dos alunos giravam em torno da conservação da estabilização, sempre temporária, como se fosse possível uma conduta ou solução cognitiva pragmática e, de preferência, guiada por regras (Kastrup, 2007). Como vimos, a perspectiva da cultura contemporânea, por sua vez, sustenta a dissolução dos discursos homogeneizantes e totalizantes, entendendo que há sempre histórias no plural, compositoras de um mundo complexo onde as respostas não são diretas e estáveis: "Não existe narração ou gênero do discurso capaz de dar traçado único, um horizonte de sentido unitário da experiência da vida, da cultura, da ciência ou da subjetividade" (Schnitman, 1996, p. 17).
No território da formação acadêmica, a ideia de modelos de conduta parece imperar, dificultando o próprio processo de aprendizagem em razão da compreensão equivocada de sua natureza. O que pretendemos enfocar aqui é justamente uma noção de aprendizagem distinta daquela à qual nos mantemos vinculados, resquícios de uma ciência clássica objetivista no domínio da cognição. A superação do pensamento tradicional recusa a noção de que conhecer não é senão representar e propõe o alargamento do conceito de cognição. Para Kastrup (2001, p. 17), "[...] a aprendizagem é, sobretudo, invenção de problemas, é experiência de problematização. A experiência de problematização distingue-se da experiência de recognição". O conceito de perturbação, cunhado por Maturana e Varela (2001), nos ajuda a entender a experiência de problematização ao passo que se constitui como uma alternativa ao conceito de informação. De acordo com os referidos autores, o meio perturba, mas não informa, o que significa que o sistema, ao se conectar com os ruídos externos, lança mão de novos arranjos para o seu funcionamento, e isso corresponde à criação e à invenção de novos modos de ser cunhados a partir de seu caráter de autoprodução. Assim, com a chegada de novas perturbações, o organismo ou sistema não se limita à busca de soluções em um mundo preexistente; ao contrário, o sistema se lança ao desmanchamento das formas, procurando se engendrar com um universo fluido de sentidos e portador da diferença.
Quando os alunos perguntam qual é o nosso papel?, num primeiro momento, buscam marcas de pertencimento a uma categoria que lhes permita realizar, com segurança e certezas, o exercício de sua profissão. A pergunta é, nesse instante, a delimitação de um território e a entrega, muitas vezes esvaziada de autonomia, à determinação do professor, da teoria ou mesmo das demandas institucionais. Fiel à ordem e à fixação em modelos de conduta, a realidade dos estudantes se traduz na lógica da raiz central, ou da segmentaridade, que é, segundo Deleuze e Guattari (2011), a perspectiva de um tronco centralizador (modelo-árvore) que procede por dicotomia, na primazia dos pontos de estratificação e rigidez. É o plano da repetição, o plano de organização.
Em outros momentos, as mesmas indagações que transmitem a busca pela segurança em que a formação estaria ancorada revelam o distanciamento em relação à dependência do direcionamento do outro, avançando ao campo da heterogeneidade que escapa à centralização em torno de qualquer eixo dominante. Um dos participantes confirma esse raciocínio: "Ficamos, muitas vezes, enrolados em rótulos que dizem respeito a conceitos. Acabamos nos vendo engessados em nossa prática, segundo aquele que detém o poder, ou seja, o professor, o livro, a teoria [...]. Devemos ir além disso" (P1).1
Segundo o grupo, há uma escassez de possibilidades oferecidas no curso que visam à articulação da teoria com a prática, no que se refere a abordagens teóricas distintas daquelas ditas por eles hegemonizadas. Uma insatisfação em relação à grade curricular (modelo estratificado e rígido) também se faz presente, ora entendida como uma acomodação por parte dos próprios alunos que não lutam por mudanças que poderiam ser alcançadas por meio da apropriação de espaços e projetos que a universidade teria condições de oferecer para a criação de novas e diferentes propostas, como essa que eles haviam acabado de acolher ao se apresentarem como participantes nas discussões: " Há no currículo algumas disciplinas e elas te limitam, engessam" (P2).
Regidos pela lógica do respeito à formação e sem qualquer intenção de cair na velha ladainha da culpabilização, acolhemos a riqueza dos depoimentos, a partir do movimento de dar voz às questões que nos envolvem na cena acadêmica, sustentando um interesse comum - nosso, dos alunos, dos professores, da instituição: uma universidade que promova a aprendizagem produtiva, ou seja, contemporânea. Sendo assim, o que poderia conferir sentido a falas, ora reativas, ora angustiadas, em torno das (im)possibilidades experimentadas na relação dos alunos com a prática clínica se revelou, nesse primeiro instante, como a aceitação pelos graduandos da responsabilidade sobre a própria formação, sem que houvesse sua delegação ao outro. Derrida (1999) concede especial atenção à responsabilidade em sua análise empregada ao contexto universitário, instigado, a princípio, pela origem e pelas formas com que ela se faz presente e nossa representatividade no meio acadêmico. Para o autor, todo questionamento em direção à nossa responsabilidade na situação acadêmica já é, por si só, uma implicação responsável (Derrida, 1999, p. 83).
Kastrup (2007), ao se debruçar sobre a investigação em torno da invenção, recorre aos trabalhos de Humberto Maturana e Francisco Varela para tratar do estudo da cognição na atualidade. Conforme aparece em sua obra, ressalta o conceito de autopoiese dos referidos autores esclarecendo que um sistema vivo não se distingue por uma tendência ao equilíbrio, mas como sistema autopoiético: "[...] o que significa defini-lo como um sistema que tem como atributo essencial produzir a si mesmo" (Kastrup, 2007, p. 130).
Com base nessa óptica e levando em conta o constante movimento de engendramento de nossa estrutura, pensar-nos, seres vivos, como organismos no meio no qual nos encontramos inseridos, é considerar o aspecto autocriador que apresentamos. É nesse plano que situamos nossa capacidade inventiva diante das perturbações que se apresentam a nós ao problematizarmos o exercício de nossa profissão, ou seja, assumimos que resistir à crença de que o saber e a realidade são instâncias prontas e encerradas é compreender que todo e qualquer saber está sempre em vias de se construir. É o que Kastrup (2007, p. 239) adverte ao reconhecer a Psicologia e a aprendizagem como potências que se reinventam o tempo inteiro.
Não podemos esperar que grandes rupturas nos cheguem prontas. Precisamos, cada um de nós, operar pequenas mudanças, nos limites de nossa prática. Cada um deve fazer a sua parte, agir localmente, até que rupturas maiores advenham dos agenciamentos entre essas pequenas mudanças.
Enxergando, assim, o desconforto como uma força que nos incita a criar disposição para fazer existir uma diferença e propiciar incessantes conexões com territórios ainda em descoberta, o grupo de estudos passou a promover a destituição da lógica da objetividade, a fim de sustentar a ideia da postura do psicólogo clínico mais condizente com as noções novo-paradigmáticas de Maturana (2009). O que se propõe, então, é pensar que a nossa condição de psicólogos não está definida pela posição destacada de quem tem acesso privilegiado a uma realidade independente. Com base nessa análise, contrapomos a lógica da objetividade-sem-parênteses; conforme Maturana (2009, p. 46), "[...] no caminho explicativo da objetividade-sem-parênteses agimos como se o que dizemos fosse válido em função de sua referência a algo que é independente de nós".
Os desafios da clínica na contemporaneidade começam pela resistência à lógica generalista, o que significa, em última instância, a destituição do saber hegemônico preconizado pela prática que envolve a classificação do sujeito. Para que possamos entender essa afirmação, analisamos, a partir das ressonâncias que se deram no grupo de estudos, a tarefa que nós, psicólogos e profissionais de saúde, devemos assumir: fazer da clínica um ato inclassificável. Assumir essa responsabilidade é a valorização constante de uma indagação a nós mesmos: onde está a invenção da subjetividade? Especificidades e histórias de vida outrora apagadas ganham atenção e restituímos a singularidade de cada cliente.
Singularidades, ressonâncias e novos universos de referência
Mony Elkaïm constrói sua teoria, no campo da terapia familiar, bastante atento aos diversos aspectos que perpassam a formação do terapeuta. A perspectiva desse autor, fruto de respostas e ampliações significativas acerca do trabalho clínico, fornece para nós subsídios para reflexões a respeito da aprendizagem, ao ser capaz de conectar elementos que compõem a prática, entendendo-os como componentes que se entrecruzam continuamente. Elkaïm (1990), assim, nos ajuda a pensar os múltiplos cruzamentos entre aluno, professor, teoria, clientes e instituição.
Em seus primeiros trabalhos com implicações psicoterapêuticas e na formação de terapeutas, Elkaïm (1998) se volta para a análise do que denominou singularidades, ou seja, os elementos particulares, heterogêneos, aqueles que não se encaixam no quadro de possibilidades explicativas do campo. A preocupação com a não redução das distintas situações observadas na prática às mesmas leis e a constatação do perigo da aplicação de estruturas comuns a toda e qualquer realidade encontraram respaldo no contato do referido autor com as formulações de Félix Guattari. A ideia de intervenções que visam a ampliar a singularidade tanto do terapeuta quanto do cliente se aproxima da noção de nível semiótico, proposta por Guattari, em oposição à de regras intrínsecas (Elkaïm, 1990). Assim, a intercessão das singularidades dos membros do sistema terapêutico, ou a reunião dos elementos heterogêneos, produzem um novo movimento que conduz à abertura de novos horizontes, novas construções, novos mundos.
No processo terapêutico, sem dúvida, considerar os elementos heterogêneos expande o contexto de intervenção, uma vez que o terapeuta não intervém apenas com base em uma grade explicativa previamente escolhida por ele, mas também acolhe o potencial transformador dos elementos que surpreendem. Para além dos modelos teóricos e dos códigos dominantes que marcam indivíduos e lugares, determinando, muitas vezes, condutas segundo aquele que sabe (o professor) ou segundo aquilo que os livros contam (teoria), há, na prática terapêutica, uma dimensão a ser considerada que diz respeito às flutuações existentes nos encontros.
Muitas vezes, essas flutuações se dão tendo como sustentação a ressonância, entendida como "[...] um caso particular de reunião constituída pela intersecção de diferentes sistemas em torno de um mesmo elemento. As ressonâncias são elementos redundantes que ligam os universos mais divergentes [...]" (Elkaïm, 1990, p. 175). Não é um dado objetivo, mas nasce entre as situações e as subjetividades. Geralmente a ressonância manifesta-se em uma situação em que a mesma regra aplica-se à família de origem do terapeuta, à família que está sendo atendida, à instituição em que está se dando esse atendimento, ao grupo de supervisão, entre outros. Logo, constitui-se por elementos semelhantes, comuns a diferentes sistemas de interseção.
Esse conjunto, criado por diferentes elementos em inter-relação, podendo ser de ordem genética, biológica, ligados a regras familiares ou a aspectos sociais e culturais, promove a abertura às singularidades e à construção do real de pessoas e de grupos pertencentes a diferentes sistemas. É importante pontuar que a ampliação ou não das reuniões criadas pelos elementos heterogêneos envolvidos no sistema em questão é o que conduz, ou não, esse sistema a uma mudança. No caso do grupo de estudos retratado aqui, percebemos claramente a ressonância no entre dos encontros, atuando como um catalisador para o destino do nosso trabalho. O apego dos alunos à ideia de um conhecimento palpável e à aliança com os modelos teóricos como garantia na prática clínica constituiu-se entre nós como uma regra implícita, uma vez que nós, como pesquisadoras, também nos conduzia, a princípio, na busca por um fazer determinado por um único direcionamento como caminho possível para a realização do conhecimento: o grupo não poderia se desviar da proposta de estudos elaborada previamente. A instituição universitária, por sua vez, opera na lógica tradicionalista das formas, de determinações e regras, implícitas ou não, que podem mutilar a potência criativa da aprendizagem. Se, por um lado, uma série de singularidades autorreferenciais é colocada em ação - as expectativas do aluno, a vivência da pesquisadora, a realidade da instituição - por outro, essas singularidades dizem respeito a todos os protagonistas do sistema que compomos.
Considerar tais elementos ampliou o contexto de construção no processo da pesquisa, expandindo seus limites. Os estudantes, ao falarem dos incômodos vivenciados na universidade, revelando a busca por lugares de estabilidade que, conforme acreditavam, poderiam ser garantidos pela afirmação de uma identidade de psicólogo, diziam do contato particular que têm com a prática clínica. No grupo, trabalhamos a partir desses relatos, ou seja, com aquilo que, na relação deles com a formação acadêmica, avaliaram como relevante para ser expresso em nossos encontros. Tais recortes feitos pelos alunos trouxeram os sentimentos e as construções deles em relação ao processo de aprendizagem experienciado até então. Prisioneiras de uma ordem preestabelecida, duvidamos, nos primeiros encontros, da possibilidade de produzirmos algo escapando da lógica de funcionamento proposta inicialmente. O que observamos aqui é que a construção do real dos estudantes compôs, juntamente com a minha, a ressonância: preciso me conter nas bordas da previsibilidade. Passamos, então, a enxergar essas construções como valiosas informações para entrarmos em contato com nossos estados subjetivos, utilizando-as como instrumento para avançarmos em nosso trabalho. O tema comum, ligado tanto aos alunos quanto a nós e à instituição, carregava, de início, muito mais o risco de bloquear do que de flexibilizar o processo do grupo de estudos. Foi necessário admitirmos o lugar de risco que a ressonância instaura: as próprias desestabilizações que, quando bem exploradas, criam uma diversidade de passagens possíveis. Sendo assim, partimos dos incômodos que nos rondavam promovendo um agrupamento legítimo e transversal, que não se reduziu à soma das suas partes componentes, mas se deu na interligação de elementos de universos distintos e mobilizou as mais variadas sensações.
Não sabemos se os modelos explicativos podem ressoar com os endurecimentos e com as repetições e provocar algo nos alunos. Em um primeiro olhar, deparamo-nos com o apego dos estudantes ao plano teórico, muitas vezes, por insegurança e por acreditarem que têm o poder de explicar qualquer situação na clínica. O uso da teoria e de técnicas como receitas a serem repetidas e aplicadas denuncia ora o receio diante da imprevisibilidade dos atendimentos, ora o contágio pelas demandas institucionais estabelecidas pelas relações pedagógicas, que fazem com que o aluno prefira seguir disciplinado por aquilo que imagina que o professor/supervisor queira que ele realize no campo da prática. Contudo, é importante frisar que não se trata de desqualificar as teorias, mas sim de problematizar o seu uso, os efeitos que estas promovem nos encontros tanto com os autores e suas obras quanto com os clientes que atendemos.
Os enquadres explicativos representados pelas teorias são entendidos como estratos, "[...] fenômenos de espessamento no Corpo da terra, ao mesmo tempo moleculares e molares: acumulações, coagulações, sedimentações, dobramentos" (Deleuze & Guattari, 2011, p. 230). Os estratos, portanto, pressupõem meios codificados e substâncias formadas, apresentando, todavia, uma grande mobilidade, já que carregam consigo a potencialidade da renovação quando atravessados pelo plano molecular. Assim, podem ser usados de forma segura e inquestionável, mantendo a subjetividade mais cristalizada, ou podem ser usados como uma superfície aberta a agenciamentos.
Uma das frequentes queixas presentes na fala dos alunos ecoa em direção às questões burocráticas do curso. Alunos e professores se veem, semestre depois de semestre, capturados pelo nível dos estratos, o que denota uma realidade esterilizante se não houver uma abertura ao entendimento dos elementos singulares que se estabelecem como diferença. Uma das alunas relata que vinha atendendo a um caso na clínica-escola sob supervisão de um determinado professor e, no semestre seguinte, ao refazer a matrícula, foi lançada pelo sistema a outra turma de supervisão, completamente distinta da anterior, principalmente no que dizia respeito à abordagem teórica adotada como referencial para a prática. Essa nova configuração implica, para ela, a ressignificação da construção do caso clínico, o que, num primeiro momento, se traduz como um entrave ao processo terapêutico, o qual vinha caminhando em direção a intervenções que não são mais compatíveis com a proposta do professor-supervisor que assume o caso posteriormente. Essa situação, comumente retratada também em conversas informais com os graduandos, desvela a ambiguidade vivida por eles diante das medidas administrativas da universidade: "[...] querem que tenhamos habilidade para conduzir os casos, mas não conseguimos avançar no processo com o cliente porque a instituição determina o que devemos fazer" (P6).
Como proceder diante da hegemonia da burocracia? Os atravessamentos que a prática clínica comporta nesse cenário são vários e sempre existirão. Se a prática não deve ser automática e robotizada como a instituição parece insistir em nos convencer, caberia ao estudante, e só a ele como alguém que se apropria do próprio fazer, resistir às tentativas reducionistas que despotencializam as forças de criação e invenção. Por mais impetuosos que sejam os mecanismos burocráticos da instituição, sempre haverá arranjos internos a serem feitos, bifurcações, linhas de fuga. Assim, também, entendemos que a construção de uma clínica, de um fazer clínico, está para além dos limites e possibilidades das distintas abordagens.
Entendemos que a aprendizagem não corresponde a uma reprodução mecânica dos conteúdos explicativos, mas é, antes de tudo, uma atividade criadora, sempre em devir. Não se trata de desprestigiar a teoria, nem de querer ignorar ou mesmo exterminar as relações burocráticas que conduzem o funcionamento da instituição, mas de relançar a importância dos estratos para a possibilidade de conexões que estes podem fazer com o próprio aprendiz e do poder de convocação da inventividade que o produto desse agenciamento aluno-teoria evidencia. A relevância, portanto, não está nas extremidades. A teoria por si só não garante destreza no domínio do conhecimento a respeito da realidade, seja ela qual for, que perpassa o cotidiano da prática. O aprendiz, por sua vez, não poderia reger a própria prática desprovido de referenciais instrumentais. Para Kastrup (2007), aprender algo é eliminar distâncias. A aprendizagem de um instrumento musical, por exemplo, só acontece de fato quando ultrapassa a necessidade de adequação ao instrumento para criar com o instrumento. "Aprende verdadeiramente aquele que cria permanentemente na relação com o instrumento, reinventando-se também como músico de maneira incessante" (Kastrup, 2007, p. 173).
Vemos nas noções de Maturana (2000), num sentido semelhante, uma possibilidade importante de intercâmbio acerca da ideia de emersão do observador e a formação acadêmica contemporânea. A formulação da noção de autopoiese como busca de recolocação do problema da investigação biológica questiona e redefine a solução predominante, até então, que consistia em conceber os seres vivos como sistemas de tratamento de informação, organismos constituídos de entradas e saídas, que emergem como observadores, como entidades preexistentes em um meio preexistente. A novidade se deu com a introdução da ideia de que o observador, no caso, o aprendiz, não ocupa uma posição de observador neutro, e tampouco à parte da realidade com a qual se depara, já que com ela estabelece uma relação de reciprocidade entre organismo e meio e, no nosso caso, entre o aprendiz e a teoria, entre o professor e o aluno, entre o terapeuta e o cliente.
Seguindo essa orientação, a aprendizagem é o próprio exercício da resistência como superação do reconhecimento daquilo que já existe. É a criação de novos territórios existenciais a partir das desestabilizações. É, ao mesmo tempo, a experimentação de novas relações com os códigos dominantes e a invenção de novas maneiras de lidar com as formas instituídas (teoria, professor, instituição, entre outros) e, como afirma Kastrup (2001), a invenção recíproca de si e do mundo, bem como a invenção de problemas.
Concluindo, a aprendizagem no contexto da Psicologia Clínica, bem como em qualquer domínio acadêmico, acontece em um movimento de manutenção da autopoiese, ou seja, a condição de continuidade e permanência da autocriação. A formação, dessa maneira, é algo que transcorre toda a existência e ultrapassa os muros da instituição e o período de permanência dos estudantes na universidade, já que, na prática profissional, somos sempre aprendizes. Problematizamos, questionamos, duvidamos de nossas certezas e formas prontas, com uma genuína aposta nas práticas inéditas e, sobre elas mesmas, a responsabilidade de observar e reavaliar. Insistimos que se trata de uma posição ética, pois há uma busca permanente por diferentes modos de agir no presente.
Considerações finais
Conhecer é inventar, e inventar é a produção de mundos e de novos sentidos. Constatamos, ao fim deste estudo, que a formação acadêmica não pode tomar a Psicologia como um saber pronto, detentor de verdades irrefutáveis e permanentes. A crença nessa realidade comporta o risco de nos enxergarmos sempre aquém daquilo que imaginamos que poderíamos ser. Aprender é um processo inacabado e contínuo, e a regulação de nossa eficiência está permanentemente posta à prova pela emersão, a todo instante, de novos efeitos na prática.
Insistindo na ideia de que tratamos aqui de uma Psicologia que se reinventa constantemente, percebemos que este estudo não imprime às práticas clínicas e à discussão acerca da formação uma possibilidade única e encerrada de análise. Este trabalho consistiu em um grande desafio ao nos fazer entrar em contato com toda ordem de sensações e afetamentos que a temática traz, o que, sem dúvida, acionou nossa potência inventiva para pensar o próprio caminho da aprendizagem a partir do desmanchamento de nossas tendências habituais. Contudo, sabemos que nosso esforço é apenas parte de um trabalho maior, de uma luta comum que abraça, com sensibilidade e prudência, as indagações que a formação do psicólogo clínico habita.
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Recebido em: 17/2/2019
Aceito em: 1/6/2020
1 Os participantes do grupo de estudos serão identificados, ao longo desta dissertação, com a abreviatura P. O recurso do número seguinte à letra identificará as falas dos diferentes componentes do grupo.