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Revista Brasileira de Psicologia do Esporte
versión On-line ISSN 1981-9145
Rev. bras. psicol. esporte v.2 n.2 São Paulo dic. 2008
Um jeito novo de jogar na medida: o futebol libertário
A new way to play in measures: the futebol libertário
Una nueva manera de jugar en la medida: el futebol libertario
Fábio Silvestre da SilvaI; Katia RubioII
IInstituto Sedes Sapientiae
IIUniversidade de São Paulo - USP
RESUMO
Nessa pesquisa-ação buscou-se investigar o uso do potencial educativo da prática esportiva, especificamente o futebol, na educação não formal como meio para a construção e o exercício da cidadania ativa através do atendimento alternativo direto para adolescentes inseridos nas medidas socioeducativas em meio aberto que cometeram um ato infracional. Os resultados apontam que a proposta inovadora pode criar um ambiente para o processo de integração pessoal com a tomada de consciência de sua própria dignidade, auto-estima, consciência corporal, comunicação, responsabilidade, autonomia e exercício da cidadania. A essência da libertação ficou marcada pela possibilidade de novas vivências e experimentações dos adolescentes. Verificou-se que a metodologia aplicada leva em consideração a diversidade, mas não é totalizadora e tem resultados diferentes para diferentes adolescentes quando somado às histórias individuais. A maioria dos adolescentes recebeu a liberação para o convívio em sociedade sem a restrição anteriormente imposta.
Palavras-chave: Educação pelo esporte, CEDECA Interlagos.
ABSTRACT
In this Qualitative Action Research investigated the potential educative use of sports, specifically the soccer, with non-formal education used as a mean of construction and practice of active citizenship through alternative direct attention to adolescents placed into socio-educational measures in freedom who had committed a felony. The results demonstrate that this innovative proposal can create a positive environment for the personal integration process, starting by acknowledging self-dignity, auto-esteem, body conscience, communication, responsibility, autonomy and exercise of the citizenship. The releasing essence was marked then by the possibility of the adolescents’ having new life experiences. It was stated that the applied methodology took into consideration the diversity but it doesn’t summarize and gives different results for different adolescents when added up their individual stories. The majority of adolescents received the release for society contact without the restriction previously imposed.
Keywords: Education for the sports, CEDECA Interlagos.
RESUMEN
En esa investigación-acción se buscó abordar el uso del potencial educativo de la práctica esportiva, específicamente el futbol, en la educación no formal como medio para la construcción y el ejercicio de la ciudadanía activa a través del recibimiento alternativo directo de adolescentes inseridos en las medidas socioeducativas en medio abierto que cometieron una infracción. Los resultados apuntan que una propuesta innovadora pude crear un ambiente favorable para el proceso de integración personal con una concientización de su propia dignidad, autoestima, consciencia corporal, comunicación, responsabilidad, autonomía y ejercicio de la ciudadanía. La esencia de liberación fue marcada por la posibilidad de nuevas vivencias y experimentación de los adolescentes. Se constató que la metodología aplicada lleva en consideración la diversidad, sin embargo no es totalizadora y llega a resultados distintos para distintos adolescentes cuando sumados a las historias individuales. La mayor parte de los adolescentes recibió la liberación para la convivencia en sociedad sin la restricción anteriormente impuesta.
Palabras clave: Educación por el deporte, CEDECA Interlagos.
Introdução
O tema adolescente autor de ato infracional vem sendo discutido durante décadas em diversos setores, tanto nos serviços de atendimento como nas universidades. Para entender esse fenômenos o presente trabalho preocupa-se em ilustrar a questão teórico-metodológica, a realidade social onde o estudo foi realizado e discutir alternativas propriamente dita quanto a execução das medidas sócio-educativas aplicadas.
Para Gadotti (2001), os estudos sobre a educação foram marcados a partir da década de 60 por “um caráter tecnicista e formal”. As novas formas de pesquisa educacional querem ficar distantes dos modelos positivistas, mesmo que taxadas de “orientações viesadas” em função de um paradigma científico geral. A chamada “pesquisa-ação” (Thiollent,1988) que supõe uma forma de ação planejada de caráter social, educacional ou técnico, veio romper com esse círculo fechado estabelecendo novos critérios de validade para a pesquisa em ciências humanas. Nesse sentido, essa pesquisa apresenta-se como um instrumento para a ação social e a transformação da realidade, sendo, a priori, uma opção metodológica e ideológica que servirá de enfoque estratégico para uma ação popular da sociedade civil organizada.
Partimos de uma compreensão sobre o papel do psicólogo como ator social que deve contribuir, enquanto mediador do processo de construção e produção do conhecimento, estabelecendo espaços de troca com os educandos, buscando trilhar com eles caminhos pelos quais se percebam como sujeitos históricos capazes de (re)significar relações e investir em seu potencial humano, (re)construindo seus projetos de vida pessoal e social.
Neste sentido, buscamos apoio em Paulo Freire (2003) quando defende que “ensinar não é transferir conhecimentos, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”.
Ao estudar a realidade da criança e do adolescente que moram nas periferias de São Paulo, percebe-se a ineficácia do sistema educacional que este Estado Democrático de Direito tem promovido. Ou seja, os privilegiados que possuem o acesso à tecnologia, capital e controle de informação constroem um sistema que domestica e aliena a si e a milhares de crianças e adolescentes que estão fadados a uma vida sem perspectivas e sem acesso a uma educação crítica e transformadora.
Segundo dados do IBGE (2001) a proporção de pessoas abaixo da linha da pobreza era de 33,60% da população total. Por traz desses dados está também a realidade do desemprego, da miséria, da falta de moradia adequada e de saúde e a situação de violência que aumentam a vulnerabilidade da criança e do adolescente e potencializam os riscos de ultrapassar limites para a autoria de atos infracionais que prejudicam o seu “processo peculiar de desenvolvimento”, preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990).
O Estatuto da Criança e do Adolescente & Lei Federal 8069/90 supera a velha visão vingativa e punitiva do Código de Menores, estabelecendo uma visão pedagógica e educativa. O Artigo 112 do ECA define as Medidas Socioeducativas (Advertência (A), Reparo do Dano (RD), Prestação de Serviço à Comunidade (PSC), Liberdade Assistida (LA), Semiliberdade (SL), Internação (I)) como meios de intervenção na vida do adolescente autor de ato infracional, assim como na família, na comunidade e na sociedade. Segundo TEIXEIRA (2003) as medidas aplicadas aos adolescentes autores de ato infracional “visam ou devem visar superar a idéia exclusiva de controle social e assumem o caráter socioeducativo a partir do ECA”.
Esse estudo tem a finalidade de investigar o uso do potencial educativo da prática esportiva na educação não formal como meio para a construção e o exercício da cidadania ativa de atendimento alternativo direto para adolescentes inseridos nas medidas socioeducativas em meio aberto da Capela do Socorro, visando implantar com a pesquisa-ação um novo paradigma metodológico para acompanhar e orientar adolescentes autores de ato infracional, sua família e entidades de inserção.
O esporte como instrumento educacional
As crianças brasileiras têm o direito à educação, à cultura, ao esporte a ao lazer garantidos pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Como necessidades humanas básicas são direitos de toda população infanto-juvenil e não privilégio de grupos ou classes sociais. No caso do esporte, significa uma prática democratizada, ao alcance de todos e não somente daqueles que apresentam alguma aptidão ou talento especial.
O ECA (capítulo IV, art.59) estabelece que os Municípios, com apoio dos Estados e da União, deverão estimular e facilitar a destinação de recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para a infância e juventude.
Nas áreas do esporte e do lazer, alguns órgãos específicos são responsáveis pelo desenvolvimento de programas coordenados com o órgão gestor das medidas socioeducativas, buscando assegurar a efetivação dos direitos (IAS, 2004).
Autores como DaMatta (1982) e Rubio (2000) entendem que o esporte faz parte da sociedade, tanto quanto a sociedade faz parte do esporte, sendo impossível compreender uma atividade sem referência à totalidade na qual está inserida.
Para DaMatta (1982) o futebol é uma metáfora perfeita pois no jogo, como na vida há um limite de tempo. O jogo da vida termina um dia ao passo que o jogo e a vida continuam sempre. As regras delimitam ações e tempo, assim abrem, paradoxalmente, o jogo para a eternidade. É precisamente o instante em que a regra não pode ser cumprida ou que ela foi levada até às últimas conseqüências, o momento mágico que imortaliza.
No contexto da educação, o esporte se insere a partir de uma nova concepção que parte do principio que este fenômeno e um método pedagógico, ou seja, um meio de desenvolvimento das diversas potencialidades humanas que supera a visão do aprender o esporte apenas enquanto técnica e instrumento de atividade corporal e se propõe a ser um fator de desenvolvimento integral da criança e do adolescente. (Instituo Ayrton Senna, 2004).
Em levantamento exploratório com os adolescentes inseridos nas medidas a modalidade mais praticada por todos é o futebol, seguido de skate. Isso confirma que dentre as muitas modalidades esportivas praticadas no Brasil nenhuma outra é considera tão popular como o futebol Daolio (1998) escreve sobre esta modalidade esportiva a partir de uma analise cultural e afirma que o futebol e uma forma que a sociedade brasileira encontrou para se expressar e nesse sentido afirma que e uma forma de pratica da cidadania. Como o carnaval, o futebol, no Brasil, abre a possibilidade da expressão individualizada e livre, em uma rede de relações humanas, quando alguém pode revelar-se como é, com suas habilidades e fraquezas. (DaMatta, 1982: 25).
Desse modo, pode-se observar a potencialidade educativa do esporte e nesse caso em especial, do futebol na sociedade brasileira.
Podendo fazer esse paralelo entre o jogo e a vida é que se percebe a necessidade de uma dimensão pedagógica desse esporte em particular.
Se o futebol sempre esteve ligado simbolicamente a outras manifestações populares é possível afirmar então que ele não é uma prática exclusiva do professor de Educação Física/Esporte. O futebol pode (e deve) ser uma temática geradora trabalhada por/entre várias disciplinas (Helal, 2001:13).
A participação em uma prática como o esporte seja em fase competitiva ou de treinamento, não é garantia para que as questões acima citadas sejam efetivamente atingidas. A prática pela prática somente, não é garantia para tal. Mas, que características tem a prática esportiva que contribui para a manutenção do status quo? Para responder a isso torna-se fundamental a necessidade de uma mediação/intervenção entre a atividade esportiva e os conceitos a ela inerentes.
No âmbito do CEDECA Interlagos, esta ação tem como embasamento teórico os quatro pilares da educação, uma visão organizada e trazida por Jacques Delors no relatório da UNESCO na Conferência de Jomtiem sobre Educação para Todos em 1990 na Tailândia, além da pedagogia libertadora de Paulo Freire.
Os quatro pilares da educação são concebidos como territórios do desenvolvimentos de potenciais, as quatro aprendizagens são integradas e precisam ser identificadas como experiências para a vida. O aprender a ser, aprender a conviver, aprender a conhecer e aprender a fazer nortearam o desenho de um conceito de competências, atitudes e habilidades pelo Instituto Ayrton Senna um dos pioneiros no trabalho com Educação pelo Esporte. A noção de competências une o conhecimento aos valores, as atitudes e as habilidades, para concretizar as ações. Competências pessoais (aprender a ser), sociais (aprender a conviver), cognitivas (aprender a conhecer) e produtivas (aprender a fazer) são utilizadas como pontos de referência do trabalho dos educadores no momento de planejamento, execução e avaliação do trabalho. (Instituto Ayrton Senna, 2004b).
Assim, neste contexto, por mediação/intervenção, compreende-se a capacidade de elucidar e presentificar as inter-relações da dinâmica esportiva, facilitando e explorando tais relações entre os atores participantes. Os mediadores por sua vez, são os profissionais ligados à atividade esportiva (como os técnicos), trabalhando conjuntamente com outros profissionais para que as especificidades de cada área possam complementar-se.
A importância da mediação/intervenção na aprendizagem seja ela empreendida pelos educadores, educadores físicos e psicólogos, se faz fundamental nesse processo, pois segundo Vygotsky (1998: 115), o aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica em um processo pelo qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que os cercam.
Será papel dos educadores sociais facilitar e mediar a troca de experiências nesses diversos níveis buscando um contato mais próximo com as questões que serão trabalhadas conjuntamente com o técnico de Educação Física para a partir daí, elaborar as atividades que objetivem ressaltar a integração, comunicação, cooperação, etc. Assim sendo, configura-se a importância de um profissional que possa contribuir na mediação das relações que a criança e o adolescente estabelecem com o outro e com o mundo, contribuindo na formação de indivíduos, não apenas em relação aos conhecimentos adquiridos, como também para a realização como ser humano, preparando-o para enfrentar os desafios impostos pela sociedade.
O trabalho do educador social vai além da simples orientação da prática esportiva. Ele busca orientar o adolescente para a vida, contribuindo por este meio, para questões mais amplas, auxiliando na construção da identidade do indivíduo praticante da atividade física e do esporte (Marques & Kuroda, 2000; Rubio et al., 2000).
Esse ideal, de um corpo coletivo formado por indivíduos que se autodeterminam e lutam conscientemente por direitos comuns vem ao encontro da expressão de cidadania ressaltada por Manzini-Covre (1996), enquanto categoria que pode ser elaborada, apropriada e utilizada pelos educandos. A cidadania pode ser reedificada por eles como um valor universal da humanidade. Essa expressão de cidadania assumida e exercida, conscientemente, pelos educandos, pode ser entendida como uma cidadania ativa.
Contextualizando uma prática
O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA) de Interlagos está situado na região da Capela do Socorro e tem em sua área de abrangência cinco distritos do extremo sul da cidade de São Paulo. Esta área é formada pelos distritos de Socorro, Cidade Dutra, Grajaú, Parelheiros e Marsilac que, juntos, compõem o extremo sul da cidade de São Paulo, com uma superfície de 487,8 Km², que corresponde a 1/3 do território do município.
As análises utilizadas para contextualizar a realidade do adolescente em situação de risco social e pessoal baseiam-se no ‘Mapa da Exclusão e da Inclusão’ elaborado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas de Seguridade e Assistência Social da PUC-SP e reeditado em 2000, e o “Mapa da Juventude de São Paulo, 2003”. Já nesta pesquisa, os bairros da Capela do Socorro se destacam quanto aos altos índices de exclusão social. Na classificação geral dos 96 Subdistritos do município de São Paulo, a Cidade Dutra ficou em 71o. lugar, Grajaú em 95o, Marsilac em 80o. e Parelheiros em 96o.
Esta tendência pode ser explicada pela deterioração generalizada das políticas públicas sociais nos últimos anos, tendo esse quadro agravado pelas altas taxas de crescimento populacional da região, significativamente acima da média de crescimento do município, e pela localização integral da região em área de proteção de mananciais.
O CEDECA de Interlagos foi fundado em 1999 por um grupo de educadores sociais com experiência em trabalhos comunitários em Favelas de Interlagos e com Movimentos Populares da Capela do Socorro. Identifica-se como organização de assessoria aos movimentos populares, a partir e a serviço das lutas populares organizadas nas comunidades locais, associações de moradores, entidades de atendimento e movimentos específicos da Capela do Socorro, tendo seu olhar voltado para a realidade da criança e do adolescente.
Os trabalhos tiveram início com Liberdade Assistida (LA) em 1999 chegando em 2002 a atender 240 adolescentes em LA e 60 em PSC, totalizando 300 adolescentes atendidos ao mês.
A entrada em campo
O projeto Futebol Libertário teve início 2003. Embora houvesse aprovação do projeto de pesquisa por parte da diretoria da proposta, não havia recurso financeiro disponibilizado. Além da busca de recursos era necessário sistematizar o trabalho. Com a entrada em campo de um investidor nessa idéia o projeto pode sair do papel. Não era um campo estranho o atendimento, mas pensar em novos paradigmas do atendimento era assustador.
A principal pergunta no início do trabalho era: “seria possível utilizar o futebol como elemento educativo crítico, ou seja, sem fazê-lo perder a sua especificidade enquanto esporte/ jogo aproveitá-lo como um instrumento de transformação social?” Em outras palavras: Poderiam os envolvidos neste processo incorporarem através da prática e da reflexão, uma nova concepção de esporte e de relacionamento humano, calcada em princípios que combatam o individualismo, a vitória a qualquer custo, o autoritarismo, as mais diversas expressões de discriminação e preconceito contra adolescentes autores de ato infracional? Com essa inquietação o trabalho teve início.
Esta pesquisa atendeu 18 adolescentes, de ambos os sexos, na faixa etária de 12 a 17 anos e 11 meses, inseridos (as) nas medidas socioeducativa em meio aberto na sua grande maioria em Liberdade Assistida. Inicialmente foram selecionados 20 adolescentes, pois segundo as resoluções do Conselho Municipal dos direitos da criança e adolescente estabelece que um educador social pode acompanhar no máximo vinte adolescentes. Dois selecionados desistiram antes de iniciar o projeto e optamos por dar continuidade com esse número.
Os adolescentes passaram por um processo de seleção realizado pelos educadores responsáveis e estavam inseridos na medida por pelo menos um mês, assim como os adolescentes que cumprem por prazo indeterminado ou por seis meses. A tentativa foi de que pudesse ser solicitado o encerramento da medida juntamente com o término do prazo da pesquisa.
Como o CEDECA Interlagos está subdivido em três grandes regiões foi realizada uma seleção que privilegiasse 06 adolescentes de cada área com a heterogeneidade que a medida apresenta. O critério estabelecido era que eles deveriam estar pelo menos um mês sendo atendidos nos modelos oferecidos pela entidade.
Foi criada, ainda, uma gama ampla do perfil desses adolescentes a partir da ficha de entrada com a pasta social onde estavam contidas as seguintes informações: os dados pessoais; motivo de entrada; situação habitacional; caracterização da família; dados de escolaridade; dados profissionais; dados sobre saúde e procedência. Realizado essa seleção tomamos como procedimento ético de pesquisa uma reunião com os familiares para que o projeto fosse explicado e que eles pudessem assinar um termo de consentimento informado. Durante todo o período os familiares foram recebendo informação sobre o andamento da pesquisa e do acompanhamento dos adolescentes.
Este grupo heterogêneo não desconsiderava os pontos que são comuns a todos: cumprimento das medidas; situação familiar similar; fumantes, adolescentes do mesmo grupo etário.
O levantamento dos dados foi realizado ao longo dos 24 encontros programados divididos em 5 grandes blocos, durante sete meses. Os objetivos de cada encontro foram mantidos e as estratégias poderiam e foram sempre alteradas em função das necessidades do grupo e pelo próprio grupo.
Realizada toda a etapa inicial da formalização para o início da pesquisa os adolescentes foram levados ao SESC Interlagos1, que fez a concessão do espaço físico onde, semanalmente, foi desenvolvida a prática do futebol participativo educacional com alterações de regras, por um período de aproximadamente três horas por encontro.
Para ser configurado de fato como uma proposta inovadora o trabalho dessa pesquisa foi realizado na sua totalidade em grupo fechado. O ponto de partida foi a compreensão que somente no micro-universo, possibilitado pelos trabalhos em grupo e toda a sua dinâmica, é que os adolescentes teriam condições de elaborar questões fundamentais e de relevância para o grupo.
Estrategicamente é importante dizer que todos os encontros foram organizados da seguinte forma:
Ponto de encontro: local antes da entrada no SESC ou outra atividade.
Roda inicial: momento onde são colocados os objetivos do dia e das atividades e uma retomada das atividades anteriores. Serve ainda como termômetro dos humores do dia e da dinâmica do grupo.
Medição da freqüência cardíaca: momento de cuidado com a saúde e com o sistema cardio-vascular.
Aquecimento: aviso ao corpo da carga que receberá.
Atividade geradora: atividade planejada para alcançar os objetivos do dia. Alongamento: momento da volta à calma e cuidado com o tecido músculo-esquelético. Roda final: momento de avaliação do dia e das reflexões sobre os aprendizados. Momento de fala e escuta.
Lanche e distribuição dos passes: momento de confraternização e responsabilidade, pois os jovens eram responsáveis por esse momento.
Todos os encontros foram registrados em foto, vídeo e áudio tanto das rodas de conversas como das atividades do grupo. Além disso, foram produzidos relatórios mensais do grupo e individuais que compunham o procedimento com o Poder Judiciário.
Jogando o jogo
A análise dos encontros procura fazer uma relação entre o coletivo e o individual dando ênfase às relações da convivência grupal, a construção e o respeito às regras e as suas diferentes etapas. Os registros das atividades foram revelando etapas muito claras do trabalho como a formação do sentimento de grupalidade; um olhar dos adolescentes voltados a comparação dos territórios; uma vontade de fazer projetos de intervenção; e momentos em que planejavam fora da medida socioeducativa. Analisamos ainda os diferentes estágios de como um grupo se torna uma equipe que deram origem às unidades de análise que se tornou uma proposta metodológica desse trabalho: PAIS Preparando o terreno, Analisando o jogo, Imaginando o futuro e Saindo de campo.
Preparando o terreno - Trata-se dos primeiros momentos para a formação do grupo onde se inicia a construção dos vínculos. É entendido como o momento da construção da estrutura e da identidade dessa formação e fundamentalmente é uma etapa de esclarecimento do funcionamento geral das atividades assim como a formação dos combinados de convivência.
Analisando o jogo - Essa etapa é marcada por uma reflexão mais aprofundada de si mesmo e da coletividade a que pertence, tendo como foco os direitos fundamentais e as questões da territorialidade. É o momento marcado para olhar para fora e analisar toda a situação. Essa fase remete os adolescentes e a equipe a refletir sobre local de moradia, transporte e as redes que deveriam funcionar de atenção ao cidadão. É o momento de confronto de realidades.
Imaginando o futuro - Essa etapa diz respeito aos sonhos e perspectivas dos adolescentes como sendo um momento de elaboração de mini-projeto, criando a cultura de projetar-se. É o momento crucial de redefinição ou confirmação do plano de atendimento individual e o estabelecimento de metas concretas e possíveis. Isto é, o futuro norteia as práticas do presente.
Saindo de campo - Essa é a etapa de concretude de todo o trabalho que visa a saída deles da medida. O desligamento do projeto é tido como certo e tratado como processo. Representa o momento da autonomia e da ação. É o momento da avaliação das próprias conquistas e decisões que foram tomadas, pois é importante que o projeto consiga auxiliar no desenvolvimento das competências trabalhadas.
O trabalho socioeducativo em grupo, embora não seja uma novidade, tem ainda muito a ser estudado e analisado no que diz respeito a sua metodologia. Em geral, há muitas referências bibliográficas (Anzieu, 1993; Della Torre, 1986; Pichon Riviére,1988a; 1988b.) que falam das dinâmicas de grupos, mas ainda com alguns mitos. Um desses mitos, é que o grupo a ser trabalhado é que deve direcionar o trabalho.
Esse estudo parte de outra premissa uma vez que entende que o trabalho tem uma intenção e objetivos a serem alcançados, e que para tanto, é necessário traçar um caminho claro e previamente definido. Isso não quer dizer que o material e as necessidades do grupo não são levados em consideração, uma vez que se utiliza da lógica e da metodologia de Paulo Freire.
Comentários do jogo
Durante o decorrer da experiência tentou-se estimular o conhecer dos próprios limites e potencialidades, um aspecto abordado por todo o trajeto, de acordo com o momento em que cada adolescente passa. Outras competências pessoais foram trabalhadas de acordo com a demanda do grupo, como respeitar a si mesmo, argumentar acerca dos fatos, expressar e manifestar idéias e proposições, incluindo a opinião em relação aos participantes.
Com relação às competências pessoais, o grupo manteve uma busca, dentro da metodologia específica, de aprimorar uma seqüência pedagógica de desenvolvimento pessoal que privilegie um projeto de vida para o adolescente, resgatando o autoconhecimento e despertando as perspectivas, através de maior participação nos planejamentos diários, dentro dos espaços das atividades, onde foi possível contextualizar a busca de objetivos e as estratégias para alcançá-los, incluindo direitos, interesses e escolhas. Desta forma a avaliação se faz dentro dos próprios discursos e produções feitas.
A possibilidade da construção de um projeto de vida, próprio, é um dos aspectos mais importantes a serem computados. Sendo assim, o fato foi disparado a partir de planejamentos feitos, em grupo, para então refletir, através de discussões contextualizadas sobre estes na vida cotidiana e na possibilidade de realização.
Com isso conseguimos estimular a autonomia e o autoconhecimento de cada um deles em busca do seu próprio objetivo, reconhecendo limites e potencialidades e construindo possibilidades.
A autonomia foi outra competência que marcou alguns momentos deste processo. Essa autonomia pode ser vista, também no grupo, uma vez que os adolescentes buscaram e discutiram suas necessidades não só para benefício próprio, mas também em favor do próprio coletivo, como na produção de combinados de convivência, pontapé inicial do grupo, e participação constante na produção dos planejamentos semanais.
Tendo em vista os objetivos específicos do desenvolvimento de competências do adolescente, no que diz respeito as competências cognitivas, adquirir conhecimentos e informações, teve uma efetivação, através de uma maior participação e assiduidade nos eventos da instituição. Por outro lado o interesse por pesquisa foi trabalhado com projetos de promoção e mobilização social e desenvolvimento pessoal (como a significação do futebol extracampo e do esporte na cultura brasileira, por exemplo), baseado em uma necessidade de inclusão de possibilidades de acesso ao conhecimento. Quanto a isso, a avaliação foi positiva e os adolescentes, cada vez mais, buscaram materiais e desenvolveram produtos individuais, como na produção de currículos (quando trabalhado a questão em paralelo ao mercado de trabalho).
Ainda se tratando do aprender a conhecer, despertar a consciência de direitos e deveres foi mais um foco de trabalho, entendendo ser um fator importante para que se reflita no desenvolvimento sócio-educativo e que se avalia, produtivamente, através da busca de encaminhamentos aos serviços públicos, por parte dos participantes. Diante disso, os adolescentes, cotidianamente, procuraram informações sobre saúde (unidades de atendimentos médicos), educação (encaminhamentos escolares) e profissionalização (equipamentos que atendam a Prestação de Serviço a Comunidade). Fato este que começou a aparecer à medida que o educador manteve um vínculo de trabalho interessante com o adolescente, fortalecido pela participação efetiva nas atividades diárias do Futebol Libertário.
Em relação à busca de direitos, especificamente no que diz respeito à inclusão escolar (tema indispensável quanto à parceria educativa), percebeu-se que houve um significativo aumento no quadro de adolescentes matriculados. A grande maioria dos adolescentes (12) inseridos no Futebol Libertário foi matriculada e freqüentou a escola, os demais procuraram as escolas para a realização da matricula.
Consideramos que tais intervenções aliadas a atividades práticas foram parte de um processo gradual de responsabilização e cumprimento efetivo da medida socioeducativa, ainda pontuando esta mudança de comportamento em adolescentes que anteriormente manifestavam muita dificuldade no comparecimento regular da própria atividade.
Quanto às competências sociais, pudemos notar que houve, tendo em vista o estabelecimento de relacionamento interpessoal sadio, um menor índice de discussões (brigas, xingamentos entre outros) entre os adolescentes e um maior índice de ações cooperativas. Em relação ao ato infracional (entendido aqui como fato social), não apresentou o descumprimento da medida socioeducativa.
Em referência às competências produtivas, a metodologia adotada trabalhou a questão da realização e estruturação de um produto final, idéia esta que teve grande participação dos adolescentes, no que diz respeito à organização de campeonatos e busca de atividades mais protagônicas, no contexto do planejamento.
Dentro disso, muitas ações foram realizadas através desta dinâmica de atendimento e produção. Neste processo, os adolescentes elaboraram e participaram de eventos na comunidade, no CEDECA Interlagos e em outras instituições. Discutiram e se sensibilizaram, em dado momento, sobre o empoderamento e a busca dos seus direitos, previstos no ECA, como a busca de locais na comunidade para prática esportiva entre outros.
Quanto à questão familiar, numa perspectiva quantitativa de atendimentos e visitas familiares, assim como nos relatos de telefonema e na busca de um dado avaliativo mais amplo dos aspectos sociais (aprender a conviver), principalmente quanto ao fortalecimento dos vínculos familiares, constatou-se que há um compromisso maior por parte dos parentes em acompanhar o adolescente. Fato este anunciado pelo aumento do número de atendimentos com o objetivo de esclarecimentos tanto da questão jurídica da medida socioeducativa quanto com relação ao empoderamento de seus direitos e deveres, incluindo, principalmente questões relativas à família, a escola e saúde.
Houve ainda uma busca pela avaliação de demandas específicas do núcleo familiar de cada adolescente, assuntos abordados nos próprios atendimentos e com a possibilidade de encaminhamento tanto para o Grupo de Apoio a Família, que tem o objetivo focado na questão da promoção social, quanto para o Núcleo de Defesa que trabalha a questão da proteção jurídico-social neste Centro de Defesa. Apesar dos dados e avaliações, acima descritos, entende-se que há ainda uma certa dificuldade diante da responsabilização e do comprometimento dos familiares de todos os adolescentes. Dessa forma, pensando neste quadro apresentado, na participação observada e na importância do trabalho específico (buscando um olhar amplo que inclui educando, família e comunidade) os resultados não apontaram para uma responsabilização e participação efetiva dos familiares incluídos no processo, havendo a necessidade de serem traçados objetivos e elaboradas novas estratégias específicas e focais com relação a esta relação.
Considerações finais
O campeonato não termina aqui com essa partida. A cada dia a experiência relatada se transforma em passado e cada um dos participantes vive sua vida. Mesmo assim é possível perguntar quais os novos jogos que eles estão jogando? O que está acontecendo a cada um? Receberam algum cartão amarelo ou vermelho? Será que vão fazer os seus destinos autonomamente? Essas questões mostram que eles vão viver outras partidas e por isso devem partir.
Os adolescentes participantes desse grupo viveram na “pele” a representação que atribui ao esporte as piores conotações de “quem não tem o que fazer” impregnado dos discursos da sociedade e reproduzido por algumas famílias que acompanham o processo.
O projeto, aqui exposto, aprende - até mais do que é capaz de ensinar - que os adolescentes participantes demonstram que a idéia libertária trabalhada é à ruptura para experimentar uma outra possibilidade de ser para além das limitações, para além das privações. Mostram que nessa lógica libertária “nós podemos ser gente, onde somos pessoas”; onde podem negociar e podem falar das suas experiências. E como essa relevância do contexto social de cada um é considerado é possível afirmar que há uma construção de um saber conjunto, compondo um diálogo aberto com os adolescentes, o que mostra a “razão de ser” do conhecimento. Neste sentido à medida que se lhe apresentam novas jogadas e outras possibilidades acabam-se criando um “rito de passagem” desse adolescente pelo Futebol Libertário, pela Liberdade Assistida ou Prestação de Serviços a Comunidade e pelo próprio CEDECA Interlagos.
O esporte como um instrumento socioeducativo é uma prática utilizada em inúmeros projetos sociais direcionados a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Porém, a intervenção nas medidas socioeducativas com adolescentes inseridos em medidas em meio aberto, apresenta-se como uma iniciativa pioneira e como tal, trouxe um grande desafio, vide as especificidades dos atores envolvidos & adolescentes, educadores, etc.
Uma das descobertas importantes é à possibilidade de aglutinar diversas experiências com o esporte, uma atividade naturalmente atraente, facilitando a adesão dos adolescentes. Aderindo à prática esportiva os adolescentes estão mais próximos dos profissionais envolvidos que encontram muitas vezes as portas abertas para desenvolver outros trabalhos. Vale dizer, também, que essa técnica expressiva é uma experiência socializante já que permite ao adolescente entrar em contato com regras, limites, disciplina.
A produção acadêmica sobre esporte no Brasil tem aumentado, significativamente, na última década. O mesmo crescimento não se verifica na produção quanto ao esporte educacional voltado aos projetos sociais. No entanto, a dimensão cultural do esporte e da atividade física em geral como atividade de auto-expressão, seus benefícios para a saúde e para a formação da personalidade, na sua capacidade de aglutinar pessoas e promover a cooperação, são características largamente reconhecidas que orientam a formulação de planos pedagógicos de muitas escolas e a política de oferta de atividade de lazer de muitas instituições de caráter público e social.
Este trabalho, ao buscar uma fundamentação teórica que nos aproxime do conceito de educação e cidadania no contexto socioeducativo dos movimentos populares, tenta contribuir com a intervenção social mais coerente e conseqüente pelos sujeitos que atuam em tais organizações.
Mesmo diante das muitas limitações encontradas é possível observar que com esse tipo de linguagem, mais próximo do desejo desses jovens, todo o trabalho de acompanhamento é facilitado e eles atribuem um novo sentido ao acompanhamento a que foram submetidos. Na lógica socioeducativa, procuram superar obstáculos no sentido de buscar cada vez mais seu protagonismo, sua autoria para reafirmar o que o ato infracional apontou que é a busca por ser sujeito.
Referências
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Endereço para correspondência
Av. Prof. Mello Moraes, 65 & Butantã
CEP 05508-900 & São Paulo/SP
E-mail: psilvestre@uol.com.br
1 SESC & Interlagos está localizado em um terreno de 500.000 m2, cercado de verde por todos os lados e com uma área construída de 48.837 m2. Suas dependências contam com um conjunto aquático, quadra polidesportiva coberta e oito abertas, campo oficial de futebol e minicampos de grama e areia, quadras de tênis e muitas outras opções de lazer, com infra-estrutura adequada e capacidade de atendimento de 15.000 pessoas/dia.
Sobre os autores
Fábio Silvestre da Silva
Psicólogo; mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo; especialista em Psicologia do Esporte pelo Instituto Sedes Sapientiae; assessor da Secretaria Especial dos Direitos Humanos; sócio do CEDECA Interlagos; professor e supervisor de estágios pelo Sedes Sapientiae; Conselheiro no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP 06/53133-7)
Katia Rubio
Professora Doutora da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo