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Psicologia em Pesquisa
versión On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.11 no.1 Juiz de Fora jun. 2017
https://doi.org/10.24879/2017001100100215
ARTIGO ORIGINAL
10.24879/2017001100100215
Do descaso a um novo olhar: a construção da Política Nacional de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas como conquista da Reforma Psiquiátrica Brasileira. O caso de Recife (PE)
From neglection to the actual: the National Drug Users Policy as achievement of the Brazilian Psychiatric Reform. The case of Recife (PE)
Rossana Carla Rameh-de-AlbuquerqueI; Wagner Lins LiraII; André Monteiro CostaIII; Solange Aparecida NappoIV
IPsicóloga; Doutoranda em Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); Membro do Grupo de Estudos em Álcool e Outras Drogas da Universidade Federal de Pernambuco (GEAD/UFPE).
IIAntropólogo, Doutor Antropologia pela UFPE, membro do Grupo de Estudos em Álcool e Outras Drogas da Universidade Federal de Pernambuco (GEAD/UFPE) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP).
IIISanitarista, Prof Dr do Núcleo de Saúde Coletiva do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/ Fundação Oswaldo Cruz (NESC/CPqAM/FIOCRUZ).
IVFarmacêutica, Prof Drª do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (CEBRID)
RESUMO
O presente artigo retoma aspectos relevantes do movimento denominado “Reforma Psiquiátrica Brasileira” (RPB), no sentido de imbricar esse histórico - em seus aspectos políticos e sociais - com a construção da “Redução de Danos” (RD) como estratégia norteadora da “Política Nacional de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas” (PNAD) no Brasil. Desta feita, nossa intenção é a de apresentar parte das experiências vividas na cidade do Recife e no Estado de Pernambuco, justamente, devido à presença de serviços pontuais, tais quais: o “Programa Mais Vida” e o “Programa Atitude”; experiências ímpares e exitosas no deslocamento de um novo olhar possível para o cuidado às pessoas com problemas decorrentes do uso/abuso de substâncias psicoativas (SPA). Ademais, alentamos para a necessidade do entrecruzamento entre os serviços voltados para o cuidado dessas pessoas, apresentando, ao mesmo tempo, como se encontra constituída, na atualidade, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de Recife (PE), com o recorte específico para álcool e outras drogas, buscando problematizar a efetividade da mesma no contexto da RPB.
Palavras chave: Reforma Psiquiátrica, Drogas, Redução de Danos, Políticas sobre Drogas, Redes de Atenção.
ABSTRACT
This article reviews some important aspects of the “Brazilian Psychiatric Reform” (RPB) in order to intertwine its history – considering its political and social aspects – with the construction of Harm Reduction strategy in the “National Policy for the Comprehensive Care of Users of Alcohol and other Drugs”, in Brazil. Our intention is to present some of the experiences occurred in the state of Pernambuco and its capital Recife, such as the occasional services as “Programa Mais Vida” and the “Programa Atitude”, unique and successful local experiences in shift the care of people with drug problems. In addition, we sustain the need for services cross-linking in the care of this public, presented here as the “Health Care Network for Users of Alcohol and other Drugs” aiming problematize its effectiveness in the context of RPB.
Keywords: Psychiatric Reform, Drugs, Harm Reduction, Drug Policy, Health and Care Networks.
Breves apontamentos históricos. “A loucura nossa de cada dia”
Verificamos que em diversos momentos históricos, por entre algumas culturas e sociedades, certos atores sociais – “desviantes” por destoarem de normas e padrões de comportamento, culturalmente estabelecidos - foram assim considerados pelos prismas da “loucura”, do “alcoolismo”, da “heresia” e da “drogadição”. Tais sujeitos, tangencialmente no Ocidente, foram, por muito tempo, enclausurados em “instituições totais” (Goffman, 1974), sendo segregados do “processo civilizador” (Foucault, 1977; 1978; Elias, 1994a; 1994b; Amarante, 1995). Também no Brasil, essa foi uma realidade imposta pela “nova ordem social”, que legitimou as “instituições carcerárias e asilares” como epicentros do sistema de “tratamento em saúde mental”, desde meados do século XIX para o início do XX (Birman, 1992).
A verdade é que, tanto na Europa, quanto no Brasil, os “manicômios” foram erigidos muito antes do surgimento de terapias e prescrições psiquiátricas, de modo que os sujeitos acometidos pelos “males da loucura” não obtinham nenhum tipo de “assistência médica”. Quando muito - no Brasil - tais atores eram assistidos por atenções básicas pontuais fornecidas pelos “Hospitais Gerais” estabelecidos pela “Santa Casa de Misericórdia” (Vasconcelos, 2008).
Foi a partir de 1830, que “médicos higienistas” em terras brasilis solicitaram ao Império Colonial Português o estabelecimento de um “hospício” voltado ao internamento das pessoas consideradas “alienadas”. Em 1841 foi fundado o primeiro hospital psiquiátrico brasileiro - no Rio de Janeiro - chamado “Hospício D. Pedro II” (Vasconcelos, 2008). Com o passar dos tempos, tal instituição foi rebatizada, recebendo um novo nome: “Hospital Nacional dos Alienados”. Com a instauração da República, o fenômeno da “loucura no Brasil” passou a ser tutelado pelo Estado, posto que, os ditos “alienados” eram tidos como “incapazes”, “degenerados” e “perigosos” aos ideais de “ordem e progresso”, que permeavam a construção de uma ilusória e homogênea “identidade nacional” (Schwarcz, 1993; Ortiz, 1994).
Na década de 1930, foram criadas e efetivadas determinadas leis – inspiradas em pressupostos racistas e eugênicos - numa época em que se buscava a purificação da “raça” e da “identidade” brasileiras (Schwarcz, 1993; Ortiz, 1994). Neste cenário, a “doença mental” passou a ser considerada uma “degenerescência moral” (Carneiro, 2002). Usuários de álcool e outras drogas, por sua vez, também eram enquadrados e submetidos a estas mesmas categorias e ordens sociais. Com o advento da Segunda Guerra Mundial - e seu cenário assolado pelo poderio nazista e contínuas ameaças à seguridade humana - as difíceis relações político-econômicas e sociais fizeram com que a humanidade refletisse criticamente sobre determinados atos, fazendo mudar posicionamentos e visões de mundo, incluindo o olhar para a necessidade da assistência psiquiátrica, historicamente negada aos “mentalmente desvalidos” (Delgado, 2005).
No Brasil, surgiram espaços erguidos mediante trocas de experiências e tentativas de mudança na assistência dada aos “infortunados mentais”. A título de exemplo, no Estado de Pernambuco - em 1931 - os psiquiatras e os psicólogos realizavam “reformas” no âmbito da “Assistência aos Psicopatas de Pernambuco”, pondo em prática fortes contribuições para o que futuramente veio a ser cognominado o “campo da psiquiatria nacional” (Medeiros, 2001). Foi em decorrência desta mudança de antigas práticas terapêuticas e interventivas, que o “Hospital dos Alienados da Tamarineira”1 passou a atender os “desafortunados mentais” pelas vias do tratamento, através da internação, embora, inicialmente, a ação terapêutica fosse voltada apenas para os casos mais graves de psicopatologias. Esta renovação nas ações envoltas do cuidado transformou o hospital - com seus calabouços, eletrochoques, aplicações lobotômicas e camisas de força – em locais de tratamentos, para a época, “menos desumanos” (Melo, 1999).
Experiências internacionais, tais como a “Psicoterapia Institucional”, a “Psiquiatria de Setor”, a “Psiquiatria Comunitária ou Preventiva”, a “Antipsiquiatria, emergiram no intuito de se evitar o equivocado e clássico “isolamento social”. No entanto, para o Brasil, a eclosão da “Psiquiatria Democrática Italiana”, sob influência de Franco Basaglia, que propunha a compreensão da loucura, detectando sua impalpável complexidade, foi a maior inspiração para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Basaglia e seus seguidores compreendiam os fenômenos “anormais” da mente como algo inerente a esferas relacionais – subjetivas e intersubjetivas - envolvendo homens, culturas e sociedades.
Sendo assim, a inexorável “complexidade da loucura” inviabilizava seu domínio apenas pela via da psiquiatria. Basaglia propôs um modelo semelhante ao das “Comunidades Terapêuticas”2; com a possível construção de espaços para o convívio da sociedade com a “loucura”. Ao longo do processo de implantação do “Hospital Provincial de Gorizia” detectamos o aflorar dessa nova proposta, onde observamos um aperfeiçoamento no modelo de assistência, sendo a reestruturação de velhos modelos uma urgência necessária, antes de tudo, por seu caráter solidário e humanístico.
Movimentos e transfigurações. Os cuidados para com os “infortúnios da mente”
Paulatinamente as “políticas públicas” voltadas à saúde mental, em quase todo o mundo, voltaram-se ao estímulo e desenvolvimento de serviços, terapias e ações, que protagonizavam e davam “voz ativa” aos atores imersos nas diversas comunidades (Barrio et al., 2004). Entretanto, fez-se essencial o tracejo de soluções criteriosas, diante da busca por uma efetiva política de atenção, que considerasse os anseios das pessoas acometidas por infortúnios psíquicos, e, consequentemente, dos que traziam em seu histórico o uso abusivo de drogas.
Desta feita, o movimento social intitulado “Reforma Psiquiátrica Brasileira” (RPB) teve início frente às comutações organizacionais, políticas, estruturais, econômicas e culturais de um “novo mundo ocidental pós-moderno”. Um substancial afluxo ideológico desencadeado, com mais vigor, em territórios europeus (Rotelli & Amarante, 1992). Nos anos de 1960, tal problemática no Brasil, começou a ser pensada e refletida pelos “militantes da Reforma”, que lutavam e pleiteavam pela concretude de ações íntegras e pontuais, dentre as quais podemos citar a expansão de “serviços intermediários” e o fomento de “comunidades terapêuticas”3, no nítido intento de “humanizar” os espaços profissionais em saúde, incluindo os universos ambulatoriais e hospitalares (Borges & Baptista, 2008).
Em contextos norte-americanos, a “desinstitucionalização”, se deu de forma diferente, sendo reformulada pelos pressupostos da “desospitalização”3. Já no caso italiano, detectamos o processo de Reforma Psiquiátrica emergir sob a égide de outros prismas funcionais; uma vez constatada sua habilidade de ir além da simplória “transformação técnico-assistencial” das instituições. Basaglia (2001) chegou à conclusão de que, na prática, o obsoleto “modelo manicomial” não seria expurgado sem a mobilização dos atores sociais (pacientes, profissionais, familiares e intelectuais) envolvidos e assistidos pelas instituições. Neste sentido, tornou-se urgente a superação de paradigmas excludentes biocêntricos, através da implantação de uma “rede extra-hospitalar”. Basaglia (2001) também evidenciou o conceito de “doença”, pondo-o entre aspas, uma vez que, desta maneira, objetivava evidenciar o papel ativo – e não mais passivo - dos indivíduos acometidos pelos infortúnios da mente (Vasconcelos, 2009).
Rupturas e mobilizações. Como a Reforma chegou ao Brasil
Em território nacional verificamos a influência da “Psiquiatria Democrática Italiana” em contexto histórico peculiar repleno de conflitos inerentes ao período ditatorial militar. Notamos os movimentos sociais e institucionais sendo influenciados pelos princípios ideológicos vigentes em território europeu, gestando ações pontuais, que unidas impulsionaram aquilo que veio a ser conhecido como a RPB4. Neste contexto, acompanhamos a emergência de movimentos sociais nacionais – envolvendo pacientes e profissionais da saúde – mobilizados em torno do questionamento sobre as difíceis e por vezes imprestáveis condições de trabalho e de tratamento, e ainda a privatização da assistência psiquiátrica, demarcando sua admissão no aparelho público (Borges & Baptista, 2008). Não obstante, emergiram denúncias, reivindicações e trocas de experiências perante adoção de outra postura frente ao tratamento da “doença mental” no Brasil (Amarante, 1996).
Por conseguinte, tornaram-se vigentes iniciativas e afluências evidenciando os debates sobre cidadania, inclusão social e validação dos Direitos Humanos por um tratamento mais digno, entre os quais, verificamos a criação do “Centro Brasileiro de Estudos em Saúde” (CEBES), o “Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental” (MTSM), o “Movimento de Renovação Médica” e a “Rede de Alternativas à Psiquiatria” (Amarante, 1995; Delgado, 2005).
Detectamos que já no ano de 1986 as articulações institucionais perpetradas pelo “Movimento Sanitarista Brasileiro” culminaram para realização da “8ª Conferência Nacional de Saúde”, que promoveu, a posteriori, fortuitos desdobramentos hábeis à concretização da “I Conferência Nacional de Saúde Mental”5 (Brasil, 1988a) realizada um ano após; em 19876 (Vasconcelos, 2009). Após o “II Congresso Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental”, buscou-se - através do lema: “Por uma sociedade sem manicômios” - uma maior aproximação ideológica e política com os movimentos sociais, que há tempos pleiteavam e lutavam por uma concreta Reforma Psiquiátrica no Brasil (Vasconcelos, 2009). Podemos afirmar que após a “8ª Conferência Nacional de Saúde” os direitos constitucionais – inscritos na futura constituinte de 1988 (Brasil, 1988b) – já afloravam como necessidades básicas da vida humana; na qual todos os atores, sem exceção, passariam a ter garantias voltadas à universalidade do atendimento, à equidade no tratamento público, à integralidade da pessoa humana e ao “controle social”.
No tocante à RPB, vimos o fortalecimento deste movimento, também influenciado pela “Reforma Sanitária” em curso e por intermédio de iniciativas pontuais, a exemplo da fundação do “1º Núcleo de Atenção Psicossocial”, estabelecido logo após o súbito desfecho, que levou ao encerramento das atividades do “Hospital Privado Casa de Saúde Anchieta” – no Estado de São Paulo – como concreta forma de protesto, em detrimento às condições desumanas, nas quais eram condicionados os internos de tal instituição (Amarante, 1995).
A militante diligência por uma verdadeira desinstitucionalização psiquiátrica no Brasil impôs ao Governo Federal a implementação – em 1991 – de uma gama de “dispositivos sanitários” hábeis à organização e financiamento para novos projetos e serviços na área da Saúde Mental. Ainda no ano de 1989, o então Deputado Federal Paulo Delgado submeteu ao Congresso Nacional um Projeto de Lei, que tramitou durante 12 anos seguidos, até a vigência da “Lei Federal nº 10.216/01”, que impeliu e norteou a RPB, devido ao fato de ter enaltecido e privilegiado serviços, saberes e tecnologias de “base comunitária¨ (Brasil, 2005).
Novos modelos e terapias. Quando a questão AD faz-se emergente
Observamos as políticas públicas voltadas para a Saúde Mental aproximando-se das comunidades e populações locais, ao ponto de assentir a relevância intersubjetiva das experiências e práticas culturalmente fomentadas nos territórios, seja por ações isoladas nas esferas públicas federais, estaduais e municipais, seja por parte de iniciativas privadas, ou até mesmo ações fomentadas por grupos religiosos e demais associações de caráter filantrópico (Rameh-de-Albuquerque, 2008; Lira, 2016).
Dentre os modelos de serviços voltados ao cuidado das pessoas em sofrimento psíquico, e bem mais recentemente, às pessoas com problemas decorrentes do uso/abuso de álcool e outras drogas, destacamos a relevância de alguns que, por ora, podem estar compondo as chamadas Redes de Atenção Psicossociais (RAPS). Importante observar que apesar das RAPS, na atualidade, não distinguirem transtorno mental de transtornos decorrentes de álcool e outras drogas, na prática, os serviços são distintos em função de suas características de atendimento. Deste modo, focaremos nos serviços de álcool e outras drogas (AD), sendo eles: 1. Os Centros de Atenção Psicossociais em álcool e outras drogas (Caps AD); instituições que precisam pautar-se na perspectiva da “Redução de Danos”, de modo que as pessoas que, não desejem ou não possam parar de usar drogas, também tenham seu atendimento garantido com respeito e acolhimento dignos (Brasil, 2005; Oliveira & Santos, 2010); 2. No tocante às “Comunidades Terapêuticas” (CT), em sua episteme, baseiam-se na “democracia das relações”, estipulando o protagonismo dos “pacientes” e seus pares (De Leon, 2003). No entanto, uma breve reflexão é importante quanto aos caminhos tomados pelas denominadas CT no Brasil na atualidade: a questão da espiritualidade. Essa não tem sido assumida pelas CT como uma possibilidade para algumas pessoas no vasto campo de abordagens e concepções de cuidado; ao contrário, impõem que esta seja quase uma obrigatoriedade em seu funcionamento, o que contraria e compromete – a nosso ver - a liberdade de escolha, seja da afiliação religiosa, seja da laicidade do Estado (Rameh-de-Albuquerque et al., 2013); 3. Os “Serviços Hospitalares de Referência para Álcool e outras Drogas” (SHRad) – conhecidos como “Unidades de Desintoxicação” (UD) – atuam nos “Hospitais Gerais”7, objetivando assistir e auxiliar ocorrências de “urgência/emergência”, envolvendo uso/abuso de drogas; 4. O Consultório de Rua que, segundo seu criador, Antônio Nery Filho: “[...] é uma iniciativa de atenção à saúde de pessoas que vivem em situação de rua, expostas ao uso de substâncias psicoativas” (Senad & Cetad, 2011, p.14). Estes passaram a ser chamados Consultórios na Rua8 (CnaR), cujo método de trabalho inspira-se nos antigos Programas de Redução de Danos (PRD) para atuação direta na “Atenção Básica à Saúde”; 5. As Unidades de Acolhimento (UA) surgem como a versão nacional das “Casas do Meio do Caminho”; dispositivos que funcionam como albergues 24 horas, representando espaços exclusivos para o acolhimento e tratamento dos usuários de drogas e que, por vezes, também servem como moradia temporária para os mesmos (Rameh-de-Albuquerque, 2008; Brasil, 2015); e 6. As Supervisões Clínico-institucionais e as Escolas de Redutores de Danos9 são dispositivos pertinentes no campo AD, porém pouco efetivados nos municípios brasileiros.
Destarte a considerável redução do número de leitos psiquiátricos no Brasil10 - ao longo dos anos - ainda são inúmeros os desafios para a verdadeira concretização da RPB. A discussão sobre as políticas de Saúde Mental no Brasil – sejam as mesmas designadas aos portadores de transtornos psíquicos, ou às pessoas que usam/abusam de drogas – também resultaram das hodiernas consecuções trazidas pelo movimento da RPB, mesmo diante dos conflitos frente à aceitação desta tônica (a questão AD) em sua singularidade e complexidade. O fato é que, tanto pelo prisma da “loucura”, quanto pela ótica da “marginalidade”, o fenômeno da “dependência química” passou por reformulações conceituais, em detrimento dos eventos históricos, que marcaram a Reforma no país (Moraes, 2008; Mota, 2008; Rameh-de-Albuquerque, 2008).
A operacionalização de outros modelos terapêuticos no Brasil
Recentemente, o Ministério da Saúde, através da Secretaria de Atenção à Saúde publicou a “Portaria nº 1.482, DOU 27” de outubro de 2016, incluindo na “Tabela de Tipos de Estabelecimentos de Saúde do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde” (CNES), no intuito de que as Comunidades Terapêuticas sejam enquadradas no “Tipo 83”, que, oficialmente as torna “Pólos de Prevenção de Doenças e Agravos de Promoção da Saúde” (Brasil, 2016). Anteriormente, as CT eram tidas como “Órgãos de utilidade pública” e, consequentemente, eram compreendidas como “complementares” à rede de saúde. O recebimento do CNES aponta para os atuais retrocessos que têm enfrentado a RPB, pois, os modelos nos quais as CT estão ancoradas impõem, em sua maioria, uma “obrigatoriedade” – o alcance da abstinência e a conversão religiosa - às pessoas que usam/usavam drogas e se tratam/trataram nesses espaços.
Por outro lado, diversos autores nos lembram que o modelo da CT não se destina a todo e qualquer perfil de “dependente químico” (Lira, 2016). Ao que tudo indica a “eficácia terapêutica” deste modelo específico repousa na voluntariedade dos residentes11, de modo que os mesmos surgem como atores cruciais diante de sua recuperação nos tratamentos, estando às equipes profissionais a protagonizarem “papéis secundários” de apoio e auxílio (Godbout, 1988; Goti, 1997; Caillé, 2002a; 2002b; Mota, 2008; Rameh-de-Albuquerque, 2008; Lira, 2016).
Também destacamos a operacionalização – em território nacional - de “grupos de ajuda mútua”, tais quais: “Narcóticos Anônimos” (NA), “Alcoólicos Anônimos” (AA), “Grupo Nicotina Anônimos” (GNA), “Desafio Jovem”, “Grupo Tô Limpo” e “Sarah Vida” e outras instituições – oficiais ou não - imersas nas comunidades e hábeis ao fomento de “terapias complementares” (Laplantine & Raberyon, 1989; Rameh-de-Albuquerque, 2008; Lira, 2016).
Setores que, na maioria das vezes, originam-se de ações fomentadas por instituições filantrópicas norteadas pelo esforço voluntário, onde a “auto-ajuda” prevalece, sendo a troca de informações estipulada pela “dialogia”, durante a fala, a escuta dos testemunhos e o aconselhamento de cada pessoa (Lira, 2016). Aqui são enaltecidas a “dádiva” e a “reciprocidade” (Mota, 2008), assim como são de suma importância as “trajetórias biográficas” (Bourdieu, 1997) trazidas pela retórica de cada um, aduzindo os modelos – apesar de suas peculiaridades – uma base marcadamente “dialógico-terapêutica” (Lira, 2016). Aqui – conforme nos alenta Rameh-de-Albuquerque (2008) – encontramos expressões bastante comuns e usuais, a exemplo das “sentenças imperativas”: “24 horas sem beber”, “cada dia é um novo dia”, “só por hoje não beberei”; vocábulos utilizados, no intento de reforçarem os tratamentos.
Estas e outras “terapias paralelas” (Laplantine & Raberyon, 1989) versam sobre a relevância da convivência dos sujeitos, que circulam num específico “itinerário terapêutico” (Langdon, 1994; Minayo, 1994; Medeiros, 2001; Mota, 2008; Lira, 2016), cujas agências são erigidas sob o respaldo de distintas “representações sociais” (Moscovici, 2003), entre as quais: a religiosa (onde o usuário é visto como “pecador”), a biomédica (que enxerga o sujeito enquanto “doente sem cura”), a jurídica (tratando usuários como “criminosos”) e as que, verdadeiramente, buscam o acolhimento humanitário, garantindo o respeito pelas diferenças e estipulando a autonomia dos sujeitos após tratamento (Mota, 2008; Rameh-de-Albuquerque, 2008).
Tomamos ciência de que, por um lado, boa parte destes modelos trabalha com a meta do alcance da “abstinência”, vista como condição sine qua non para a consecução da “cura”. Por outro lado, encontramos novos parâmetros de atenção voltados a minimizar os possíveis danos advindos do uso de drogas, porém, sem trazer em seu bojo operativo a “concepção moralista” da interrupção abrupta do uso/abuso de psicoativos (Mota, 2008; Rameh-de-Albuquerque, 2008; Lira, 2016), como é o caso da Redução de Danos, que propõe que os serviços em AD precisam formular estratégias terapêuticas ancoradas na realidade de cada ator, levando em conta outras metas para além do alcance da abstemia (Santos et. al., 2010).
Para além de agências filantrópicas, grupos de ajuda mútua e clínicas particulares, ainda encontramos fenômenos condizentes à “internação compulsória” e à “justiça terapêutica” (Mota, 2008; Rameh-de-Albuquerque, 2008). Nesse emaranhado de possibilidades, há que se destacar a ação estatal por meio do fomento e incremento de “políticas públicas”, na medida em que a maioria dos serviços voltados ao tratamento e acolhimento dos usuários de drogas no Brasil pertence à “Rede Pública de Saúde” (Moraes, 2008).
Tecendo redes, destravando nós e reduzindo danos
O Ministério da Saúde, em 2003, apresentou diretrizes que passaram a subvencionar as ações governamentais, perante uma política capaz de ultrapassar os antigos descasos e paradigmas excludentes, partindo de novas perspectivas e abordagens envoltas do fenômeno do cuidado e da atenção dos usuários/dependentes de drogas (Rameh-de-Albuquerque, 2008). Assim, foram contemplados os fatores envolvidos no tratamento (reabilitação, autonomia e reinserção social dos usuários), conceitos rutilados de modo imperativo no “trabalho vivo em ato” (Feuerwerker, 2005; Ceccim & Merhy, 2009), diante da necessidade contínua de estruturação, reestruturação e fortalecimento das RAPS.
Antes, as representações moralizantes conduziam os tratamentos fadados aos usuários (dependentes ou não), estando pautadas exclusivamente no paradigma “proibicionista”; restrito ao combate, perseguição e “guerra contra as drogas”, ou melhor, um duelo efetivo contra as “pessoas que usam drogas” (Passos e Souza, 2011) e que perdura por quase um século de “exclusão social” (Souza, 2016). A vanguarda brasileira entende a proibição das drogas como “ação contraproducente”, devido ao fato de enfatizar os prejuízos advindos de representações moralistas, que priorizavam a repressão em detrimento da “prevenção” e do tratamento de modo mais humano, integral e abrangente. Busca-se na atualidade a superação do paradigma proibicionista (Karan, 2006; 2008; Mota, 2008; Lira, 2016).
Cabe refletirmos sobre o fato de que, certamente, o conceito biomédico de “dependência química” – como nos mostra Carneiro (2002) – representa uma das noções mais controversas ainda existentes e operantes em todos os serviços supracitados, de modo que a “construção social da doença do vício” passou - e ainda passa - por contínuos e complexos encadeamentos históricos, gerando fenômenos conflitantes cercados pela égide das “toxicomanias”.
Aludimos para a necessidade do reconhecimento dos diferentes tipos de usuários, desde àqueles classificados enquanto “experimentais”, “recreativos”, “abusivos” e os “dependentes”12, os quais - por possuírem características e necessidades diferentes – carecem de outros equipamentos, para além da saúde, embora igualmente hábeis a geração de estratégias advindas de variegados programas de prevenção, promoção da saúde, educação, tratamento, desintoxicação e reabilitação (Vasconcelos, 2008). Observamos certos avanços no caso brasileiro, na medida em que detectamos a ampliação e o estímulo de abordagens díspares, que buscam reduzir os impactos das representações moralistas sobre o uso/abuso de psicoativos.
A estratégia da RD, neste cenário, passa a ser contemplada como “questão política” por representar um caminho inovador – que não exclui outras possibilidades terapêuticas – diante do reconhecimento da singularidade de casos e de sujeitos em sucessivos fluxos, num eminente trânsito terapêutico composto por múltiplas agências e agentes responsáveis por este tipo de atenção e cuidado (Langdon, 1994; Minayo, 1994; Medeiros, 2001; Lira, 2016). Ao empoderar as pessoas no processo de busca por recobro, reconhecendo as particularidades de cada uma, a RD as trata como co-responsáveis, para além do tratamento, mas, principalmente, no tocante à própria seguridade, defesa e garantia de direitos básicos (Rameh-de-Albuquerque, 2008).
Sobre o histórico da RD no Brasil, destacamos 04 ações consideradas relevantes: 1. O surgimento do primeiro “Programa de Redução de Danos” (PRD), operante na cidade de Santos (SP) já no ano de 1989; 2. A continuidade do modelo PRD - em 1994 - fomentado em Salvador (BA), que foi considerada uma estratégia “bem-sucedida”, tanto que logo foi acoplado às práticas terapêuticas e assistenciais de outros municípios; 3. A fundação, em 1997, da “Associação Brasileira de Redutores de Danos” (ABORDA) que vem, até os dias atuais, ampliando redes13 e “Associações Estaduais de Redutores de Danos”; e 4. O fomento da “Primeira Lei de Redução de Danos” brasileira – igualmente estipulada no ano de 1997 - na cidade de São Paulo (SP) (Siqueira, 2006).
Convêm ressair que, até então, a RD não possuía nenhum respaldo legal no país, podendo inclusive ser confundida – como sempre o faz o “senso comum” - com uma suposta “tolerância” ou, até mesmo, “apologia” ao uso de psicoativos. Todavia, frente à inevitabilidade em se deter e combater a proliferação de certas “doenças infecto-contagiosas” – como é o caso da hepatite e do HIV/AIDS - estas estratégias foram ganhando visibilidade (Santos et al., 2010). Partindo do básico princípio de que o uso/abuso de substâncias não pode ser completamente abolido – por meio do combate ou da perseguição - diversos profissionais de saúde, militantes da causa da “descriminalização dos usuários”, entre outros atores - protagonizaram, em conjunto, o fomento de ações pontuais, tanto políticas, quanto científicas no lidar com o fenômeno do uso e da dependência em substâncias psicoativas.
Outro aspecto importante a abordar é a questão legislativa. Respondendo a um longo processo de embate democrático foi sancionada a “Lei nº 11.343”, de 23 de agosto de 2006, que define os princípios e diretrizes das ações de prevenção e tratamento da dependência de álcool e outras drogas, além de conceituar crimes e penas relativos ao uso e tráfico de drogas (Brasil, 2006).
A suposta vantagem desta lei às anteriores - Leis 6.368/76 e 10.409/02 - repousaria na reafirmação das penas substitutivas de prestação de serviços comunitários e no impedimento de tratamento criminal aos usuários. No entanto, Karan (2006; 2008) nos adverte para o fato de que, contrariando tais premissas legislativas, “a nova lei” não traz nenhum avanço quanto ao consumo de drogas, pois mantém a criminalização da posse para uso pessoal de psicoativos rotulados enquanto ilícitos, apenas deslocando a estipulação de pena privativa de liberdade, tendo em vista que, em seu Artigo 28, prevalecem penas de advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programas ou cursos educativos e, para os casos de desobediência, admoestação e multa.
Todavia, segundo Karan (2006; 2008) além de manter a criminalização da posse para uso pessoal de psicoativos ilícitos, a “nova lei” continua perpetuando a violação dos princípios e das normas inseridas na “Declaração Universal dos Direitos Humanos” e nas Constituições democráticas dos Estados Nacionais.
Não obstante, o Ministério da Saúde brasileiro age na perspectiva de que a “nova lei” aproxima o uso/abuso de drogas do domínio da saúde pública, afastando-o do âmbito jurídico/policial (Brasil, 2006). Porém, para os movimentos sociais operantes nesta área, a “nova lei” contemplou conquistas efetivas, embora ainda esteja longe de atingir “metas satisfatórias” (Moraes et al., 2015). Dentre as quais se destacam os desafios da convivência e divergência entre paradigmas díspares, contudo bastante operantes no Estado Brasileiro, como por exemplo, a Redução de Danos e a meta hegemônica de cuidado aos usuários através da abstinência como única perspectiva de sucesso; ou ainda, a guerra às drogas que se presentifica na pouca qualidade dada na atenção e cuidado às pessoas que usam álcool e outras drogas. Importante observar que, a despeito das ações de RD constarem na “Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas” (PNAD), existe a inevitabilidade de agregação das estratégias na política e de consolidação da RD em todas as áreas possíveis: prevenção, assistência, educação, ação social (Santos et al., 2010), o que tem reforçado o paradigma proibicionista.
Diante dos processos históricos referentes à emergência dos dispositivos terapêuticos voltados ao tratamento e atenção integral aos usuários/dependentes de drogas, destacamos estas relevantes considerações relativas à operacionalização da “Política de Redução de Danos” no Brasil, uma vez que tais reflexões nos auxiliaram frente a uma melhor compreensão de como tal política pública específica influiu no estabelecimento da PNAD14 e, mais especificamente, em territórios recifense e pernambucano, trazendo como destaque ações políticas e pontuais, como nos parece ser o caso do “Programa Mais Vida” e, atualmente o do “Programa Atitude”, em âmbitos municipal e estadual (Campos et al., 2013; Rameh-de-Albuquerque et al., 2017).
O caso recifense
Em Recife, no ano 2000, realizou-se o “Seminário Itinerante sobre Drogas e Comportamento de Risco” contando com a presença de especialistas locais e mundiais em RD. Desta feita, neste espaço de debates científicos, foi fundada a “Rede Pernambucana de Redução de Danos”, uma das 05 primeiras “estaduais” do Brasil. Depois, em 2001, foi elaborado o “Documento Marco da RD” em Pernambuco, com a participação de cerca de 30 entidades e organizações, entre órgãos públicos e organizações não governamentais. Em 2002 foi realizado o “I Seminário Nacional sobre Álcool e Redução de Danos”, também em Recife, onde foi criada a primeira “Associação de Usuários de Álcool e outras Drogas” do país; a “Se Liga - Associação de Usuários de Álcool e Outras Drogas de Pernambuco”.
Em 2003 foi publicado o documento oficial da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral à Saúde de Usuários de Álcool e Outras Drogas, no qual se preconizou a RD como princípio norteador de ações nesta área. A Portaria Nº 2.197 de 2004 redefiniu e ampliou a atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, adotando a abordagem da RD no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) no país (Brasil, 2004).
Em Recife, neste mesmo ano, acompanhamos a consolidação e a ampliação do “Programa Mais Vida”15, que serviu como referência nacional, diante da eficácia das “organizações em rede”. Inicialmente, o Programa Mais Vida adveio de experiências adquiridas por meio de ações pontuais, envolvendo a prática de Redução de Danos, emergentes nos períodos carnavalescos e/ou em festas de “grande porte”. Posteriormente, o nome do Programa abarcou a própria Rede de Atenção em AD, sendo composta por: 06 unidades do CapsAD, 04 unidades da Casas do Meio do Caminho (CMC), 01 Unidade de Desintoxicação (UD) – em hospital geral -, e 06 equipes de Consultórios de Rua (CR), além das experiências de “matriciamento”16 junto às Equipes do Saúde da Família (ESF) (Campos et al., 2013).
A complexidade da Rede também exigiu respostas diferentes para lidar com as especificidades de cada público atendido, quais fossem mulheres, homens, adultos, jovens e crianças, com ou sem moradia, com ou sem comorbidades clínicas e/ou psiquiátricas. Assim, a Secretaria de Saúde do Recife foi uma das pioneiras no Brasil a assumir e criar uma Coordenação Municipal de Redução de Danos (Rameh-de-Albuquerque, 2008). Em resposta ao cenário nacional alarmista - com relação ao que se enquadrou erroneamente enquanto uma “epidemia do crack” - a Prefeitura da Cidade do Recife lançou em 2011 a “Ação Integrada de Atenção ao crack e outras drogas”, que teve como objetivo principal a ampliação dos programas, equipamentos e serviços voltados à prevenção, ao cuidado e à reinserção das pessoas em tratamento devido ao uso/abuso de psicoativos, fazendo com que as ações existentes em cada secretaria - para além da Secretaria de Saúde - pudessem atuar intersetorialmente (Campos et al., 2013).
Para o território de Recife, ter o cuidado às pessoas que usam drogas baseado no paradigma da RD configurou-se numa mudança qualitativa e precursora no jeito de concretizar o cuidado integral e intersetorial, de modo que as respostas para os problemas apresentados foram mais amplas e efetivas. Houve, por exemplo, uma otimização dos recursos tentando-se evitar duplicidades de ações e integrando as experiências das secretarias, ampliando a implementação de políticas públicas à população em situação de risco pelo abuso do crack e outras drogas (Rameh-de-Albuquerque et al., 2017).
Paralelamente, com o intuito de diminuir os índices de homicídios e violência que sobressaltavam o Estado de Pernambuco, foi criado o “Pacto pela Vida”17 (PPV); Programa de Segurança Pública, ligado à Secretaria de Defesa Social. Diversas ações foram pensadas para compor este Pacto concatenando a participação de diversas secretarias estaduais para além do domínio da saúde (Rameh-de-Albuquerque et al., 2017). Dentre as ações destacaram-se 138 projetos estruturadores e permanentes de prevenção e controle da criminalidade, produzidos pelas “Câmaras Técnicas18” em especial de prevenção de homicídios e enfrentamento ao crack.
Destes projetos, coube a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SDSDH) a criação de um programa que pudesse dar um recorte de cuidado e proteção para as pessoas em maior vulnerabilidade social, bem como ameaçadas de morte. Assim, em 2011, foi criado o “Programa de Atenção Integral aos Usuários de Drogas e seus Familiares – Programa Atitude”. Este se tornou referência19 na proteção e cuidado aos usuários de crack e outras drogas no Estado de Pernambuco (Rameh-de-Albuquerque et al., 2017).
No mesmo sentido, acompanhamos a criação da “Rede Estadual de Pernambuco de Enfrentamento ao Crack”, que teve como paradigma motivador e inovador - no sentido do cuidado em proteção integral - o Programa Atitude, que ainda se encontra em operacionalização, sendo considerado exemplo exitoso para o Brasil (Pernambuco, 2010). O Programa, em sua essência, vem buscando integrar serviços e ações voltados à moradia, à saúde, à higiene pessoal, alimentação, trabalho e geração de renda. Tudo destinado aos atores, que se encontram ameaçados pelos quadros de violência e homicídios que afetam o Estado, oferecendo ações de “baixa exigência (“low threshold”). São equipamentos do Programa Atitude, por exemplo, o “Acolhimento Intensivo”, o “Atitudes nas Ruas” e o “Aluguel Social”20.
Desta feita, notamos a inclusão da RD como norteadora da Política Nacional de AD e, mais concisamente em todo o Estado de Pernambuco, fazendo com que os atores públicos e políticos assumissem posturas progressivas - inicialmente em consonância com os princípios do SUS e, posteriormente, partindo dos debates em torno da proteção integral – expandindo-se para todo Estado de Pernambuco – a partir das experiências adquiridas na Capital -, considerando-se os diversos aspectos, que abrangem a complexidade e unicidade dos casos envolvendo problemas advindos do uso/abuso de drogas (Campos et al., 2013). Apesar da mudança governamental que destituiu o Programa Mais Vida, as sementes de todo esse processo foram germinadas no sentido da necessidade de articulação da Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica, voltadas, inicialmente, às necessidades dos atores que sofriam de transtornos mentais, passando pelo reconhecimento dessas peculiaridades por uma atenção específica aos usuários de AD.
Neste caso, podemos inferir que o Programa Atitude surgiu como produto das avaliações realizadas pelos atores (pacientes, familiares e profissionais) inseridos nas Redes que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único da Assistência Social (SUAS), tendo como base – para debates, denúncias e ponderações - os relatos e constatações empíricas a respeito de violações de direitos, as quais estavam susceptíveis os usuários de crack em Pernambuco. Destarte, o público alvo do programa passou a ser indivíduos inseridos em situações de grave vulnerabilidade, tendo em vista os contextos sociais e familiares e ou pelos envolvimentos e atividades ilícitos comuns ao “mundo do tráfico” (Ratton et al., 2014). Como já alentamos, o Programa Atitude presume a oferta de serviços de proteção integral tais como, moradia, alimentação, assepsia e cuidados pessoais, além de trabalho em parcerias para as pessoas e seus familiares que estejam sem referência ou em situação de rua, sob coação de violência ou morte, precisando ser retirados de seu(s) núcleo(s) familiar(es) e/ou comunitário(s).
De modo geral, os atores procuram o programa espontaneamente, embora comumente sejam localizados por meio de “buscas ativas21” efetuadas pelos profissionais do serviço22. Muitos atendidos ainda são encaminhados por outros serviços inerentes às Redes SUAS e SUS. O acolhimento inicial é considerado crucial à construção de vínculos de confiança hábeis à “adesão” dos sujeitos aos cuidados fornecidos pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Além das ofertas acima descritas, o Atitude ainda é subdividido em 04 “modalidades”: 01. “Acolhimento Apoio”: Espaço destinado aos usuários, que podem frequentá-lo voluntariamente, sendo ofertado descanso, higiene pessoal, alimentação e demais cuidados primários, pois traz como intuito básico o de trazer “bem-estar” às pessoas de modo geral. Funcionam 24 horas por dia e realizam atendimentos iniciais, que podem gerar encaminhamentos para rede SUAS, (Centros POP23, CREAS24 e etc.), SUS, (CAPS/AD, Hospitais Gerais, Equipes Saúde da Família (ESF), Policlínicas e etc.), além de outras políticas setoriais de acordo com as demandas; 02. “Acolhimento Intensivo”: Serviço capaz de ofertar uma proteção integral de acolhida a partir da construção do Plano Individual/Familiar de Atendimento Assistencial (PIA). Este serve como fio condutor das ações e encaminhamentos, priorizando uma maior eficácia no cuidado por priorizar o “trabalho em equipe” e pode incluir certo tempo de estadia no “Acolhimento Intensivo” conforme as devidas avaliações das equipes; 03. “Atitude nas Ruas”: Dispositivos semelhantes aos Consultórios na Rua do SUS, posto que, atuam, seguindo o modelo de equipes itinerantes a circularem pelos centros urbanos e comunidades, fornecendo cuidados primários básicos; 04. “Aluguel social”: Representa uma oferta de “moradia alugada” ou acolhimento em “repúblicas” destinadas a certos usuários por um período específico de tempo, desde que seja o suficiente para o alcance de certas demandas sociais advindas dos grupos de usuários/as e seus familiares, desde que os mesmos se encontrem em situações de extrema vulnerabilidade (Pernambuco, 2010).
Segundo Ratton (2016), o Programa Atitude foi montado para atuação prioritária na prevenção aos “crimes violentos letais intencionais” (CVLI), e ainda é referência na proteção e cuidado aos usuários de crack e outras drogas no estado de Pernambuco. Por atender especialmente as pessoas que usam crack e outras drogas que estão em situação de vulnerabilidade e exposição à violência, por vezes, alguns precisam se afastar de suas famílias e comunidades, considerando inclusive que muitos estão com vínculos familiares rompidos ou fragilizados.
Apesar das avaliações positivas em torno do Programa Atitude (Ratton, 2016), atualmente o cenário de desinvestimento quanto ao financiamento de políticas e programas do SUS e SUAS25 em nível nacional, também ecoam no cenário local, fazendo com que o programa enfrente obstáculos para sua ampliação e manutenção. Por outro lado, tem inspirado experiências e discussões acerca da necessidade de cuidado para além da “saúde” ou da segurança, considerando a discussão acerca dos direitos das pessoas que usam drogas (Lancetti, 2015).
Breves considerações
É preciso reconhecer que o uso de drogas é uma prática humana inerente a todas as culturas, seja em ritos religiosos, como fontes de prazer, ou como fármacos que curavam moléstias. Neste sentido, é indefectível que a abstinência não pode ser o único objetivo a ser alcançado nos serviços de saúde, pois nem todas as pessoas precisarão de tratamento. A política de drogas brasileira, em geral, é orientada para a redução da oferta por meio da repressão ao tráfico, à produção e ao refino de substâncias entre outras ações; ou para a redução da demanda, por meio de ações “preventivas” como desestímulo ou diminuição do consumo, principalmente, na iniciação deste uso, ou ainda os próprios tratamentos oferecidos aos usuários e dependentes, ficando clara a necessidade de ampliação do escopo do cuidado e não apenas do tratamento, sendo a redução de danos (RD) uma terceira via fundamental nesse processo, convergindo com a construção da política nacional de drogas na busca da autonomia dos usuários.
A RD vem com o objetivo de minimizar as consequências negativas associadas ao uso de drogas sem que necessariamente a pessoa precise parar de fazer uso. É direcionada àqueles usuários que não querem ou não conseguem interromper o consumo de drogas. Entre outros, destacam-se dois argumentos para sua adoção: o primeiro, já citado, o de que é peremptória a inexistência de uma sociedade sem drogas. O segundo, de que a contínua e contraproducente “guerra às drogas” contraria os princípios éticos e os direitos civis das pessoas, ferindo o direito à liberdade do uso do corpo e da mente. Deste modo a RD se coloca em sinergia com os princípios da RPB mostrando o quanto a sua assunção, em território nacional, fez com que diversas experiências fossem impactadas de maneira positiva no cuidado direto das pessoas que abusam das drogas.
Neste sentido, tanto as experiências de Recife, através do extinto Programa Mais Vida, quanto em Pernambuco, com o Programa Atitude fomentaram o atendimento a uma demanda que era invisibilizada, em especial as pessoas que usam crack em situação de rua, com baixa adesão aos serviços existentes, somadas a vulnerabilidades advindas da exclusão social.
Pode-se então afirmar que tanto as experiências do Recife, quanto a do Governo do Estado, foram consequentes em suas operacionalizações da perspectiva da Redução de Danos. Esta preconiza que o cuidado e/ou tratamento de pessoas que usam drogas deve estar pautado na singularidade do sujeito, o que não quer dizer abstinência como meta final para todos, o que faz ampliar a abrangência geralmente alcançada por outras perspectivas e modelos de cuidado, configurando de fato uma conquista da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
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Recebido em 04/01/2017
Aceito em 14/04/2017
Endereço para correspondência:
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque
Rua Doia Irmãos, nº 447, apt
302 -A - Bairro Apipucos
CEP: 52.071-440 – Recife/PE
E-mail: rorameh@gmail.com
1 Segundo Melo (1999), depois de Ulysses Pernambucano a assistência psiquiátrica retomou a internação como centro de suas ações. O antigo “Hospício da Tamarineira” - como era conhecido - atualmente chama-se “Hospital Ulysses Pernambucano”.
2 As Comunidades Terapêuticas desse período em muito pouco se assemelham às CT de cunho religioso existentes na atualidade. Estas se diferem em seu caráter de organização comunitária e empoderamento dos sujeitos. É na inspiração do modelo destas “comunidades terapêuticas basaglianas” que teremos, posteriormente, o impulso necessário para algumas experiências nacionais, quais foram os lares abrigados e depois as “Casas do Meio do Caminho” (CMC) (Rameh-de-Albuquerque, 2008) ou as Unidades de Acolhimento (UA) (Brasil, 2015).
3 Não foram encontrados significados conceituais únicos para o termo desospitalização, no entanto parece haver um consenso de que desospitalizar é além de fechar e reduzir leitos, deixar de tratar os portadores de transtornos psíquicos em espaços de exclusão e violência (Vasconcelos, 2009).
4 No entanto, observamos que mesmo na “Reforma Italiana” questões referentes aos usuários de álcool e outras drogas ficaram fora das pautas envolvendo teorias e ações reformuladoras. Outros detalhes podem ser consultados em Rameh-de-Albuquerque (2008).
5 Importante destacar que no Relatório Final da I Conferência Nacional de Saúde Mental, em todo seu texto, há apenas o seguinte registro sobre a questão álcool e outras drogas (AD): “As neuroses em geral, as chamadas doenças psicossomáticas, as psicoses secundárias [...], as toxicodependências (incluindo alcoolismo e tabagismo) e as oligofrenias [...], são formas de doenças que variam notavelmente conforme a estrutura social vigente” (Brasil, 1988a).
6 Surgiu, neste mesmo ano, o até hoje denominado “Movimento da Luta Antimanicomial”, inicialmente, na cidade de Bauru (SP) (Vasconcelos, 2009).
7 Em 05/06/2012 o Ministério da Saúde lançou a nota técnica nº. 25/2012 que trata sobre o serviço hospitalar de referência para atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas: “[…] os leitos de Saúde Mental em Hospitais Gerais são componentes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), sendo necessária a discussão deste ponto de atenção articulado aos outros pontos da rede, compondo projeto do município ou da região de saúde, não devendo ser jamais concebido como um ponto de atenção isolado. Dessa forma, não se trata apenas da criação de novos leitos de saúde mental no Brasil” (Brasil, 2012 p.1).
8 Outras informações encontram-se disponíveis em: http://189.28.128.100/dab/docs/geral/20120412004951716.pdf. Acesso em 15 de Novembro de 2016.
9 Maiores detalhes a respeito de tais experiências podem ser acessados em: http://www.ceaf.mppr.mp.br/arquivos/File/webcast/saudemirian.pdf. Acesso em 15 de Novembro de 2016.
10 Para esclarecimentos acerca das estatísticas positivas referentes à diminuição de leitos psiquiátricos no Brasil consultar: http://www.otics.org/estacoes-de-observacao/saude-mental/acervo/arquivos/saude-mental-em-dados-12/view. Acesso em 15 de Novembro de 2016.
11 Tomamos ciência de que no Brasil essa ideia, por vezes, não é considerada, posto que, verificamos, na prática, que inúmeras CT aceitam usuários submetidos involuntariamente aos tratamentos, em substituição das penalidades judiciais. Maiores detalhes encontram-se em CRPSP (2011).
12 Para saber mais sobre tipos diferentes de usuários, acessar: http://www2.unifesp.br/dpsicobio/pergresp/defini.htm.
13 Existem atualmente no Brasil diversas Redes e Associações atuantes no movimento social voltadas à discussão da garantia dos direitos dos usuários de drogas. Outras informações acessar: Moraes et al., (2015).
14 Apesar de não haver consenso conceitual, conforme Santos et al. (2010), a RD vem se constituindo como um movimento expressivo, impelindo os alicerces de uma política de drogas democrática brasileira.
15 “Programa Mais Vida” era o nome local atribuído à “Política Municipal de Redução de Danos no Consumo de Álcool, Fumo e outras Drogas”. Tal Programa virou sinônimo da própria rede de cuidado aos usuários de drogas (Campos et al., 2013).
16 Para conhecer mais sobre “matriciamento” acessar: Guia prático de matriciamento em saúde mental / Dulce Helena Chiaverini et al. (Org). Brasília, DF: Ministério da Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, 2011.
17 Na atualidade o PPV é avaliado como um programa praticamente falido: http://www.inaldosampaio.com.br/a-falencia-do-pacto-pela-vida.
18 As Câmaras Técnicas são espaços específicos de debates temáticos (violência contra mulher, contra o idoso, contra a criança e o adolescente, política de drogas, prevenção, valorização profissional etc.) para discussão, avaliação e elaboração de projetos de intervenção. Participam das Câmaras Técnicas especialistas, acadêmicos, militantes da sociedade civil e gestores públicos para debateram questões relevantes para cada área. Para saber mais, ver: https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2014/07/artigo-8-p2.pdf.
19 O Programa Atitude, apesar de estar passando por algumas dificuldades, ainda é referenciado como uma das experiências mais exitosas na área do cuidado em álcool, crack e outras drogas. Para ver mais: http://www.folhape.com.br/noticias/noticias/cotidiano/2017/02/06/NWS,16814,70,449,NOTICIAS,2190-PROGRAMA-ATITUDE-TEM-RECONHECIMENTO-INTERNACIONAL.aspx.
20 Essas são três modalidades, que somadas ao “Atitude Apoio” compõem o programa considerando perfis e necessidades dos usuários. Para saber mais sobre cada um desses programas, acessar: http://www.portais.pe.gov.br/web/sedsdh/programa-atitude1.
21 Segundo o Portal Brasil: busca ativa é a “ação de localização de pessoas em situação de vulnerabilidade” e “é uma das responsáveis pela inclusão de mais de 1 milhão de famílias no Cadastro Único”. Essa estratégia foi incorporada no SUS de modo mais direto junto à implantação do Programa Saúde da Família (PSF) e suas equipes. Para saber mais: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/03/busca-ativa-e-ferramenta-fundamental-para-assistencia-social.
22 São vários os profissionais que atuam nos diversos espaços do Programa Atitude, dentre eles, assistentes sociais, psicólogos e redutores de danos são sua maioria. Para saber mais: https://www.centrodeprevencao.com.br/atitude.
23 Segundo o “Observatório do Crack, é possível vencer” o Centro Pop é: “um espaço de referência para o convívio grupal, social e o desenvolvimento de relações de solidariedade, afetividade e respeito. Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, proporcionar vivências para o alcance da autonomia e estimular, a organização, a mobilização e a participação social”. Para saber mais: http://www.brasil.gov.br/observatoriocrack/cuidado/centro-pop.htm.
24 Os CREAS são os Centros de Referência Especiais da Assistência Social. Para saber mais sobre este serviço, acessar: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2011/10/centro-de-referencia-especializado-de-assistencia-social-creas.
25 Para saber mais sobre a problemática do sucateamento e baixo financiamento do SUS, acessar: http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2017/03/desmonte-do-sus-a-partir-de-2018-vamos-ter-uma-volta-ao-passado e do SUAS acessar: https://boainformacao.com.br/2017/03/oab-denuncia-abusos-e-se-diz-preocupada-com-reforma-da-previdencia-em-curso-no-congresso/.