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Revista Brasileira de Psicologia do Esporte

versión On-line ISSN 1981-9145

Rev. bras. psicol. esporte v.1 n.1 São Paulo dic. 2007

 

 

Mulher e esporte: uma perspectiva de compreensão dos desafios do Ironman

 

Woman and sport: a perspective of understanding of the challenges of Ironman

 

Mujer y deporte: una perspectiva de comprension de los desafios de Ironman

 

 

Carla Di Pierro

Instituto Vita

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi buscar elementos através do histórico da mulher no esporte e de entrevistas com atletas femininas de triathlon para compreender a prática do Ironman por mulheres. O trabalho percorreu o histórico da mulher no esporte desde o final do século XIX até os dias atuais. Foi conduzida uma pesquisa com três triatletas amadoras praticantes de pelo menos dois Ironman. Na entrevista foi utilizada como metodologia a história oral, que é uma forma de registro e comunicação de memória. A análise mostrou que a influência e o incentivo familiar são fatores determinantes. O esporte torna-se um meio socializante onde as mulheres trabalham, tem amigos e estabelecem suas relações afetivas. A prática do Ironman é vista como um objeto de desejo a ser alcançado, que traz benefícios como aceitação, valorização e realização. A mulher atleta é reconhecida e respeitada e o cenário esportivo aparece como um meio pelo qual ela pode exercer sua autonomia, seu poder de escolha e seu poder de superação.

Palavras-chave: Mulher no esporte, Atleta feminina, Triathlon, Ironman.


ABSTRACT

he objective of this study was to search elements through the description of the woman in the sport and of interviews with feminine athletes of triathlon to understand why women practice Ironman. The research covered the description of the woman in the sport since the end of century XIX until the current days. A research with three triathletes' girls was lead amateur practitioners of at least two Ironman. In the interview the verbal history was used as methodology, which is a form of register and communication of memory. The analysis showed that the influence and the familiar incentive are determinative factors. The sport becomes a way to socialize, where the women work, she has friends and establishes its affective relations. To do an Ironman is a desire object as to be reached, that it brings benefits as acceptance, valuation and accomplishment. The woman athlete is recognized and respected, and the sports scene appears as a way for which she can exert its autonomy, its power of choice and its power of overcoming.

Keywords: Woman in the sport, Feminine athlete, Triathlon, Ironman.


RESUMEN

El objetivo de este estudio fue buscar elementos a travéz del histórico de la mujer en el deporte y de entrevistas con atletas femeninas de triatlon para comprender la práctica del Ironman por mujeres. El trabajo recorrió el histórico de la mujer en el deporte desde el final del siglo XIX hasta los dias actuales. Fue conducida una investigación con tres triatletas amadoras practicantes de por lo menos dos Ironman. En la entrevista fue utilizada como metodología, la Historia Oral, que es una forma de registro y comunicación de memoria. El análisis mostró que la influencia y el incentivo familiar son factores determinantes. El deporte se torna un medio socializante donde las mujeres trabajan, tienen amigos y establecen sus relaciones afectivas. La práctica del Ironman es vista como un objeto de deseo a ser alcanzado, que trae beneficios como aceptación, valorización y realización. La mujer atleta es reconocida y respetada y el escenario deportivo aparece como un medio por el cual ella puede ejercer su autonomía, su poder de escogencia y su poder de superación.

Palabras-clave: Mujer en el deporte, Atleta femenina, Triatlon, Ironman.


 

 

Introdução

Que o esporte é um grande fenômeno social da atualidade e que vem evoluindo muito nos últimos tempos já sabemos, porém no caso das mulheres, ele também foi e vem sendo um espaço de busca de igualdade de direitos e ascensão social.

As mulheres vêm transformando o mundo em que vivemos, trazendo mudanças de valores, de visão de mundo, de expectativas, na política, na religião, nos negócios e no esporte.

A mulher moderna quebra severas restrições impostas por antigos paradigmas e cada vez mais ganha espaço numa sociedade predominantemente calcada de valores masculinos, espaços estes que vem sendo consolidado também pela imagem propagada pela mulher no esporte (Freitas, 2002).

No cenário esportivo, a mulher foi considerada como uma usurpadora ou profanadora de um espaço consagrado ao usufruto masculino. O esporte, tanto como lazer ou com finalidades bélicas, unificou um conjunto de adjetivos que representam o mundo masculino: força, determinação, resistência e busca de limites (Rubio & Simões, 1999).

Crenças tradicionais prescreviam que o cansaço físico e a competição, derivados da prática do esporte, eram contrários à natureza da mulher que deveria ficar em casa tomando conta dos filhos. Este pensamento vem desaparecendo com a ascensão feminina, no entanto notam-se na população mundial e no Brasil resquícios destas idéias.

Em concordância com essa análise, no âmbito da prática corporal prevaleciam as restrições: tanto é que de 1941 a 1975 vigorava o Decreto-Lei 3.199, que estabelecia as bases da organização dos esportes no Brasil e incluía um artigo que colocava, "às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza" (Adelman, 2003).

Em toda história do esporte a mulher foi subjugada no que tange à conquista de seus direitos fundamentais de participação. A participação feminina cresceu ao mesmo tempo em que se acentuaram os processos de globalização do esporte e da institucionalização dos interesses das mulheres em participar tanto de esportes aquáticos como terrestres.

O modelo de mulher frágil já parece coisa do passado, principalmente no cenário esportivo. Atualmente a tendência feminina no esporte é de ultrapassar os limites físicos e emocionais colocando-se em pé de igualdade com os atletas masculinos.

O esporte não pode ser visto apenas como uma maneira de movimentar o corpo, ganhar formas esteticamente aceitáveis e melhorar a saúde física, ele deve ser lembrado também como um espaço onde se refletem valores culturais de cada sociedade na qual é praticado, reproduzindo seus sistemas hierárquicos e suas peculiaridades sociais. Para Helal (1990), o esporte deve ser encarado como algo que foi construído socialmente, este é um pensamento que vai além dos esportistas, que vê o esporte como um fenômeno universal e também como um modelo de realidade social, em especial quando confrontado com as perspectivas de ascender socialmente e economicamente.

É por ser um campo vasto de pesquisa sobre a história e cultura da humanidade e dos gêneros, que escolhi o esporte para discutir a posição e os desejos da mulher contemporânea. Mais especificamente a mulher que hoje vive superando seus limites psicológicos, de força e resistência através da determinação, conceitos antes apenas aplicados ao homem.

Minha experiência pessoal como mulher no esporte vem desde a infância. Sempre gostei de movimentar o corpo, correr, nadar, de fazer força. Era (e ainda sou) muito competitiva, gostava de treinar com os garotos e de vencer.

Pratiquei diversas modalidades, individuais e em equipe. Porém, ao começar a praticar triathlon entrei em contato com um tipo de atleta feminina diferente das outras e fiquei muito admirada. Eram mulheres que não apenas respiravam o esporte que faziam, mas que viviam de uma maneira diferente, uma vida regrada pelo esporte, alimentação, sono, vida social entrelaçadas com o esporte e as pessoas envolvidas nele.

Mulheres que trabalhavam tinham suas profissões, na maioria das vezes relacionadas ao esporte e treinavam com o maior prazer para superar seus limites. Além disso, mantinham uma relação diferente com seu corpo, não estavam na academia para ganhar curvas socialmente aceitas, mas treinavam este corpo para utilizá-lo como um instrumento para superar limites, mais que isso, como um instrumento de poder. Além do triathlon, treinavam para o Ironman - "homem de ferro"- (maior distância do triathlon) e não visavam lucro financeiro porque não eram profissionais da modalidade esportiva, pareciam ter apenas a vontade de superar, de atravessar a linha de chegada.

Ao assistir provas de Ironman no Brasil e no exterior e ver o estado degradante que muitos competidores e competidoras atravessavam a linha de chegada muitas perguntas surgiram. O sofrimento e a persistência em continuar a prova mesmo com muita dor pareciam um absurdo. Para que estas pessoas passam por tudo isso? Por que estas mulheres desafiam seus corpos, seus limites? O que tem por trás desta busca por se tornar "Ironman", ou "Ironwoman"?

Neste trabalho pretendo, portanto, caracterizar a mulher contemporânea no mundo e no Brasil, antes e após os anos 60, marco do feminismo mundial, e sua participação no esporte, para tentar desvendar a partir da caracterização da mulher contemporânea o que ela busca ao praticar esportes desbravados na sua maioria por homens devido a características de força, resistência, ou seja, esportes criados por homens e para homens.

Mais objetivamente este trabalho estudará mulheres que praticam o Ironman, uma das distâncias do triathlon, talvez a prova do endurance mais longa e mais difícil que existe, pois condensa três esportes em um só: a natação, o ciclismo e a corrida. O que as leva para este esporte, o que elas buscam através dele, qual a condição dessa mulher atleta na nossa sociedade e como ela percebe o homem.

Para tanto, caracterizarei a mulher contemporânea, o esporte triathlon e sua maior distância o Ironman, e utilizarei como metodologia a historia oral, que é uma forma de registro e comunicação de memórias nas entrevistas das minhas sujeitas.

 

História da Mulher no Esporte

Quando pensamos na participação feminina no esporte atualmente, é necessário voltar na história, principalmente porque o papel da mulher no esporte se mescla com seu papel social na história da humanidade.

O ciclismo foi o esporte que exerceu maior influência na emancipação física das mulheres inglesas e americanas. Atividade importada da Inglaterra em 1870 tornou-se muito popular nos Estados Unidos em finais de 1880, início de 1890 e oferecia para as mulheres o potencial para a mobilidade física e os benefícios de uma recreação ativa e saudável, assim como um novo senso de liberdade da roupa restritiva, demandando o abandono dos espartilhos e a divisão das saias em calças curtas ou bloomers (calções de mulher, folgados e compridos até os joelhos) (Smith apud Mourão, 2003).

Na segunda metade do século XIX, o cenário europeu mostrava um crescente número de ativistas femininas francesas que denunciavam a posição social inferior mesmo após a Revolução Francesa (Devide, 2002). Já desde o século XX a mulher começou a exercer um papel mais ativo na sociedade industrializada. Nesta mesma década em muitos países as mulheres conseguiram o direito ao voto, assim como o acesso às universidades e profissões acadêmicas (Pfister, 2003).

Durante a Segunda Guerra Mundial a necessidade de substituir os homens que estavam no front, fez com que muitas mulheres trabalhassem desenvolvendo ações sociais e participando da vida política, provando que poderiam assumir qualquer atividade profissional e ao final da Segunda Guerra o cenário caminhava em favor da igualdade de direitos (Devide, 2002).

No esporte a condição da mulher não era diferente, nada melhor para ilustrar este histórico senão a participação feminina no maior evento esportivo mundial, os Jogos Olímpicos. A luta por direitos iguais entre homens e mulheres é refletida nos Jogos.

O restabelecimento dos Jogos em 1896 não previa a participação feminina, segundo Barão de Coubertin o idealizador dos Jogos Olímpicos Modernos, as atividades atléticas faziam as mulheres parecerem indecentes e grotescas, e pressupostos médicos preconizavam que a atividade física poderia comprometer funções maternas (Cobert apud Devide, 2002).

As mulheres só vieram participar dos Jogos Olímpicos a partir de 1900 em Paris, porém com número de participantes insignificante e em modalidades restritas como tênis e golfe considerados belos esteticamente e que não ofereciam contato físico entre as participantes (Rubio & Simões, 1999). Até 1924 a participação feminina sequer chegava a 5% do total de participantes (Carvalho, 2002). Em 1928 teve inicio a participação feminina na ginástica e nas provas de pista de atletismo (Pfister, 2003).

Em 1912, em Estocolmo, foi permitida a participação feminina nas provas de natação, após vários anos de batalha. Os Jogos de Los Angeles em 1932 e Berlim em 1936 tiveram um aumento considerável de participação feminina, chegando a 10% do total de participantes.

O desempenho feminino no esporte foi avançado e atingindo marcas antes apenas alcançadas por homens. As mulheres estavam lutando por seus direitos, mas as mulheres atletas, musculosas, fortes e suadas, ainda eram vistas como ofensivas e pouco femininas pela imprensa e pela sociedade e sua identidade sexual era posta sob suspeita por médicos e administradores esportivos.

Na década de 1940, o mundo era dividido em dois blocos, o capitalista e o socialista. Iniciava-se a Guerra Fria que utilizou o esporte, e também o esporte feminino para difundir e divulgar os ideais e as potências de cada bloco, através das vitórias no esporte. Como resultado disso, as mulheres tornaram-se uma arma importante para os dois blocos, que incentivaram e promoveram condições para o desenvolvimento do esporte feminino.

Apesar do crescimento da participação feminina nos Jogos na década de 50, pressupostos médicos ainda conservavam a idéia de que poderia ser danosa a saúde da mulher provas de longa distância como a maratona.

Segundo Alonso (2002), foi a partir do questionamento de papéis sociais provocado pelo movimento feminista na década de 1960 que criticava os pressupostos de que as mulheres deveriam se dedicar exclusivamente a casa, a família e cultivar a feminilidade, que as mulheres passaram a participar mais de atividades esportivas.

Força e músculos femininos passaram a ser mais aceitos na década de 70, com o desenvolvimento do movimento fitness, que cultuava a beleza e a juventude do corpo feminino. No entanto, os esportes de contato e equipes coletivas eram ainda associados à celebração da masculinidade e inaceitáveis ao gênero feminino. Nesta mesma década, nos Jogos de Munique em 1972, foi detectado o uso de esteróides e anabolizantes por mulheres atleta.

Um recente estudo sobre estereótipos de gênero aplicados a mulheres atletas (Melo, Giovoni e Tróccoli, 2004) aponta que pessoas com pouca vivência na área esportiva têm uma imagem estereotipada de mulheres atletas julgando-as masculinizadas ao passo que pessoas envolvidas no meio esportivo utilizam outros critérios para avaliar a feminilidade da atleta que não apenas os músculos e a força construídos através dos treinamentos.

Na década de 80 os médicos começaram a se preocupar com os esportes que provocavam lesões no seio e com a amenorréia em atletas, nesta mesma década a opinião médica mudou a favor da participação feminina em provas de longa duração e resistência física.

Apesar de maior número de mulheres no esporte de alto nível, elas tinham menos eventos para participar e recebiam prêmios inferiores. As atividades não competitivas e de fitness eram o foco de programas de governo e iniciativas privadas. No entanto, esta década marcou a evolução feminina no esporte de alto rendimento que continuou evoluindo nos anos 90, incorporando valores de especialização e padronização, até então experimentados apenas por homens.

O sacrifício do corpo tornou-se o significado do resultado e o corpo da mulher atleta foi apropriado por sistemas políticos e econômicos.

Em 2000, nos Jogos Olímpicos de Sydney a participação feminina atingiu a marca de 38,3% do número total de participantes, porém recebendo ainda menor cobertura da mídia.

Na atualidade, segundo Adelman (2003), o mundo esportivo tem, em parte, incorporado a luta das mulheres para se apropriarem de espaços existentes e/ou para criar novos. Com a ruptura ou declínio da domesticidade feminina, o padrão de fragilidade começa a ceder terreno a um novo ideal, mais adequado à noção de "mulher ativa" que começa a construir-se, nas primeiras décadas do século XX.

Por outro lado, a cultura da beleza feminina em nossa sociedade, que se vale do poder das imagens, incorporou a noção de "mulher ativa" elaborando novos padrões que desembocaram na atual ênfase ao fitness, e na busca do corpo magro e firme.

A persistência desta ambivalência em relação ao significado da atividade física e esportiva das mulheres sugere que esta seja um dos mais importantes espaços de conflito relativos à corporalidade feminina na atualidade, e vinculada á outro campo de conflito, o da sexualidade (Adelman, 2003).

Segundo Bordo apud Adelman (2003) a feminilidade é produzida através da aceitação de restrições, da limitação da visão, é uma estética forte que se constrói em cima do reconhecimento da falta do poder.

Neste contexto a recusa da mulher atleta à limitação pode ser entendida como resistência. A atuação nos esportes pode representar uma espécie de empowered femininity segundo Adelman (1993), se for constatada uma entrega a uma atividade auto determinada, orientada para a realização de metas e prazeres mesmo que estes transgridam normas relativas à feminilidade, no sentido de postura, movimento, atitudes agressivas ou competitivas.

A mesma autora trabalha com a hipótese de que a participação esportiva pode tornar-se uma forma de resistência à feminilidade como uma estética e uma prática de limitação.

Desde a década de 90, seminários e congressos para mulheres administradoras esportivas e técnicas, vem sendo um incentivo potencial para a evolução da mulher na arena esportiva mundial, no entanto, barreiras econômicas, culturais, políticas e religiosas ainda estão presentes e impedem que muitas mulheres adotem a prática esportiva em suas vidas.

Mesmo com toda esta evolução histórica da mulher no esporte, nosso modelo de sociedade patriarcal não permite que experimentemos o respeito pela diferença de gêneros.

Segundo Kennard e Carter (1994) a mulher tanto na Antigüidade como no mundo moderno, tem sido estudada e descrita a partir de uma perspectiva eurocêntrica masculina, perspectiva essa de quem está no poder. Conseqüência disso seria a interpretação tendenciosa de registros históricos, que falam de uma história genérica da humanidade, mas que de fato retrata a história dos homens.

O esporte pertence a todos, sendo parte da criação humana e deve ser praticado por homens e mulheres para que se desenvolva plenamente (Park, 1987).

 

A Mulher e o Esporte no Brasil

Na sociedade brasileira patriarcal do final do século XIX a mulher tinha o papel de mãe e esposa dedicada, propriedade do homem. Enquanto os meninos cresciam fazendo exercícios guerreiros, voltados para a força, à disciplina; as meninas faziam exercícios leves, condizentes com a procriação.

"Às meninas recomendavam-se o canto, a declamação e o piano. Os dois primeiros produziam o desenvolvimento dos órgãos respiratórios" (Armonde apud Mourão, 1996). Segundo a autora acreditava-se na "natureza" feminina e masculina, natureza essa construída pelas atitudes sociais e valores culturais, naturalizando os sistemas simbólicos e reforçando as construções preconceituosas e discriminatórias da prática esportiva.

A partir desta representação, acreditavam na necessidade de ajustar a educação física feminina com seu desenvolvimento reprodutivo. O desenvolvimento intelectual feminino não despertava importância (ao contrário, era desenfatizado), dado que os médicos e teóricos sociais estavam convencidos de que a educação intelectual sobrecarregava as mulheres e roubava-lhes a energia de que a função reprodutora e o desenvolvimento físico feminino necessitavam.

O esporte ainda representava para a maioria uma agressão à sua feminilidade, muito embora, bem dosado, pudesse trazer benefícios para a sua função de reprodutora.

Como afirma Araújo apud Mourão (1996), até o final do século XIX a mentalidade da sociedade brasileira era doente e atrasada em relação à cultura física.

As poucas mulheres que tinham acesso à prática de atividades físico-desportivas, na época considerada coisa de homem e restrita aos homens, eram aquelas que pertenciam à elite e eram de famílias européias que incentivavam a prática de esportes.

As mulheres continuavam vivendo dominadas pelo estereótipo da fragilidade; além da ginástica, continuavam a praticar as atividades que eram mais recomendadas para o sexo feminino como canto, declamação e dança, que desenvolviam suas funções respiratórias e estimulavam a elegância.

Nos anos 1910, algumas poucas mulheres pioneiras, que tinham suporte familiar, praticavam o tênis, a equitação, o basquete, a natação, e muitas mulheres participavam como estimuladoras de torcidas.

As mulheres brasileiras começaram a praticar esporte em clubes na década de 1920, este tipo de participação hoje, atingiu patamares especiais em todo o país.

Nos anos 1920 e 1930 apareceram as primeiras esportistas brasileiras. Maria Lenk foi uma delas, nadadora, que nos anos 1920 foi a primeira mulher brasileira que se destacou no esporte. Em 1932 nos Jogos Olímpicos de Los Angeles foi a primeira mulher a representar o Brasil numa competição olímpica. Até hoje, Maria Lenk continua nadando e batendo recordes. Além de brilhante atleta foi professora de Educação Física e se envolveu na organização de esportes no âmbito nacional.

Em 1930 em São Paulo, houve o primeiro campeonato feminino de bola ao cesto, esta década foi marcada pelo início do movimento de esportivização feminina da sociedade brasileira, sobretudo nos grandes centros urbanos do país (Mourão, 2003).

Na Segunda metade do século XX, aconteceu na cidade do Rio de Janeiro o primeiro evento esportivo exclusivamente feminino, que marcou o processo da emancipação da mulher brasileira no esporte, os Jogos da Primavera, que eram uma grande festa social, esportiva e estética da época. A fase pós Jogos da Primavera alterou tabus, e em 1980 a jogadora de vôlei Isabel continuou atuando nas quadras até o quinto mês da gestação, provando que gravidez não é doença e que gestação e prática da atividade física podem caminhar juntas.

Apesar de a mulher brasileira estar desde os Jogos de Los Angeles em 1932 participando, apenas seis medalhas de um total de 67 medalhas que o Brasil já acumulou em Olimpíadas, foram conquistadas por mulheres. Somente no final da década de 90 que as brasileiras alcançaram a medalha olímpica. Em 1996 nos Jogos de Atlanta o basquete feminino conquistou uma medalha de prata e o vôlei de praia feminino conquistou ouro e prata, com Jaqueline Silva e Sandra Pires; e Mônica Rodrigues e Adriana Samuel, respectivamente.

Em Sydney no ano de 2000, repetimos a façanha no vôlei de praia feminino, agora com a medalha de prata para Adriana Behar e Shelda e bronze para Adriana Samuel e Sandra Pires.

Nos Jogos Olímpicos de Sydney, dos 204 atletas da delegação brasileira 94 eram mulheres, entretanto, estes dados não significam que no Brasil exista incentivo politicamente organizado para que as mulheres pratiquem esporte ou desenvolvam a atividade física como um valor no seu cotidiano.

Muitas mulheres brasileiras ainda continuam fora da prática esportiva porque nossa cultura ainda prega que a força, resistência, e competição são aspectos do homem. Mulheres atletas são consideradas muitas vezes masculinizadas, não apenas por seu corpo delineado, forte e com músculos, mas também pelas características psicológicas que carregam como, a determinação, a persistência, a busca de superação e o controle da dor.

 

A História do Triathlon - O IRONMAN

O Triathlon é um esporte individual e de resistência física que combina três modalidades: a natação, o ciclismo e a corrida, nesta ordem sem a parada do cronômetro durante as transições (Lefévre, 2003).

Tornou-se modalidade Olímpica em 2000, nos Jogos Olímpicos de Sydney, com as distâncias de 1.500 metros de natação, 40 quilômetros de ciclismo e 10 quilômetros de corrida. Além destas distâncias, que denominam o "triathlon olímpico", existe o "short triathlon", a distância curta que é exatamente a metade da quilometragem do "triathlon olímpico" (750m de natação, 20 km de ciclismo e 5 km de natação) e o Ironman, a maior prova do triathlon.

A história do triathlon tem inicio com o surgimento do Ironman no Havaí. Histórias contam que tudo começou em torno de canecas cheias de cerveja em Honolulu, na ilha de Oahu. Marinheiros entre 30 e 40 anos, afogavam na cerveja a amargura da derrota numa corrida rápida de revezamento em que haviam perdido para marinheiros mais jovens. Inconformados com a derrota se perguntavam como poderiam provar que eram ainda mais resistentes e ainda capazes de ganhar dos mais jovens, e qual prova havaiana poderia comprovar isto, os 3.800 metros de natação da tradicional Waikiki Water Swin, os 180 quilômetros de ciclismo da famosa Around the Island Race ou os intermináveis 42.195 quilômetros da maratona de Honolulu?

O capitão da Marinha John Collins levantou o desafio de que a prova mais dura seria a que englobasse as três provas mais difíceis da ilha juntas e no mesmo dia. Em 18 de fevereiro de 1978, quinze homens se apresentaram para a largada do primeiro Ironman da história.

Atualmente as provas de Ironman acontecem em todos os continentes são 23 seletivas divididas pela Europa, Ásia, Oceania, África e Américas, que definem 1500 competidores que vão para a final onde tudo começou, no Havaí.

No Brasil, a primeira prova oficial de Ironman aconteceu em Porto Seguro, Bahia em 1997. Desde 2001 ela aconteceu na cidade de Florianópolis, em Santa Catarina e rende muita divulgação e participação de muitos brasileiros e estrangeiros que desafiam as distancias do Ironman e sonham em chegar ao Havaí.

 

Metodologia

Participaram desta pesquisa três mulheres praticantes do Ironman no Brasil. A idade das participantes, residentes na cidade de São Paulo, flutuou entre 28 e 38 anos e teve uma média de 31 anos. Entre as participantes havia duas profissionais da Educação Física que trabalham em academias e como personal trainer e uma profissional da área de nutrição.

A escolha das participantes teve como critério o gênero feminino, a participação em pelo menos dois Ironman e a não profissionalização no esporte.

Os estudos de gênero, como resultado das lutas feministas dos anos 1960, passaram a ser levados em conta na pesquisa social e psicológica. Segundo Coutinho (2006), o gênero passou a ser considerado ponto de análise das estruturas de poder, organizações das instituições sociais e formas de controle ideológico das sociedades modernas. Neste sentido a narrativa e o relato das mulheres têm se mostrado especialmente importantes. Uma análise da linguagem e dos significados por elas empregados nos permite compreender melhor como as mulheres estão vendo e se vendo na cultura na qual vivem.

A entrevista inicia-se com o pedido que o sujeito conte sua história de vida. Este método pressupõe que quando os indivíduos contam suas histórias de vida resgatam apenas o que é mais significativo, a história contada não é necessariamente real, mas este método busca o que é verdade para o sujeito, busca o lado humano e pessoal da história. A história oral preconiza que o relato do individuo não é apenas individual, traz também o coletivo porque este pertence a um contexto social.

Segundo Bosi (1994), toda memória pessoal é também social, familiar, grupal, e por isso ao recuperá-la é possível captar os modos de ser do indivíduo e da sua cultura.

A importância da discussão sobre histórias de vida, afirma Rubio (2006), se dá em função dos relatos orais terem se constituído desde o final do século XIX como uma técnica qualitativa por excelência. Isso porque eles permitem ao pesquisador por meio do som e do tom da fala do entrevistado, da sutileza dos detalhes da narrativa e das várias facetas do fato social vivido, ter acesso aos conteúdos de uma vida que pode ser tomada como individual, mas que carrega consigo elementos do momento histórico e das instituições com os quais manteve relação.

A história de vida é uma forma particular da história oral. Emergem dessa narrativa os acontecimentos considerados significativos na trajetória da vida pessoal ou do grupo ao qual o indivíduo pertence, cabendo ao pesquisador perceber o que ultrapassa o caráter individual do que é relatado e o que está inscrito na coletividade à qual o narrador se insere (Rubio, 2006).

Este método foi escolhido para que através das histórias de algumas atletas, possamos entender melhor a história de muitas atletas apresentando elementos da história da mulher atleta no Brasil.

A pesquisadora entrou em contato com as participantes, apresentando esta pesquisa como um trabalho que pretendia avaliar a condição da mulher no esporte, através de mulheres praticantes de Ironman. Foram agendados encontros individuais com as participantes, que determinam a data e o local da entrevista. Todas as entrevistas foram gravadas em fita cassete com o consentimento dos participantes. A pesquisadora procurava interferir o mínimo possível nas entrevistas, abstendo-se de fazer comentários que demonstrassem aprovação ou reprovação das mesmas. Ao final da entrevista solicitava-se que cada participante assinasse uma autorização para a divulgação dos dados da entrevista com garantia de anonimato.

 

Resultados

A partir das três entrevistas foram encontrados elementos recorrentes que foram considerados categorias de análise, cada um dos temas destas categorias são relevantes para discutir o que levam estas mulheres a praticar o Ironman, o que elas buscam através dele, qual a condição da mulher atleta na nossa sociedade e como é a relação desta mulher atleta com o homem:

A influência familiar, na iniciação esportiva, a prática esportiva na infância e o incentivo e apoio familiar na pratica atual.

A profissão e o esporte, a escolha da carreira profissional diretamente relacionada com o esporte.

A vida social e o esporte, como os relacionamentos sociais se dão através do esporte.

A condição da mulher atleta, como ele é vista no esporte e na sociedade, quais as dificuldades e facilidades.

As diferenças de gênero, o que elas pensam sobre os homens e quais os possíveis conflitos.

A busca pela superação, de limites físicos, psicológicos, sociais e culturais.

A influência familiar relatada nas entrevistas mostra a importância do apoio e incentivo, principalmente dos pais para tanto o início da pratica como para a continuidade no esporte. Assim como em 1910, quando as pioneiras no esporte brasileiro tinham o apoio e incentivo da família a maioria delas de descendência européia, ainda hoje este apoio familiar é um fator importante e quase determinante para a iniciação esportiva das mulheres entrevistadas.

P. "...Minha mãe resolveu me colocar numa escolinha de esportes e eu optei pela natação."

Nesta colocação fica claro o incentivo a prática esportiva que esta mulher tinha desde a infância e inclusive a possibilidade de optar pelo que gostaria de fazer.

J. "...tudo o que eu faço no esporte eles me incentivam e incentivaram muito, gostam pra caramba, acho que tem muito mesmo da minha família de gostarem de acompanharem..."

J. "...no sentido psicológico me ajuda muito, eu estar fazendo algo que pros meus pais é demais! Que eles ficam orgulhosos..."

O apoio da família deixa o caminho aberto para o início no esporte. Como na infância os maiores modelos são as figuras do pai e da mãe, o incentivo e a experiência esportiva de algum deles, são fatores determinantes para a criança se interessar pela prática de uma modalidade esportiva. A busca pelo amor e o desejo de aprovação dos pais levam o filho ou a filha, a se interessar e praticar aquilo que os pais gostam ou valorizam.

Aparece também nas entrevistas uma característica pessoal dessas mulheres que desde a infância tinham ligação pessoal com o esporte e com a competição, provavelmente por terem em casa pais ligados ao esporte ou que valorizavam a pratica esportiva. Lembremos que nossas entrevistas nasceram por volta da década de 70, dez anos após a eclosão do movimento feminista, que questionou a condição da mulher e quebrou muitas restrições impostas pelo universo machista, inclusive a participação de mulheres em atividades físicas.

P. "...desde pequena tenho uma ligação com o esporte, me identifiquei muito mais com a bicicleta do que com a boneca..."

O andar de bicicleta como P. cita acima, dá uma condição de ir e vir, liberdade, autonomia e independência, tudo o que as mulheres pós anos 60 buscavam, não é por menos que o ciclismo foi o primeiro esporte que ainda no século XIX, exerceu maior influência na emancipação feminina.

Em contraponto, a brincadeira de boneca e de casinha lembra o preparo da menina para ser mãe e dona-de-casa e o cultivo da feminilidade. Na frase acima, P. dá mais sinais de que preferia a independência e a liberdade, a levar uma vida de dona-de-casa, o que acaba se concretizando nas escolhas que fez ao longo de sua vida.

L. "...desde pequena subia em galho de árvores, subia em parede,... desde que me conheço por gente gosto de esporte, sempre fui competitiva até nas brincadeiras da escola. Fiz ginástica olímpica, era militante do Clube P..."

Assim como P., L. privilegiava desde a infância as atividades que exigiam esforço físico, agilidade motora, liberdade, risco e neste caso a competição. A veia competitiva desde a infância traz algumas hipóteses: pode ser que L. tenha tido contatos freqüentes com ambientes competitivos, pode ter sido incentivada a ser a melhor, a mais rápida, a mais ágil desde cedo, ou ainda pode ter tido a necessidade de ser competitiva na busca de ser a melhor, simplesmente para se sentir notada.

Educadas num período em que se exigia igualdade de direitos e que sexo frágil era coisa do passado, as mulheres entrevistadas neste trabalho não foram criadas obrigatoriamente para serem donas de casa e procriar como acreditava a sociedade brasileira no inicio do século XX, podiam brincar como os meninos, realizar atividades que exigia força física, como andar de bicicleta e subir em árvores, e até serem competitivas como uma maneira de ser notada e valorizada.

Além disso, por fazerem parte de uma camada da sociedade mais privilegiada tiveram certos recursos materiais e culturais que as mobilizaram tanto para o acesso em si ao esporte quanto, como afirma Adelman (2003), o acesso aos processos de negociação que permitem a ampliação das esferas sociais de participação e poder feminino, talvez por isso tenham feito a escolha por uma modalidade que ultrapassa tantas barreiras de gênero.

A partir da infância essas mulheres levam o esporte e as características que desenvolveram através dele, para sua vida em geral, tanto na escolha da profissão como na escolha dos amigos, namorados e noivos.

O ambiente em que elas vivem é um ambiente esportivo, que começou na infância, continuou com a prática esportiva na adolescência, e com a opção pela carreira profissional no inicio da vida adulta.

J. "...ia prestar Economia mas na hora de preencher a inscrição do vestibular vi que não tinha nada a ver e coloquei Educação Física."

A escolha profissional de J. mostra a total liberdade que a mulher da década de 90 tinha para poder optar pelas diversas áreas profissionais, desde as racionais e exatas, em grande parte preferida por candidatos masculinos como a Economia, quanto a opção que se relacionava com sua afinidade e identificação, que no caso de J. era Educação Física.

L. "Eu queria fazer jornalismo, mas meu pai falou pra mim: Você se imagina fazendo outra coisa que não o esporte? É eu achei que era verdade e fiz Educação Física"

Novamente a família, no caso a figura paterna, é fator determinante quanto à escolha, agora com relação à profissão. Certamente L. já tinha este desejo de cursar Educação Física, entretanto podemos pensar que foi "sugestão" ou "permissão" do pai que a fez deixar de lado uma opção socialmente bem aceita para uma mulher como o Jornalismo, para se aventurar na Educação Física.

P. "... resolvi fazer Nutrição, a Nutrição sempre com relação ao esporte, o que tem que comer antes, o que tem que comer depois, eu sempre tive esse interesse."

Apesar de não ter escolhido a principio a Educação Física (depois cursou três anos na área), P. optou pela Nutrição deixando claro desde o início que seu desejo era pela Nutrição Esportiva, opção que podia esclarecer suas dúvidas
de atleta.

Apenas ser esportista, não era o bastante para nossas entrevistadas que vislumbravam uma profissão, um emprego para se sentirem produtivas e terem uma independência financeira, características da mulher moderna que cria seus objetivos profissionais e se planeja para alcançá-los.

Após a contestação explícita do movimento feminista da assimetria da divisão sexual do trabalho a mulher passou a enfrentar uma dupla jornada, na esfera pública e privada, além do papel reprodutivo e doméstico, passou a ter papel importante no mercado de trabalho.

Isso se verifica nas entrevistadas, todas brancas e de famílias de classe média e alta, inseridas em um meio onde há expectativas (mesmo quando ambivalentes) de que as jovens se realizem através da educação, da profissionalização e do acesso aos recursos mais diversos da esfera pública.

As oportunidades que tiveram, quando desde pequenas descobriram seu interesse pelo esporte, surgem num contexto muito maior de incentivo do que de limitação. Assim, o envolvimento em um esporte de alto risco pode ser visto como um cenário onde conflitos entre possibilidade e limitação produzem tensões, gerando a discussão sobre o desafio a noções de fragilidade ou inferioridades femininas.

Por poderem optar e participar da esfera educativa, pública e esportiva, essas mulheres não ficam presas à ambivalência sobre esporte e feminilidade que imperam na sociedade brasileira atual.

O corpo da triatleta, relatado pelas entrevistadas, não é visto como masculinizado, também não é o corpo dócil e frágil de antes do Movimento Feminista, mas também não é o corpo do fitness, que normatiza a beleza e feminilidade atuais.

As triatletas desta pesquisa reformulam a idéia sobre o corpo feminino, suas formas e suas capacidades, alterando fronteiras e parâmetros. Elas extraem dos seus corpos a força, a resistência e a capacidade de superação, como uma possibilidade de poder. O esporte, no caso o Ironman, se torna um terreno para re-significações do feminino, ao colocar as mulheres na posição de sujeito, onde elas mesmas definem outras formas de "ser mulher".

O esporte também aparece na vida dessas atletas como um meio importante para se socializar:

L. "... nunca gostei de sair à noite de ir ao shopping, minha mãe achava que eu era um pouco deprimida, mas na verdade era porque não achava a minha turma, agora ela viu que sou uma pessoa muito mais feliz, no triathlon achei a minha turma."

Fazer parte de um grupo e ser aceita é importante para qualquer pessoa, principalmente quando se é adolescente, quando não se identifica com o grupo, o adolescente vive a exclusão. Isso pode ter acontecido com L., que na adolescência se deparou com um grupo que gostava de shopping e sair à noite, enquanto que seu desejo era outro. No entanto, L. achou o seu grupo no esporte e se identificou com os triatletas, a partir deste momento pode sentir-se acolhida, entendida e mais feliz.

P. "... em São Paulo me envolvi com o esporte porque foi uma maneira de eu me socializar, eu não tinha raízes de relacionamento em São Paulo... o esporte pra mim foi uma porta que se abriu para eu me relacionar com as pessoas, e no meio que eu queria era reunir o útil ao agradável."

O esporte aparece para P. como uma ferramenta importante, atleta desde a infância, sentia-se muito segura no espaço esportivo como se estivesse "em casa".

Entretanto muito longe de sua casa, utilizou o esporte para se socializar, já que fazia parte deste grupo, se identificava com ele e era acolhida. Acabou reunindo neste cenário, um meio para se sentir segura mesmo distante de casa, se relacionar e trabalhar.

O cenário esportivo nas décadas de 80 e 90 era a favor da participação da mulher em atividades físicas e foi um momento de grande evolução do esporte feminino. Nesta mesma época o culto a beleza feminina e a preocupação estética do corpo da mulher tomaram grandes proporções. O esporte começou a se tornar um espaço onde a mulher era bem aceita.

J. "... em 98 comecei a namorar com um triatleta que fazia Ironman e comecei a treinar junto com ele."

Assim como buscamos a aprovação e desejamos o amor de nossos pais, queremos o mesmo de nosso parceiro, namorado ou namorada, gostamos de provar o quanto somos capazes e bons no que fazemos.

L. "... o meu ex-namorado eu conheci no triathlon, o meu noivo atual eu conheci no triathlon, esta tudo ligado ao esporte."

Na frase de L. fica claro que seu grupo, sua "tribo", é o triathlon. Fazer parte deste grupo restrito leva a buscar parceiros e amigos com quem se identifique.

J. "... o esporte me traz trabalho, amizades novas, viagens, me traz vontade de fazer todas essas coisas,... eu curto estar com estas pessoas que fazem a mesma coisa que eu, o esporte me traz muita felicidade mesmo!"

J. volta a mostrar o quanto desejamos estar próximos de quem nos identifica. Além disso, indica o poder que o esporte lhe dá, possibilitando trafegar pela esfera pública e privada de maneira livre, espontânea e legítima.

Quando elas se referem à condição da mulher atleta de Ironman na sociedade e principalmente com relação aos homens, aparecem vantagens e desvantagens. Seus discursos contraditórios também expressam a ambivalência do imaginário social atual com relação às mulheres atletas.

Quanto às vantagens, aparecem nas entrevistas à admiração pela mulher atleta capaz de fazer uma prova de Ironman de superar os limites da condição feminina, de se sobressair num meio majoritariamente masculino, ser aceita e valorizada.

Lembrando da condição histórica da mulher no esporte, deu-se um grande salto, o próprio idealizador dos Jogos Olímpicos Modernos, Barão de Coubertin, considerava que a atividade física fazia a mulher parecer indecente, assim como pressupostos da sociedade do século XX que achavam ofensivo uma mulher forte e musculosa.

Como já relatado, uma recente pesquisa sobre estereótipos de gênero aplicados a mulheres atletas (Melo, Giovoni e Tróccoli, 2004) aponta que pessoas envolvidas no meio esportivo utilizam outros critérios para avaliar a feminilidade da atleta e que não enxergam músculos e a força como aspectos masculinos. Atualmente o padrão de beleza brasileiro prevê músculos nas mulheres bonitas, que são consideradas "saradas", as academias estão cheias de garotas querendo um "corpo de atleta" através da musculação. Essa evolução da condição da mulher atleta traz as vantagens citadas pelas entrevistadas.

J. "... Eles falavam pra mim "nossa que tempo bom que você fez!"- e isso me incentivou muito..."

L. "... eu acho que eles admiram a mulher que faz o Ironman porque sabem que é difícil. Todos os homens que conheço me dão o maior incentivo."

Quando os homens reconhecem a capacidade feminina e dão um "feedback positivo", estão reforçando o feito da mulher, que se sente incentivada a continuar na prática. O olhar masculino e seu incentivo são particularmente importantes para as mulheres, porque é o olhar de quem é dominante, não apenas no esporte porque está em maior número, mas na sociedade em geral também porque é quem freqüentemente tem maior poder e status.

P. "... eu sempre percebi privilégios em ser mulher, a gente sempre foi super bem aceita porque era mulher no meio de um montão de homens. Sempre percebi uma aceitação, uma admiração porque a gente fazia parte de um grupo diferenciado, então a gente se orgulhava, curtia, desfrutava mesmo."

A mulher triatleta faz parte de um grupo restrito, apesar de atualmente termos um número muito maior de praticantes do sexo feminino. Como cita P. a triatleta faz parte de um grupo diferenciado e acaba sendo diferenciada dentro do próprio grupo que admiram e aceitam esta mulher.

Como já relatado, a triatleta diferente das mulheres da academia e das mulheres com ocupações exclusivamente domésticas, ocupam um espaço diferente no cenário esportivo e se apropriaram do seu corpo, de sua força e de seus desejos, re-significando e redefinindo o "ser mulher".

De certa maneira sugere-se que a princípio esta mulher atleta inicia no esporte buscando o desejo e aprovação de seus pais e da sociedade em geral e num segundo momento passam a buscar os seus desejos por possuir recursos culturais e pessoais e ter acesso aos processos de negociação que permitem a ampliação da participação e do poder feminino. Assim, recusam o estereótipo de feminilidade frágil e dócil, recusando a limitação imposta por este perfil e buscam através de posturas firmes e competitivas a valorização e o respeito.

No entanto, ser mulher e ser atleta nos dias de hoje tem suas dificuldades, apesar do incentivo dos homens praticantes do mesmo esporte, a cultura esportiva, os organizadores de provas e as instituições esportivas continuam privilegiando os atletas masculinos com premiações melhores e maior cobertura na mídia. Isto reforça a idéia de que mesmo com todo o avanço, não existe incentivo politicamente organizado no nosso país para o desenvolvimento do esporte feminino.

P. "... em geral a premiação era sempre menor para as mulheres..."

A condição de ser mulher e ser atleta também cria conflitos quando o assunto e relacionamento afetivo, as entrevistadas relatam ter tido dificuldades com namorados que se incomodavam com o fato delas serem mais competitivas que eles ou darem prioridade para o esporte.

L."... é engraçado que ao mesmo tempo que eles estimulam, não gostam de perder de mim, aí vem a desculpa de cãibra, da noite mal dormida, então eles estimulam até certo ponto. Eu tive um relacionamento que terminou em parte por causa disso, para ele incomodava o fato de eu chegar na frente dele."

Fazer parte de um grupo de maioria masculina, como no caso do triathlon, é tolerável para os homens, já que as mulheres aqui estudadas têm características que os homens valorizam e até se identificam como já vimos. Entretanto os "machos" deste grupo, como nos demais grupos da sociedade entendem que o poder da força, da velocidade e da resistência e da vitória está em suas mãos, por isso o conflito quando a mulher é mais veloz, é mais resistente, é melhor no esporte.

É fato que existe uma ambivalência em relação ao significado da atividade esportiva das mulheres. O esporte atual permite que homens e mulheres disputem uma mesma modalidade com as mesmas exigências, assim como acontece no Ironman. Nesta competição homens e mulheres largam juntos e percorrem a mesma distância, sofrem com as mesmas dificuldades do percurso e tem a possibilidade de se encontrar na linha de chegada, o que gera um conflito de disputa de poder.

Segundo Bordo apud Adelman (2003) a feminilidade é produzida através da aceitação de restrições e se constrói em cima do reconhecimento da falta do poder. No caso das mulheres triatletas acontece o inverso, elas, ao aceitarem competir um Ironman e disputar com os homens, desafiam as restrições impostas pelo estereótipo da feminilidade e buscam através deste movimento de transgressão, o reconhecimento do seu poder.

Estar à frente dos homens causa desconforto a eles, que ainda vêem com dificuldade esta nova posição social da mulher, que vem rompendo barreiras sociais e limites físicos.

P "... quando eu almejava um relacionamento com uma pessoa que não era desse nicho (esporte triathlon) e que não conseguia acompanhar o ritmo, se sentia menor, eu acho que assusto um pouco as pessoas que não são do meio."

Este exemplo de P. ilustra ainda melhor a situação. O conflito aparece porque nossa sociedade é marcada por diferentes graus e maneiras de dominância masculina, o homem foi sempre o mais poderoso, porém atualmente em alguns cenários como o esporte, é possível observar a inversão de poder, o que ainda incomoda e constrange alguns homens.

P. "... o homem sendo machista, quer se sobrepor de alguma forma, então uma mulher bem sucedida na profissão e no esporte se sobrepõe ao masculino, então ou eu tinha que mudar ou procurava semelhantes."

Aqui P. coloca em pauta a dificuldade que os homens possuem de perceber que a mulher agora atua na esfera pública e privada e tem a possibilidade de ser reconhecida em ambas as áreas. A mulher moderna, atleta e profissional bem sucedida é uma combinação que tempos atrás seria impossível, no entanto, a mulher de hoje vem ocupando lugares antes alcançados apenas pelos homens, isso abala estruturas e padrões de comportamentos construídos ao longo dos tempos, principalmente quando diz respeito às relações afetivas entre homens e mulheres. A adaptação a essas novas idéias vem acontecendo gradativamente, porém nem todos estão preparados, alguns se apavoram, outros não sabem lidar com a situação, entre eles homens e mulheres que estão tendo juntos, que se adaptar a uma nova realidade: a mulher conquistando altos cargos profissionais, alcançando recordes esportivos masculinos e exigindo seus direitos e desejos.

Com relação às diferenças de gêneros as mulheres concordam que elas existem e que têm que ser respeitadas, os atributos físicos do homem aparecem como determinantes da superioridade masculina no esporte, mas as mulheres apontam para uma superioridade feminina quando a questão é emocional.

J. "... a mulher se dá muito bem com a dificuldade, suporta mais a dor, consegue dar colo, lida melhor com a cãibra. O corpo da mulher tem mais gordura e sai um pouquinho mais na frente numa prova de Ironman. O homem tem mais facilidade de ter velocidade, força então o tempo dele é realmente melhor do que o da mulher."

L. "... A mulher tem uma força uma persistência maior,... o homem tem um negócio de ego é muito mais valioso que a mulher nesse sentido, se ele é ultrapassado por alguém se acaba, enquanto a mulher busca uma coisa pra ela mesma."

Nesta frase aparece a necessidade do homem de provar sua força e virilidade aos demais machos da espécie. Segundo L. a mulher como não precisa necessariamente provar para as demais poder e virilidade, busca provar para si mesma e conseqüentemente para a sociedade, que é capaz e poderosa. A partir das entrevistas é possível supor que no caso do gênero feminino os homens e a sociedade são os adversários, enquanto que as demais atletas femininas estão unidas para provar que são tão capazes quanto os homens e merecem seu devido valor na nossa cultura esportiva e na sociedade em geral.

P.... "Tem uma questão do feminino, da administração da situação, da intuição, do proteger, do acolher, do ser mãe, do nutrir, isso é forte e faz deferência."

A mulher não precisa se masculinizar para conseguir seus direitos e ser respeitada, as características do gênero feminino são determinantes quando a sua capacidade de atuação e realização.

P. "... eu sei que eles são bons fisicamente porque são homens, mas na hora o estresse "do pega pra capar", não sei com vão se comportar, aí eu fico insegura. A mulher não "arrega" ela administra melhor o aspecto emocional."

P. indica que quanto a equilíbrio emocional confia mais na mulher na hora de lidar com situações de conflito, enquanto que os homens às vezes desistem ou se destemperam e partem para a luta física, numa busca de demonstrar e confirmar seu poder aos demais da mesma espécie.

L. "Não dá pra lutar de igual pra igual com os homens, somos diferentes, e temos que usar nossas diferenças para superar até eles, não com as mesmas armas, mas com suas próprias armas você consegue chegar na frente de muitos deles."

L. indica que as mulheres lutam e disputam por espaço com os homens e vêm se organizando e se modificando para serem reconhecidas em pé de igualdade.

Como as próprias entrevistadas comentam homens e mulheres são diferentes, no entanto na história da mulher no esporte esta diferença já foi bem maior, no que diz respeito aos direitos fundamentais de participação da mulher, por exemplo.

O esporte foi e vem sendo um espaço de busca de ascensão feminina e atualmente podemos observar grandes conquistas da mulher que tem seu direito a participação garantida, reconhece a diferença dos sexos e a superioridade da força masculina, e apesar de terem desenvolvido e utilizado características que chamamos de "masculinas" valorizam as características femininas como virtudes que só elas possuem.

Para trilhar este caminho cheio de obstáculos a mulher teve que desenvolver a capacidade de superar desafios, no caso das entrevistadas essa característica é muito marcante, a busca pela superação é nítida e pode ser observada pela escolha da modalidade esportiva que praticam, que exige muita força, resistência, determinação e perseverança. A partir das entrevistas é possível distinguir enumeras possibilidades do que chamamos apenas por superação.

O primeiro tipo de superação é a física, o trabalho permanente com o limite do corpo, com o controle da dor, com o aumento da força e resistência.

L. "O Ironman dói muito e os treinos para o Ironman são muito sofridos."

P. "... se é uma dor que sei que tenho que aturar eu aturo..."

O saber que tem que agüentar a dor, é a consciência de que tem que passar pela dor para alcançar a linha de chegada, para vencer, para sentir o sabor da realização e da valorização, aqui fica claro a quebra de paradigma da feminilidade pela mulher triatleta que redefine suas característica, recusando a feminilidade frágil e se apropriando de novas capacidades, inclusive o controle da dor e a superação física.

P. "... essa coisa de fazer esporte de endurance te leva a superação do limite físico".

O corpo físico feminino, antes pensado sob a perspectiva de corpo frágil, fraco, feito apenas para procriar, agora se tornou capaz de ultrapassar limites, atingir marcas e suportar a dor, dor esta que está relacionada ao melhor controle emocional citado pelas entrevistadas, sem esquecer, porém, da capacidade de procriar e, portanto, sentir as dores do parto. Segundo as entrevistadas o corpo da mulher foi feito para suportar melhor a dor.

Outros dois tipos de superação que aparecem junto com a superação física são a cultural e a social. A superação cultural está relacionada à busca feminina pelos seus direitos e espaço no cenário esportivo e na sociedade; e a superação social através da ascensão social, está associada à valorização que as atletas femininas conseguem através do esporte, principalmente através de um esporte exigente como o Ironman.

L. "Acho que uma das razões da busca feminina por este esporte é essa ascensão social da mulher, essa vontade de querer ter um pouco do espaço dos homens, não é querer ser homem, mas chegar junto com eles".

L. deixa claro o quanto as mulheres ainda buscam um espaço na nossa cultura, e a igualdade junto aos homens e a sociedade.

P. "… quem me conhece sabe que eu treino há 15 anos, bem ou mal, isso me dá um status,..., o que me ajuda ser aceita".

P. "... as pessoas valorizam essa mulher, me elogiam fazem comentários..."

O esporte também aparece como uma ferramenta para a ascensão social, ser atleta, boa atleta, assim como ser boa profissional, traz reconhecimento e aceitação por parte de sociedade.

P "... o Ironman se torna um objeto de poder que você pode usar e se beneficiar de todos os modos, aceitação, de valorização, de realização..."

Nesta frase P. explicita quão poderoso é o Ironman e quanto desejado ele é, já que traz tantos benefícios, principalmente para uma mulher quem vem buscando esta aceitação, valorização e realização historicamente.

Aliado e integrado a todas as formas de superação estão as superações psicológicas: o se superar, o superar o outro, o superar buscando aprovação, o superar na busca de transcender, o superar na busca da realização pessoal. É possível supor que o envolvimento em um esporte que leva ao limite da vida e da morte é uma forma de elaborar e lidar com conflitos pessoais, sociais e culturais. Esta participação feminina pode ser vista como um cenário onde os conflitos entre "possibilidade" e "limitação" produzam tensões, criando novas perspectivas das noções de fragilidade e inferioridade versus força e poder.

Superação:

L. "... tem coisas no Ironman muito interessantes, esse negócio de se superar de ganhar pela persistência, mesmo se você está se sentindo mal, pode se concentrar e acabar indo super bem".

A partir do discurso de L. é possível perceber que há um desejo pessoal e uma persistência na busca da superação que gera muita satisfação.

J. "... durante uma prova de Ironman você passa por horas de total depressão e de total êxtase, quando você termina é que você sente que realmente você pode, é uma força lá de dentro que você leva para outras coisas na vida fora do esporte."

Apesar de sentir sensações tão opostas e contraditórias, J. mostra que a sensação de terminar o Ironman é de poder, um poder que pode ser estendido para as demais situações do cotidiano e só pode ser conquistado se existe uma negação da limitação produzida pelo estereótipo de feminilidade e se, são percebidas e construídas as novas possibilidades de atuação como mulher.

J. "No Ironman o meu objetivo é sempre me superar, estar contente com o que fiz, é triste não terminar."

Não terminar o Ironman leva a frustração, pensando no Ironman como aquele objeto de desejo que traz tantos benefícios, a incapacidade de terminar a prova contesta o poder do atleta e suas expectativas quanto sua capacidade de superação.

Superar o outro:

J. "... o que mais me leva pro Ironman mesmo é o gostinho de além de terminar ganhar, porque sou muito competitiva. O melhor sentimento é o de satisfação de ganhar, de ver que é melhor do que os outros".

Para J. a sensação de poder e realização se ampliam quando além de terminar uma prova ela ainda ganha das demais atletas. É possível supor que no seu caso haja uma necessidade pessoal de além de ser uma boa atleta capaz de superar-se tem que ser capaz de superar os demais, ou seja, uma grande necessidade de superação, que pode estar vinculada a desejos ou conflitos pessoais de poder e limitação que nunca entrou em contato e que podem estar sendo transferidos para seu comportamento esportivo.

L. "... no Ironman tem que lutar muito, muito mesmo, na primeira vez que fiz tinha a expectativa de ser a primeira, foi uma queda do cavalo, mas não me desestimulou pelo contrário me deu mais vontade de continuar. Meu objetivo é melhorar, ser a primeira da minha categoria e ir para o Havaí".

Novamente L. mostra sua característica marcante, a persistência e indica o quanto as mulheres continuam lutando para conseguir o que desejam e no seu caso o quanto ainda luta para buscar algo, que racionalmente é ser vencedora e ir para o Havaí, mas subjetivamente pode estar numa constante luta de provar algo para alguém, de buscar reconhecimento dos outros, de ser notada e valorizada, hipóteses que apenas a sua própria reflexão poderá comprovar ou não.

Transcender:

L. "... em treinos longos tenho uma capacidade meio de hipnose, de bem estar, de sentir estar com Deus. O esporte me transcende, me deixa próxima de Deus, é como se fosse minha reza."

A própria capacidade e sensação de superação levam o atleta a transcender, a se sentir-se tão poderoso que é capaz de estar próximo dos deuses, em outro plano. Para L. esta capacidade tem uma conotação religiosa, assim ela associa sua prática esportiva a sua religião e consegue, portanto, estar próxima de Deus enquanto está treinando.

Aprovação:

P. "O meu pai ficava me "buzinando a orelha" porque na natação sempre ganhava por batida de mão e minha irmã ganhava por meia piscina, então sempre tive essa coisa de mostrar o meu valor. Talvez tenha ficado algo interno de eu querer provar para ele e para as pessoas e por isso a escolha por um esporte de superação total".

P. "Já tem a clareza que a escolha por um esporte de superação dos limites físicos e psicológicos está relacionada com um desejo interno de provar para seu pai e para as pessoas que tem valor, ou seja, de buscar a aprovação paterna e da sociedade."

Realização:

J. "Eu me sinto vitoriosa ao terminar o Ironman, você nem imagina que é capaz de fazer tudo aquilo, esse sentimento é legal, de pensar no que você já fez e se sentir muito orgulhosa disso".

P. "Quando vou fazer um Ironman busco a realização de objetivos, o que me traz a sensação de prazer e de dever cumprido".

Estar próximo de Deus é pensar nas coisas que transcendem a compreensão e a busca racional, assim como aprovação e realização pessoal, estão ligados a história de cada atleta e características individuais. Portanto, a motivação em cumprir um desafio como o Ironman está longe de ser compreendido racionalmente, cada indivíduo tem seu histórico pessoal, seus conflitos e seus desejos, que são levados para a prática esportiva através dos comportamentos de cada um, na maneira de lidar com as questões de desafios, competições, superações e aprovações e com a questão do poder e da sua própria sexualidade.

 

Considerações Finais

Ainda que a presença da mulher no esporte e na prática de atividade física não seja privilégio de todas, podemos dizer que é um cenário onde o gênero feminino está sendo muito bem representado. A mulher no esporte é um fenômeno que acontece praticamente em todo mundo e é através dele que muitas mulheres conseguem seu espaço na cultura, seu valor na sociedade, seu reconhecimento como indivíduo.

O esporte foi e ainda é um meio pelo qual a mulher pode exercer sua autonomia, seu poder de escolha, seu poder de superação física e psicológica e sua veia competitiva, provando a sociedade e especialmente aos homens o quanto é capaz como atleta e como ser humano. A escolha por uma modalidade de superação de limites, como o Ironman, só vem comprovar a busca feminina pela valorização e reconhecimento da sociedade.

Ser atleta de um esporte que exige tanta capacidade superar desafios dá um poder e um status que apenas os homens sentiam e que agora as altas executivas ou as mulheres bem sucedidas profissionalmente também têm o privilégio.

A mulher atleta é o símbolo da mulher moderna: tem garra, perseverança e determinação como características de personalidade e uma capacidade de superação de limites que vem alterando antigos padrões e papéis sociais.

As mulheres vêm buscando há muito tempo pelos mesmos direitos dos homens, atualmente já podem sentir o gosto do reconhecimento em algumas áreas, por exemplo, em alguns cargos são preferidas e nos órgãos públicos já estão ocupando os cargos de chefia.

No entanto, biologicamente são diferentes dos homens. Maior quantidade de massa muscular, menor gordura corporal, são algumas das características físicas que colocam os homens a frente das mulheres em modalidades esportivas que exigem força e velocidade.

Apesar de terem adquirido muitas das características masculinas ao longo da história da emancipação feminina, não são como os homens e nem virão a ser. No esporte as diferenças de gênero se concretizam nas adaptações de algumas modalidades como, por exemplo, a rede mais baixa do voleibol feminino.

Por terem a clareza dessas diferenças, mas por sentirem o peso do histórico das diferenças de gênero ainda reverberando na sociedade moderna, que elas não mais exigem igualdade de direitos, mas sim respeito pelas diferenças.

 

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Endereço para correspondência
Carla Di Pierro R. Aimberê, 909, ap 33 - Perdizes
05018-011 São Paulo, Brasil
E-mail: carla@vita.org.br

 

 

Nota sobre a autora:

Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo é especialista em Psicologia do Esporte pelo Instituto Sedes Sapientiae, lecionou aulas de Psicologia do Esporte na graduação de Educação Física da UNINOVE de 2004 a 2006. É professora de cursos de pós-graduação em fisioterapia esportiva, nutrição esportiva e treinamento esportivo. Atua como psicóloga do esporte desde 2002, com atletas profissionais e amadores de atletismo, ciclismo, judô, karatê, jiu-jitsu, triathlon, remo e montanhismo. Atualmente é psicóloga do Instituto Vita e da Seleção Brasileira de Karatê.

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