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Psicologia para América Latina

versión On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.25 México  2013

 

Artículos

 

Entre a floresta e a cidade: percepção do espaço social de moradia em adolescentes

 

 

Maria Inês Gasparetto HiguchiI,1, Katiane SilvaII,2
I
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Brasil
II
Laboratório de Psicologia e Educação Ambiental, Manaus, AM, Brasil

 

 


RESUMO

São analisadas as percepções de adolescentes entorno da Reserva Florestal Ducke, localizada em Manaus/AM sobre seu lugar de moradia tendo a floresta como limite de suas casas e da cidade em que vivem. Utilizando-se uma versão modificada de mapas mentais seguidos de entrevista semiestruturada, os resultados mostraram três diferentes modos de estruturação perceptiva sobre seu lugar de moradia. O modo utilitarista, encontrado em 61% dos adolescentes, se caracteriza pela ideia de que o lugar de moradia deve ser a cidade construída, mas esta deve se beneficiar dos recursos da floresta. O modo sectarizante, presente em 27% dos adolescentes, estabelece como lugar de moradia apenas o ambiente construído, ignorando a presença da floresta. O modo integrador, expresso por 12% dos adolescentes, caracteriza o ambiente residencial como uma unidade onde o bairro e a floresta integram uma única paisagem do lugar onde moram.

Palavras-chave: Reserva Ducke, percepções ambientais, espaço de moradia.


RESUMEN

Se analizan las percepciones de adolescentes alrededor de la Reserva Forestal Ducke, localizada en Manaus/AM, sobre su lugar de vivienda, teniendo el bosque como límite de sus casas y de la ciudad donde viven. Se utiliza una versión modificada de mapas mentales, además de una entrevista semiestructurada. Los resultados mostraron tres modos diferentes de estructuración perceptiva sobre su lugar de vivienda. El modo utilitarista, encontrado en el 61% de los adolescentes, se caracteriza por la idea de que el lugar de vivienda debe ser la ciudad construida, pero ésta debe beneficiarse de los recursos del bosque. El modo sectarizante, para el 27% de los adolescentes, establece como lugar de vivienda sólo el ambiente construido, ignorando la presencia del bosque. El modo integrador, expresado por el 12% de los adolescentes, caracteriza el ambiente residencial como una unidad donde el barrio y el bosque integran un único paisaje del lugar donde viven.

Palabras clave: Reserva Ducke, percepciones ambientales, espacio de vivienda.


ABSTRACT

Perceptions of adolescents are analyzed around the Ducke Forest Reserve about their living place, considering that all of them live at the limits of the Forestry Reserve, located in the city of Manaus, AM, Brazil. Data were collected using a modified version of the cognitive mapping technique associated with a semi structured interview. The results showed three different modes of perceptive structures of their living place. First, the utilitarian mode of perception was found in 61% of the participants. Utilitarian mode considers the city as their living place, but the forest must give them the natural resources they need. Second, the sectarian mode, present in 27% adolescents, establishes as their living place only the constructed environment, ignoring at all the forest. Third, the integrative mode, found in 12% of the adolescents, characterizes as their living place as a unique space that comprises both the city and the forest.

Keywords: Ducke Reserve, environmental perceptions, living place.


 

 

Introdução

Viver a adolescência em grandes cidades com graves problemas estruturais e sociais tem sido uma problemática cada vez mais debatida nas ciências humanas e sociais. Os conflitos da crescente urbanização e aglomeração populacional expõem não apenas a degradação dos recursos naturais, mas as mazelas sociais que produzem pessoas cada vez mais vulneráveis e distantes de uma saudável qualidade de vida. Nas grandes cidades é visível o parcelamento do espaço, não apenas na formação de grupos sociais como Fischer (s/d) nos alerta, mas, sobretudo, na prevalência de construções se sobrepondo às áreas verdes. A ideia da urbanidade parece não estar em concordância com uma aproximação com o ambiente natural (Higuchi, Azevedo & Forsberg, 2012; Günther, Nepomuceno, Spehar, & Gunther, 2003), de tal forma que quanto mais distante a floresta estiver, maior será o status do morador da cidade (Higuchi, 1999) e mais "desnaturalizada" a nova geração será (Louv, 2006). Vários estudos apontam que os adolescentes recebem dos adultos modos irrefletidos de se relacionar com o espaço e lugar (Dorst, 1973; Gadotti, 2000) reproduzindo um distanciamento e aversão ao ambiente físico natural como espaço social de moradia.

No processo de construção da cidade sem ordenamento, as famílias de menor poder aquisitivo vão ocupando as áreas mais distantes do centro, e na Amazônia, mais particularmente nas grandes cidades como Manaus, as florestas vão sendo rapidamente devastadas para dar lugar ao aglomerado de casas. Nesse cenário, qual a percepção do adolescente sobre seu lugar de moradia? Como o adolescente se engaja na produção de suas subjetividades tendo o lugar como locus de sua vivência? Com base nesse questionamento, este estudo se ocupa do adolescente que habita o entorno de uma reserva florestal localizada na periferia leste da cidade de Manaus-AM, para analisar o modo como esse adolescente lida com a produção do seu espaço e lugar tendo a floresta como parte de seu espaço social. Ou seja, o estudo se propôs a compreender as percepções do lugar de moradia nas vivências cotidianas num lugar distante das áreas centrais da cidade, onde supostamente tudo acontece longe deles. Como o adolescente lida com o fato de estar distante dos bens e serviços públicos da cidade, considerando que a floresta de seu quintal é objeto de maior atenção do que seu próprio bairro?

Sabe-se que uma pessoa estabelece importantes relações psicossociais com o lugar em que vive, as quais inevitavelmente interferem na qualificação de sua própria existência (Giuliani, 2003; Lemos, 2010). Poucos trabalhos têm se preocupado em dar destaque ao lugar de moradia na construção da socialização e identidade social (Proshansky, Fabian & Kaminoff, 1983; Theodorovitz, 2009; Albuquerque & Higuchi, 2012; Calegare & Higuchi, 2013). E é justamente na adolescência que o ambiente físico passa a ser um importante aspecto de identidade social. Considera-se que ao investigar como os adolescentes tecem seus significados nessa estrutura social e produzem as relações que mantêm com o ambiente físico, possibilita um maior entendimento da formação de identidades associadas ao lugar de moradia. Tal compreensão pode nos indicar possíveis intervenções para proporcionar modos positivos de apropriação e uso social do espaço, sabendo que as cidades de hoje podem propiciar novas relações sociais, não apoiadas apenas na ideia de que progresso econômico e tecnológico se contrapõe com a natureza e seus recursos naturais.

Percepção do espaço e a construção da subjetividade na adolescência

Os espaços construídos possuem um alcance que vão além da materialidade que pode ser vista e tocada. As construções engendram inevitavelmente a produção de subjetividades que prezam tanto por similaridades quanto por diversidades contidas na malha das relações dos seres humanos entre si e destes com outros organismos vivos ou não vivos. Essa subjetividade está envolvida na produção dos fragmentos espaciais, de tal forma que nossa relação com o ambiente em que vivemos ocorre a partir da internalização de signos presentes no entorno e cuidadosamente organizados em um sistema simbólico (Vygostky, 1991). Neste sentido, a percepção do espaço e o conhecimento do mundo vão ocorrendo e permitindo que operemos cognitiva e afetivamente sobre ele. Esse conhecimento e percepção do espaço são multidimensionais, onde aspectos pessoais, grupais, institucionais, éticos e políticos concorrem na sua elaboração (Merleau-Ponty, 1999; Guattari, 1990). Acima de tudo, perceber requer uma atuação no mundo e através desta atuação, as pessoas vão construindo sua subjetividade. E é nesta construção heterogênea que o espaço da cidade se cria e cria pessoas, molda e é moldado pelas pessoas (Fischer, s/d; Tuan, 1980; Lopes & Vasconcellos, 2006).

Assim, a cidade se configura como uma organização mutável e polivalente (Le Goff, 1998; Lynch, 1999), um espaço construído por muitas pessoas e para as pessoas, um público imenso, heterogêneo e multifuncional. Conforma um espaço que ao mesmo tempo pode produzir liberdade e exclusão, criar e ampliar intencionalidades pessoais e coletivas atribuindo aos distintos lugares valores específicos, de maior ou menor grau, facilitando relações ou criando várias formas de segregação (Santos, 2004).

No caso dos adolescentes, a segregação ocorre de maneira mais saliente quanto à participação nas decisões e no domínio do espaço. Eles raramente, ou nunca atuam na construção da cidade, que lhes é imposta, estando afastados da participação política e cidadã (Castro, 2001a). Se entendermos a cidade como uma instância produtora de subjetividade, como criadora de modos de relações, sejam eles de dominação, poder ou exclusão, percebe-se neste espaço possibilidades de mudança. Os jovens, embora excluídos dos processos de decisões nas relações de construção da cidade, não deixam de desenvolver novos significados para a realidade e criar formas de se distanciarem da condição de exclusão.

Como habitantes da cidade grande, os adolescentes estão submetidos às transformações que acontecem numa velocidade muito rápida. Nesta fronteira, que pode ser tanto física quanto imaginária, o adolescente pode estar próximo do ambiente protetor da casa e ao mesmo tempo circular num lugar ameaçador. Essa complexidade avança avassaladoramente quando o espaço da cidade esbarra na floresta. O amplo espaço verde, que aparece como limite de crescimento se apresenta desconhecido e estranho para a paisagem de cidade. Higuchi (1999) nos mostra que em determinados bairros de Manaus, ter a floresta como limite de suas casas é ter a contradição sempre emergente entre o bom e o ruim, o belo e o feio, o seguro e o inseguro, a liberdade e o isolamento, entre preservar a natureza ou transformá-la em casas para morar. É nessa vivência de contrários que os adolescentes vão construindo um conhecimento do lugar em que vivem e de sua própria identidade. Mas quais seriam esses modos de pensar desse adolescente?

Como habitantes da cidade grande, os adolescentes estão submetidos às transformações que acontecem numa velocidade muito rápida. Nesta fronteira, que pode ser tanto física quanto imaginária, o adolescente pode estar próximo do ambiente protetor da casa e ao mesmo tempo circular num lugar ameaçador. Essa complexidade avança avassaladoramente quando o espaço da cidade esbarra na floresta. O amplo espaço verde, que aparece como limite de crescimento se apresenta desconhecido e estranho para a paisagem de cidade. Higuchi (1999) nos mostra que em determinados bairros de Manaus, ter a floresta como limite de suas casas é ter a contradição sempre emergente entre o bom e o ruim, o belo e o feio, o seguro e o inseguro, a liberdade e o isolamento, entre preservar a natureza ou transformá-la em casas para morar. É nessa vivência de contrários que os adolescentes vão construindo um conhecimento do lugar em que vivem e de sua própria identidade. Mas quais seriam esses modos de pensar desse adolescente?

Metodologia

Neste estudo de abordagem qualitativa participaram 51 adolescentes (28 feminino e 30 masculino) entre 12 e 16 anos, todos cursando a 6º e 7º ano do ensino fundamental nas escolas municipais do entorno da Reserva Florestal Ducke – Manaus, AM. Utilizou-se uma versão modificada de elaboração de mapas mentais proposto por Lynch (1999), seguidos de entrevista semiestruturada, incluindo aspectos simbólicos e de significado conferido pelos adolescentes, de forma a acrescentar a percepção e cognição no processo de representação do espaço.

O mapa mental é uma representação gráfica que o indivíduo faz sobre os lugares onde passa, vive e percebe. Ele representa a visão pessoal do lugar, pois "o que está sendo mapeado é uma abstração; não a realidade física em si, mas as impressões genéricas que a forma real provoca num observador" (Lynch, 1999, p. 165). A utilização dos mapas permitiu ao adolescente representar graficamente aspectos relativos ao espaço físico onde estão implícitos valores, significados e percepções que criam suas práticas cotidianas. Segundo Higuchi (2002), a imagem que surge através do mapa mental é dinâmica e pode mudar com as circunstâncias, de maneira que um elemento desenhado pode ter vários significados, por isso é necessária e fundamental a elaboração complementar do desenho entrevista individual.

Após testes piloto para ajuste da técnica (desenho e roteiro de questões) procedeu-se aplicação com os adolescentes na própria escola em que estudavam. As cadeiras foram separadas para evitar a comunicação entre os participantes e possibilitar as representações individuais. Os adolescentes foram reunidos em grupos, num local distanciado de ruídos e outras interferências para fazerem o mapa mental. Foi entregue um lápis No. 2 e uma folha de papel tamanho A4 branco, com um desenho em lápis preto de uma floresta na margem esquerda que representava a proximidade da floresta com suas casas. Os adolescentes foram instruídos para que completassem no lado da floresta o seu bairro, os lugares por onde andavam no dia-a-dia, os lugares que conheciam e mais gostavam de visitar.

Ao concluir o desenho os participantes participaram de uma entrevista semiestruturada também individual, para permitir um entendimento mais abrangente do que estava representado no desenho. Com a entrevista semiestruturada os adolescentes tiveram a possibilidade de discorrer o tema proposto, sem respostas ou condições prefixadas, tendo apenas o desenho como estímulo das representações mentais ali cunhadas. Foram feitas perguntas relativas ao desenho e ao seu cotidiano, seguindo o raciocínio subjacente às explicações que os adolescentes faziam, envolvendo aspectos afetivos, cognitivos e socioculturais sobre a paisagem e o espaço.

A análise dos dados se deu a partir de um tratamento qualitativo associado do desenho em si, das respostas e comentários feitos sobre seu desenho durante a entrevista, usando-se a análise de conteúdo (Bardin, 1977; Bauer, 2002). Com base nas análises foi possível identificar três categorias de percepção do lugar de moradia. Após a identificação dessa diferentes formas de percepção forma feitas análises estatísticas descritivas para verificar a frequência com que foram evocados cada uma delas.

Resultados e Discussão

Através dos mapas mentais foi possível perceber as imagens constituídas de sensações imediatas e lembranças de experiências passadas, pelos adolescentes sobre o seu entorno. Os desenhos e o complemento das entrevistas foram elucidativos para o entendimento desta relação. Vários estudos já citados anteriormente notificam que o espaço em que vivemos se apresenta fragmentado devido aos sistemas ideológicos e aos valores que se manifestam nas relações sociais. As repercussões da economia, política e outros aspectos contextuais estão inevitavelmente implicados na relação pessoa e ambiente de moradia. Neste estudo, a proximidade com a natureza é um fator crucial, principalmente pelas características próprias de ser uma área de proteção ambiental que avizinha uma área muito pobre da cidade.

De uma maneira geral, as percepções dos adolescentes trazem à tona esse contexto que podem expressar, a primeira vista cenários ambivalentes. É preciso dizer, no entanto, que as percepções são dinâmicas e forjadas numa complexidade que seria difícil seccioná-las em categorias estanques, divorciadas umas das outras. As percepções parecem estar sempre relacionadas ao tipo de necessidade que o adolescente naquele momento prioriza e que se mostra saliente na ocasião (Higuchi & Kuhnen, 2008; Kuhnen & Higuchi, 2011). Entretanto, as percepções dos adolescentes sobre a floresta não fogem a sistemas fundamentados nas experiências vividas individualmente e nos processos socioculturais e ideológicos construídos coletivamente.

Constatou-se dessa forma que morar entre a floresta e a cidade encerra múltiplas dimensões para os adolescentes participantes deste estudo. Emergiram desses dados três diferentes categorias de estruturação perceptiva sobre o espaço e lugar de moradia, aos quais nomeamos como modos de subjetivação: a) modo utilitarista, b) modo sectarizante e c) modo integrador.

A maioria (61%) dos adolescentes deste estudo expressou esse modo de subjetivação. Aqui os dois espaços, floresta e cidade, se tocam à medida que este contato seja vantajoso para as pessoas. Para esses adolescentes, a relação dos moradores com a floresta existe na medida em que ela possa fornecer seus produtos e serviços aos humanos.

Destaca-se o entendimento que os adolescentes possuem acerca do valor social que a floresta apresenta, praticado através de atividades como lazer (nos igarapés e trilhas), contemplação (a floresta é como um parque dentro do bairro); assim como do valor econômico e medicinal (frutos, madeira, sementes, raízes) e ambiental (clima ameno, sombra e ar puro). Esses recursos e serviços da floresta complementam a vida no bairro onde eles vivem. Na representação fica evidente essa relação entre natureza e vida urbana (Figuras 1 e 2).

O interesse pela floresta pode ter um grande poder de mobilização social, e isso é possível observar nos argumentos apresentados pelos adolescentes. Segundo Layrargues (2000), ao considerar a floresta como uma entidade capaz de gerar bens ou benefícios ela não é apenas uma terra, recurso natural ou matériaprima, mas um tipo de ator que executa uma força de trabalho específica, que esses adolescentes admitem: "Ela traz oxigênio pra gente, pra sobreviver" (D.G., 12 anos); ou "Eu acho que ela [a floresta] pode trazer alguma coisa de medicina, pode ter remédio lá dentro, raízes. Pode ter lá alguma coisa que podem descobrir sobre remédio, por exemplo, de curar a AIDS, né? Pode ter lá" (I. C., 14 anos).

 

 

No modo utilitarista não só a aparente abundância e diversidade de fauna e flora deveriam servir de modo mais efetivo para a sobrevivência do homem saciando suas necessidades, mas um solo para resolver os problemas da falta de moradia e alimentação: "Acho que devia ter mais casas porque tem muita gente sem terra. Aqui no Amazonas o que mais tem é floresta.... Aqui tem muita floresta, dá pra derrubar aquilo que tem lá, árvores que não tem nem importância" (S. F., 13 anos).

Esse aparente conflito entre a preservação e as necessidades sociais é manifestado pelos adolescentes. Na percepção do adolescente a floresta, mesmo sendo uma área de proteção, não deveria ser um território proibido. A restrição do espaço do bairro, a falta de liberdade de movimento, poucas opções de lazer e atividades culturais quase inexistentes parece justificar para esses adolescentes a utilização da floresta como lugar de diversão e interação social: "Eu acho legal se a gente pudesse entrar lá dentro. Aquilo ali só pra ficar olhando não serve..." (O. S., 15 anos); ou "A gente fica olhando pra paisagem, às vezes tem igarapé, que eu posso ir, que fica perto da minha casa. Eu posso me divertir no final de semana, ir com a minha família e me divertir" (J. P., 12 anos).

A utilização da floresta com genuíno desembaraço, no entanto é para poucos. A floresta com espaço distinto torna-se um espaço social para afirmação pessoal daquele que a conhece e é capaz de se orientar tal como na cidade. Esse conhecimento e habilidade pode proporcionar uma maior aceitação no grupo, como afirma esse adolescente: "não é qualquer um que entra lá. Tem que ser manero". Ser destemido nessa exploração os distingue dos demais que não tem essa característica: "eu já ouvi falar que muitas crianças já se perderam lá dentro da mata, querendo entrar sozinha na mata sem guia" (R. D., 12 anos).

Ao mesmo tempo em que as necessidades sociais se mostram prementes há um forte movimento ecologizante que recomenda mais atenção às florestas. Para esses adolescentes a reserva florestal é apresentada nos programas de educação ambiental nas escolas como um espaço a ser preservado. Essa proximidade com a floresta torna-se mais interessante para a efetivação de projetos cujo objetivo é a mudança dos comportamentos ecológicos, uma vez que precisa ser protegida, pois está ameaçada. Nesse sentido, a floresta passa a ser um espaço de uso para informação e aprendizagem. Por saberem dos pesquisadores e seus estudos a floresta também serve como laboratório escolar nas atividades extraclasses e "Quando o pessoal vai nas trilhas eu ando também. Eu gosto porque eu vejo os animais que nunca vi, aprendo mais sobre as árvores".

Constata-se que na percepção desses adolescentes a floresta é um ambiente anexado à cidade e que a relação com os moradores vizinhos é utilitária, isto é, se trata de um lugar onde estão disponíveis recursos e serviços que subsidiam (ou deveriam subsidiar) as necessidades sociais.

Modo sectarizante

Dos 51 sujeitos participantes deste estudo, 14 deles (27%) consideraram seu lugar de moradia como sendo um espaço construído dissociado do ambiente natural. Segundo esses adolescentes, os dois ambientes não combinam e nem se complementam, pois são dois mundos adversários. Cada espaço possui uma configuração e atores distintos, cada qual com seus respectivos ocupantes, onde apenas um pode ser vitorioso.

O bairro para esses adolescentes se constitui como o lugar do citadino. Morar na cidade representa a evolução do homem, que para sobreviver precisou se distanciar do ambiente natural, da rusticidade da floresta, mesmo que isso lhe custe um preço alto como a falta de saneamento básico e a convivência com a violência. A cidade é o lugar onde devem acontecer as atividades sociais dos humanos como trabalhar, estudar e se divertir junto com outras pessoas. Por outro lado, o bairro é um espaço grande e controverso, que mesmo sendo de uma dimensão enorme, causa uma sensação de encerramento e anonimato. A representação desses mundos distintos é expressa com fronteiras concretas (Figuras 3 e 4).

 

 

O prédio como obra humana representa o "espaço dos humanos", da cidade distinta da floresta, por isso há uma separação dos ambientes, que por sua vez separa e define os respectivos tipos de ocupantes. A distância entre os citadinos que carregam a subjetividade urbana, a floresta só pode ser uma paisagem emoldurada. As linhas e os espaços em branco, que separam o homem do meio natural demonstram um sentimento de não pertencimento àquele lugar. A floresta na cidade deve permanecer como um espaço distante e distanciado, caso contrário produz, na percepção desses adolescentes, uma confusão de status da pessoa. Como morador urbano a ideia de espaços diferenciados é necessária senão implicará noutros aspectos que podem não conformarem a característica idealizada de citadino. Podese constatar na fala desses adolescentes essa condição: "A floresta é lugar dos animais, não dos seres humanos. Os seres humanos têm os seus lugares, cada um tem o seu lugar" (R. D., 12 anos); ou "só os índios podem morar na floresta, porque os indígenas é que sabem sobreviver lá dentro" (E. R., 14 anos); ou "A minha avó não mora dentro dessa floresta aqui, mas ela mora no interior, no mato, perto de mato" (A. V., 13 anos).

O distanciamento da floresta tem motivações reais e imaginárias. Por isso a floresta é percebida como um espaço ameaçador, representado pela existência de animais selvagens, sua grandiosidade, mistério e fenômenos naturais (raios, queda de árvore, ventos, etc.): "tem animais ferozes que podem atacar.... às vezes pode vir uma tempestade, uma chuva forte e pode derrubar uma das árvores e pode atingir a casa da pessoa" (J. P., 12 anos). Esses eventos em muitos casos se associam com outros perigos que a floresta apresenta quando devastada, como é o caso das doenças como dengue e malária (Santos, 2009). Como espaço social paralelo a floresta é marginalizada e, portanto território do malfeito humano, devido o panóptico de isolamento (Foucault, 1977), que institui a apropriação selvagem (Fischer, s/d.): "É muito silêncio por aqui. Teve uma vez que encontraram um corpo.... só osso lá dentro" (M. N., 12 anos).

O fato da floresta ser um lugar inseguro para morar não ameniza o próprio lugar do bairro. Para esses adolescentes morar num bairro da periferia, inclui viver inseguro e de forma precária. Porém, perto da floresta essas condições se tornam mais evidentes, pois poucos circulam nesse espaço terminal. Os adolescentes já possuem o bairro como um local mapeado, com poucas possibilidades de movimento: "Aqui todos os dias é de casa pra escola, da escola pra casa"; ou então, "Quando mora aqui perto de mato não acontece muita coisa". A violência das ruas do bairro é fator de limitação da liberdade e mobilidade, o que leva a um encerramento espacial e temporal dos adolescentes: "Na cidade tem bandido, a gente não pode chegar tarde a casa" (J. M, 14 anos); ou "Aqui tem esse monte de assaltos, que ficam roubando a casa dos outros" (A. M., 13 anos).

Segundo Lima (1989), a tirania do arranjo espacial contribui para que as pessoas não tenham voz, suas necessidades e expectativas se submetem aos que os subjugam. Essa limitação dos movimentos representada pelo desenho de espaços segregados tem também origem nos problemas sociais vivenciados, por exemplo, a falta de segurança. A expansão espontânea e desordenada da cidade criou vários problemas, como a falta de capacidade para abrigar muita gente, falta de emprego, moradia decente, sem condições apropriadas de infraestrutura e saneamento básico. Se por um lado o poder público e as concessionárias ignoram esses problemas, os adolescentes os percebem, mas parecem conformados na naturalização dos problemas e sectarização espacial: "Eu moro prá ali e não é um ambiente saudável lá. Porque a metade da rua é asfaltada e a outra não e tem um bueiro lá perto. Não é bom pra nossa saúde".

Viver num bairro com todos esses estigmas significa para estes adolescentes, estar privado dos direitos de usufruir uma infraestrutura urbana digna, garantindo a qualidade de vida. Assim, nessa forma de pensar, o bairro se conforma como um grande polo da pobreza, um lugar com mais força e capacidade de atrair gente pobre (Santos, 2004). Morar no bairro se torna um lugar de desapego ao final das contas. Deixa de ser acolhedor e representa um espaço que traz a "natural" desordem urbana, o perigo, o preconceito, as desigualdades sociais e todo um conjunto de fatores que forçam o adolescente a viver em constantes conflitos que se prolonga para a floresta, pois ela de pouco ajuda para a solução desses problemas: "Floresta? Eu não acho nada porque não me interessa" (C. M., 14 anos); ou "A floresta é lugar dos animais, não dos seres humanos. Os seres humanos têm os seus lugares, cada um tem o seu lugar." (R. D., 12 anos).

Essa espacialidade em que as pessoas se excluem dela ganha força na ideia de que para eles não há outro lugar para morar, senão nesse espaço marginalizado. Tampouco a floresta se constitui como espaço importante para abriga-los.

Modo integrador

Nessa categoria apresentada por 12% dos adolescentes, constata-se a construção de uma dimensão do lugar de moradia de forma interconectada e interdependente entre cidade (bairro) e floresta (reserva). Nesse modo integrador observa-se que a floresta faz parte do espaço de moradia, uma espécie de continuação do espaço construído, como uma composição do seu bairro (Figuras 5 e 6).

O adolescente demonstra que não há cercas para separar os ambientes. Aqui a floresta ultrapassa os seus limites e se insere no bairro, juntamente com os animais que também fazem parte da formação desse espaço. Para esses adolescentes a floresta significa muito mais do que uma paisagem, elas se situa no seu contexto vivido, nas relações sociais e afetivas. Este espaço incorpora o que o urbano traz, mas ao mesmo tempo não perde suas características naturais e coletivas:

"Eu fiz esse desenho mostrando o caminho aonde eu vou. De manhã, quando eu vou comprar pão lá pra casa. Depois eu assisto televisão. Aí eu desenhei os caminhos aonde eu vou: tem a escola, a igreja que eu frequento. O jardim botânico [reserva] fica aqui perto da minha casa. Essas matas que têm desenhadas aí ao lado onde eu desenhei, tem tudo a ver onde eu moro, as matas, as plantas, tudo. O caminho que eu desenhei aí foi mostrando a minha casa, minha escola, a igreja que eu frequento, pra onde eu vou de manhã" (E.S., 12 anos).

"Porque tem natureza, como lá pra trás e vem pra cá pra frente e vai passando as ruas. Tem alguns bairros que tem natureza e tem prédio" (L. L., 13 anos).

"Eu gosto daqui [JB]. Eu moro aqui desde pequena, eu frequento desde pequena. Às vezes eu trago meus amigos aqui, só que eles moram longe e não dá pra vir sempre" (J. C., 13 anos).

 

 

Viver próximo à floresta também significa possuir esse mundo natural, pertencer a este mundo e poder mostrar as singularidades encontradas somente no lugar onde moram. Isso se concretiza no espaço do Jardim Botânico, que é uma parte da reserva florestal e é um espaço de visitação pública que representa uma abertura, uma possibilidade para o contato mais efetivo com a floresta.

Neste modo de subjetivação o adolescente percebe esse espaço na sua totalidade. A floresta é parte de um mesmo mundo de moradia, onde se comunga vivências de toda ordem. Este lugar é um bairro-floresta.

Considerações finais

Os diferentes modos de subjetivação, de entendimento do lugar de moradia constatadas no presente estudo confirmam que os adolescentes, ao internalizarem seus territórios, criam referências para usos sociais distintos. As redes de significados e percepções tecidas são produtos da vivência cotidiana com o próprio ambiente e com as demais pessoas que vivem nesses lugares. Nesse processo, percebe-se que está inerente a singularidade de cada um, porém forjada com na relação com a coletividade. Fica evidente ainda que esses adolescentes estão construindo não apenas um conceito de lugar de moradia, mas também um status relativo entre floresta e cidade, ao mesmo tempo em que eles mesmos se constituem como pessoas nesse ambiente (Proshansky et al., 1983; Fischer, s/d).

Nos modos de subjetivação utilitarista e sectarizante deixam visível uma mazela que se quer ver modificada, tanto sob o aspecto conservacionista quanto emancipatório. Ter moradias dignas e florestas preservadas, associadas a uma vida com qualidade necessita um empenho de transformação da difícil realidade que grande parte da população vive, especialmente os mais jovens. A ampliação do direito à cidadania e à participação na cidade se coloca como uma alternativa para distanciar o grupo da limitação provocada por um processo que causa o enceramento espacial dos adolescentes no bairro onde vivem e os impele para um uso predatório da floresta.

Segundo Castro (2001a; 2001b) incluir pessoas nos processos decisórios proporciona uma abertura aos medos e incertezas que elas carregam. Por isso, decidir sobre e ampliar os espaços é ampliar a perspectiva de futuro, conhecendo moradias, locais de lazer, além do contato com a natureza, a partir dos passeios na floresta e bosques da cidade, modificando e criando novos territórios existenciais. A cidade precisa ser conquistada pelas crianças e adolescentes (Castro, 2001a), do mesmo modo que a floresta também precisa. E essa conquista se faz a partir do seu conhecimento, do estabelecimento de relações de afeto, de pertencimento e apropriação (Bomfim, 2010).

O espaço estruturado pelos adultos aos adolescentes na atual sociedade de consumo impõe condições conflituosas, que aparecem nas percepções dos adolescentes como sentimentos ambivalentes entre o ser e o ter, o preservar e o destruir. E é nessa configuração que o adolescente cria seus modos de existir na cidade e de se relacionar com a natureza. Nessa busca pelo entendimento das relações pessoa-ambiente, podemos elencar aspectos passíveis de serem ressignificados num processo educativo. É necessário que se estabeleçam programas ou possibilidades para a mudança das percepções dos adolescentes. Nesse processo deve-se priorizar o empoderamento do adolescente na construção do lugar de moradia, onde os elementos naturais do ambiente não sejam oponentes dos elementos urbanos.

Desconstruir esses conceitos estabelecidos historicamente não é tarefa fácil, mas é necessário criar vínculos para a preservação da natureza tanto quanto o cuidado da cidade/bairro. E assim, substituir essas imagens estabelecidas, criar vínculos e substituir essa espécie de limitação da percepção da interdependência dos ambientes.

Apesar da exclusão nas instâncias de decisão, a participação dos adolescentes em situações específicas na cidade pode implicar num novo entendimento e o surgimento de novas posturas e novos modos de pensar e agir sobre e no meio ambiente. Por isso, a ação a partir da reflexão das percepções dos adolescentes pode nos indicar a necessidade de uma ampla intervenção socioambiental, que baseada em nova ética, os adolescentes-atores poderão criar novos modos de produção da subjetividade, menos utilitarista e sectarizante para mais integradora possível.

O desafio, entretanto, está em conhecer as mediações sociais para transformar os valores que vêm levando à degradação humano-ambiental, dando lugar a ações de maior cuidado ambiental e participação social.

REFERÊNCIAS

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