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Psicologia em Pesquisa

versión On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.9 no.1 Juiz de Fora jun. 2015

https://doi.org/10.5327/Z1982-1247201500010010 

ARTIGOS

DOI: 10.5327/Z1982-1247201500010010

 

Interfaces entre teoria da mente, linguagem e faz de conta

 

Interfaces between theory of mind, language and make-believe

 

 

Flávia Fraga Silveira; Marisa Cosenza Rodrigues

Universidade Federal de Juiz de Fora (Juiz de Fora), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Gradualmente, as crianças tornam-se capazes de compreenderem os estados mentais próprios e alheios e de expressá-los por meio da linguagem. Neste domínio sociocognitivo, a brincadeira de faz de conta é uma atividade que pode favorecer a atribuição dos estados mentais na infância. O presente artigo pretende discutir algumas interfaces entre teoria da mente, linguagem e faz de conta. A importância da brincadeira de faz de conta e das conversações como recursos para promover o desenvolvimento sociocognitivo é destacada, pois ambas fomentam a atribuição dos estados mentais. Família e escola são apresentadas como contextos de desenvolvimento potenciais para tal estimulação, uma vez que constituem instâncias favorecedoras de conversações, leituras interativas e brincadeiras.

Palavras-chave: filosofia da mente; linguagem; brincar de faz-de-conta.


ABSTRACT

Gradually, children become able to understand their own and others' mental states and express them through language. In this socio-cognitive domain, playing at make-believe is an activity that may favor the attribution of mental states in childhood. This article discusses the interfaces among theory of mind, language and make-believe. The importance of playing at make-believe and of conversations as resources to promote socio-cognitive development is highlighted, because both encourage the attribution of mental states. Family and school are presented as potential development contexts for this stimulation, since they constitute favorable instances of conversations, interactive readings and games.

Keywords: philosophy of mind; language; pretend play.


 

 

A área da teoria da mente envolve investigações sobre a capacidade da criança de atribuir estados mentais a si e aos outros, ou seja, compreender emoções, intenções, pensamentos e crenças. Como salientam Maluf, Gallo-Penna & Santos (2011), a aquisição desta capacidade emerge nos primeiros anos de vida, sendo fundamental para o desenvolvimento social e da aprendizagem escolar.

De acordo com Roazzi & Santana (1999), na cultura ocidental, as crianças entre os dois e os seis anos de idade começam a apresentar uma compreensão de como a mente funciona, demonstrando um entendimento acerca da percepção, da ação e da linguagem. Vale destacar que neste período elas distinguem entre o mundo externo e as suas representações, tornam-se capazes de separar as representações dos objetos que as originam e de compreenderem que as pessoas podem ter crenças distintas da realidade (crença falsa).

Uma consequência da capacidade de representação mental de objetos e eventos é a habilidade de fazer de conta. Tal habilidade emerge, segundo Leslie (1987), por volta dos dois anos sendo composta por dois níveis:

1. representação primária do mundo que consiste em ver o mundo diretamente e representá-lo da forma que o vê e

2. representação secundária, ou seja, representações de representações ou metarrepresentações que consiste em substituir um objeto por outro objeto. A emergência do faz de conta seria, pois, uma manifestação primária de habilidades metarrepresentacionais.

Segundo Fiaes & Bichara (2009), os teóricos que adotam a perspectiva evolucionista acreditam que o brincar possui uma função adaptativa e representa um meio importante para treinar, na ausência de grandes perigos, as atividades que serão necessárias para a fase adulta. Além disso, como observam Feldman & Souza (2011), quando o faz de conta é realizado em situações coletivas, possibilita o desenvolvimento afetivo (elaboração de sentimentos e conflitos interiores), cognitivo (construção do conhecimento do mundo que o rodeia, desenvolve a linguagem) e social (desenvolvimento da cooperação entre iguais e resolução de conflitos).

Vale destacar, conforme Alves, Dias & Sobral (2007), que a brincadeira de faz de conta quando realizada com parceiros, surge diante da necessidade de compartilhar a realidade que está sendo construída no jogo imaginário. Assim, para esses autores, as crianças acabam fazendo uso da linguagem para alcançar seus fins, tendo mais de um domínio sobre o código comunicativo: elas negociam procedimentos e significados, aprendendo desse modo, o caminho da cultura bem como o da linguagem; estabelecem com seus parceiros um setting de faz de conta e uma estrutura interativa que dão suporte a entrada do sujeito na coletividade. Como destacam Rodrigues, Henriques & Patrício (2009), é por meio da linguagem que a criança aprende a expressar seus sentimentos, explicar suas reações e compreender as dos outros, conhecer diferentes pontos de vista sobre um mesmo evento e incorporar valores e normas sociais.

A área da teoria da mente ainda é bastante recente e, por encontrar-se ainda em fase emergente de investigação, apresenta muitas questões polêmicas. Tal realidade é mais deficitária no contexto nacional, pois há escassez de estudos e investigações. Diante disso, o presente artigo discute a relação entre o desenvolvimento da teoria da mente, linguagem e a brincadeira de faz de conta, uma vez que o exercício desta atividade e das conversações estabelecidas pelas crianças tendem a promover a compreensão dos estados mentais próprios e alheios.

 

Teoria da Mente e Linguagem

De acordo com Lyra, Roazzi & Garvey (2008), por volta dos dois ou três anos, a criança torna-se capaz de utilizar termos mentalísticos para expressar os fenômenos mentais referentes aos desejos e sentimentos. Posteriormente, aos quatro anos esses termos tornam-se mais sofisticados, referindo-se aos estados mentais de crenças, desejos, intenções e emoções. Para os referidos autores, desde tenra idade as crianças desenvolvem a habilidade de compreender a mente humana, denominada teoria da mente, que é fundamental para a interação e inserção adaptativa no mundo social.

A relação entre teoria da mente e linguagem é complexa, como destaca Souza (2008), não há um consenso sobre os aspectos da linguagem (semânticos, pragmáticos ou sintáticos) que contribuem para o desenvolvimento da teoria da mente. A referida autora apresenta quatro pressupostos que poderiam estar envolvidos nessa relação. O primeiro consiste em que o vocabulário mental serviria como acesso à teoria da mente, revelando que as crianças entre dois e três anos produzem termos mentais, sendo que uma compreensão mais sofisticada emerge aos 4 anos quando elas obtêm êxito em tarefas de crença falsa1.

O segundo pressuposto apresentado por Souza (2008) defende a hipótese de que a teoria da mente depende da linguagem, pois, para a criança ter êxito nas tarefas de crença falsa é necessário que ela domine a sintaxe de complementação. Essa sintaxe permite que a criança seja capaz de atribuir diferentes pontos de vista por meio de verbos de crença (como por exemplo: achar, pensar). Nessa perspectiva, segundo Deleau, Maluf & Panciera (2008), a exposição à conversações e acontecimentos que abordem situações de mentiras, enganos ou erros exerce papel importante para que as crianças tornem-se capazes de dominar os formatos de representação das crenças falsas. O terceiro pressuposto fundamenta-se na ideia de que a participação das crianças em conversas acerca dos próprios estados mentais e alheios pode favorecer o desenvolvimento da teoria da mente (Souza, 2008). Dessa forma, Deleau, Maluf & Panciera (2008), destacam que as conversações cotidianas estão frequentemente relacionadas com os estados mentais e/ou na relação desses com a conduta. Para esses autores, essas conversações funcionam como um meio no qual a criança apreende a linguagem referente aos estados mentais e, ao esforçar-se para participar dessas conversações, ela compartilha e revê as suas crenças, sofisticando assim sua comunicação linguística e a sua teoria da mente.

Tendo em vista a importância das conversações cotidianas, observa-se que o ambiente social das crianças, tal como a relação diária delas com seus pais, irmãos, professores e amigos, influencia no desenvolvimento da teoria da mente e da linguagem. Desse modo, Lyra, Roazzi & Garvey (2008) destacam que o tamanho da família exerce influência no êxito nas tarefas de crença falsa, uma vez que a presença de irmãos possibilita a compreensão das crianças sobre os estados mentais próprios e alheios durante a relação fraterna e sobretudo na brincadeira de faz de conta.

A aquisição da teoria da mente estaria intimamente relacionada com a qualidade da relação da criança com os membros da sua família como demonstram Dunn & Brown (1994) ao listarem cinco formas de influência familiar que podem beneficiar a compreensão infantil dos estados mentais:

1. diálogo sobre estados internos e causalidade;

2. reflexão sobre problemas morais;

3. atenção partilhada;

4. engajamento em brincadeira conjunta;

5. resolução de conflitos.

Nessa direção, Rodrigues e Pires (2010) destacam que o ambiente familiar apresenta vários aspectos que podem influenciar o desenvolvimento da teoria da mente, como a composição familiar, estilos parentais e leitura interativa de livros onde se fomenta conversações reflexivas sobre os estados mentais dos personagens. Desse modo, as autoras defendem que a linguagem voltada aos estados mentais seja incorporada no contexto relacional familiar na medida em que podem favorecer o desenvolvimento sociocognitivo infantil. Destaca-se também o papel do contexto escolar para o desenvolvimento sociocognitivo na medida em que pode beneficiar, de forma análoga, a linguagem referente aos estados mentais. Nesse sentido, as autoras enfatizam que os docentes devem explorar de forma intencional a utilização de livros de histórias por constituírem fonte rica e valiosa de termos e expressões mentais como evidencia a literatura (Dyer, Shatz & Wellman, 2000; Rodrigues & Rubac, 2008; Jordan & Mella, 2009; Rodrigues & Tavares, 2009; Ribeiro, 2012). Destaca-se que para ocorrer esta estimulação intencional dos termos voltados para os estados mentais durante a leitura, é imprescindível a atuação do professor como mediador durante a atividade compartilhada. Logo, os docentes devem ser capacitados de modo que selecionem adequadamente os livros, identifiquem e categorizem os termos mentais para assim, explorá-los durante a leitura interativa com os alunos. Neste sentido Rodrigues & Tavares (2009) apresentam um plano de capacitação para as professoras de educação infantil o qual propõe o redimensionamento da atividade de contar histórias nesta perspectiva sociocognitiva.

O quarto pressuposto apresentado por Souza (2008) assume que há uma bidirecionalidade na relação entre teoria da mente e linguagem. Neste caso, a linguagem estaria beneficiando o desenvolvimento da teoria da mente, do mesmo modo que a teoria da mente estaria influenciando e favorecendo o desenvolvimento da linguagem. Segundo Panciera, Valério, Maluf & Deleau (2008), a teoria da mente e a linguagem estariam implicadas na constituição uma da outra, uma vez que, segundo Romero, Velandia & Pacheco (2011), o desenvolvimento de ambas ocorre simultaneamente entre os três e cinco anos.

No Brasil, a relação entre teoria da mente e linguagem também vem sendo investigada. Carvalho, Mecca & Lichting (2008) estudaram 100 crianças de sete e oito anos, de ambos os sexos, de uma escola pública visando investigar os aspectos metarrepresentacionais bem como as relações entre linguagem e teoria da mente. As crianças foram divididas em quatro grupos: dois grupos sem alterações comunicativas (sete e oito anos) e dois grupos com atraso fonológico (sete e oito anos). As autoras concluíram que, por volta dos sete anos, a maioria das crianças adquiriu a teoria da mente. Verificou-se que a interação e a utilização de elementos abstratos durante a conversação podem influenciar o desempenho infantil nas tarefas de crença falsa que, para as autoras, são eficientes para investigar a teoria da mente. Obervaram ainda que as crianças sem alterações comunicativas apresentaram um melhor desempenho nas tarefas de teoria da mente, do que as com atraso fonológico. As pesquisadoras sugerem que o domínio da linguagem contribuiu para o bom desempenho das crianças sem alterações comunicativas, indicando que há uma clara interrelação entre teoria da mente e linguagem.

Tendo em vista a relação entre a teoria da mente e a linguagem, pode-se observar, segundo Souza (2006), que, ao investigar a linguagem referente aos estados mentais, seriam encontrados dados importantes a respeito da aquisição da teoria da mente. Dessa forma, Maluf, Gallo-Penna & Santos (2011) pesquisaram as relações entre compreensão conversacional e a atribuição de estados mentais de 28 crianças entre quatro e seis anos, de baixo nível socioeconômico, subdivididas em dois grupos de idade com uma diferença de 12 meses entre elas. As crianças foram avaliadas individualmente quanto à compreensão conversacional e posteriormente quanto à teoria da mente. As pesquisadoras encontraram uma correlação positiva entre as variáveis estudadas, reforçando a crença de que há uma relação de dependência entre linguagem e teoria da mente. Verificaram um efeito da idade a favor das crianças mais velhas quanto à compreensão conversacional e quanto à teoria da mente sustentando assim, a hipótese de que o entendimento que as crianças possuem sobre as conversações e os estados mentais desenvolvemse gradualmente com a idade. As autoras conferem importância às oportunidades de acesso às conversações durante os primeiros anos de vida para que a criança compartilhe suas crenças, pensamentos e aprenda a considerar as diferentes perspectivas dos seus interlocutores.

No âmbito internacional, Grazzani & Ornaghi (2012) investigaram a relação entre a linguagem mentalista e a teoria da mente em 110 crianças italianas, de ambos os sexos oriundas predominantemente da classe média as quais foram divididas em dois grupos etários (8 e 10 anos). As crianças foram avaliadas quanto à capacidade verbal, ao uso de termos mentais, à compreensão da linguagem metacognitiva, compreensão de crença falsa de segunda ordem e compreensão da emoção. Verificou-se um efeito da idade a favor das crianças mais velhas, assumindo a hipótese similar de que o domínio da linguagem mentalista e da teoria da mente desenvolvem-se com a idade. Os resultados indicaram uma correlação significativa entre a utilização de termos mentais e o desempenho nas tarefas de teoria da mente. Neste sentido, para os referidos pesquisadores, na medida em que a criança desenvolve a sua competência sintática (compreensão de palavras, frases e sentenças), ela desenvolve a capacidade para descrever estados internos de percepção, volição, emoção, juízo moral e cognição, aprimorando assim, a sua teoria da mente.

Markel, Major & Pelletier (2013) estudaram a relação entre o contexto familiar, o vocabulário e a habilidade de leitura para o desenvolvimento da teoria da mente e a compreensão de histórias. Participaram 170 crianças de oito escolas canadenses entre três e cinco anos, divididas em dois grupos: falantes do inglês como primeira língua e falantes do inglês como segunda língua. Os resultados indicaram que o estilo parental das crianças falantes do inglês como primeira língua influenciou no vocabulário e na habilidade de leitura. Constatou-se que a presença de irmãos influenciou no vocabulário infantil e que o vocabulário das crianças correlacionou-se com um bom desempenho nas tarefas de crença falsa e da compreensão de histórias. Esses resultados permitem indicar que o vocabulário infantil é influenciado pelo contexto familiar, logo, se o vocabulário for estimulado por meio de conversações e leituras, a criança pode apresentar um aprimoramento no que tange ao desenvolvimento sociocognitivo.

Diante do exposto, destaca-se a íntima relação entre o desenvolvimento da teoria da mente e a linguagem. Além disso, ressalta-se que ambas sofrem influência da idade, do contexto familiar e escolar. Torna-se relevante que conversações ricas em estados mentais e práticas de leitura interativa sejam estimuladas nesses dois contextos sociais da criança. Vale salientar que em ambos os contextos, a brincadeira de faz de conta realizada com parceiros deve ser estimulada, pois como destacam Lyra, Roazzi & Garvey (2008), tal atividade pode beneficiar a compreensão infantil dos próprios estados mentais e dos outros em seu entorno social.

 

Teoria da Mente e Brincadeira de Faz de Conta

A brincadeira do faz de conta, para Lillard, Pinkham & Smith (2011), é uma atividade inata de suma importância, realizada entre os dois e seis anos, que se desenvolve gradualmente. Conforme Sperb & Carraro (2008), por volta dos quatro anos de idade, o fazer de conta começa a ser realizado com parceiros podendo, tal atividade socializada, estimular a compreensão dos estados mentais.

Dessa forma, na visão de Lillard, Pinkham & Smith (2011), a linguagem funcionaria como um andaime durante esse processo possibilitando e viabilizando o desenvolvimento sociocognitivo infantil. Pinto (2011) salienta que o uso da linguagem em situações lúdicas favorece a teoria da mente da criança, pois é essencial para as suas relações sociais. Para Alves, Dias & Sobral (2007), é fundamental o uso da linguagem em situações lúdicas no contexto escolar, pois a brincadeira de faz de conta possibilita que a criança desenvolva o pensamento abstrato a partir de construções imaginárias, estimula as interações sociais e o compartilhamento de signos, favorecendo assim o desenvolvimento da teoria da mente.

Durante a brincadeira de faz de conta, a criança compreende que ela e o outro são capazes de representar objetos reais, fingir que é outra pessoa, assumir a perspectiva do outro, experimentar papéis e atribuir estados mentais (Sperb & Carraro, 2008). Para isso, faz-se necessária a compreensão dos estados mentais que, quando relacionada à teoria da mente, constitui uma metarrepresentação. Para Souza (2009), a metarrepresentação refere-se à capacidade da criança perceber que há diferentes interpretações para os mesmos objetos, imagens ou acontecimentos e que as pessoas podem ter distintas representações de uma mesma situação, sendo essa compreensão fundamental para a aquisição da teoria da mente. Para Lillard (1993), o ato de fazer de conta requer três habilidades que relacionam- se com a teoria da mente:

1. aplicar múltiplas representações em um simples objeto;

2. considerar que uma coisa representa outra;

3. representar o estado mental de outra pessoa.

Segundo Sperb e Carraro (2008), o início da compreensão dos estados mentais próprios e alheios pode ser observado quando a criança passa a utilizar termos mentais na sua fala cotidiana. As referidas autoras salientam que o uso desses termos e a brincadeira de faz de conta dependem de uma representação interna que possibilita a compreensão da teoria da mente, presente a partir dos quatro anos. Segundo as citadas autoras, a atribuição de termos mentais estaria relacionada ao sistema metarrepresentacional e à linguagem. Nesta perspectiva, as crianças ao diferenciarem o mundo real do faz de conta, tornam-se capazes de dar vários significados a um objeto, pessoa ou situação e de compreender que o ser humano apresenta um conjunto de representações mentais da realidade que orientam a sua mediação com o mundo a sua volta.

Segundo Pinto (2011), para a criança interagir com o mundo precisa compreender os diversos significados que envolvem as pessoas e os objetos (símbolos), pois para fazer de conta, é necessário partir desses significados construídos socialmente, mais especificamente, tal atividade é influenciada pela cultura que integra o individuo dentro de um grupo social. Nesse sentido, para Alves, Dias & Sobral (2007), a teoria da mente é necessária para a inserção da criança em um mundo de símbolos, signos e significados compartilhados socialmente, pois o seu desenvolvimento favorece as habilidades sociais como empatia, negociação, cooperação, dentre outros. Os autores salientam que a brincadeira de faz de conta viabiliza o aprendizado da teoria da mente infantil. Portanto, a relação entre esses dois constructos estaria no compartilhamento de símbolos e signos culturais na medida em que tal compartilhamento possibilitaria o processo de constituição da criança como sujeito e membro de um grupo social.

No Brasil, alguns estudos vêm se dedicando a investigar a relação entre teoria da mente e faz de conta. Carraro (2003), por exemplo, ao considerar o faz de conta como uma atividade que indica a presença da teoria da mente observou sete crianças de seis anos oriundas da classe média. Objetivou-se examinar o status metarrepresentacional do faz de conta, relacionando-o com o nível representativo nas tarefas de crença falsa e aparência-realidade e com o uso de termos mentais durante a brincadeira de faz de conta compartilhada. Todas as crianças apresentaram um bom desempenho nas tarefas sugerindo a presença de uma teoria da mente. Quanto à análise dos termos mentais durante a brincadeira, verificou-se uma maior frequência de termos perceptivos (aqueles que fazem referência aos cinco sentidos, por exemplo, olhar), devido à necessidade das crianças chamarem a atenção do outro durante a brincadeira. Também foi observada uma frequência significativa do uso de termos cognitivos como, por exemplo, "pensar" e "ideia", essas expressões fazem alusão à memória, ao conhecimento e ao sonho, por isso, para a autora, o seu uso indica a capacidade metarrepresentativa das crianças, o que sugere indícios da presença da teoria da mente.

Alves, Dias & Sobral (2007) estudaram a relação entre teoria da mente e a brincadeira de faz de conta a partir da observação da interação entre uma criança de três anos e nove meses e a sua mãe. Os autores investigaram a contribuição que a interação da criança com o adulto durante o jogo imaginário traz para a construção de uma compreensão implícita da mente e de operações do pensamento. Para tanto, observaram mãe e filho durante o faz de conta que se iniciou a partir de um desenho da criança. Os resultados indicaram que a mãe forneceu significados ao desenho feito pelo seu filho, possibilitando a criação de uma história de faz de conta. Além disso, observou-se que a mãe procurava envolver a criança na brincadeira por meio de perguntas constantes sobre as atitudes dos personagens, possibilitando negociações referentes às ações acerca dos personagens da história criada. Portanto, para as autoras, a brincadeira de faz de conta é importante para o desenvolvimento da teoria da mente, pois essa atividade possibilita:

• Situar a ação a partir do pensamento simbólico que está baseado em regras que fundamentam a entrada no jogo;

• Negociar, ou seja, ajustar uma ação, gerando significados, mudança de regras e papéis; e,

• Flexibilizar, interpretar e abstrair o pensamento a partir das trocas linguísticas que favorecem a mudança de perspectiva, o compartilhamento de significados e da ação com o outro que interage com ela.

No âmbito internacional, Keskin (2005) estudou a relação entre teoria da mente, faz de conta e a competência social em 47 crianças estadunidenses de 4 anos, provenientes de escolas particulares objetivando examinar o efeito do faz de conta e a relação com parceiros. Foram aplicadas quatro tarefas de teoria da mente e uma escala para examinar a competência social infantil. Não foi observada uma relação entre teoria da mente e competência social, como também entre brincadeira de faz de conta e competência social. Contudo, o autor constatou que as crianças que apresentaram um baixo escore nas tarefas de teoria da mente atribuíram mais termos mentais no decorrer do faz de conta quando estavam acompanhadas de parceiros que obtiveram um maior escore nas tarefas de teoria da mente. Dessa forma, o estudo evidenciou uma correlação entre teoria da mente e faz de conta, uma vez que a interação com o parceiro hábil em teoria da mente foi determinante para a melhora de desempenho no faz de conta.

Stich (2010) investigou a relação entre teoria da mente e faz de conta em 22 crianças de quatro a seis anos com déficit linguístico e em 22 crianças da mesma faixa etária com desenvolvimento típico. Verificou-se que as crianças com tal déficit apresentaram um baixo desempenho nas tarefas de teoria da mente e utilizaram termos mentais menos sofisticados no decorrer do faz de conta. Já as crianças com desenvolvimento típico apresentaram um desempenho superior nas tarefas de teoria da mente e utilizaram termos mentais mais sofisticados durante esta atividade lúdica, permitindo à autora concluir que a teoria da mente está associada positivamente ao faz de conta nas crianças com desenvolvimento típico. O estudo em questão, além de demonstrar a relação entre teoria da mente e faz de conta, assinala uma relação entre a linguagem e o faz de conta que emergem por volta dos dois anos. Além disso, para a autora em questão, esses dois constructos compartilham a habilidade de representação simbólica, sendo que o desenvolvimento da linguagem possibilita o faz de conta de modo compartilhado a partir dos quatro anos, etapa onde se faz necessária a capacidade para negociar e estabelecer regras.

Meins, Fernyhough, Arnott, Leekam & Rosnay (2013) investigaram a relação entre conversações sobre estados mentais entre 206 mães e seus filhos em dois aspectos:

1. quanto ao uso de vocabulário mental no decorrer do faz de conta aos dois anos de idade;

2. quanto ao desempenho em teoria da mente aos quatro anos de idade. O estudo longitudinal envolveu três fases: quando as crianças tinham oito meses no início da pesquisa, posteriormente dois anos e no final quatro anos. Durante a primeira etapa avaliou-se a utilização de termos mentais maternos mediante observação da mãe e do seu filho em uma brincadeira livre; na segunda foram aplicadas duas tarefas dirigidas a investigar o desempenho do faz de conta das crianças, além disso, as mães reportaram a aquisição de termos mentais de seus filhos preenchendo um inventário; já na terceira aplicou-se uma escala que examina a aquisição infantil da teoria da mente. Os resultados indicaram que a atribuição de termos mentais pelas mães durante a primeira fase do estudo associou-se diretamente ao desempenho posterior das crianças em teoria da mente e que a ausência do emprego de termos mentais pelas mães durante a primeira fase do estudo associou-se negativamente ao uso de termos mentais pelas crianças durante o faz de conta na segunda fase. O estudo em questão evidenciou, portanto, uma correlação entre o desempenho do faz de conta, o uso de termos mentais maternos e o desempenho da teoria da mente.

A partir do que foi exposto, verifica-se que a linguagem, o desenvolvimento da teoria da mente e o faz de conta tendem a se desenvolverem de forma simultânea na trajetória evolutiva da criança. O salto qualitativo, para Stich (2010), ocorre por volta dos quatro anos, momento em que a criança passa a ter habilidades linguísticas mais complexas, expressando de maneira mais recorrente, os seus pensamentos por meio dos termos mentais. Portanto, pode-se conceber a brincadeira de faz de conta como uma atividade que promove o desenvolvimento sociocognitivo infantil, pois, além de permitir que a criança vivencie o lúdico, desenvolva seu potencial criativo e desenvolva a sua linguagem, essa atividade atua como favorecedora da compreensão dos estados mentais próprios e alheios.

 

Considerações Finais

Torna-se pertinente considerar que a investigação da relação entre teoria da mente, linguagem e brincadeira de faz de conta, apresenta-se como um tema complexo e de grande relevância. Diante do que foi apresentado, destaca-se que esses três aspectos que permeiam a infância mantém estreita interface, apresentando-se como fenômenos coemergentes que se desenvolvem gradualmente durante os anos pré-escolares.

Ao mesmo tempo, entende-se que essas habilidades representam uma aquisição sociocognitiva, pois envolve a criança em processo de desenvolvimento inserida em um contexto social permeado por relações sociais e afetivas que podem favorecer a inserção da criança na sociedade. Logo, a consideração da dimensão social é fundamental para as investigações voltadas para a aquisição da teoria da mente, linguagem e faz de conta, uma vez que tanto no contexto familiar quanto no escolar a criança pode aprimorar essas habilidades por meio de conversações, leituras e brincadeiras. O presente trabalho não tem a pretensão de esgotar o assunto, neste sentido, destaca-se, a relevância da realização de estudos que explorem as conversações e abordem a brincadeira de faz de conta como um recurso coadjuvante no desenvolvimento da teoria da mente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Flávia Fraga Silveira
Universidade Federal de Juiz de Fora,
Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Psicologia.
Rua José Lourenço Kelmer, s/n.,
Campus Universitário, São Pedro
CEP: 36036-330 – Juiz de Fora/ MG
E-mail: flaviafraga89@gmail.com

Recebido em 11/08/2014
Revisto em 25/03/2015
Aceito em 31/03/2015

 

 

1 As tarefas de crença falsa verificam se a criança é capaz de se colocar no lugar do outro e inferir o que ele está pensando sobre determinada situação, mesmo quando a crença dessa pessoa é diferente do que ela sabe ser verdadeiro (Domingues & Maluf, 2008).

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