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Contextos Clínicos

versión impresa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.9 no.2 São Leopoldo jun./dic. 2016

https://doi.org/10.4013/ctc.2016.92.03 

ARTIGOS

 

Temperamento afetivo e o cuidado de pacientes oncológicos internados: repercussões para o bem-estar psicológico e percepção de sobrecarga

 

Affective temperament and the caretaking of cancer inpatients: implications to psychological wellbeing and perceived burden

 

 

Renata Alexandre FerreiraI,1; Suzane Busatta IgnachewskiII,1; Hudson W. de CarvalhoIII,*

IHospital Escola. Universidade Federal de Pelotas. Rua Prof. Dr. Araújo, 538, Centro, 96020-360, Pelotas, RS, Brasil. psi_re@hotmail.com
IIHospital Escola. Universidade Federal de Pelotas. Rua Prof. Dr. Araújo, 538, Centro, 96020-360, Pelotas, RS, Brasil. suzane.busatta@hotmail.com
IIIDepartamento de Psicologia, Universidade Federal de Pelotas. Av. Duque de Caxias, 250, Fragata, 96030-001, Pelotas, RS, Brasil. hdsncarvalho@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente estudo visou contribuir para o entendimento da relação entre temperamento e o cuidado de pacientes oncológicos por meio do exame da prevalência de tipos temperamentais e a das associações destes com medidas de bem-estar psicológico e percepção de sobrecarga em uma amostra de cuidadores principais de pacientes oncológicos internados. Participaram do estudo 53 cuidadores (45 mulheres) que responderam voluntariamente a questionários que avaliavam indicadores sócio-demográficos, temperamentais e pertinentes ao bem-estar psicológico e à sobrecarga relacionada ao cuidado do paciente. Os resultados mostraram maior prevalência de temperamentos estáveis entre os cuidadores avaliados (56,6%) e que os tipos estáveis apresentaram associações positivas com bem-estar psicológico e percepção de sobrecarga relacionada ao cuidado de pacientes (t > 2,0; p < 0,05). Cuidadores com temperamento estável apresentam melhores indicadores de ajustamento psicológico, e o temperamento parece ser uma variável importante na designação da pessoa que assumirá o papel do cuidador principal do paciente oncológico.

Palavras-chave: temperamento, cuidador principal, pacientes oncológicos, bem-estar psicológico, avaliação psicológica.


ABSTRACT

The current study aimed to advance on the understanding of the relationship between affective temperaments and the care of cancer in patients by examining the prevalence of temperament types and the associations of these variables with measures of psychological well-being and caregivers burden in a sample of primary caregivers. 53 caregivers (45 women) participated voluntarily and answered questionnaires that assessed variables related to socio-demographic and temperament characteristics, psychological well-being, and caregiving burden. Results showed a higher prevalence of stable affective temperaments (euthymic, hyperthymic and obsessive) among the assessed caregivers (56.6%) and these types showed better psychological adjustment indicators in specific domains of wellbeing and perceived caregivers burden (t> 2.0; p <0.05). Caregivers with stable temperament have better psychological adjustment and temperament seems to be an important variable in the designation of the person who will face the role of primary caregiver of a cancer patient.

Keywords: temperament, primary caregiver, cancer, psychological well-being, psychological assessment.


 

 

Introdução

Temperamento é um termo que se refere a um conjunto de disposições ou traços psicobiológicos básicos e universais das diferenças individuais. Tais disposições são consideradas construtos-chave para o entendimento do núcleo comum entre humor, emoção, cognição, conduta, personalidade e psicopatologia (Clark, 2005; Lara et al., 2012). Presume-se que sua emergência se dê na primeira infância e que mostre relativa estabilidade ao longo do desenvolvimento (Zentner e Bates, 2008; Caspi, 2000). Variáveis temperamentais têm mostrado grande relevância para prever e explicar as manifestações, ocorrências e coocorrências de variados desfechos comportamentais, sejam estes adaptativos (Guerrin et al., 2015; Holden e Klassen, 2010) ou disfuncionais (Carvalho et al., 2014, 2015; Clark, 2005).

Via de regra, modelos de temperamento apresentam duas tradições: uma analítica e outra sintética. Modelos analíticos articulam construtos a partir de uma constelação finita de traços universais das diferenças individuais, de tal modo que a variabilidade do comportamento humano pode ser descrita a partir da intensidade com que cada traço se manifesta (Lara, 2012). Já os modelos sintéticos constroem tipos psicológicos que concatenam as combinações mais típicas de traços psicológicos, produzindo uma descrição da tendência afetiva global do indivíduo (Lara, 2012). Nessa abordagem, as pessoas são classificadas como pertencendo a um tipo psicológico dominante que pretende explicar o grau de ajustamento psicológico individual.

Modelos analíticos e sintéticos são complementares: enquanto os primeiros permitem detalhar as disposições individuais, trazendo uma visão minuciosa, dinâmica e quantitativa sobre tendências comportamentais, emocionais e cognitivas, os segundos trazem pouco detalhamento, contudo, oferecem um entendimento mais total e imediato do indivíduo (Lara, 2012). Não obstante, são incomuns as tentativas de combinar tais abordagens em um modelo empírico e integrativo.

O Modelo de Temperamento Emocional e Afetivo (AFECT, Lara et al., 2012; Carvalho et al., 2013) é uma abordagem emergente sobre o temperamento que integra traços psicológicos a tipos afetivos globais com o intuito de descrever um amplo escopo de diferenças individuais. Em sua vertente analítica, o modelo AFECT identifica dez traços emocionais relativamente independentes relacionados aos processos de ativação (traços de vontade, raiva e desejo), inibição (traços de medo, cautela e ansiedade), regulação emocional (traços de controle e estabilidade), vulnerabilidade (traço de sensibilidade emocional) e resiliência (traço de coping).

A ativação pode ser concebida como um sistema motivacional de aproximação, uma vez que energiza e sensibiliza o comportamento em direção a estímulos e metas por meio da vontade, do desejo ou da raiva. A vontade é uma energia estável, de longo prazo e adaptativa relacionada a emoções positivas, tais como interesse e otimismo. O desejo é uma energia de perfil mais fugaz e que demanda rápida satisfação, por se encontrar atrelada a tendências apetitivas vitais, tais como saciação da fome e da necessidade de prazer (sexo, por exemplo). A raiva tem um caráter opositivo e explosivo, cuja função vem a ser a eliminação de um obstáculo ou de um estímulo ameaçador. A inibição pode ser concebida como um sistema de motivação defensivo que visa frear o comportamento por meio de reações de cautela, ansiedade e medo. Cautela é um processo mais adaptativo, relacionado à capacidade de agir de modo a evitar possíveis erros e danos. A ansiedade e o medo se referem a uma tendência subjetiva mobilizada por eventos aversivos potenciais e incertos ou reais e imediatos, respectivamente (Carvalho et al., 2013; Sylvers et al., 2011).

O controle é uma dimensão psicológica responsável por monitorar o ambiente e promover ajustamento do comportamento ao contexto, regulando os processos de ativação e inibição (Lara, 2012). A estabilidade é um traço que visa descrever o quanto a conduta de um indivíduo pode ser prevista ao longo do tempo (Carvalho et al., 2013).

A sensibilidade é um componente de vulnerabilidade a situações de estresse ambiental e interpessoal. Já o coping é uma dimensão de enfrentamento, responsável pelo reestabelecimento de uma homeostase adaptativa do sistema frente a problemas (Lara, 2012).

As combinações mais comuns desses traços produzem 12 temperamentos afetivos (tipos psicológicos), que podem ser concatenados em quatro grupos: temperamentos internalizados - depressivo, ansioso e apático; instáveis - ciclotímico, disfórico e volátil; estáveis - obsessivo, eutímico e hipertímico; e externalizados - irritável, desinibido e eufórico (Lara, 2012). A Tabela 1 descreve o padrão psicológico dos temperamentos afetivos.

As variáveis de temperamento delineadas pelo modelo AFECT podem ser avaliadas pela Escala de Temperamento Emocional e Afetivo (AFECTS), cujas propriedades psicométricas foram previamente avaliadas em amostras brasileiras (Lara et al., 2012; Carvalho et al., 2013) e mexicanas (Romo-Nava et al., 2015) e, em ambos contextos, apresentou ótimos indicadores de fidedignidade e de validade fatorial. Ainda, a administração da AFECTS em pesquisas tem produzido dados que corroboram as hipóteses delineadas com base no modelo teórico, ampliando o status de validade do mesmo e ratificando seu poder preditivo no que tange à avaliação de diferentes desfechos comportamentais, a saber: heterogeneidade clínica do Transtorno de Personalidade Borderline (Lara et al., 2015); abuso e negligência na infância (Sudbrack et al., 2015), orientação sexual (Guerrin et al., 2015), dependência de cocaína (Fuscaldo et al., 2013) e tendências suicidas (Araújo et al., 2015).

Um possível contexto de aplicação do modelo AFECT e da escala AFECTS diz respeito à psico-oncologia. O diagnóstico de câncer acarreta alterações significativas na qualidade de vida do paciente, de seus familiares e amigos (Sales et al., 2013). Não apenas a gravidade das manifestações clínicas relacionadas à doença, mas também o caráter muitas vezes debilitante do tratamento (Schlosser e Ceolim, 2012) fazem com que indivíduos acometidos pelo câncer necessitem da ajuda contínua de pelo menos uma pessoa que se responsabilize em auxiliá-lo na realização de necessidades básicas e atividades do cotidiano. Em algumas situações, o contexto do adoecimento pode resultar numa situação na qual o paciente depende do cuidado integral de outrem (Toledo e Ballarin, 2013).

O referido contexto deflagra a figura do cuidador principal. Este pode ser definido como a pessoa mais disponível para o paciente, auxiliando-o ao longo do processo de tratamento e oferecendo suporte emocional em todas as fases da doença (Sena et al., 2011). O cuidador principal pode ser interpretado como um componente adjuvante da equipe de saúde, sem o qual a adesão efetiva do paciente oncológico ao tratamento e a rede de apoio psicossocial se mostrariam prejudicadas (Souza e Gomes, 2012).

O cuidador principal precisa se dedicar por longos períodos de tempo ao paciente, o que pode acarretar grande desgaste físico e emocional (Rabow et al., 2004). Diversas pesquisas relatam associações significantes entre o desempenho do papel de cuidador de pacientes oncológicos com os sintomas de depressão, ansiedade, distúrbios de sono, estresses agudo e crônico (Carter e Acton, 2006).

Há poucos estudos que procuram compreender como o temperamento está associado ao ajustamento psicossocial do cuidador principal do paciente oncológico. Nessa temática, os trabalhos publicados até o presente momento se centram sobre a importância do fator neuroticismo do modelo dos Cinco Grandes Fatores de Personalidade - um traço caracterizado por uma tendência à emocionalidade negativa e à instabilidade afetiva - no que tange ao ajustamento psicológico do cuidador principal. Um estudo longitudinal realizado na Holanda (Nijboer et al., 2001) identificou que escores mais elevados em neuroticismo aumentou a incidência de sintomas depressivos (22% da variância explicada) em cuidadores de pacientes com diagnóstico de câncer colorretal ao longo de um período de seis meses. Além disso, o efeito conjunto de sintomas depressivos e neuroticismo reduzem de modo substancial a capacidade do cuidador de acessar suporte social. Outro estudo (Ferrario et al., 2003) apresentou dados mostrando que o traço neuroticismo influenciou de modo significativo os níveis de estresse percebido, ansiedade e depressão, tanto em pacientes quanto em seus cuidadores. Consistentemente, outra investigação (Kim et al., 2005) mostrou que escores mais altos em neuroticismo aumentaram diretamente o número de sintomas depressivos, reduziram indiretamente o suporte social e contribuíram para uma maior percepção de sobrecarga por parte dos cuidadores. Tomadas em conjunto, essas informações mostram que disposições individuais se mostram relevantes para entender o ajustamento psicológico de pessoas quando submetidas ao papel de cuidadores principais de pacientes oncológicos.

Todavia, não há dados dessa sorte produzidos em pesquisas realizadas no Brasil e, em contexto internacional, a produção bibliográfica sobre a temática é relativamente escassa e baseada em um único modelo sobre traços das diferenças individuais (o Modelo dos Cinco Grandes Fatores). Ademais, tendo em vista a importância de variáveis do temperamento para o entendimento do ajustamento psicológico, julga-se relevante compreender como o temperamento pode se articular com o estado de saúde mental e o desgaste emocional do cuidador principal de pacientes oncológicos.

O presente estudo visou avançar sobre essa problemática por meio da avaliação do perfil de temperamento afetivo e do exame da relação entre temperamento afetivo, bem-estar psicológico e percepção de sobrecarga em uma amostra de cuidadores principais de pacientes oncológicos internados nas clínicas médica e cirúrgica de um hospital escola do sul do país. Diante do racional teórico que subsidia o modelo AFECT (Lara et al., 2012) e dos estudos descritos, as hipóteses que motivaram este estudo foram: (i) dentre os cuidadores avaliados, haveria maior prevalência de temperamentos estáveis, uma vez que estes apresentariam mais recursos emocionais e cognitivos para lidar com a demanda do cuidado e (ii) cuidadores com temperamentos estáveis apresentariam índices mais favoráveis de bem-estar psicológico e de percepção de sobrecarga relacionada ao cuidado.

 

Método

Participantes e procedimentos

Esta é uma pesquisa de levantamento e de corte transversal, na qual participaram todos os cuidadores principais de pacientes com diagnóstico de câncer internados nas clínicas médica e cirúrgica de um hospital universitário do sul do país entre os meses de agosto e novembro de 2013. Os critérios de inclusão para participação no estudo foram: (1) ser indicado como cuidador principal pelo paciente internado; (2) ter convivência pregressa com o paciente; (3) idade igual ou superior a 18 anos; (4) estar lúcido, orientado, saber ler e se comunicar verbalmente; (5) concordar em participar do estudo por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e (6) permitir a utilização dos dados para publicação dos resultados do estudo em congresso e revista especializada.

Após o consentimento do paciente, os respectivos cuidadores principais foram contatados pessoalmente após o horário de visita no hospital. Esse primeiro encontro teve como meta esclarecer o estudo (objetivos e procedimentos de coleta de dados), avaliar a disponibilidade em participar como voluntário da pesquisa, respondendo aos instrumentos e agendar uma data para efetivar a coleta de dados. As entrevistas foram realizadas individualmente em uma sala de atendimento do setor de psicologia do hospital por duas psicólogas residentes do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde - Atenção Oncológica. Todas as entrevistas foram realizadas após o horário de visita ao paciente, e todos os cuidadores contatados concordaram com a participação no estudo. O tempo total para a coleta de dados girou entre 30 e 40 minutos.

A amostra resultante contou com 53 cuidadores, sendo 45 mulheres (84.9%) e oito homens (15.1%), com média etária de 45.96 anos (DP = 13.07). A maioria dos cuidadores apresentava vínculo sanguíneo ou marital com o paciente e aproximadamente metade declarou ser o único cuidador, não contando com auxílio de outras pessoas. A Tabela 2 traz o detalhamento da amostra organizado por sexo.

Instrumentos

Questionário sócio-demográfico: questionário de autorrelato contendo itens que avaliam características do cuidador e do paciente. Dentre estas, destacam-se: idade, sexo, estado civil, nível de escolaridade, profissão, situação profissional, doenças e uso de medicações, estado de saúde, vínculo com o paciente, situação de dependência financeira em relação ao paciente e coabitação.

Seção de Temperamento Afetivo da AFFECTS (Lara et al., 2012): escala de autorrelato na qual o participante deve escolher uma dentre 12 descrições que caracterizam, comportamental e emocionalmente, os tipos afetivos previstos pelo modelo AFECT (ver Tabela 1 para detalhamento sobre os tipos afetivos).

Escala de Bem-Estar Psicológico (EBEP; Machado et al., 2013): questionário de autorrelato composto por 36 itens que se organizam em seis escalas que avaliam relações positivas com os outros, autonomia, domínio sobre o ambiente, crescimento pessoal, propósito na vida, auto-aceitação. Os itens são medidos com base em um escala Likert de seis pontos que varia entre discordo totalmente a concordo totalmente.

Caregiver Reaction Assessment, versão brasileira (CRA; Busatta et al., 2014): questionário que avalia aspectos específicos da situação de cuidar. O referido questionário é constituído por 23 itens, que examinam as reações do cuidador de um paciente crônico em cinco dimensões, a saber, autoestima do cuidador, falta de suporte familiar, impacto nas finanças, impacto nos horários, impacto na saúde do cuidador. Cada item é avaliado com base em uma escala do tipo Likert de cinco pontos que varia entre concordo completamente até discordo completamente.

Procedimentos éticos

O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi elaborado com base nos requisitos da resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil e no código de ética da Associação Mundial de Medicina (Declaração de Helsinque). A participação foi voluntária, sendo possível interrompê-la sem qualquer constrangimento ou necessidade de explicação. O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo comitê de ética da instituição onde foi realizada (PROC. ETIC. 386.007/UFPel).

Procedimentos estatísticos

Os dados descritivos categoriais foram analisados por meio do cômputo de frequências brutas e ponderadas. Dados quantitativos foram descritos tendo por base o cálculo de médias e desvios-padrão. As associações entre variáveis de temperamento e indicadores de bem-estar psicológico e sobrecarga foram estimadas por meio de testes-t para amostras independentes, sendo considerados significantes os resultados com valor de p menores que 0,05.

 

Resultados

Os temperamentos emocionais mais representados na amostra foram os estáveis (30 participantes, 56,6%), seguidos dos internalizados (11 participantes, 20,8%). Temperamentos instáveis e externalizados contaram cada um com um total de seis participantes (11,3%). O grupo de temperamentos estáveis encontrou-se representado em suas três categorias: Hipertímico (12 participantes, 22,6%), Eutímico (oito participantes, 15,1%) e Obsessivo (dez participantes, 18,9%). Dos internalizados, estavam presentes apenas os tipos Ansioso (oito participantes, 15,1%) e Depressivo (três participantes, 5,7%). Já os instáveis apresentaram os tipos Ciclotímico (cinco participantes, 9,4%) e Disfórico (um participante, 1,9%). Dos externalizados, apenas o tipo Irritável (seis participantes, 11,3%) mostrou-se representado.

A comparação de média entre o grupo de temperamentos estáveis e os formado por outros tipos mostrou diferenças significantes e de magnitude moderada em relação às variáveis Sobrecarga total (t = 2,035, p = 0,04, d = 0,57), Impacto no cotidiano (t = 2,361, p = 0,02, d = 0,65), Relações positivas com outros (t = 2,08, p = 0,04, d = 0,57) e Domínio sobre o ambiente (t = 2,00, p = 0,05, d = 0,55). As outras dimensões de bem-estar e de sobrecarga não apresentaram diferenças significantes e, consequentemente, não são apresentadas. A Tabela 3 sumariza os resultados referentes à análise de diferença de médias.

 

Discussão

A presente investigação teve como meta entender o perfil de temperamento e o ajustamento psicológico de uma amostra de cuidadores principais de pacientes oncológicos internados por meio da articulação dos construtos temperamento afetivo, bem-estar psicológico e percepção de sobrecarga. Os resultados mostraram uma clara predominância de cuidadores com temperamento estável (56,6% da amostra). Estes, quando comparados aos participantes com outros tipos temperamentais, mostraram uma percepção mais positiva quanto ao impacto da sobrecarga relacionado ao cuidado de modo geral e, em específico, sobre o cotidiano, além de melhores indicadores de bem-estar psicológico no que tange às relações interpessoais e ao domínio do cotidiano.

Os referidos achados têm importantes implicações para o entendimento do contexto psicossocial de cuidadores principais. Em primeiro lugar, é possível conjecturar que a pessoa designada para assumir o papel de cuidador principal é aquela que apresenta uma boa capacidade de lidar com adversidades, de regular as próprias emoções e comportamento, de resolver problemas com maior efetividade e menos vulneráveis ao estresse (Lara et al., 2012). O perfil psicológico mais adaptativo de pessoas com temperamento estável provavelmente os destaca como uma escolha adequada à função de cuidador principal de pacientes oncológicos graves. Essa hipótese encontra-se substanciada empiricamente, uma vez que os tipos eutímico, hipertímico e obsessivo têm sido sistematicamente associados a desfechos de saúde mais positivos (Lara et al., 2012; Fuscaldo et al., 2013; Sudbrack et al., 2015).

Ademais, ao se observar o caráter psicológico dos tipos afetivos não estáveis mais frequentes e os tipos afetivos ausentes na amostra, é presumível que níveis mais altos de autorregulação são essenciais à designação da pessoa como cuidador principal. O tipo ansioso (oito participantes) e o irritável (seis participantes) apresentam bons níveis de autorregulação e resiliência (bons níveis de controle e coping), sendo o ansioso um tanto mais inibido (medo alto) e o irritável (raiva alta) um tanto mais raivoso que o tipo eutímico (Lara et al., 2012). Já o temperamento volátil (um tipo instável) e o desinibido (um tipo externalizado) compartilham déficits na autorregulação (baixos níveis de controle) e baixa resiliência (baixos níveis de coping), além de alto grau de instabilidade e sensibilidade emocional (Lara et al., 2012). Outro temperamento externalizado não presente dentre os participantes foi o eufórico, que, semelhantemente aos dois anteriores, apresenta baixos níveis de estabilidade emocional e controle (Lara et al., 2012).

Outra implicação dos resultados desta pesquisa se refere ao fato de que indivíduos com temperamento estável apresentaram melhores indicadores de bem-estar psicológico e de percepção de sobrecarga nas escalas de Domínio sobre o ambiente, Relações positivas com outros e de Sobrecarga emocional e Impacto no cotidiano em comparação a indivíduos com outros perfis afetivos. Esses resultados corroboram as hipóteses iniciais de que cuidadores com temperamento estável apresentam melhores indicadores de ajustamento psicológico. Cuidadores com temperamento estável se mostraram mais hábeis em planejar o cotidiano de modo a lidar com adversidades (mais domínio sobre o ambiente e menos impacto no cotidiano), minimizando a sensação de desgaste emocional (menos sobrecarga emocional) e de esvaziamento de sua rede social (mais relações positivas com outros). Esses achados, por sua vez, reforçam a hipótese de que a autorregulação é uma variável importante na designação da pessoa que irá exercer o papel de cuidador.

Um fato adicional que chama a atenção é o de que a maioria dos cuidadores da presente amostra era do sexo feminino. Assim, a realidade ora examinada reproduz a divisão sexual do trabalho, na qual o cuidar é uma "ação concebida como feminina e produto das "qualidades naturais" das mulheres, que fornece atributos e coerência ao seu exercício no espaço formal das relações de trabalho na saúde" (Lopes e Leal, 2005, p. 110).

Algumas limitações merecem ser ressaltadas a fim de que os resultados sejam adequadamente interpretados: utilizou-se somente instrumentos de autorrelato para aferição dos construtos-alvo do estudo, o que impossibilita a validação das medidas por meio de outras fontes de informação. Além disso, o número amostral foi restrito, o que impede o uso de estatísticas com maior poder inferencial. Todavia, ressalta-se que este se trata do primeiro estudo realizado no Brasil e, consequentemente, no contexto do SUS, a avaliar como o temperamento se articula com o papel de cuidador principal. Ainda, os resultados apresentados são heurísticos por duas razões: primeiro, ajudam a entender como o funcionamento psicológico prévio pode ser um bom indicador de saúde mental de pessoas que cuidam de doentes crônicos graves e, segundo, que intervenções psicossociais que visam promover autorregulação e resiliência podem ser essenciais ao bem-estar psicológico de cuidadores de paciente oncológicos.

Por fim, mais pesquisas são necessárias, a fim de testar a viabilidade de algumas das hipóteses levantadas por este estudo. Por exemplo, são necessárias pesquisa de acompanhamento, a fim de verificar o possível papel moderador do temperamento na flutuação do bem-estar de cuidadores principais ao longo do tratamento do paciente e estudos desenhados especificamente para averiguar a importância do temperamento na designação do indivíduo que irá se responsabilizar pelo cuidado do paciente.

 

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Submetido: 26/08/2015
Aceito: 12/05/2016

 

 

1 Durante a realização do presente trabalho, as duas primeiras autoras eram bolsistas de residência multiprofissional da CAPES.
* Autor para correspondência.

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