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Contextos Clínicos

versión impresa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.12 no.3 São Leopoldo sept./dic. 2019

https://doi.org/10.4013/ctc.2019.123.03 

ARTIGOS

 

O impacto emocional de se tornar irmão pela adoção: um estudo de caso coletivo

 

The emotional impact of becoming a sibling though adoption: a collective case study

 

 

Ana Clara Fusaro RodriguesI; Martha Franco Diniz HuebII

IUniversidade de São Paulo Avenida Professor Mello Moraes, 1721, Butantã, 05508-030, São Paulo, SP, Brasil anaclarafusaro@hotmail.com
IIUniversidade Federal do Triângulo Mineiro Rua Conde Prados, 155, Nossa Senhora da Abadia, 38025-260, Uberaba, MG, Brasil huebmartha@gmail.com

 

 


RESUMO

Os arranjos familiares mistos, constituídos pela parentalidade consanguínea e adotiva, não são raros e requerem atenção dos investigadores do campo da Psicologia. Este estudo teve por objetivo verificar o impacto emocional da adoção para filhos consanguíneos de arranjos familiares mistos, a partir de um estudo de caso coletivo. Nesse sentido, participaram do estudo três mães e seus filhos consanguíneos, até então filhos únicos, que se tornaram irmãos por meio da adoção. Utilizou-se de uma entrevista semiestruturada com as mães e do procedimento Desenho-Estória Temático (DE-T) com os filhos, com os temas: "Desenhe o que uma criança sente com a chegada de um irmão já crescido" e "Desenhe a sua família". A análise de conteúdo temática foi sustentada pelo marco teórico e metodológico da psicanálise, e as unidades de produção do DE-T, compreendidas por meio da livre inspeção do material. Observou-se a ambivalência de sentimentos e pensamentos dos irmãos consanguíneos, como notório sentimento de perda de atenção e ciúmes atrelados ao provimento de afeto, proteção e cumplicidade para com os irmãos pela adoção. Destacou-se a importância de preparação e acompanhamento dos filhos já existentes na família antes e após a adoção, a fim de observar o processo de vinculação entre os irmãos.

Palavras-chave: Adoção; Relações fraternas; Psicanálise.


ABSTRACT

Blended family structures, constituted by consanguineous and adoptive parenting, are not rare and require attention from researchers in the field of Psychology. Coming from a collective case study in which have participated three mothers and their consanguineous children, that were an only child, who became siblings through adoption, it was aimed to verify the emotional impact of adoption on the consanguineous children in these arrangements. It was made use of a semi-structured interview with the mothers and the Design-Themed Story Procedure (DE-T) with the children, on the themes: "Draw what a child feels with the arrival of an already grown sibling" and "Draw your family". The content analysis was sustained on the theoretical and methodological framework of psychoanalysis and the DE-T production units were understood through the material's free inspection. It was observed the ambivalence of feelings and thoughts of the consanguineous siblings, like a notorious feeling of loss of attention and jealousy tied to the supply of affection, protection and partnership towards the siblings through adoption. It has stood out the importance of preparation and follow-up of the already existing children in the family pre and post adoption in order to observe the binding process between the siblings.

Keywords: Adoption; Fraternal relationships; Psychoanalysis.


 

 

Introdução

A adoção, do ponto de vista psicológico, se fundamenta na premissa de que a integração a uma nova família possibilita à criança ou ao adolescente reconstruir sua identidade a partir do estabelecimento de um relacionamento satisfatório com a mesma. Por esse motivo é importante que a nova família possa oferecer à criança uma base segura para o desenvolvimento de suas potencialidades, proporcionando a satisfação de suas necessidades básicas e a elaboração dos traumas provenientes da ruptura dos primeiros laços afetivos (Sasson e Suzuki, 2012).

Independente da forma como transcorreu a história da criança ou do adolescente adotado, ela se inicia com o rompimento precoce de vínculos afetivos e com sua provável institucionalização. É importante ressaltar que ao se desvincular de quem lhe prestava os cuidados, mesmo que insuficientes e inadequados, e passar para o cuidado de diferentes pessoas e instituições há uma descontinuidade na linha da vida que pode desencadear diversas consequências negativas ao longo do amadurecimento desse indivíduo (Santos et al., 2003; Andrade et al., 2017).

Portanto, levando-se em consideração que as primeiras vivências da criança são de extrema importância para a formação de seu psiquismo, pode-se inferir que a privação de cuidados e afetos adequados tende a acarretar sérias dificuldades afetivas, inclusive instabilidade emocional (Andrade et al., 2017). Nesse sentido, é fundamental que a experiência da adoção possa se dar em um processo de estabilidade, de modo a assegurar as condições de holding necessárias para sustentar o desenvolvimento saudável da criança (Otuka et al., 2013).

Dessa forma, a adoção será um processo positivo para a criança ou o adolescente se a nova família, em sua totalidade, puder se sustentar como suficientemente boa, ou seja, se ela conseguir se identificar com as necessidades do novo ser inserido no seio familiar e se forem construídos novos vínculos afetivos entre seus membros (Otuka et al., 2013). Para que haja a formação de vínculos saudáveis nesse novo relacionamento é imprescindível que a família por adoção esteja preparada para receber o novo membro, o que requer uma série de adaptações do contexto familiar que irão exigir capacidade de tolerância e permeabilidade a mudanças (Santos et al., 2003).

No caso de arranjos familiares mistos - constituídos pela parentalidade consanguínea e adotiva, é preciso que a preparação envolva não somente os pretendentes à adoção, como também seus filhos consanguíneos já existentes na família, a fim de criar um ambiente seguro e confiável para todos os membros (Dias e Queiroz, 2015). Inclusive Meakings et al. (2017) ressaltam que os filhos consanguíneos podem experienciar dificuldades de ajustamento em sua nova configuração familiar após a chegada de um irmão pela adoção, apresentando ansiedade e medo de ser esquecido e abandonado, o que reforça a necessidade de preparação. Há de se destacar também que, para Wedge e Mantle (1991), a diferença entre a idade do filho consanguíneo e do filho por adoção é um fator importante para a adaptação do primeiro, sendo essa adaptação mais difícil no caso dos irmãos terem idades muito próximas ou do irmão por adoção ser mais velho.

A presença de um filho consanguíneo em uma família que pretende adotar uma criança torna mais complexa a preparação para a adoção, uma vez que requer o preparo de mais um elemento (Meakings et al., 2017) que em grande parte dos casos é uma criança ou adolescente até então filho único. Para Contente el al. (2013), a preparação de pais e filhos justifica-se pela própria natureza da experiência a ser vivenciada, uma vez que a adoção implica, sobretudo, em um processo longo e progressivo de adaptação de uma criança ou adolescente ao convívio com uma nova família. Importante destacar que o termo preparação tem sido frequentemente associado a informar, levar conhecimento, esclarecer, desmistificar, revelar os mitos e preconceitos que cercam o tema da adoção e dar condições para que a família possa ter êxito na construção dos novos vínculos. Dessa forma, preparar - tanto a criança ou adolescente a ser adotado como a família adotante - seria dotar os sujeitos envolvidos de conhecimento sobre essa nova forma de se viver em família e a oportunidade de se construírem laços familiares não consanguíneos (Mariano e Rossetti-Ferreira 2008).

É, pois, no contexto familiar que se inicia o desenvolvimento das relações de vinculação, a partir da matriz relacional em torno da prestação de cuidados. Se a díade criança-figura parental é o ponto de partida do desenvolvimento das relações de vinculação, este processo amplia-se e estabelece-se com os outros elementos no seio da família, tais como os irmãos na díade-fraterna e, posteriormente, incluirá outras relações emocionalmente significativas e duradouras, as quais serão construídas em novos contextos de vida (Geraldes et al., 2013).

A relação fraterna desempenha um papel de extrema importância na história de vida de cada irmão, uma vez que o vínculo fraterno exerce grande influência na forma como o sujeito se vincula aos outros ao longo de seu ciclo-vital, pois o irmão é a representação de um primeiro Outro que permite ao sujeito se reconhecer e se socializar (Muniz e Féres-Carneiro, 2012). Além disso, há de se considerar que, usualmente iniciadas na infância, as relações entre irmãos tendem a ser mais duradouras que outras relações importantes, como as parentais e conjugais, uma vez que os indivíduos tendem a passar mais tempo ao longo de sua vida em interação com seus irmãos do que com seus pais e parceiros conjugais (Meakings et al., 2017).

Historicamente, observa-se que a investigação científica da vinculação no âmbito das relações fraternas direcionou-se, em um primeiro momento, no sentido da possibilidade dos irmãos mais velhos poderem desempenhar um papel de prestador de cuidados dos irmãos mais novos em situações de stress ou na ausência da figura materna (Geraldes et al., 2013). Entretanto, verifica-se na atualidade que mesmo irmãos com idades semelhantes podem ser favorecedores do desenvolvimento psíquico, uma vez que as relações fraternas influenciam positivamente no desenvolvimento social, emocional e cognitivo das crianças (Meakings et al., 2017).

Portanto, os estudos têm considerado que a presença ou ausência de irmãos constitui-se como um elemento importante na formação do sujeito. Sobretudo quando os irmãos têm idades próximas, observa-se que eles podem vir a ser companheiros de brincadeira, estabelecendo ao longo de seu desenvolvimento relações simétricas, cooperativas, recíprocas e confidentes. Isso traduz a possibilidade dessas relações fraternas comportarem-se como componentes de vinculação segura ou insegura, constituindo-se como modelo para o estabelecimento de vínculos afetivos (Geraldes et al., 2013; Meakings et al., 2017).

O trabalho de Fernandes, Alarcão e Raposo (2007) resgata as ideias de Alfred Adler (1980-1937), considerado o pioneiro no estudo das relações fraternas. Para ele, é na relação com a família e, especificamente, com os irmãos que tem início o desenvolvimento do sentimento social, fundamental para o desenvolvimento do caráter. No contexto da adoção, Adler enfatiza que a convivência entre filho consanguíneo e filho por adoção dentro da mesma família pode gerar sentimentos de ambivalência em ambos, como inveja, rivalidades e ressentimentos, mas também sentimentos de apoio e ajuda, uma vez que irmãos funcionam um para o outro como uma fonte de identificação e aprendizado mútuo.

Apesar de a produção nacional sobre a adoção ter aumentado substancialmente nos últimos anos, observa-se que a literatura acerca da adoção comumente não diferencia famílias constituídas apenas pela parentalidade adotiva daquelas constituídas por arranjos familiares mistos e que a visibilidade dos arranjos familiares mistos no meio científico ainda não é tão expressiva (Cecílio e Scorsolini-Comin, 2016). E, embora verifiquemos ainda uma visão da sociedade um tanto quanto ultrapassada, que compreende a adoção apenas como uma opção para casais inférteis e não como uma escolha para exercer a parentalidade (Otuka et al., 2013), o estudo de Silva, Cavalcante, e Dell'Aglio (2016) constatou, a partir do acesso aos dados dos pretendentes do Cadastro Nacional da Adoção (CNA) realizado em 2012, que 24,43% das pessoas interessadas em adotar possuíam filhos consanguíneos, o que sinaliza um número significativo daqueles que já vivenciaram a parentalidade e desejam ser pais/mães por adoção.

Dessa forma, observa-se que, a despeito de serem menos frequentes no universo da adoção, os arranjos familiares mistos não são incomuns e requerem a atenção dos investigadores do campo da Psicologia. Entendendo que a adoção traz consigo a necessidade de uma reorganização familiar, uma vez que modifica todo o equilíbrio que já havia antes sido constituído pela família, cabe ressaltar a importância de ser investigada não apenas sob o aspecto do casal adotante, uma vez que não é apenas a parentalidade que está em jogo, mas todo o seu entorno familiar, o que inclui os filhos consanguíneos do casal (Goldsmid e Féres-Carneiro, 2007; Otuka et al., 2013).

Em um estudo internacional realizado no País de Gales, pais de arranjos familiares mistos foram questionados sobre como o filho consanguíneo estava lidando com a chegada de um irmão por adoção. Das 21 famílias, aproximadamente metade (48%, n=10) reportou ter experienciado e observado dificuldades no vínculo fraterno. Essas famílias relataram perceber o sentimento de ciúmes, confusão e afastamento do filho consanguíneo frente à adaptação da vida em família com um novo irmão. Outros pais participantes do estudo reportaram que o desenvolvimento e adaptação foram lentos e suaves, mas que observam a cada dia o crescimento de afeto e intimidade entre seus filhos. Também foram observados sentimentos de rivalidade entre a fratria, mas esses pais relataram que esse é um sentimento comum entre irmãos e que os filhos estão aprendendo a lidar com isso (Meakings et al., 2017).

A partir disso, compreendendo que a chegada de um irmão - seja ele consanguíneo ou adotivo - afeta todos os subsistemas familiares, e que o impacto - no sentido de efeito emocional da uma ação - mais acentuado parece ser sentido pelo primogênito (Dessen, 1997), a presente pesquisa teve como objetivo investigar o impacto emocional da adoção para filhos consanguíneos pertencentes a arranjos familiares mistos, sob a perspectiva da mãe e de seu filho consanguíneo que veio a se tornar irmão pela adoção.

 

Método

Delineamento

Trata-se de um estudo de caso coletivo, de caráter descritivo e corte transversal, amparado no método psicanalítico de pesquisa. O estudo de caso coletivo é aquele em que o pesquisador agrupa determinado número de casos para investigar um fenômeno, uma população ou uma condição geral. Os casos individuais que se incluem no conjunto estudado podem ou não ser selecionados por manifestar alguma característica comum. Eles são escolhidos porque se acredita que seu estudo permitirá melhor compreensão, ou mesmo melhor teorização, sobre um conjunto ainda maior de casos (Stake, 2000). Neste estudo o fenômeno e a condição geral abordada é ser filho consanguíneo e primogênito pertencente a uma família mista.

O método psicanalítico é um método de investigação interpretativo, que busca evidenciar o significado inconsciente de toda e qualquer produção imaginária. Aguiar (2006) aponta que toda investigação psicanalítica é de tipo qualitativo, dado que seu objeto de estudo diz respeito a casos particulares, e esta imersão profunda na singularidade de um caso permite extrair dele tanto o que lhe pertence com exclusividade quanto o que compartilha com outros do mesmo tipo. Por sua vez, Fernandes e Araújo (2012) apontam que os recursos metodológicos qualitativos buscam, por meio da observação, detalhar o fenômeno observado em toda sua integralidade analisando seu impacto na vida dos sujeitos investigados. Ademais, sendo qualitativa, a pesquisa não trata de quantidades, ou seja, se preocupa com um universo de significados, motivos e valores que, neste caso, fazem parte da realidade dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

Participantes

A amostra do estudo foi constituída por mães e filhos consanguíneos de arranjos familiares mistos, até então filhos únicos, que se tornaram irmãos através da adoção, totalizando uma amostra de três mães e três filhos. Como critério de inclusão todos os filhos, consanguíneos e adotivos, deveriam residir juntos. Não houve restrição quanto ao sexo ou idade dos filhos consanguíneos nem por adoção, assim como não houve restrição frente à quantidade de filhos, bem como quanto à idade das mães. Foram excluídos participantes com comprometimento psicomotor, com deficiência intelectual e/ou com comprometimento visual, verbal ou auditivo, os quais poderiam afetar a coleta em função dos instrumentos que foram utilizados como se detalhará a seguir.

A pesquisa não se estendeu aos pais das famílias participantes uma vez que dois se recusaram a participar. Diante disso, optou-se por realizá-la somente com as mães e seus filhos, por entender que a amostra seria mais homogênea dessa forma e os resultados e a discussão seriam mais coerentes. Os participantes foram entrevistados individualmente, totalizando seis entrevistas. Além disso, salienta-se que as mães participantes realizaram a adoção em momentos diferentes em relação à Lei 12.010/2009, conhecida como a Lei Nacional da Adoção, que promoveu modificações significativas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 9.069/1990), o que as diferencia em relação à preparação para adoção.

A Lei 12.010/2009 determina que os requerentes apresentem, primeiramente, uma série de documentos que permitam uma breve investigação sobre seus antecedentes, tendo por finalidade avaliar se os candidatos terão condições suficientes para receber um filho e que em seguida seja realizada uma preparação para os pretendentes à adoção, promovidas pelas Varas da Infância e da Juventude (VIJ). A lei supracitada estipula que os candidatos passem por cursos ou grupos preparatórios que "abordem preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças maiores ou adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiência e grupos de irmãos" (ECA, Art. 197-C, §1º). Ainda, de acordo com o Art. 50, §4º, alterado pela Lei 12.010/2009, sempre que possível e recomendável, a preparação psicossocial e jurídica deve incluir o contato com crianças e adolescentes em acolhimento institucional em situação de serem adotados, a ser realizado sob a orientação, supervisão e avaliação da equipe técnica da VIJ.

Instrumentos

Para a coleta de dados foram utilizadas duas técnicas norteadoras. Com as mães adotou-se uma entrevista semiestruturada, que habilita ao pesquisador a possibilidade de coletar informações de forma mais abrangente, facultando-lhe a formular novas perguntas caso veja necessidade ou até mesmo intervir para que o entrevistado fale mais sobre determinado tema (Roesch, 1999). A partir das perguntas disparadoras que compunham a entrevista, a mãe foi estimulada a discorrer sobre os motivos que levaram à busca da adoção, as expectativas da família anteriores à chegada da criança pela adoção, a reação do filho consanguíneo após a chegada do irmão, e a percepção acerca do vínculo entre os irmãos. Todas as entrevistas foram realizadas em apenas um encontro com cada mãe e tiveram em média 45 minutos de duração.

Com os filhos foi aplicado o procedimento Desenho Estória Temático (DE-T), de Walter Trinca (1997), aquele em que se pede que a pessoa faça um desenho sobre um tema delimitado. Neste estudo os temas escolhidos foram: "Desenhe a sua família" e "Desenhe o que uma criança sente com a chegada de um irmão já crescido". Terminado o desenho, os filhos foram estimulados a contar uma estória e dar-lhe um título, constituindo-se no que Tardivo (2011) nomeia de Unidades de Produção.

O procedimento DE-T destina-se à investigação de aspectos dinâmicos da personalidade, permitindo identificar angústias e defesas, além de favorecer a elaboração das experiências associadas a um tema específico (Tardivo, 2011). A opção pela utilização de um procedimento projetivo como instrumento de coleta do presente estudo se deu por se acreditar que quanto menos diretivo e estruturado for o estímulo, maior será a probabilidade de o respondente trazer um material pessoal significativo (Trinca, 1997).

Procedimentos de coleta de dados

O contato inicial com uma das mães se deu por meio de um Grupo de Apoio à Adoção com o qual as pesquisadoras possuíam convívio. A pesquisadora principal explicou-lhe os objetivos e os termos do estudo e após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foram coletados os dados, inicialmente com a mãe e posteriormente com seu filho, por meio de encontros individuais realizados no Centro de Estudo e Pesquisa em Psicologia Aplicada (CEPPA), da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, garantindo o sigilo das informações e o conforto emocional do respondente. Após esse momento, sustentando-se pela técnica da bola de neve, aquela em que os participantes iniciais de um estudo apontam novos colaboradores (Matos et al., 2015), seguiram-se os mesmos passos para a coleta de dados com os voluntários subsequentes.

Procedimentos éticos de análise de dados

Submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro - CEP-UFTM, sob protocolo número 2.162.962, tanto as entrevistas com as mães quanto as estórias do DE-T realizadas com os filhos foram primeiramente audiogravadas e posteriormente transcritas na íntegra pelas pesquisadoras.

Na psicanálise, a singularidade das experiências emocionais é valorizada e o foco é colocado na compreensão da intersubjetividade, entendendo-se que o ser humano se constitui a partir das suas relações com o outro e com o ambiente (Otuka et al., 2012). A pesquisa psicanalítica jamais pode garantir a priori um resultado determinado, uma vez que seu programa está antes subordinado à montagem paulatina de uma questão e à própria construção da pesquisa. Dessa forma, o conhecimento psicanalítico dá-se a posteriori - isto é, no sentido clássico, filosófico, como resultado da experiência ou dela dependente (Aguiar, 2006).

A partir disso, após uma intensa leitura vertical e horizontal do material produzido a partir das entrevistas, realizou-se uma análise de conteúdo temática sustentada em Braun e Clark (2006), que auxiliou a identificar, analisar e relatar temas dentro do material coletado. Tal técnica de análise é considerada útil na organização, descrição e interpretação de dados ricos em particularidades, tendo como objetivo fornecer uma descrição detalhada e diferenciada dos temas emergentes, o que permite ao pesquisador tratar os dados qualitativamente, não se atendo a quantificação ou frequência de palavras e conteúdo. Ainda, o material originado da análise de conteúdo temática foi compreendido à luz do marco teórico da psicanálise.

As Unidades de Produção do DE-T foram compreendidas por meio da livre inspeção do material em que se estabelece o contato com o conjunto da produção, sendo levantados tópicos referentes às ansiedades predominantes, aos vínculos significativos, aos conflitos subjacentes, entre outros aspectos (Tardivo, 1997). O agrupamento, reorganização e nomeação de tais tópicos - processo realizado pelas pesquisadoras - resultou em três grandes eixos temáticos denominados de (i) A preparação para a chegada de um irmão por adoção, (ii) A reação do irmão diante da chegada de um novo membro e (iii) A construção do vínculo na díade-fraterna, como se discute a seguir.

 

Resultados e discussão

Participaram do estudo três mães de arranjos familiares mistos e seus filhos consanguíneos, que até então eram filhos únicos. A Tabela 1 refere-se à caracterização dos participantes.

 

 

Todas as famílias realizaram a adoção de crianças maiores, ou seja, crianças com idade superior a três anos. A Família 1 (F1) realizou a adoção no ano de 2011, quando Luana e Babi possuíam 4 e 3 anos de idade, respectivamente. A Família 2 (F2) realizou a adoção no ano de 2013, quando Paulo possuía 4 anos de idade, e a Família 3 (F3) em 2004, quando João possuía 4 anos de idade.

A preparação para a chegada de um irmão por adoção

É de extrema importância que o(s) filho(s) consanguíneo(s) já existente(s) em famílias que pretendem adotar uma criança tome(m) conhecimento da decisão de seus pais antes da chegada do irmão pela adoção. Além da comunicação a respeito da decisão dos pais, é preciso que a criança tenha espaço para compartilhar seus pensamentos e sentimentos em relação à adoção (Brazelton e Sparrow, 2007). Assim como os pais devem passar por um processo de preparação, de acordo com o que está instituído na Lei 12.010/2009 e no ECA (Lei 8.069/1990), leis que organizam e regulam o processo de adoção no Brasil, é importante que a criança já existente na família seja preparada para a chegada do(s) irmão(s) a fim de que este não seja percebido como uma invasão e que a construção do vínculo fraterno possa se dar de forma saudável para ambos os irmãos (Dias e Queiroz, 2015).

De acordo com os relatos das mães participantes, todos os filhos consanguíneos foram comunicados sobre o interesse dos pais em adotar uma criança antes da sua chegada. As mães relataram que esse processo de preparação foi se dando de forma gradual, por ambos os pais, e Helena, (F3) conta que foi inserindo o tema para sua filha consanguínea a partir de brincadeiras e contação de histórias. Os relatos a seguir retratam um pouco de como foi realizada a preparação com o filho consanguíneo de diferentes famílias, sob o ponto de vista de uma mãe e de uma filha:

"Então a gente ia falando pra ele, que ele ia ganhar uma irmãzinha... E aí ele foi participando muito desses momentos, de ir até o Fórum (...) A gente ia preparando ele... A gente construiu uma casa nessa época, então a gente mostrava pra ele o quarto dele que estava sendo construído e dizia 'Olha, a irmãzinha vai ficar aqui nesse quarto com você'" (Claudia, mãe de César, F1).

"Eu lembro que eu pedia muito um irmão, mas eu não lembro o processo direito... Eu lembro que meus pais me contaram uma vez que talvez eles iam adotar uma criança, mas que eles ainda não sabiam... Podia ser homem ou mulher, podia ser qualquer idade (...) Só lembro deles me contarem e eu lembro de ficar ansiosa e tudo" (Maria, filha de Helena, F3).

Apesar de ter sido orientado e preparado por seus pais, César (F1) e sua família não tiveram contato com suas irmãs antes delas serem levadas para a casa da família, uma vez que Luana e Babi (F1) encontravam-se em uma cidade que não possuía o serviço de acolhimento institucional. Consequentemente, as irmãs passavam a noite na casa de funcionários da creche na qual ficavam durante o dia, os quais se revezavam no cuidado noturno, até serem destituídas do poder familiar e virem a ser adotadas, configurando um caráter de urgência para que fossem levadas para a casa da família adotante, sem passar pelo período de convivência. Assim como César (F1), Maria (F3) e seus pais não vivenciaram o período de convivência, fato justificado por Helena (F3) em função de a adoção ter sido realizada antes da Lei Nacional da Adoção (12.010/2009).

Diferentemente das duas famílias mencionadas anteriormente, a Família 2 realizou o estágio de convivência pelo período de dois meses, na cidade em que Paulo (F2), o filho por adoção, se encontrava. De acordo com Maila (F2), o primogênito, Pedro (F2), participou de todas as visitas a Paulo (F2). No primeiro encontro, a família ficou apenas na instituição, até que Paulo (F2) passou a dormir com eles no hotel em que ficavam hospedados durante os finais de semana. Maila (F2) relatou que a família também ligava para Paulo (F2) durante a semana e os irmãos conversavam pelo telefone. Segue um recorte do relato de Pedro (F2) sobre o período de convivência:

"Quando eu tinha nove anos, eu, minha mãe e meu pai, a gente foi pra "Cidade X", onde meu irmão tava na Casa Tutelar (...) O lugar lá era legal, tinha quartos separados de meninos e meninas, aí na hora que eu ia lá meu irmão ficava muito feliz e eu abracei ele. A gente ficou uns cinco dias eu acho, uma vez, aí no penúltimo dia, o meu irmão ficou com a gente em um hotel... Aí no último dia meu irmão despediu de todo mundo na Casa Tutelar e aí a gente foi pra casa" (Pedro, filho de Maila, F2).

Mesmo com o processo de preparação e orientação dos filhos consanguíneos, realizado por todos os pais do estudo, e até mesmo com período de convivência realizado por uma das três famílias, o impacto emocional advindo da chegada do(s) irmão(s) por adoção mostrou-se significativo, e no caso da Família 1 a chegada das irmãs pela adoção foi definida como um acontecimento que abalou muito o filho consanguíneo do casal, como pode ser observado a seguir:

"Quando a gente foi buscar as meninas, a gente avisou o César, preparou o César e o deixamos na escolinha. Quando a gente voltou pra buscá-lo, voltamos com as duas meninas no carro. Então foi tudo muito rápido, por mais que a gente viesse em um diálogo com ele, eu acho que só entendeu realmente o que era quando ele chegou no carro e tinham duas crianças" (Claudia, mãe de César, F1).

O menino confirmou tal percepção da mãe, relatando durante a execução do Procedimento DE-T:

"Porque você não conhece a pessoa. A gente era muito pequeno, não sabia o que era aquilo, tipo você sair de uma família e ir pra outra. A gente nem conhece uma pessoa... pra mim era estranho, eu nem conheço uma pessoa, ela vem pra minha casa, elas são minhas irmãs, elas tem meus pais. Eu achei muito estranho, foi tudo muito rápido (...)" (César, filho de Cláudia, F1).

De acordo com Dias e Queiroz (2015), diferentemente da chegada de um irmão consanguíneo, via processo gestacional, em que há uma adaptação paulatina para o filho primogênito propiciada pelos meses de gestação, a adoção não se configura como algo palpável até a chegada da presença real do irmão, que pode acontecer a qualquer momento. Dessa forma, os relatos presentes nessa seção mostram que pais e filhos de famílias diferentes sentiram que a adoção de uma criança pode ser um acontecimento mais impactante para o filho consanguíneo do casal do que a chegada de um irmão por via gestacional.

"Ganhar um irmão pela gravidez tem um lado mais fácil porque você já ta ali se preparando né, acho que quando a mãe ta grávida você já vai sabendo, (a mãe) vai explicando pra criança, a criança já sabe, mas quando é pela adoção é mais abrupto. É tipo 'Não, a partir de hoje você tem um irmão e vai ter que dividir seus pais e tudo agora'" (Maria, filha de Helena, F3).

A reação do irmão diante da chegada de um novo membro

A vinda de um irmão pode ser sentida como a presença de um "estrangeiro", daquele que perturba todo o equilíbrio que já havia sido construído em uma família sem a sua presença. A partir do momento em que se torna irmão pela primeira vez, ou seja, da chegada do segundo filho, terão início as partilhas, negociações e o primogênito necessitará reorganizar seu espaço levando em conta a existência de um novo irmão na casa. Dessa forma, a fratria desloca o primogênito do lugar único e privilegiado que este, até então, ocupava na relação com seus pais (Goldsmid e Féres-Carneiro, 2007).

A partir disso, os primeiros dias na família expandida, após a chegada do irmão pela adoção, foram descritos pelas três mães participantes como difíceis e tumultuados para todos, corroborando o estudo de Meakings et al (2017), em que alguns participantes relataram ter observado inicialmente dificuldades no vínculo fraterno entre seus filhos. No presente estudo, a interação entre os irmãos durante o período inicial se deu de forma distinta nas diferentes famílias, conforme descrito por mães e filhos. Para Helena (F3) as primeiras interações de seus filhos, Maria (F3) e João (F3), estavam voltadas para a fantasia, uma vez que a filha mais velha brincava com o irmão por adoção interpretando o papel de mãe. O discurso de Helena (F3) converge com o que foi dito por sua filha sobre os primeiros dias com o irmão:

"No começo eu queria fazer todas as vontades dele, queria atender tudo, ainda era uma coisa meio floreada (...) Eu lembro, assim, de ficar muito em cima dele, de eu ver como se fosse uma responsabilidade minha, mesmo que não fosse, eu fazia como se fosse (...) Eu ficava como se ele fosse uma boneca, eu queria fazer tudo" (Maria, filha de Helena, F3).

A chegada tardia de João (F3), quando Maria (F3) já tinha nove anos de idade, parece ter mobilizado na irmã mais velha identificações parentais, sentimentos de ternura, proteção e responsabilidade, comuns nessa situação. Em geral, as fronteiras entre os diversos membros da família ficam difusas, mas é importante que os subsistemas e os papéis de cada um sejam respeitados (Dias e Queiroz, 2015). Para Goldsmid e Féres-Carneiro (2007), essa identificação parental de um irmão mais velho pode desencadear os conflitos denominados intrageracionais. Entretanto, há de se destacar que para Dias e Queiroz (2015) subjacente ao desejo dos filhos de cuidar do irmão mais novo estaria implicado o desejo de rivalizar com os pais e o de manter a fratria inalterada, pois nesse caso o irmão por adoção ocuparia outro lugar, ou seja, um lugar onde seria mais filho do irmão e neto dos pais, do que de propriamente filho desses pais.

"E até hoje ela (Maria) é meio mãe dele (João). Ela protege muito, ela quer dar bronca, ela quer intrometer nas coisas dele (...) Por exemplo, a gente vai pra uma festa, ela quer escolher a roupa que ele vai, ela passa da conta da liderança, chega a ser intrometida. Tem hora que eu até tenho que falar com ela: 'Olha, ele tem mãe, e não é você não'" (Helena, mãe de Maria, F3).

Para Maila (F2), a relação dos meninos "sempre foi muito tranquila" (sic). De acordo com ela, os irmãos sempre foram "grudados" (sic) um com o outro. Apesar de Pedro (F2) ter apresentado alguns sinais de ciúmes em relação a seus brinquedos quando o irmão por adoção chegou, essas situações foram bastante sutis e quase imperceptíveis, segundo ela.

"Às vezes ele (Pedro) falava 'Esse brinquedo é meu', 'Isso sempre foi meu'. Mas não eram coisas de raiva, era só algumas colocações que ele fazia pelo espaço ter sido só dele até aquele momento. Mas foi algo muito sutil (...) Sutis comportamentos de não querer dar algumas coisas. Mas ele sempre dava tudo, no fim das contas" (Maila, mãe de Pedro, F2).

Ao longo da entrevista e em diversos momentos, Maila (F2) disse que a relação de seus filhos era uma relação "normal de irmãos" (sic). A mãe disse que esquece que Paulo (F2) veio pela adoção, parecendo negar a diferença entre a filiação consanguínea e adotiva. Foi possível apreender uma tentativa de naturalizar as relações que os filhos estabelecem entre si, tornando- as iguais ou próximas às relações existentes entre irmãos consanguíneos. Importante ressaltar que a negação de que a parentalidade e a filiação adotivas sejam diferentes é algo bastante comum em nossa sociedade, até mesmo nos dias atuais. A dificuldade de lidar com o diferente conduziria a uma tentativa de trazer esse contexto para o espaço da "normalidade". Entretanto, é essencial assumir a diferença entre a filiação consanguínea e adotiva, não para legitimá-la ou justificá-la, mas como uma condição que dignifica a singularidade de cada um (Otuka et al.,2012). A partir disso é possível apreender que reconhecer a condição peculiar de cada filho configura-se ainda como um desafio para Maila (F2).

De acordo com Dias e Queiroz (2015), as relações fraternas saudáveis envolvem a ambivalência de sentimentos e comportamentos. Os comportamentos denominados como positivos são aqueles em que os irmãos brincam juntos, protegem uns aos outros, orientam-se, entre outros. Entretanto é comum e até mesmo saudável que haja brigas, disputas, competição, ciúmes e outros comportamentos denominados negativos, a depender das situações em que estão inseridos (Dias e Queiroz, 2015; Harper et al., 2014; Meakings et al., 2017). Um indicativo de que há algo errado com o vínculo fraterno, de acordo com os autores, é quando a fase da lua de mel entre os irmãos perdura por muito tempo. O comum e esperado é que passada a fase de adaptação, os conflitos passem a acontecer. Quando elas não ocorrem é possível que a fratria esteja vivenciando uma patologia na capacidade da vinculação. Esse fenômeno, nomeado "indiferença" por Pichon-Rivière (2000), se dá quando ocorre um nível intenso de apatia entre os irmãos, e pode ser observado na ilustração a seguir:

 


Figura 1 - Clique para ampliar

 

Título: A primeira aparição minha do meu irmão

Como se verifica na Figura 1, Pedro (F2) realizou um desenho pequeno, sem cor e com pouca ação. A imagem corporal, que é uma experiência subjetiva, refere-se às percepções, aos pensamentos e aos sentimentos sobre o corpo (Saur et al., 2010). É possível inferir que Pedro (F2) expressa em seu desenho, além de certa timidez, fragilidade e empobrecimento do ego e na relação com seu irmão por adoção, que podem apontar para uma dificuldade na capacidade de vinculação fraterna.

Diferentemente do que se observou na Família 2, a relação entre César (F1) e suas irmãs durante os primeiros dias de convivência foi descrita pelo menino como "desagradável" (sic). Inicialmente, César (F1) se mostrou muito ansioso, alegre e eufórico. Esse primeiro momento esvaiu-se muito rápido, de acordo com sua mãe, Claudia (F1), e o primogênito começou a apresentar muita dificuldade em se relacionar com as irmãs, pois segundo ela as meninas interagiam de forma muito agressiva, inclusive com o irmão, e eram muito unidas entre elas.

"Quando elas chegaram eu adorei, eu gritei na maior altura 'Vocês que são... Vocês que vão ser minhas novas irmãs?'. Na hora que elas chegaram em casa, dormiram lá, aí eu senti que foi diferente. Eu lembro e não foi nada agradável. Foi agradável só na hora que eu conheci elas. O final, na hora de dormir, foi muito desagradável" (César, filho de Claudia, F1).

Na primeira fase da integração de um novo membro, na qual a família passa de um sistema triádico (mãe, pai e filho) para um sistema poliádico (mãe, pai, primogênito e irmão), os primogênitos passam a apresentar reações diversificadas frente ao novo membro, como sinalizar que precisam da mesma atenção que o outro, tomar os objetos do irmão, demonstrando controle da situação, intervir abertamente quando os pais estão interagindo com o filho mais novo (Dessen, 1997).

A partir disso, percebe-se que a chegada de um irmão, seja ele consanguíneo ou pela adoção, apesar de afetar todos os subsistemas familiares, parece ter um impacto emocional acentuado no primogênito (Dessen, 1997). Dessa forma, é comum que este apresente condutas caprichosas e travessuras, aumento na dependência e na propensão ao choro, pedido de colo, retrocesso na aprendizagem de hábitos de higiene, aumento de introversão e problemas relacionados ao sono, mostrando um período de regressão no desenvolvimento (Pereira e Piccinini, 2007).

"Ele (César) teve um momento de regressão muito grande, (...) voltou a fazer xixi e cocô na roupa, chupar chupeta, querer mamar na mamadeira, ele disputava atenção o tempo todo. (...) Ele era um menino muito alegre, muito esperto, ele teve um momento de apatia muito grande. De ficar prostrado, de chorar muito, de ter dificuldade de concentração na escola. E aí a gente teve que buscar ajuda, com profissionais mesmo. Então a gente passou... a gente passa até hoje por um processo de altos e baixos" (Claudia, mãe de César, F1).

Assim como na Família 1, a chegada de João, irmão por adoção de Maria (F3), ocasionou a disputa entre os filhos pela atenção dos pais e de outros familiares. De acordo com Helena (F3), a primogênita, Maria (F3), sempre apresentou ciúmes da relação que a mãe possui com seu irmão. Ainda segundo a mãe, Maria (F3) costumava empurrar o irmão quando ele chegava perto da mãe e voltou a lhe pedir colo. A filha consanguínea disse não se lembrar de sentir ciúmes quando era criança, mas quando a pesquisadora solicitou-lhe que desenhasse o que uma criança sente com a chegada de um irmão já crescido, mostrou que a chegada de seu irmão trouxe a necessidade de dividir os pais, que até então direcionavam a atenção, o carinho e os cuidados apenas a ela. Segue o desenho de Maria (F3):

 


Figura 2 - Clique para ampliar

 

Título: Irmão novo, Amor novo

A questão de a fratria deslocar o primogênito do lugar único e privilegiado que este ocupava até então na relação com seus pais se mostrou extremamente significativa também para César (F1) e pode ser observada quando a pesquisadora do estudo pediu-lhe para que desenhasse como uma criança se sente com a chegada de um irmão já crescido. César (F1) apresentou a unidade de produção a seguir:

 

 

Estória: Primeiro, todo mundo olhava pra mim, depois todo mundo ficou olhando pra elas e eu fiquei isolado. Antes, e depois, tá vendo? E aqui embaixo, o César tinha três retângulos enormes, só pra ele, um maior que o outro. Depois o César tinha um quadradinho, a Babi tinha uma bolona só pra ela e a Luana tinha um L enorme. De atenção... Pra mim, eu perdi toda a atenção. Primeiro eu tinha toda a atenção, depois eu tinha só Madagascar de atenção... Não, eu tinha o Japão, a Nova Zelândia. E a Babi tinha o mundo inteiro, e a Luana tinha a Ásia. Porque até hoje eu penso que mesmo eu achando que eu tenho menos, a Babi conseguiu ter muito mais atenção que a Luana também. Por que? Porque eu e a Luana ficamos muito na nossa. As pessoas ficam 'A Babi é a pequenininha, fofinha' (...) A Babi tem toda a atenção, ela é uma bruxa, ela tem tudo. Ninguém para de olhar pra Babi.

Título: Atos e Sentimentos, antes e depois.

Ao realizar a produção citada, César (F1) conseguiu deixar claro para a pesquisadora, tanto de forma ilustrada como verbalmente, que antes das irmãs chegarem possuía toda a atenção da família, o que representa como três retângulos enormes só para ele e que depois que as meninas foram inseridas na família a atenção diminuiu a ponto de ficar tão pequena quanto a Ilha de Madagascar, enquanto que as irmãs passaram a receber uma atenção tão grande quanto o Continente Asiático e o resto do mundo, associou. Dessa forma é importante destacar que o ciúme pode ser derivado de um sentimento de rivalidade e não aceitação em ter que compartilhar o amor pelos pais, auxiliando no processo da construção da personalidade do indivíduo. Esse sentimento é comum enquanto os irmãos também apresentam companheirismo e solidariedade, visto que o intuito é garantir um espaço dentro da família (Muniz e Féres-Carneiro, 2012).

De acordo com Dessen (1997), a introdução da segunda criança e sua integração dentro da família, na qual a reorganização é vista como um processo de desenvolvimento normal, implica em considerar as crises deste período. Além disso, para Meakings et al. (2017), a dinâmica que passa a existir na família após a chegada de um filho pela adoção irá influenciar e ser influenciada pela relação entre os irmãos, uma vez que a chegada de um filho pela adoção em uma família que já possui um filho consanguíneo cria uma nova conexão fraterna a ser explorada e ajustada. O esperado é que os sentimentos hostis na díade-fraterna, tais como inveja, ciúmes e rivalidade possam ser sublimados em sentimentos saudáveis, de competitividade, que lhe serão úteis nas relações sociais posteriores (Dias e Queiroz, 2015; Meakings et al., 2017).

A construção do vínculo na díade-fraterna

Para Penteado (2012), é necessário compreender a adoção como um processo no qual as relações vão se estreitando aos poucos, conforme a convivência, uma vez que a construção do afeto precisa de proximidade física e emocional, devendo ser conquistado com e na convivência, pois é na intimidade das relações construídas no cotidiano que o afeto germina, cresce e frutifica.

Corroborando com os resultados de Meakings et al. (2017), em que alguns pais participantes do estudo relataram que o desenvolvimento do vínculo fraterno se deu de forma suave, mas que a cada dia percebiam o crescimento de afeto e intimidade entre seus filhos, os relatos a seguir mostram os filhos consanguíneos de duas famílias, César (F1) e Maria (F3), enfatizando a natureza progressiva do vínculo entre os irmãos e demostrando que eles conseguiram lidar com essa construção de forma satisfatória, pois entenderam que o vínculo necessita de tempo para se constituir:

"No começo era mais assim: 'Será (que ele é meu irmão)? Ele ta chamando minha mãe de tia ainda'. Mas depois ele começou a chamar de mãe porque tinha aceitado ela como mãe, tinha tido uma confiança na gente. Acho que (virar irmão) demorou mais do que me chamar de irmã, porque no começo era uma festa. Acho que deve ter virado irmão quando surgem umas desavenças, sabe? Já tem mais contato, mais intimidade. Porque tem a parte boa e a parte ruim, se você passa tudo com ele, então aí sim acho que vira irmão" (Maria, filha de Helena, F3).

"Depois de um tempo elas (Luana e Babi) perceberam que podiam confiar em mim (...) e eu também fui percebendo, porque no começo eu era como o irmão desconhecido, o irmão que elas nunca tinham visto. E não era aquele irmão que a gente tinha afeto (...) A gente demorou um tempo pra poder ficar juntos, brincar juntos, porque hoje se você for lá na minha casa você vai ver a gente brincando junto, mas se você fosse na primeira vez que a gente se conheceu seria diferente" (César, filho de Cláudia, F1).

De acordo com Dias e Queiroz (2015), quando a adoção é concretizada enquanto os irmãos ainda são crianças, a construção do vínculo fraterno ocorre da mesma forma como em uma fratria biológica, uma vez que as crianças crescem dividindo vivências comuns e os vínculos podem ser estabelecidos de forma mais igualitária. Assim, apesar de a proximidade cronológica poder ser um fator que dificulta a adaptação do filho consanguíneo frente à chegada do irmão pela adoção, conforme constatado por Wedge e Mantle (1991), ela também permite um maior entrosamento e identificação entre os irmãos, segundo Brazelton e Sparrow (2007), uma vez que ambos se encontram sempre nas mesmas etapas do desenvolvimento.

Como apontado anteriormente neste estudo, a fratria é marcada por uma gama de sentimentos que normalmente transitam da rivalidade para a solidariedade. Os sentimentos de solidariedade e companheirismo aliados a uma realidade estreita de convivência, que estimula a intimidade, proporcionam que a díade-fraterna se transforme em um ambiente seguro, cujos integrantes se sentem livres para compartilhar segredos, sonhos, dores, alegrias e ansiedades (Dias e Queiroz, 2015; Harper et al., 2014).

O vínculo fraterno entre César (F1) e suas irmãs Babi e Luana (F1) ficou em evidência a partir do instrumento utilizado no presente estudo. Ao ser solicitado que fizesse um desenho sobre a sua família, César (F1) pensou por pouco tempo, logo virou a folha no sentido vertical e disse que achava que não caberia naquele espaço. Começou a desenhar uma árvore, surpreendendo a pesquisadora e, mostrando sua criatividade, explicou que faria a árvore genealógica da sua família dentro do desenho figurativo de uma árvore, como se vê a seguir:

Estória: "É.... É basicamente a minha família, é a minha família, mas faltou uma parte. É a família da minha mãe, a família do meu pai e aqui a minha família. A gente é muito unido. É isso, acho que eu já falei bastante sobre a minha família."

 

 

Título: A minha árvore genealógica

Na unidade de produção acima, a inclusão das irmãs pela adoção por César (F1) em sua árvore genealógica demonstra que o menino também veio a adotar as irmãs, juntamente com seus pais, e que eles conseguiram, em família, desenvolver um vínculo fraterno positivo e forte, consolidando um ambiente suficientemente bom necessário para o desenvolvimento das crianças (Winnicott, 1955-1997).

"O que mudou foi que agora eu sei como é ter um irmão, que irmão não é só ficar brincando junto, que irmão tem outras coisas, que irmão se ajuda na tarefa, que irmãos brincam, que irmãos brigam (...) Irmãos defendem o outro. Eu já defendi elas. Elas já me defenderam. Os meninos ficavam me zuando lá na escola e a Luana vinha e falava 'Vocês para agora de zuar o meu irmão, que eu to aqui, hein'" (César, filho de Cláudia, F1).

 

Considerações finais

A partir da análise das entrevistas, realizadas com as mães, e do procedimento Desenho-Estória Temático (DE-T), realizado com seus filhos consanguíneos, destaca-se a importância da compreensão sobre o impacto emocional da adoção para o filho consanguíneo, uma vez que a chegada de um irmão pela adoção mobiliza toda a família, em particular o filho já existente na família, que é obrigado a renunciar seu espaço privilegiado com a figura materna e paterna. Ao colocar o primogênito na situação de apenas mais um, a fratria possibilita a introdução da criança na rede das relações sociais uma vez que apresenta à criança a diferença entre a realidade psíquica e a realidade grupal na família e na sociedade como um todo. Por esse motivo, o vínculo fraterno pode ser visto como constitutivo do aparelho psíquico (Goldsmid e Féres-Carneiro, 2007).

Para que isso seja assegurado, destaca-se a necessidade de um ambiente suficientemente bom para o desenvolvimento das crianças que deve ser construído a partir de uma preparação de ambos os lados do processo, criança ou adolescente a ser adotado e família pretendente à adoção, compreendendo que esta pode envolver o(s) filho(s) já existente(s) do casal. Nessa preparação, destaca-se a importância de serem trabalhadas as ideias e expectativas que os sujeitos envolvidos têm frente ao que está por vir (Contente el al., 2013).

Os resultados deste estudo mostraram a ambivalência de sentimentos e pensamentos dos filhos primogênitos frente à adoção, e a reação dos mesmos diante da chegada do irmão. De acordo com nossas considerações, o impacto emocional de tornar-se irmão por adoção teve um significado único para cada filho consanguíneo, sendo sentido como mais ou menos intenso, porém tendo um caráter significativo para todos. Por esse motivo é importante que haja preparação e acompanhamento dos filhos antes e após a adoção, tanto por parte dos pais como de profissionais em torno do processo de vinculação, entendendo que o vínculo se dá por meio de uma construção que demanda empenho, cuidado e investimento dos que integram a família.

Mesmo reconhecendo as limitações do presente estudo, como o número pequeno de participantes e o fato de não ter envolvido os pais dos arranjos familiares, acredita-se que ele tenha contribuído para a maior visibilidade de arranjos familiares mistos e do vínculo fraterno. Além disso, ao ser realizado com os próprios filhos consanguíneos desses arranjos familiares, o estudo avançou no sentido de possibilitar entrever o impacto emocional causado pela adoção para estes, bem como os sentimentos que os acometem durante a construção do vínculo fraterno.

Aponta-se a necessidade de ser elaborado um método para a preparação legalmente garantida para os filhos já existentes na família, concomitante à preparação dos pais pretendentes assegurada pela Lei Nacional da Adoção (12.010/2009), além do acompanhamento da família após a adoção pela equipe psicossocial do judiciário com o objetivo de observar o processo de vinculação entre os irmãos e a família como um todo.

 

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Submetido em: 14.06.2018
Aceito em: 21.09.2019

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