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Contextos Clínicos
versión impresa ISSN 1983-3482
Contextos Clínic vol.13 no.2 São Leopoldo mayo/ago. 2020
https://doi.org/10.4013/ctc.2020.132.01
ARTIGOS
Sobre o início do tratamento: emoções do psicoterapeuta-aprendiz na clínica psicanalítica
On initiation of treatment: emotions of apprentice psychotherapist in psychoanalytic clinic
Renata Fernanda Bacaro; Maria Elizabeth Barreto Tavares dos Reis; Andréa Kioko Sonoda Gomes
Universidade Estadual de Londrina
RESUMO
Durante a prática dos estágios em psicoterapia psicanalítica, os psicoterapeutas vivenciam a amplitude dos entrelaçamentos psíquicos, inerentes aos atendimentos clínicos. O presente estudo teve como objetivo identificar as vivências emocionais de psicoterapeutas-aprendizes nos atendimentos clínicos iniciais, realizados em um serviço-escola. Trata-se de uma pesquisa clínico-qualitativa, de caráter exploratório, com a utilização de fatos clínicos. Participaram nove psicoterapeutas-aprendizes, assim como os pacientes por elas atendidos. Os dados foram analisados por meio do referencial teórico psicanalítico. Como resultados foi possível identificar a presença das seguintes vivências emocionais nos primeiros atendimentos clínicos: angústia, insegurança, preocupação, raiva e satisfação. Estas, por sua vez, apresentam aspectos pertinentes, relacionados aos fenômenos contratransferenciais, apontando ainda para a importância de considerá-los em toda a complexidade de um trabalho cujo objeto de estudo é o inconsciente.
Palavras-chave: entrevistas preliminares, prática clínica, psicanálise.
ABSTRACT
During the practice of internships in psychoanalytic psychotherapy, psychotherapists experience the breadth of psychic tangles inherent in clinical consultations. The objective of this study was to identify the emotional experiences of apprentice psychotherapists in initial clinical consultations performed in a psychology teaching clinic. This is an exploratory clinical-qualitative research, with the use of clinical facts. Nine apprentice psychotherapists participated, as well as the patients attended by them. Data were analyzed using the psychoanalytical theoretical framework. As a result, it was possible to identify the presence of the following emotional experiences in the initial clinical consultations: anguish, insecurity, worry, anger and satisfaction. These, in turn, present pertinent aspects related to countertransference phenomena, pointing to the importance of considering them in all the complexity of a work whose object of study is the unconscious.
Keywords: preliminary interviews, clinical practice, psychoanalysis.
Introdução
Transitar pelos caminhos da clínica psicanalítica implica em considerar um espaço no qual duas pessoas se encontram e vivenciam experiências emocionais que ressoam em ambos os integrantes desta relação. Estas transformam o setting em palco vivo, permeado pela heterogeneidade de movimentos conscientes e inconscientes, em uma lógica pouco simétrica, principalmente quando se consideram as experiências clínicas dos psicoterapeutas-aprendizes.
É, portanto, no espaço acadêmico que estes se defrontam com o início da prática clínica, no qual a articulação entre teoria e prática (Fernandes, et al., 2015; Silva et al., 2017) possibilitam ao discente vivenciar a amplitude dos entrelaçamentos psíquicos, inerentes aos atendimentos. Assim, durante a prática dos estágios, o psicoterapeuta vivencia experiências onde fenômenos, denominados por Freud como transferenciais e contratransferenciais, incitam o aprendiz a se permitir dar sempre um passo a mais.
Ao longo da obra freudiana a conceituação destes fenômenos foi reformulada, à medida que sua experiência clínica progredia. Em relação ao conceito de transferência, Freud (1912/2010) revela que todo ser humano adquire uma forma pessoal de viver suas relações amorosas, baseadas em experiências infantis com os primeiros objetos de amor, revivendo assim um "clichê" (p. 136), considerado na época como uma forma de resistência ao tratamento. Diante da ambivalência da transferência, sua definição incluiu mais dois significados: a transferência positiva, relacionada aos sentimentos carinhosos e amigáveis do paciente para com o analista, assim como desejos eróticos sublimados e transformados em um vínculo não erotizado (Zimerman, 1999/2008), e a transferência negativa, relativa aos sentimentos hostis, agressivos e depreciativos, assim como os de conduta sexual. Deste modo, o fenômeno transferencial foi considerado por Freud como algo preocupante, porém indispensável para o trabalho analítico.
Na clínica, a transferência é utilizada como uma técnica, possibilitando assim a repetição das relações amorosas/objetais vivenciadas pelo paciente, para que a posteriori possa elaborar as representações que se repetem. A partir da obra O ego e o id a concepção de transferência é ampliada, na qual Freud, considerando o complexo imbricamento das instâncias psíquicas e do conceito de pulsão de morte, compreende as resistências ao tratamento de modo diverso: a repetição emerge atrelada a um retorno a um estágio anterior, relativas ao nascimento (Freud, 1923/2011).
Outro importante fenômeno identificado por Freud foi a contratransferência que, estando estreitamente relacionado à transferência, caracteriza-se pelos sentimentos que acometem o terapeuta, advindos da relação com seu paciente (Freud, 1915/2017). Considerada como um obstáculo, proveniente de uma resistência inconsciente do analista, a contratransferência deveria ser evitada. O manejo clínico, nestes casos, deveria abranger o controle, a abstinência e a neutralidade, por parte da figura do analista, a fim de se proteger das intensidades afetivas provenientes da relação transferencial (Freud, 1915/2017).
Ainda que Freud reconhecesse a presença incontestável do inconsciente do analista, o foco do tratamento psicanalítico consistia nos movimentos psíquicos do paciente (Mezan, 2014/2019). A contratransferência passa a ser destacada pelos sucessores de Freud, em virtude da ampliação do tratamento psicanalítico a crianças e psicóticos, sendo compreendida como integrante da relação analítica (Zambelli et al., 2013). Autores pós-freudianos como Ferenczi, Heimann, Racker, Fédida, entre outros, ampliaram o constructo teórico e metodológico sobre a contratransferência, compreendendo-a sobretudo como um importante instrumento, o qual permite ao analista compreender melhor o paciente (Melo et al., 2014; Zambelli et al., 2013).
No contexto universitário, considerando-se os atendimentos clínicos iniciais, nem sempre os psicoterapeutas-aprendizes têm percepção das emoções e dos sentimentos suscitados, tanto relativos a si próprios, quanto relacionados aos pacientes. É natural, portanto, que as reações contratransferenciais sejam despercebidas, reprimidas (Racker, 1957/1988) ou negadas. A partir do momento em que se adquire a percepção destas reações, seja pela psicoterapia pessoal ou nas supervisões, o psicoterapeuta-aprendiz pode compreender a importância dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais emergentes no setting clínico.
Enfatizando a importância da análise pessoal para se compreender as vicissitudes da clínica psicanalítica, Winnicott (1947/2000), Racker (1957/1988) e Heimann (1950), abordam o tema da contratransferência, partindo de suas investigações clínicas, de modo diverso ao freudiano. Racker (1958/1988), compreende a experiência da relação psicoterapêutica vista sobretudo como uma relação "interpessoal da situação analítica" (p. 55), no qual os fenômenos transferenciais e contratransferenciais se entrelaçam. Assim, diante da inquestionável veracidade dos sentimentos transferidos pelo paciente à figura do psicoterapeuta, o mesmo acontece com os sentimentos suscitados no profissional em relação ao seu paciente, uma vez que por meio da contratransferência o psicoterapeuta pode vivenciar e compreender o que o paciente sente e o que está trazendo para a análise (Heimann, 1950; Racker, 1958/1988).
Embora a contratransferência norteie a prática do analista, sua compreensão na relação analítica não se constitui como uma tarefa fácil, pois implica que o analista consiga perceber os aspectos mobilizados, a partir de suas próprias reações, conseguindo integrá-las ao longo dos atendimentos (Racker, 1957/1988). Racker (1957/1988) apresenta os conceitos de contratransferência direta e indireta: no primeiro caso, o analista reage contratransferencialmente ao conflito vivenciado pelo paciente no setting e, no segundo, ele reage às questões conflituosas que emergem a partir de pessoas externas à cena analítica, interferindo indiretamente na conduta do analista. Ademais, o analista pode identificar partes de sua própria personalidade com as do paciente, incluindo também a empatia como uma contratransferência positiva sublimada, fenômenos estes denominados como identificação concordante ou homóloga. Quando o analista se identifica com os objetos internos do paciente, vivenciando-os como se fossem seus, tal fato refere-se à identificação complementar (Racker, 1957/1988). Se nesta experiência a intensidade emocional vivenciada constratransferencialmente atinge tal dimensão, na qual há o risco de o analista fundir-se, trata-se neste caso, do que Racker (1957/1988) denomina como posição contratransferencial. Em contrapartida, quando o analista tem a percepção das reações contratransferenciais e as utiliza para tentar desvendar o "reprimido ou rejeitado pelo paciente" (Racker, 1957/1988, p. 134), trata-se da ocorrência contratransferencial, na qual observa-se o uso da contratransferência enquanto um guia, um instrumento na prática analítica.
Reações mobilizadas no terapeuta durante os atendimentos clínicos, com a presença de atributos, tais como: o amor e o ódio (Heimann, 1950; Winnicott, 1947/2000), a angústia contratransferencial de caráter paranoide e/ou depressivo, a agressão contratransferencial, os sentimentos de culpa, sonolência e tédio (Racker, 1957/1988), constituem-se como vivências emocionais inerentes, sendo necessário submetê-las ao trabalho analítico (Heimann, 1950; Racker, 1958/1988). Por outro lado, o receio de ser agredido pelo paciente; o temor de ser recriminado, criticado ou desprezado diretamente ou indiretamente, isto é, pelo paciente ou a partir de pessoas exteriores ao contexto analítico, assim como o receio de piora ou adoecimento do paciente, correspondem respectivamente, à angústia contratransferencial paranoide direta, indireta e à angústia contratransferencial depressiva (Racker, 1957/1988). Cabe ressaltar que, de acordo com Racker, estas reações sinalizam aspectos referentes à análise e à própria neurose do analista, sendo necessário submetê-las ao trabalho analítico.
Sensações de frustração, culpa, impotência, sentidas pelo analista, corresponderiam também a importantes reações inconscientes, as quais exemplificam aspectos relacionados aos fenômenos transferenciais e contratransferenciais (Racker, 1957/1988). O impacto mútuo gerado pelo encontro clínico no qual paciente e psicoterapeuta vivenciam comunicações, verbais ou não-verbais, intencionais ou não (Zalavsky & Santos, 2006) evidenciam o quanto a contratransferência se consolida como um tema permanentemente em debate na clínica psicoterapêutica psicanalítica.
Os conceitos abordados neste estudo acerca da transferência e contratransferência integram parte do arcabouço teórico e metodológico que, no contexto da formação acadêmica, fundamentam a prática clínica sob enfoque psicanalítico do estudante. Este, por sua vez, vivencia os primeiros atendimentos de modo singular, pois ao mesmo tempo que esta experiência é almejada ao longo de sua formação, é também fonte de questionamentos e dúvidas (Aguirre, 2000). Torna-se, portanto, pertinente compreender o que representam as entrevistas iniciais na clínica psicanalítica, ainda que, para Freud, elas tenham sido problematizadas do ponto de vista intrapsíquico.
Em seu texto intitulado Sobre o início do tratamento Freud (1913/2010), faz alusão ao jogo de xadrez, esclarecendo que os múltiplos movimentos iniciais podem comprometer os finais. De forma análoga, ressalta a importância dos movimentos presentes nas primeiras entrevistas, consideradas como um "período de prova" (Freud, 1913/2010, p.165), um momento destinado ao diagnóstico diferencial, objetivando identificar a afecção que o paciente possui para posteriormente decidir ou não pelo tratamento psicanalítico.
A entrevista inicial tem por objetivo realizar um levantamento das condições emocionais e patológicas do paciente, ponderar sobre as vantagens e desvantagens do atendimento a essa pessoa, assim como identificar a modalidade de terapia psicológica que será recomendada (Zimerman, 1999/2008). Autores atribuem a este primeiro encontro um caráter imprevisível, visto que a partir da ampliação acerca da transferência e contratransferência, as entrevistas iniciais passaram também a incluir as vicissitudes inconscientes da dupla (Gerchmann, 2012; Quinodoz, 2002). Assim, aspectos mencionados anteriormente por Freud, relacionados aos momentos iniciais do tratamento, modificaram-se, de modo que outros atributos passaram a ser valorizados.
A transferência presente mesmo antes do primeiro encontro (Gerchmann, 2012), os acontecimentos que o antecedem, assim como a disponibilidade interna do analista para viver a potencialidade deste encontro (Assis, 2012), são alguns dos novos elementos destacados que configuram a coreografia inconsciente das entrevistas iniciais.
Refletindo sobre o início dos atendimentos clínicos no contexto universitário, torna-se profícuo discorrer sobre as emoções suscitadas não somente no paciente, mas também no psicoterapeuta-aprendiz e, mais especificamente, como essa relação é vivenciada pelo psicoterapeuta no começo de sua vida profissional. O início dos atendimentos clínicos se constitui como um momento permeado por muita ansiedade para o estagiário em formação, no qual dúvidas e inseguranças emergem, geralmente voltadas para o seu desempenho como futuro profissional (Aguirre, 2000; Aguirre et al., 2000; Barbosa et al., 2013, Silva et al., 2017).
O futuro psicoterapeuta trava uma batalha com um modelo idealizado de bom psicólogo criado por ele mesmo ao qual se compara constantemente, sentindo-se sempre em posição inferior, apresentando dúvidas quanto ao seu desempenho como psicólogo, medo de "não saber o que fazer, de fazer algo tão errado que comprometa o cliente, de descobrir que não tem jeito para a coisa, de ser criticado pelo supervisor ou pelos colegas" (Aguirre, 2000, p. 06). Tais dificuldades retratam o quanto a vivência dos atendimentos clínicos repercute de formas diversas no estagiário, configurando-se como uma experiência subjetiva (Aguirre et al., 2000; Lopes & Castro, 2018), sendo necessário cautela na preservação da própria identidade frente ao outro, para não correr o risco de "confundir-se com ele" (Aguirre et al., 2000, p. 54).
Além disso, preocupações referentes à insuficiência do conhecimento teórico, aos aspectos metodológicos (Iwashima et al., 2019; Lopes & Castro, 2018), como o manejo transferencial, estratégias de intervenção e elementos referentes à atitude clínica, permeiam o cenário de indagações e questionamentos do processo de construção do futuro psicoterapeuta (Lopes & Castro, 2018). As primeiras experiências são referidas como um momento de intensa carga emocional, cujas turbulências evidenciam aspectos que mobilizam o estudante (Mueller & Castro, 2017). Diante do turbilhão de emoções vivenciadas, o aprendiz utiliza algumas estratégias de sobrevivência, podendo optar provisoriamente por um "lugar de reclusão, ressentimento e de evitação" (Mueller & Castro, 2017, p. 226).
Tais posicionamentos se constituem enquanto recursos defensivos, condizentes com as características inaugurais dos encontros clínicos, mas também sinalizam aspectos transferenciais e contratransferenciais. Caso o psicoterapeuta não compreenda estas nuances, a intensidade das emoções vivenciadas pode lançá-lo aos recônditos de sua própria história, de modo que a vivência dos atendimentos clínicos possa ser sentida como insuportável, além das dificuldades para se pensar sobre os atendimentos clínicos (Mueller & Castro, 2017).
A compreensão dos fenômenos contratransferenciais enquanto integrantes da relação e relevantes para o processo psicoterapêutico (Iwashima et al., 2019) pode se configurar como um instrumento para a apropriação do lugar de psicoterapeuta, auxiliando-o a encontrar o seu próprio jeito de ser (Lopes & Castro, 2018). Neste processo de construção, as dificuldades vivenciadas pelos estagiários correspondem também a uma série de situações correlacionadas a um processo de transição, tanto dos pacientes com seus conflitos, quanto dos psicoterapeutas (Iwashima et al., 2019). A transição da posição de estudantes para a de profissionais, designada como "adolescência profissional" (Iwashima et al., 2019, p. 39), configura-se como um aspecto relevante para se compreender as dificuldades enfrentadas nos atendimentos clínicos.
Os desafios presentes integram parte de uma experiência, cujo amadurecimento depende também da figura do supervisor (Silva et al., 2017), cabendo a este orientar o estagiário em relação ao manejo de técnicas e, sobretudo, acolher as diversas angústias trazidas pelos alunos em relação aos atendimentos (Aguirre et al., 2000; Barbosa et al., 2013). Este acolhimento possibilita uma compreensão acerca do sofrimento dos integrantes da relação terapêutica (Lopes & Castro, 2018; Mueller & Castro, 2017) e proporciona um espaço para a metabolização das experiências vivenciadas, semelhante à capacidade de rêverie materna, necessária para que transformações possam advir (Mueller & Castro, 2017).
O início da vida profissional é um período de diversas impressões que marcam o sujeito, com variadas sensações e sentimentos. As exigências, a postura como profissionais e a responsabilidade perante o paciente permeiam as fantasias dos estagiários de Psicologia. Sendo assim, este trabalho teve como objetivo identificar as vivências emocionais dos psicoterapeutas-aprendizes nos atendimentos clínicos iniciais, realizados em um serviço-escola.
Método
Este estudo foi realizado por meio do método clínico-qualitativo (Turato, 2005). Tal modalidade de pesquisa busca uma compreensão dos fenômenos humanos, em seus diversos sentidos e significados. Aplicada em settings específicos da saúde, a pesquisa clínico-qualitativa considera também a implicação subjetiva do pesquisador, como instrumento para a coleta e registro dos dados do estudo (Turato, 2005).
A presente pesquisa faz parte de um estudo mais amplo, realizado em uma universidade pública do sul do Brasil, sendo que o foco de análise foram as emoções vivenciadas pelos psicoterapeutas-aprendizes no início do tratamento. Como critério de inclusão foram consideradas: as primeiras cinco sessões realizadas em cada caso de pacientes com idade igual ou superior a treze anos.
A amostra foi constituída por nove psicoterapeutas-aprendizes, bem como os nove pacientes por eles atendidos. Todos os aprendizes eram do sexo feminino e suas idades variaram entre 20 a 25 anos, sendo estagiárias do 5° ano de graduação no curso de Psicologia e psicólogas de um curso de especialização em Clínica Psicanalítica. Todos os que se dispuseram a participar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido aprovado pelo Comitê de Ética da Instituição. Para garantir o sigilo e confidencialidade dos participantes, cada caso, assim como a sessão selecionada, foram identificados por letras e números.
A coleta de dados procedeu-se do seguinte modo: inicialmente foi solicitado aos estagiários que elaborassem relatórios de atendimentos psicoterápicos fundamentados na psicanálise, contendo as emoções vivenciadas por eles próprios. A análise dos dados foi realizada inicialmente por três pesquisadoras da equipe do projeto, as quais fizeram uma leitura individual, com atenção flutuante (Bardin, 1977/2016), objetivando identificar as emoções vivenciadas pelos psicoterapeutas-aprendizes decorrentes do atendimento.
Os dados foram organizados em tabelas, relativas a cada caso, com as seguintes informações: número da sessão; vinheta destacada; emoções identificadas individualmente pelas três pesquisadoras, assim como as justificativas apresentadas por cada uma delas. Foi utilizado como critério a concordância entre pelo menos duas pesquisadoras sobre a emoção/vivência detectada, assim como a vinheta selecionada, para a escolha do fato clínico. O fato clínico psicanalítico corresponde à totalidade dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais presentes no setting analítico (Ferrari et al., 2015; Quinodoz, 1994), constituindo-se "como uma palavra bivocal apresentada de forma a remeter à dialogia entre analista e analisando, narrando assim essa dupla presença" (Silva & Macedo, 2016, p.525). Neste estudo, o fato clínico selecionado correspondeu às emoções vivenciadas pelos psicoterapeutas-aprendizes durante os atendimentos clínicos.
A seguir foram elaboradas algumas pré-categorias, que nomeavam as vivências emocionais identificadas e discutidas nas reuniões. Estas subcategorias foram reanalisadas e validadas com a equipe do projeto. Assim, todas as vinhetas pré-selecionadas foram submetidas às categorias, por meio de uma nova análise individual das três pesquisadoras. Utilizando o mesmo critério de análise (necessidade da aquiescência de pelo menos duas pesquisadoras), foram construídas novas tabelas, contendo as vinhetas elencadas para a discussão de dados. Posteriormente foi confeccionado um terceiro modelo de tabela, com informações sobre a caracterização dos pacientes e seus respectivos casos, contendo: número do caso, idade do paciente, número total de sessões realizadas, categorias e número de sessões nas quais as emoções foram detectadas. Assim, foi possível, ressaltar em quais sessões ocorreram cada tipo de categoria. Finalmente, foi realizada a análise dos fatos clínicos de acordo com respectivas emoções vivenciadas pelos psicoterapeutas-aprendizes, detectadas nas primeiras cinco sessões realizadas em cada caso. A análise dos dados foi feita com base no aporte teórico psicanalítico.
Resultados e Discussão
Visando apenas apresentar um panorama dos casos atendidos, seguem as principais queixas apresentadas pelos pacientes atendidos pelas psicoterapeutas-aprendizes: ansiedade, crises de pânico, depressão, dificuldades de relacionamento interpessoal em diferentes contextos (amizade, amoroso, familiar) e dificuldades de atenção na escola. Entretanto, conforme já mencionado, ressalta-se que o foco do estudo foram as vivências emocionais das psicoterapeutas-aprendizes durante os atendimentos.
Verificou-se que as vivências emocionais relatadas pelas acadêmicas de ambos os cursos, graduação e especialização, foram semelhantes. Assim, optou-se por realizar a análise e discussão dos dados sem identificar se cada psicoterapeuta-aprendiz era graduanda ou psicóloga. As categorias a seguir compreendem as vivências emocionais das psicoterapeutas-aprendizes nos atendimentos clínicos iniciais. Foram elencadas para este estudo cinco categorias de análise: angústia, insegurança, preocupação, raiva e satisfação.
Angústia
Observou-se nesta categoria a presença de angústia, relacionada à intensidade das vivências emocionais, presentes nos atendimentos clínicos, conforme ilustram as seguintes vinhetas: "Me senti bem confusa em entender a demanda da paciente, pois ela contou muitas coisas, trouxe vários dados, mas ainda está confuso compreender o que realmente a deixa desmotivada, chora sem motivo, e deprimida." (Caso 8, sessão 1)
As falas das psicoterapeutas-aprendizes retratam momentos de desconforto e confusão, vivenciados no setting e se referem ao primeiro atendimento realizado com os pacientes.
A paciente falou durante a sessão toda, sem parar, foram poucas as coisas que consegui pontuar. Me deu uma sensação de sufocamento, eu tentava acabar a sessão, até que chegou um momento e eu disse: P. já acabou o horário, outras pessoas utilizam essa sala, precisamos encerrar (Caso 4, sessão 1)
Considerando esta nuance nota-se que já neste momento inicial, os pacientes comunicam seus conflitos de tal modo que, contatransferencialmente a psicoterapeuta-aprendiz sente-se sufocada, como se vivenciasse o desconcerto do outro como seu (Racker, 1957/1988). Estes fatos revelam aspectos pertinentes: a vivência dos atendimentos iniciais repercute inevitavelmente no psicoterapeuta (Aguirre et al., 2000) e as primeiras entrevistas já sinalizam elementos transferenciais e contratransferenciais (Heimann, 1950; Racker, 1958/1988).
As dificuldades que emergem no encontro com o outro, denominadas como contratransferenciais (Freud, 1915/2017; Racker, 1957/1988), nem sempre são facilmente percebidas pelo psicoterapeuta-aprendiz. Com o avanço dos atendimentos clínicos, o psicoterapeuta pode, aos poucos, ter maior percepção destes aspectos. O olhar da psicoterapeuta às próprias emoções no setting, evidenciam fatos interessantes, conforme mencionado na seguinte fala: "Nesse momento, parecia que 'do nada' fiquei cansada, sem energia. Pensei depois que esse cansaço podia ser relacionado às tentativas que A. provoca para que as pessoas notem que ele está vulnerável" (Caso 7, sessão 5)
Observa-se que a psicoterapeuta relaciona o cansaço sentido com aspectos referentes às vivências emocionais do paciente, denominado por Racker como ocorrência contrantransferencial, o qual denota um possível uso da contratransferência enquanto instrumento que auxiliaria na compreensão do paciente (Melo et al., 2014; Racker, 1957/1988; Zambelli et al., 2013; Zimerman, 1999/2008). Há uma aproximação, uma investigação do que ocorre com o paciente de modo diferenciado, uma disponibilidade interna em compreender a vivência do paciente, considerando os movimentos inconscientes que integram a relação da dupla (Racker, 1957/1988).
Por meio das falas das psicoterapeutas-aprendizes, notamos dois movimentos distintos: ora as emoções vivenciadas durante os atendimentos referem-se àquelas pertencentes aos pacientes, ora integram as constelações psíquicas dos integrantes da dupla psicoterapêutica. A importância de considerar a intensidade das vivências emocionais na intimidade de uma relação, que é sobretudo intersubjetiva, evidencia uma perspectiva particular, o qual ampliaria a escuta psicanalítica, de modo a possibilitar um maior alcance desta função. Cabe ressaltar que estas vivências não se restringem apenas às experiências de psicoterapeutas em formação, ou iniciantes. Até mesmo profissionais mais experientes podem se desconcertar diante dos atendimentos clínicos, de modo que os últimos, obtêm mais êxito em discernir suas emoções, utilizando-as inclusive como instrumento para o trabalho clínico.
Insegurança
As psicoterapeutas-aprendizes desta pesquisa estavam iniciando sua vida profissional, com pouca ou nenhuma experiência clínica até então. A insegurança, portanto, apareceu intimamente ligada ao manejo clínico e aos aspectos metodológicos envolvidos no atendimento, onde elementos relacionados à própria postura como psicoterapeuta, os modos de aplicar a técnica foram citados, conforme ilustrado a seguir:
"Também quando a paciente questionou sobre a abordagem e o teórico, me senti perdida sem saber o que responder e depois me senti culpada, pensando que deveria ter respondido sobre o teórico." (Caso 1, sessão 1)
O paciente quer mostrar que sabe, que entende da psicanálise, e isso me faz sentir insegurança e até desrespeito da parte dele me desafiando o tempo todo. Mas só fica no campo da razão, que é onde ele é o 'bonzão', e isso é um mecanismo de defesa para acessar seu inconsciente. (Caso 9, sessão 3)
Observa-se que as psicoterapeutas-aprendizes se situam em terrenos desconhecidos: estão vivenciando as primeiras vivências da prática clínica; defrontam-se com os conflitos dos pacientes e deparam-se com as próprias emoções as quais, conforme mencionado na categoria anterior, nem sempre são percebidas como elementos inconscientes peculiares aos atendimentos clínicos. As inseguranças relatadas pelas psicoterapeutas, assim como os questionamentos dos pacientes quanto aos aspectos teóricos (Aguirre, 2000; Aguirre et al., 2000; Barbosa et al., 2013; Silva et al., 2017; Lopes & Castro, 2018) parecem desconcertar as aprendizes. A culpa e a sensação de sentir-se desrespeitada são reações evidentes deste desconcerto. À primeira vista e, pelas falas das psicoterapeutas, parecem demonstrar uma incerteza quanto ao manejo clínico que as remetem a dúvidas quanto ao próprio desempenho profissional (Aguirre, 2000; Aguirre et al., 2000; Barbosa et al., 2013; Iwashima et al., 2019; Lopes & Castro, 2018; Silva et al., 2017), assim como podem evidenciar aspectos contratransferenciais envolvidos, justificados na segunda vinheta (Caso 9, sessão 3) teoricamente.
A tentativa de recorrer ao arcabouço teórico advém como um recurso defensivo. Tal fato é esperado, uma vez que a prática dos atendimentos clínicos se constitui como uma experiência subjetiva (Aguirre et al., 2000; Lopes & Castro, 2018), e considerando que os psicoterapeutas-aprendizes se encontram em um processo de formação (Iwashima et al., 2019; Lopes & Castro, 2018), alguns tentam unir teoria e prática, incialmente, de modo fragmentado. Assim, pelo fato de não perceberem o quanto as emoções vivenciadas durante os atendimentos revelam atributos tantos de si mesmos, quanto dos pacientes, acabam por teorizar os acontecimentos, não os integrando na relação psicoterapêutica. Por outro lado, a insegurança relatada pelas psicoterapeutas-aprendizes aparece vinculada à comparação que a própria psicoterapeuta-aprendiz faz com um modelo de profissional idealizado por ela (Aguirre 2000), conforme mencionado nas falas a seguir: "Me senti irritada com a comparação com outras terapeutas, dando a entender que 'será que você é suficiente?' (Caso 9, sessão 1)
Isso trouxe em mim um certo tipo de insegurança, pois é como se eu não fosse boa o suficiente para dar um nome ao sofrimento que ela passa. Mas não é isso, o tempo é que é insuficiente para determinar o que faz essa pessoa ser como é. (Caso 6, sessão 1)
As emoções vivenciadas pelas psicoterapeutas nos atendimentos iniciais parecem convocá-las a ocupar um lugar do qual ainda estão se apropriando (Lopes & Castro, 2018). As psicoterapeutas-aprendizes encontram dificuldades em perceber que esta trajetória se constitui como um processo a ser trilhado ao longo dos anos, nos quais as primeiras experiências clínicas compõem-se como o início de uma etapa, dentre tantas outras no percurso profissional.
As reações de insegurança, sentidas contratransferencialmente como se fossem uma retaliação (Mueller & Castro, 2017; Racker, 1957/1988), parecem denotar um receio, tanto das psicoterapeutas, como dos pacientes nas primeiras sessões, denotam perturbações inerentes no conluio transferencial e contratransferencial (Gerchmann, 2012; Heimannn, 1950; Quinodoz, 2002; Racker, 1957/1988), revelando expectativas dos integrantes da relação psicoterapêutica. A percepção destes aspectos singulares, assim como a compreensão da importância da intimidade das emoções vivenciadas no encontro com o outro, sinalizam movimentos microscópicos deste encontro, não integrados pelas psicoterapeutas-aprendizes, as quais acabam vivenciando os acontecimentos de forma persecutória, parecendo sentirem-se avaliadas por seus pacientes. Ao mesmo tempo que estes fatos podem, inclusive, interditar o desenrolar da trama narrativa, podem igualmente paralisar as psicoterapeutas-aprendizes, as quais vivenciam uma "adolescência profissional" (Iwashima et al., 2019, p. 39) e parecem vivenciar narcisicamente as vicissitudes do encontro, como se estas demonstrassem uma constante denegação de sua identidade de futuro profissional.
Importante destacar que o contexto acadêmico é justamente o espaço no qual o psicoterapeuta em formação terá contato com a aprendizagem tanto da teoria, quanto da técnica psicanalítica. Esta, por sua vez, precisa ser à princípio "ensinada", sem resumir-se à uma mera aplicação técnica ou um modelo a ser seguido, para que posteriormente o psicoterapeuta possa se apropriar de um estilo próprio, para vivenciar a complexa coreografia que singulariza a clínica psicanalítica.
Preocupação
A preocupação foi identificada como uma emoção também presente na experiência dos atendimentos clínicos. Esta categoria deu origem a duas subcategorias, sendo elas: preocupação em relação ao estado emocional do paciente e preocupação em relação às situações de risco em que o paciente se coloca. No que se refere à primeira subcategoria, a psicoterapeuta-aprendiz demonstra a seguinte preocupação sentida:
Como se ninguém mais conseguisse olhar e talvez nem eu. Por baixo da capa de um menino disperso estava um menino que sofreu bullying e ninguém soube ou percebeu. A rejeição da sala toda também me tocou, que difícil ser expulso dessa forma. Penso que para ele isso deve ter sido como uma queda de um precipício tal como acontece no jogo da caverinha, mas quem está machucado agora é ele. (Caso 7, sessão 5)
A psicoterapeuta parece reconhecer a realidade vivenciada pelo paciente de modo empático, que pode denotar uma possível identificação com o mesmo, no qual a aprendiz, na tentativa de compreender o que se passa com o paciente utiliza deste recurso (Racker, 1957/1988). Assim, pela escuta, ela oferece sustentação para acolher o sofrimento do paciente. Se esta preocupação adquirir uma intensidade, a ponto de a psicoterapeuta misturar-se na relação com o paciente, poderia relacionar-se a uma angústia contratransferencial de caráter depressivo (Racker, 1957/1988). Na segunda subcategoria, a preocupação relacionou-se à frequente exposição do paciente a situações de risco de vida, exemplificado na vinheta a seguir:
Seu primo está preso e é extremamente envolvido com o crime, faz parte da facção PCC, que já conversou com ele e ele prometeu resolver a situação. (Fico um pouco assustada neste momento, pois demonstra muita raiva, ódio). (Caso 5, sessão 5)
A inquietação sentida diante do conteúdo manifesto pelo paciente, parece demonstrar uma reação contratransferencial da psicoterapeuta. Os sentimentos de raiva e ódio (Heimann, 1950; Mueller & Castro, 2017; Winnicott, 1947/2000) captados pela psicoterapeuta-aprendiz, emergem como ruídos que podem denotar conturbados aspectos transferenciais envolvidos. Este relato parece traduzir movimentos internos inconscientes da psicoterapeuta-aprendiz, condizentes com os acontecimentos que emergem no campo psicoterapêutico.
Raiva
Outra emoção presente nos atendimentos clínicos e detectada pelas pesquisadoras referiu-se à raiva. Esta categoria tambémoriginou duas subcategorias: raiva decorrente de manifestações transferenciais negativas por parte do paciente e raiva devido à ausência do paciente na psicoterapia.A primeira subcategoria diz respeito às hostilidades voltadas a pessoa da psicoterapeuta no momento do atendimento, que resulta na raiva da psicoterapeuta-aprendiz, exemplificado nas vinhetas a seguir:
Ela questiona sobre o teórico da psicanálise que é utilizado na sessão, afirmando que eu não a respondi e eu digo que não é pertinente dizer, pois estamos lá para trabalhar sobre os conteúdos da vida dela, ela pergunta se posso ficar após o horário para responder, eu digo que não, pois a nossa relação é de paciente-terapeuta, não é possível estender a relação e que a abordagem e o teórico era importante para um direcionamento do meu trabalho, mas durante a sessão estávamos trabalhando sobre a história de vida dela. (Caso 1, sessão 1)
Fui levantando, porque estava dando o horário, e ela falando que talvez não estaria, eu disse pra ela avisar na Clínica. Foi complicado atender ela, ela é sempre muito confusa, e quando é preciso "negociar", falo negociar, porque me parece mais isso mesmo, ela tentar fazer que seja do jeito dela, preciso ser firme e não deixar que ela manipule as trocas de horário. (Caso 4, sessão 4)
Observa-se a dificuldade das psicoterapeutas-aprendizes em compreender que o movimento trazido pela paciente na sessão refere-se a aspectos transferenciais negativos (Freud, 1912/2010; 1923/2011; Zimerman, 1999/2008). Assim, elas parecem reagir contratransferencialmente à transferência dos pacientes, respondendo de forma igualmente agressiva. Os movimentos inconscientes dos pacientes despertam nas aprendizes emoções fortes, pesadas (Freud, 1915/2017; Heimann, 1950; Mueller &
Castro, 2017; Racker, 1958/1988; Winnicott, 1947/2000). Refletem aspectos da dinâmica psíquica dos próprios pacientes e podem sinalizar elementos dos próprios conflitos das psicoterapeutas (Racker, 1958/1988). Porém, as psicoterapeutas reagem, sentindo-se afrontadas em seus conhecimentos teórico-metodológicos (Iwashima et al., 2019; Lopes & Castro, 2018), vivenciando a relação transferencial/contratransferencial como um ataque a si mesmas, fundindo-se na experiência, característica de uma posição contratransferencial (Racker, 1957/1988).
As inquietações sentidas pelas psicoterapeutas-aprendizes, nomeadas nesta categoria como raiva, demonstram também dificuldades e fragilidades que comprometem a escuta analítica, reduzindo a potencialidade de decodificação das projeções como elementos essenciais para a exploração do material clínico. Na segunda subcategoria, a raiva relaciona-se à falta do paciente na terapia, sem aviso prévio, sendo visto pela psicoterapeuta-aprendiz como um "tempo perdido", um investimento somente da psicoterapeuta na relação terapêutica: "Senti raiva por não ter aproveitado meus sobrinhos, ter ido até o serviço-escola naquele horário, gastar com ônibus." (Caso 1, sessão 2)
Tentei ligar inúmeras vezes do meu celular com o código de número privado. Quando ela atendia dizia que não estava me ouvindo e pedia para enviar torpedo, ou dizia que não tinha nada para falar comigo e nem tempo, não sabia quem eu era. Eu estava desesperada, com medo de não conseguir falar com ela e de ela não ir mais para o atendimento. (Caso 1, sessão 2)
Observa-se que a psicoterapeuta demonstra sua raiva diante das atitudes apresentadas no segundo atendimento pela paciente. Embora não seja objetivo deste estudo discorrer sobre as especificidades das questões da paciente, torna-se pertinente, neste contexto, elucidar alguns dados para melhor compreensão dos fatos. Na primeira sessão a paciente trouxera assuntos difíceis, relacionados a troca de terapeuta e a um possível abuso sofrido. A raiva sentida pela psicoterapeuta parece demonstrar um não reconhecimento do encadeamento psicodinâmico envolvido, no qual a dificuldade de contactar a paciente, assim como a falta não justificada poderiam sinalizar aspectos pertinentes e inerentes da relação transferencial e contratransferencial (Heimann, 1950; Racker, 1957/1988; Racker, 1958/1988; Winnicott, 1947/2000). Deste modo, a raiva da psicoterapeuta-aprendiz pode remeter a movimentos inconscientes da dupla, uma vez que as turbulências emocionais envolvidas (Mueller & Castro, 2017) parecem mobilizar ambas.
Ao mesmo tempo, a aprendiz denota o possível desconhecimento da importância dos acontecimentos que antecedem os primeiros encontros como aspectos relevantes a serem valorizados na relação terapêutica (Gerchmann, 2012; Quinodoz, 2002). Além disso, a aparente dificuldade na comunicação da dupla - em um cenário no qual elementos transferenciais e contratransferenciais parecem se entrelaçar - pode prejudicar o desenvolvimento de uma aliança terapêutica, aspecto este intrínseco aos primeiros atendimentos clínicos.
As narrativas das experiências mencionadas nesta categoria refletem algumas dificuldades vivenciadas nos primeiros atendimentos, as quais são esperadas no início de um processo de prática clínica. Sinalizam a complexidade e vicissitudes de um trabalho com o inconsciente cuja compreensão constitui-se como um trabalho em constante crescimento e desenvolvimento.
Satisfação
A vivência emocional de satisfação relacionou-se ao manejo clínico realizado pela psicoterapeuta-aprendiz, conforme mencionado no Caso 6 (sessão 3) "Acredito que foi uma boa sessão e que consegui fazer os apontamentos necessários. Me senti bem e não saí da sessão com uma sensação de 'faltou algo'" e no Caso 3 (sessão 5) "Contudo, acho interessante anotar que senti um 'rendimento' especialmente nesse atendimento. A paciente me agradeceu no final e aparentemente sentiu a mesma coisa pois me disse 'Hoje foi muito bom, rendeu'."
Nestas situações, a satisfação está relacionada a um possível sentimento de segurança e contentamento das psicoterapeutas-aprendizes quanto às suas performances. A ausência da pressão ou de situações difíceis de ser contornadas pelas psicoterapeutas parecem possibilitar a vivência de uma relação empática, denominada por Racker (1957/1988) como contratransferência positiva sublimada, contribuindo para o fortalecimento do vínculo e desenvolvimento da aliança e do processo terapêuticos.
Nota-se então, que a ausência de movimentos hostis, conforme relatados nas categorias anteriores, parece aproximar psicoterapeuta e paciente. As psicoterapeutas, talvez pelo fato de não se sentirem afrontadas, relacionam a satisfação à performance e ao manejo clínico, atributos valorizados pelos aprendizes e fonte de preocupação no início da prática em clínica nos serviços-escolas (Iwashima et al., 2019; Lopes & Castro, 2018). É pertinente ressaltar que a emoção detectada nestes casos não se constitui como uma garantia efetiva de um conluio intersubjetivo, porém demonstra possibilidades de compreensão dos acontecimentos que emergem nos atendimentos clínicos, sob a perspectiva dos psicoterapeutas-aprendizes.
Considerações finais
O início da vida profissional é um grande desafio, permeado de dúvidas e inseguranças em relação ao futuro. Para o psicoterapeuta-aprendiz, o não entendimento das emoções de seus pacientes e muitas vezes de suas próprias emoções podem dificultar sua compreensão acerca dos fenômenos presentes no setting terapêutico. Os atendimentos iniciais são atravessados por diversos questionamentos que acometem os psicoterapeutas-aprendizes, em relação à postura a ser adotada diante do paciente, à uma possível insuficiência teórica, além de outras questões inerentes ao início de uma nova etapa da vida e, com ela, toda a responsabilidade envolvida.
As vivências emocionais destacadas neste estudo, nomeadas como angústia, insegurança, preocupação, raiva e satisfação, apresentam "aparentemente" características que podem remeter a significados do senso comum. Porém, sinalizam aspectos sutis, quando compreendidas sob o vértice psicanalítico. Tais sutilezas integram especificidades de um conluio inconsciente, cuja investigação deve ser constantemente depurada, de acordo com o aporte clássico e contemporâneo da psicanálise.
Em suas primeiras vivências na prática clínica o psicoterapeuta-aprendiz é convocado a ocupar um lugar do qual ainda não se sente preparado. Esta experiência resulta em uma combinação de emoções que precisam ser acolhidas e compreendidas, para que futuramente haja o entendimento de que o início da vida profissional é parte de um processo do qual todos precisam vivenciar. Deste modo, ressalta-se a importância da psicoterapia pessoal e também da supervisão, visando aprimorar a compreensão de si mesmo e da relação com o outro.
No contexto da formação universitária, a supervisão se constitui como elemento primordial, uma vez que cabe ao supervisor proporcionar um ambiente seguro e acolhedor às angústias e inseguranças dos psicoterapeutas-aprendizes, orientando-os, favorecendo o conhecimento e o aperfeiçoamento deste futuro profissional. Deste modo, o psicoterapeuta-aprendiz pode sentir-se amparado teórica e emocionalmente, contribuindo para sua confiança diante das adversidades dos atendimentos clínicos. Ademais, é importante considerar o contexto universitário enquanto espaço profícuo para a aprendizagem de aspectos referentes à própria técnica psicoterapêutica, independentemente do pluralismo teórico existente.
Este estudo buscou chamar a atenção para a amplitude das emoções vivenciadas pelos psicoterapeutas-aprendizes, elencando algumas possibilidades de compreensão acerca da complexidade de um trabalho, quando se considera o encontro com o inconsciente. Conforme mencionado anteriormente, tais vivências não se restringem somente às experiências clínicas dos iniciantes, isto é, analistas ou psicoterapeutas experientes podem igualmente se mobilizar diante das emoções que a clínica desperta. Evidenciar a perspectiva do aprendiz poderá contribuir para refletir sobre as possíveis lacunas referentes à formação dos estudantes de psicologia, principalmente àqueles que optam pelos estágios em clínica psicanalítica, assim como pode auxiliar na compreensão de aspectos técnicos, relativos à avaliação diagnóstica, condução das entrevistas iniciais e fenômenos ligados à aliança terapêutica. Estudos futuros que abordem a temática das emoções vivenciadas, sob o ponto de vista do supervisor, trariam dados pertinentes.
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Correspondência para:
Renata Fernanda Bacaro
Universidade Estadual de Londrina
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Submetido em: 03.07.2020
Aceito em: 05.10.2020