Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
Compartir
Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
versión On-line ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.3 no.2 Juiz de fora dic. 2010
ARTIGOS
Câncer na mãe e o impacto psicológico no comportamento de seus filhos pequenos1
Mother's cancer and the psychological impact on small children's behavior
Elisa Kern de Castro2; Clarisse Job
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil
RESUMO
O câncer é uma doença que, além de debilitar a pessoa fisicamente, provoca alterações psicológicas muito importantes. O objetivo do trabalho é examinar as percepções de mães com câncer sobre o comportamento de seus filhos em relação a elas e à sua doença, bem como conhecer a sua visão sobre o quanto a doença materna pode afetá-los emocionalmente em seu dia-a-dia. Participaram do estudo três mulheres jovens adultas com câncer. O instrumento utilizado foi uma entrevista semiestruturada. Os resultados encontrados mostraram que as mães relataram mudanças no comportamento dos filhos, que se tornaram mais ansiosos, confusos e estressados após o diagnóstico das mães. Além disso, observou-se que as mães apresentaram problemas ao tentar lidar com as exigências de serem mães ao mesmo tempo em que precisavam lidar com o câncer. Conclui-se que o câncer das mães provocou mudanças psicológicas significativas na vida de seus filhos, que merecem ser foco do trabalho da Psicologia.
Palavras-chave: Câncer, Maternidade, Crianças
ABSTRACT
Cancer is a disease which, in addition to physically weakening the person, promotes very important psychological changes. This study aims to examine the perceptions of mothers with cancer about their children's behavior towards them and their disease, as well as to learn about their view as to how much the mother's disease may affect them emotionally on a daily basis. The participants were three young female adults with cancer. The instrument used was a semi-structured interview. The results showed that mothers reported changes in their children's behavior, who became more anxious, confused and stressed after the mother's diagnosis. Furthermore, it was observed that mothers had problems dealing with the demands of being mothers while they needed to deal with the cancer. It was concluded that cancer of the mothers caused significant psychological changes in their children's lives, which deserve to be focused by the work of Psychology.
Key words: Cancer, Motherhood, Children
O presente trabalho investiga mães com o diagnóstico de câncer e a percepção delas sobre o impacto dessa nova situação na vida de seus filhos. É de suma importância avaliar como os filhos dessas mães reagem à sua doença, uma vez que eles podem apresentar mudanças em seus comportamentos.
Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA, 2010a), o câncer refere-se a um crescimento desordenado e maligno de células do corpo, que acabam invadindo os tecidos e órgãos, podendo espalhar-se para outras regiões caracterizando a metástase. Como a divisão é rápida, essas células acabam por se tornar agressivas e incontroláveis para o corpo humano, ocasionando a criação de tumores malignos, que seriam o acúmulo dessas células cancerosas. No Brasil, dados oficiais do INCA (INCA, 2010b) indicam que, entre as mulheres, o câncer de mama causou, em 2007, a taxa de 11 mortes por 100.000 mulheres, seguido do câncer de traqueia/brônquios/pulmões (7/100.000) e câncer de colorrectal (6/100.000).
De acordo com Schimitt et al. (2007), 25% dos americanos diagnosticados com câncer tem filhos pequenos. Não há dados semelhantes que retratem a realidade brasileira. Souza e Santo (2008) referem que, possivelmente, essas crianças sofram também com as consequências da doença e do tratamento de um de seus progenitores, uma vez que o adoecimento afeta todos os membros da família, assim como as suas relações. Gazendam-Donofrio et al. (1995) acreditam que o surgimento de uma doença crônica em um jovem adulto, no período de criação dos filhos, ganha um caráter mais avassalador por seu impacto sobre as responsabilidades financeiras e de criação dos filhos.
Após o diagnóstico de câncer, o paciente começa a se confrontar com questões ligadas à morte, ocasionando um sentimento de vulnerabilidade e perda de controle sobre a própria vida (Rossi & Santos, 2003). Os efeitos do diagnóstico estendem-se à família do paciente, despertando medos e angústias frente ao despreparo para encarar a doença ao lado de quem se estima (Carvalho, 2002). Apesar dos avanços no tratamento do câncer e dos índices elevados de cura, o tratamento é difícil e o sofrimento psicológico é enorme (Gazendam-Donofrio et al., 2008). Assim, o apoio familiar é importante e geralmente bem visto pelas pacientes acometidas pelo câncer, porém nem sempre todos os familiares estão dispostos a oferecer esse tipo de suporte (Sales, Paiva, Scandiuzzi & Anjos, 2001).
Em adultos jovens, o câncer pode provocar abalos nas relações afetivas dos pacientes. Muitos dos parceiros saudáveis não suportam conviver com as possíveis consequências que o câncer pode trazer para a vida do casal, tais como: a morte do parceiro e possível incapacidade para realizar atividades que antes podia fazer, entre outras (Silva, 2001). É durante esse período que as demandas da vida pessoal, as rotinas domésticas e as preocupações com o futuro, principalmente quando há crianças envolvidas na problemática, são extremamente expressivas.
A mãe é considerada, dentro da família, o eixo principal de todos os seus membros (Moreira & Angelo, 2008). Ela é a responsável por educar os filhos, cuidar da casa e também dos outros membros, isto é, ela é uma pessoa que lida e decide sobre o que é o melhor para seus filhos (Dent, 2006). Contudo, dentro do contexto do câncer, a maternidade ganha outro sentido. Para Kyriakides (2008), o diagnóstico de câncer muda a vida dos pacientes de uma hora para a outra e faz surgir uma nova realidade repleta de dificuldades, englobando questões psicológicas, sociais e emocionais. Dentre as questões psicológicas podese citar como exemplo o conflito existente entre a idealização de ser mãe e o enfrentamento da realidade de se reconhecer como alguém que também necessita de cuidados (Dent, 2006). Desse modo, grande parte do conflito vivenciado por essas famílias gira em torno do desejo das mulheres em continuarem sendo boas mães, apesar de seu estado de saúde debilitado (Elmberger, Bolund, & Lützén, 2005; Elmberger, Bolund, Magnusson, Lützén, & Birgitta, 2008).
Em situações de doença grave, como é o caso do câncer, as pessoas utilizam estratégias de enfrentamento que podem ser classificadas como centradas no problema ou na emoção (Lorencetti & Simonetti, 2005). Quando elas são centradas no problema, o paciente busca administrar ou até mesmo alterar o problema ou o seu relacionamento com o meio. Essas estratégias ganham um caráter adaptativo, voltadas para a realidade, buscando uma remoção ou mesmo uma tentativa da abrandar a fonte estressora. Quando são centradas na emoção, as estratégias de enfrentamento tentam substituir ou regular o impacto emocional que a doença provoca. Sendo assim, surgem processos defensivos fazendo com que os pacientes procurem não confrontar conscientemente com o seu problema e a sua realidade ameaçada.
Billhut e Segesten (2003) entrevistaram dez mulheres, segundo o referencial teórico da fenomenologia, para investigar as estratégias que mães com filhos pequenos e diagnosticadas com câncer utilizavam para lidar com a doença e a criação dos filhos. Observaram que essas mães ficavam indecisas sobre contar a verdade ou não a seus filhos e procuravam agir como se não estivessem doentes, pois, assim, acreditavam que as crianças não seriam tão afetadas pela situação. Muitas dessas mães tinham uma grande preocupação em morrer e não poder acompanhar o crescimento dos filhos, ou mesmo ter de deixálos aos cuidados dos pais. Entretanto, mesmo aquelas mães que faziam uso de estratégias de busca de apoio social para tentar amenizar a circunstância tinham dificuldades para lidar com a situação. Muitas relataram sentimentos ambivalentes referentes à necessidade de mostrarem-se fortes para os filhos e ao mesmo tempo permitirem-se adoecer e serem cuidadas.
Ser mãe e ter câncer geram conflitos no desempenho do papel materno. Como exemplos dessas questões destacam-se o desejo de tentar esconder o problema de seus filhos e o sentimento de vergonha ao não conseguir alcançar esse objetivo, o medo de prejudicar a criança/adolescente, além da dificuldade em contrabalançar as necessidades dos filhos com as suas próprias como pacientes (Schmitt et al., 2007). Segundo Forrest, Plumb, Ziebland and Stein (2006), o fato de não contar para as crianças ou adolescentes o real estado de saúde da mãe acaba por deixá-las se sentindo excluídas dos acontecimentos da família. Esse aspecto pode estar ligado aos conflitos existentes nas relações entre mãe e filhos dentro da família enfrentados por essas mulheres que, frequentemente, acabam por subestimar o comportamento e o emocional de seus filhos. Nesse sentido, segundo o mesmo autor, torna-se importante trabalhar as problemáticas envolvidas no descobrimento do câncer em mães de crianças e adolescentes em conjunto com toda a família.
A doença da mãe pode ainda ter efeitos para o desenvolvimento e manutenção do apego. Segundo Bowlby (1989), a criança com apego seguro sabe que pode explorar o mundo, pois tem na mãe a figura que a acolherá no momento em que ela precisar de apoio. Nesse sentido, a debilidade física da mãe com câncer poderá gerar insegurança na criança pequena. Sendo assim, a criança que convive com a iminência de perda da mãe pode criar o que o autor chamou de apego resistente e ansioso, isto é, o sujeito se mostra incerto quanto à disponibilidade ou possibilidade de receber resposta ou ajuda de seus pais, caso seja necessário. Devido a essa incerteza, a criança pode desenvolver ansiedade de separação, cuja origem está diretamente ligada aos pais que se mostraram presentes em certos momentos da vida da criança e em outros não. Para o autor, esse comportamento de apego e a forma como ele foi elaborado ficam muito mais visíveis em situações de emergência, isto é, quando a pessoa está assustada, fatigada ou doente.
Crianças ao redor dos cinco ou seis anos de idade ainda podem não entender completamente que morte é universal, e um dos meios que a criança utiliza para lidar com ela é por meio de sua personificação em bicho papão e caveira, entre outros (Vendruscolo, 2005). É só ao redor dos nove e dez anos de idade que a criança compreende que a morte está relacionada ao fim das atividades biológicas do corpo, porém para elas isso somente ocorre em casos de pessoas idosas ou em pessoas doentes (Vendruscolo, 2005). Dessa forma, se a criança apresentar dificuldades para compreender o conceito de morte, ela apresentará dificuldades para elaborar o processo de luto, caso ele ocorra (Franco & Mazorra, 2007).
Outro fator importante relacionado à iminência da perda da mãe é o medo de ser abandonada e a idealização que a criança faz dela, uma vez que essa idealização dificulta a sua compreensão de que a mãe não é uma pessoa onipotente e que também pode sofrer algo, como uma doença, independentemente da sua vontade (Franco & Mazorra, 2007). Por conseguinte, é importante avaliar como é o comportamento do filho durante o processo de adoecimento da mãe, pois podem surgir indícios de ansiedade, depressão e estresse decorrentes da forma como ele lida com a percepção de morte, além de outras questões relacionadas a perturbações no funcionamento familiar (Welch, Wadsworth, & Compas, 1996).
No estudo de Huizinga et al. (2005), que tinha como objetivo avaliar a prevalência de algum transtorno emocional em 220 adolescentes filhos de pacientes com câncer, os autores observaram que 35% das filhas e 21% dos filhos apresentaram níveis elevados de estresse. Esses adolescentes, em especial as meninas, também apresentaram problemas cognitivos e de internalização. Segundo Nelson, Sloper, Charlton and While (1994), alguns fatores que podem estar relacionados ao elevado nível de ansiedade nas crianças e adolescentes, cujo um dos pais tem câncer são: incapacidade de se discutir a doença do pai ou da mãe na família, ter de passar menos tempo com os amigos, ter menos oportunidades de atividades de lazer, piora no rendimento escolar, além da persistência do sintoma no filho mesmo após a cura do progenitor.
Assim, conforme a literatura revisada, muito pouco se sabe sobre o impacto que a doença crônica nas mães, e em especial o câncer, tem no desenvolvimento da criança ou mesmo na percepção que essas mães têm sobre o comportamento dos seus filhos. A literatura internacional sobre o assunto é escassa, e a literatura nacional é praticamente inexistente. Assim, para que o enfrentamento da doença pela paciente e por todos os membros de sua família seja feito da maneira mais saudável possível, é preciso averiguar os fatores psicológicos envolvidos nos comportamentos dos filhos. A partir dessas questões, o presente trabalho tem por objetivo examinar as percepções de mães com câncer sobre o comportamento de seus filhos pequenos em relação a elas e à sua doença, bem como compreender o quanto a doença materna pode afetá-los emocionalmente no seu dia-a-dia.
Método
Participantes
Participaram do estudo três mulheres jovens adultas com câncer em tratamento no Hospital Santa Rita, em Porto Alegre. Essas pacientes já fazem parte de um projeto de pesquisa maior, intitulado "Qualidade de vida e aspectos psicológicos de jovens adultos com câncer". Do total de participantes (151 pacientes), procurou-se inicialmente no banco de dados por aquelas pacientes mulheres que tinham filhos, crianças ou adolescentes, e que residiam em Porto Alegre, totalizando 28 participantes. Dessas pacientes, 11 tinham filhos em idade escolar. Dentre elas, conseguiu-se entrar em contato com oito, porém apenas três aceitaram participar do estudo e falar sobre seus filhos. Foram excluídas do estudo mulheres cujos filhos não residiam com as mães.
Instrumento
Foi realizada uma entrevista semiestruturada, que partiu de cinco questões norteadoras descritas a seguir. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas na íntegra para análise.
As questões norteadoras foram: 1) Como você acha que está sendo para seu(s) filhos(as) a experiência de lidar com a doença e o tratamento que você está recebendo? 2) Você notou alguma mudança no comportamento de seu filho (a) após o seu diagnóstico de câncer? Como era antes? Como está agora? Cite exemplos. 3) Você conversa com seu(s) filhos(as) sobre o seu problema de saúde? Como essa questão é tratada dentro da família? Como seu(sua) filho(a) reage? 4) Como foi para você, pai ou mãe, contar o seu diagnóstico para seu(sua) filho(a)? Como foi explicado? e 5) Qual o seu entendimento sobre a reação de seu(sua) filho(a) frente a sua doença?
Delineamento e procedimentos de coleta de dados e éticos
O delineamento do estudo é de casos múltiplos (Yin, 2004). A partir da seleção das pacientes na base de dados do estudo maior, conforme referido anteriormente, as pacientes foram contatadas por meio de um telefonema, que serviu para explicar a proposta do trabalho e marcar o local e o dia para a entrevista. O local foi definido pela entrevistada. Assim, duas foram entrevistadas no hospital e uma em casa. Nos casos em que a participante optou por ser entrevistada no hospital, a mesma não arcou com os custos das passagens, que foram pagas pela equipe responsável pela pesquisa. A intenção era que a entrevista fosse realizada em um ambiente em que a participante se sentisse à vontade para falar sobre o tema.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre (Protocolo nº 3.080/09). Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi garantida a confidencialidade dos dados de todas as participantes.
Análise dos dados
As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Os casos foram examinados de acordo com Yin (2004). Para esse autor, o estudo de caso permite compreender e fazer inferências sobre um fenômeno que está inserido num contexto social e que, portanto, não há controle. Para a análise de dados, após seleção dos casos, emprego dos instrumentos apropriados e transcrição das entrevistas, Yin (2004) sugere que sejam identificados e descritos os temas que emergem relacionados ao objetivo do estudo, para que, em seguida, seja feita a síntese dos casos cruzados, que tem por objetivo examinar os padrões semelhantes e peculiares que aparecem nos casos estudados, buscando identificar aqui as mudanças nos comportamentos dos filhos a partir das percepções das mães com câncer.
Resultados
Apresentação dos casos3
Os resultados são apresentados caso a caso, conforme os relatos trazidos nas entrevistas pelas participantes da pesquisa, e discutidos na sua totalidade.
Caso 1 - Cláudia
Cláudia tem 36 anos de idade e uma filha de sete anos, Luiza. Ambas moram juntas e compartilham o mesmo terreno com os pais de Cláudia. O pai de Luiza não mora com elas e não tem contato.
Há cerca de um ano, Cláudia descobriu que estava com câncer de mama e foi submetida a uma mastectomia radical e quimioterapia. Atualmente, espera uma cirurgia de reconstrução da mama. Segundo Cláudia, essa experiência não foi bem vivida por sua filha, que na época estava com seis anos, pois a mesma não aceitou as mudanças no corpo da mãe:
Olha, no início não foi muito fácil. Ela não aceitou de jeito nenhum. Ela não chegava nem perto de mim. Ela ficou assustada. Ela dizia que eu não era mais mãe dela porque eu não tinha uma teta. Daí, foi bem difícil.
Cláudia refere que ela e sua filha eram muito apegadas. Luiza era muito amorosa, procurava a mãe para dar beijos e ambas costumavam sair juntas para passear. Porém, esse comportamento mudou muito no instante em que Cláudia contou para a filha que estava doente: "Ai, Luiza, agora tu vai ter que ir se preparando porque a mãe tá com dodói e eu vou ter que tirar. Eu não posso tirar só um pedacinho do dodói. Eu tenho que tirar todo". A menina imediatamente começou a dizer que não queria que isso estivesse acontecendo e não quis mais saber sobre a situação. Cláudia tentou conversar com ela em outros momentos, porém não conseguia controlar o choro quando pensava na gravidade de sua doença e o quanto precisaria de cuidados a partir de então: "Quando eu fazia a função de conversar [com Luiza] eu já começava a chorar. Daí, não foi fácil, porque eu passava para ela também o que eu tava sentindo". Com isso, Cláudia ficou com medo de que pudesse transmitir para a sua filha o que estava sentindo. Desse modo, precisou pedir a ajuda da madrinha de Luiza para que conversasse com a menina sobre sua doença. Mesmo com a ajuda da madrinha, Cláudia relata que Luiza não aceitou a doença da mãe.
Luiza acreditava e dizia para a sua mãe que ela iria morrer na cirurgia e pedia que a não fizesse: "Ela [Luiza], na cabeça dela, pensou que eu ia morrer se eu fizesse cirurgia, que não era pra eu fazer que eu ia morrer". Cláudia tentou explicar para a filha que isso não iria acontecer e que ela precisava fazer a cirurgia para poder "tirar uma coisa que não era sua e assim as duas poderiam sair juntas novamente". No início, após a retirada da mama, elas não se falavam direito e ficaram afastadas uma da outra por um mês e meio, período em que a menina teve acompanhamento psicológico, e Cláudia notou que seu comportamento mudou. Luiza ficou mais rebelde, chorava muito e olhava para a mãe assustada. Cláudia conta que sua filha não queria ir ao colégio:
A estrutura dela [Luiza] mudou totalmente. Ela não queria nem ir pro colégio, porque ela dizia que os coleguinhas dela iam rir de mim porque eu não tinha uma teta, sendo que os coleguinhas dela nem sabiam de nada.
A situação piorou quando Cláudia começou a fazer a quimioterapia. Luiza tinha começado a ficar um pouco mais calma com o passar dos dias, porém, quando iniciou o tratamento, a filha voltou a não querer ver a mãe. Cláudia tentou explicar para a filha que seu cabelo iria cair em função da quimioterapia, mas que depois ia crescer novamente. No dia em que isso aconteceu, Cláudia colocou um lenço na cabeça e quando Luiza viu a mãe "parecia que ia ter um troço". Luiza pedia para a avó não deixar sua mãe tirar o lenço da cabeça, pois não queria vê-la careca, e ao mesmo tempo nem chegava perto da mãe por sentir medo dela. Luiza chorava muito e pedia para que sua mãe não saísse na rua daquele jeito "sem cabelo e sem teta". Cláudia comenta que sua filha não a reconhecia mais como mãe "Tu não é mais minha mãe, não é mais nada minha". Com isso, Cláudia disse que sentia uma dor no peito ao ver a filha reagindo dessa maneira, porém relata que precisou aguentar a situação.
Atualmente, Luiza começou a aceitar um pouco mais a condição de saúde de sua mãe: "Agora, eu te aceito, porque eu sei que tu vai ficar bonita de novo, ela diz". Luiza e Cláudia estão mais próximas. O cabelo de Cláudia ainda está curto, porém já preenche o couro cabeludo. As duas dormem na mesma cama, mas Luiza ainda não gosta de comentar o acontecido. Como Cláudia ainda não fez a cirurgia de reconstrução da mama, Luiza pede para que sua mãe não troque de roupa perto dela, pois "é uma coisa muito estranha, tu é muito estranha", diz Luiza para a mãe.
No decorrer da entrevista com Cláudia, pôde-se perceber que a mesma estava receptiva para conversar sobre o assunto. Ao contrário, sua filha Luiza, assim que soube do motivo da minha visita à sua casa, não gostou e ficou em outro cômodo durante a entrevista.
Caso 2 - Helena
Helena, 34 anos de idade, está separada do marido há dois anos, apesar de ainda morarem na mesma casa. É mãe de dois meninos, Gabriel, sete anos, e Lucas, cinco anos. Dois anos atrás, coincidindo com a época de sua separação, Helena descobriu que estava com câncer de mama. O tempo entre a biópsia do tumor e da mastectomia foi de cerca de 30 dias. Um mês depois de realizada a mastectomia, Helena iniciou a quimioterapia. Ela relata que só foi contar para os filhos a sua situação de saúde um pouco antes da cirurgia, e contou da seguinte forma: "É, eu tinha a bolinha e que daí eu ia pro hospital tirar a bolinha. Depois que eu tirasse essas bolinhas, eu tinha que ficar um tempo esperando, né, porque sabe como é a cirurgia e tal". Helena acha que eles aceitaram naturalmente a situação, pois diz não ter percebido mudanças no comportamento deles nesse período, uma vez que ela estava voltada para si mesma: "Pois é, não, eu não visualizei, não peguei nada dessa época... claro... só que essa época foi egoísta minha, eu sofri mais".
Para Helena, tudo aconteceu muito rápido e somente quando iniciou a quimioterapia, começou a sentir os efeitos do tratamento do câncer e a se preocupar de fato com seus filhos. O choque maior para ela foi a perda de seu cabelo, pois sempre foi muito vaidosa e gostava do seu cabelo comprido, assim como os meninos.
A mãe conta que seus filhos foram as únicas pessoas que a viram careca. Na primeira vez em que seus cabelos caíram, ela não deixava ninguém mais vê-la e nem ela própria se olhava no espelho. Estava sempre usando uma peruca ou touca. Helena quis sempre passar uma imagem tranquila em relação à perda do cabelo para os filhos: "Pode ver, não tem problema nenhum". Da mesma forma, tentou passar naturalidade ao falar do câncer para seus filhos: "Eu digo que eles tão crescendo com o câncer, assim sabe, em todos os aspectos. Então, para eles é a vida normal deles".
Contudo, há cerca de um ano, Helena descobriu que estava com metástase óssea. Teve que fazer novamente quimioterapia e perdeu o cabelo outra vez. Ficou muito debilitada fisicamente, necessitando de muitos cuidados, inclusive de seus filhos. A partir desse momento, então, ela começou a perceber mudanças nos comportamentos dos meninos, que ficaram preocupados com seu estado de saúde. Helena sempre achou importante deixar os meninos cientes do seu estado de saúde, utilizando uma linguagem que os garotos conseguissem compreender o que ela quer dizer. Desse modo, até hoje quando os três estão brincando e correndo juntos, eles cuidam muito para que ela não tropece ou caía no chão, pois uma vez ela mostrou um exame para eles onde aparecem os pontos em que os ossos estão mais frágeis. Desse modo, eles compreenderam o que estava acontecendo com ela, aumentando o seu cuidado.
Helena comenta sobre sua dificuldade em conseguir colocar os seus calçados devido à cirurgia que fez para a retirada do tumor, e a reação do filho mais velho é de ajudá-la:
O que eu ainda não faço é me calçar. Eu não alcanço o meu pé. Daí, o Gabriel ficou orgulhoso de ter aprendido a dar o laço porque ele pode me ajudar... sempre tem que pedir ajuda pra alguém amarrar meu tênis, entendeu? Se cai alguma coisa no chão, daí um lá 'deixa que eu junto' e são pequeninos. Acho que é fofo deles.
Helena acredita que a forma como os filhos lidam com ela está diferente do que antes de ela receber o diagnóstico:
[...] parece que antes eu cuidava mais deles e agora parece que eles têm uma preocupação, mas, graças a Deus, eles são super-saudáveis. Não tenho que ficar cuidando e eles cuidam da minha saúde. Engraçado isso.
Ainda referente à questão do cuidado, Helena comentou que estava tudo normal, isto é, que os meninos não apresentaram nenhuma mudança drástica em seus comportamentos. Entretanto, durante a realização da entrevista, ela própria começou a repensar as relações que agora se estabeleceram em sua família: Eles cuidam de mim. Agora, depois que tô te falando, tá vindo assim... ah, eles lidam normal, mas agora vou visualizando essas coisas.
Helena conta que os meninos apresentaram reações diferentes frente ao seu câncer. Gabriel (o mais velho) começou a demonstrar ser mais sensível frente à situação: "O outro [Gabriel] é sensível demais, absorve o problema, ele sofre com o problema, e o pequeno [Lucas] não". Além disso, Gabriel apresentava momentos em que começava a chorar sem causa aparente, o que geralmente ocorria ao final do dia quando ele se deitava na cama para dormir. Pouco tempo após ele se deitar, ela começava a escutar uns "gemidinhos" e, quando chegava ao quarto do filho, o via chorando. Ela sempre perguntava para o menino o motivo do choro, mas o mesmo apenas dizia "que não era nada". Para Helena, o choro do filho é como se não fosse ter fim: "Porque quando ele chora, ele chora muito, ele chora que não consegue parar".
Foi a partir desse momento também que Gabriel começou a não querer se separar da mãe.
Segundo Helena, Gabriel está com dificuldades para ficar na escola:
Eu largo ele no colégio, [...] e ele me beija, me beija, enquanto eu tô saindo ele tá me... ele volta e me beija, sempre como se fosse... chega a dar uma impressão de que sempre... como se fosse assim... a última vez. Ele me aproveita como se fosse a última vez. E nunca se falou em morte, mas eu tenho essa impressão, me dá uma angústia até com ele, eu e ele.
Outra mudança no comportamento do filho mais velho que Helena conta é o interesse do menino por assuntos religiosos:
O que a gente tem notado, ultimamente, que ele tá bem apegado a coisas espirituais assim, ele quer aprender sobre... ele tinha uma Bíblia e ele quer aprender, quer que eu leia e questiona. É um diferencial entre nós, não que a gente não seja... mas ele se apega a isso.
Além disso, Gabriel assiste muito à televisão, especialmente a programas que falam sobre o câncer. Em determinados momentos, Helena tem a impressão de que o filho a olha como se estivesse se questionando "será que ela me conta tudo?". Para ela, Gabriel "é meio adulto assim, ele se liga muito nos problemas das coisas".
Com Lucas, o caçula, a situação é diferente. Ele tinha apenas dois anos quando ela descobriu que estava com câncer e diz que já não o amamentava mais. Ela diz que Lucas é bem "direto" quando o assunto é a doença da mãe: "Ele me pergunta, me pergunta na lata, nunca com sensibilidade, aquela coisa, aquele medo, aquela angústia. Ele já é mais despachado, o outro é mais sensível". Com relação à questão espiritual, Lucas apresenta um comportamento diferente do irmão:
Mas ele [Gabriel] pede e faz oração pro papai do céu de noite e até descontei esses choros aí. Daí, a gente diz pra ele pedir pro papai do céu. Já o outro não, o outro é debochado 'ah eu já pedi e não adianta de nada', sabe? O outro [Lucas] gosta de agredir mais, de chocar, geralmente ele gosta de chocar.
Para Helena, essa atitude do filho é para mostrar que "não tô nem aí pro que tu tá falando".
Teve um período em que Helena precisou ficar internada no hospital por cerca de quatro dias e, durante esse período, os meninos foram visitá-la. Conforme seu relato, eles gostaram muito do quarto, ficaram bastante impressionados com a cama que descia e subia e adoraram o fato de ter iogurte à disposição. Desse modo, ela acredita que os meninos lidam bem com a questão do câncer, tendo dificuldades apenas com as reações da quimioterapia, que a deixa bastante debilitada.
Helena, em contrapartida, mostra-se preocupada com o seu futuro e o dos meninos:
É, agora eu trato a metástase e pelo que eu entendi, pelo que eu sei, enquanto não acharem um milagre, uma cura, eu tenho que tratar pra sempre. Daí, a preocupação que eu tenho de verdade é quando falam: 'Ah, mas metástase óssea é o mais simples de ser cuidado, tem pacientes que sobrevivem vinte anos'. E eu: 'Pô, vinte anos, falando pode ser muito, mas pra quem tem filho de cinco anos, sete anos é muito pouco'.
Sobre o pai dos meninos, Helena comenta que ele é bastante presente na vida dela e dos filhos, e que, quando ela precisou ficar longe dos garotos, ele ficou cuidando deles. Todavia, ela demonstra receio em ter de deixá-los aos cuidados do pai e faz uma reflexão sobre o modo como tem criado os filhos, durante esse período, e com a ameaça do câncer em suas vidas:
[...] aí, às vezes, eu acho que eu peco nisso [criação dos filhos]. Eu quero colocar muita informação pra eles, eu quero... ah, se eu morrer, eu sei que eu deixei eles... eu falei o que é o certo, o que é o errado, o que é o bom e o que é o ruim. Eu tenho essa preocupação. E eu já escutei que é exagero, mas eu não acho que é exagero, porque essa pressa de colocar tudo neles... a maneira que eu quero que eles sejam criados. Eu não queria que eles fossem criados pelo pai e pela avó. A gente tem perfis diferentes, a gente tem valores bem diferentes, mas é uma loucura isso aí.
No momento em que a entrevista foi realizada, Helena parecia estar muito bem fisicamente, seu cabelo já estava crescido, porém curto, e falou sem problemas sobre o tema em questão. Em alguns momentos, sorriu e fez comentários irônicos.
Caso 3 - Márcia
Márcia tem 40 anos e há cerca de um ano descobriu que estava com câncer no reto, quando foi fazer uma cirurgia em decorrência de uma hemorroida. Durante a cirurgia, os médicos detectaram uma mancha perto do ânus e já fizeram a biópsia durante procedimento cirúrgico. Algumas semanas depois, ela descobriu que estava com um tumor maligno e no final do mesmo mês, fez uma nova cirurgia para retirada do tumor. Ela é separada do marido há três anos, com quem viveu por 20 anos e com quem teve dois filhos, Fernanda, de 21 anos, e Guilherme, de apenas dez.
Márcia conta que, no dia em que ficou sabendo que estava com um tumor, ficou muito desesperada:
Quando eu descobri mesmo, no dia, eu queria me matar, porque eu não esperava assim, jamais... eu fiquei bem abalada naquele dia e eu te confesso que eu tentei fazer besteira mesmo e eu achei que tava tudo acabado. Até porque eu já tava passando por uma situação difícil.
A situação difícil à que Márcia se remete é a separação do marido e o abalo emocional que essa situação provocou em sua família e nela própria.
Apenas Fernanda (a filha mais velha) sabe do diagnóstico da mãe, pois contou no mesmo dia em que soube que estava com o tumor. Márcia relata como fez para contar para a filha assim que saiu do hospital e chegou em casa:
Eu andei por toda casa, procurando o que fazer. Aí, eu precisava falar com alguém. Aí, eu liguei pro serviço dela [filha] e realmente falei chorando muito. Daí, quando deu umas quatro e meia da tarde, eu liguei pra minha irmã. Daí, falei pra ela. Foram as duas pessoas que souberam assim.
A decisão de não contar para Guilherme o que estava acontecendo com ela foi iniciativa da própria Márcia:
Ele [Guilherme] estava na escola e só chegava em casa às seis horas. E aí... ela [Fernanda] chegou de tarde em casa também, às seis horas, e daí ela assim 'Ai tu não vai contar pro Guilherme?' Eu fiquei assim... ela tava apavorada que nem eu e eu disse 'Não, não vamos falar então.'
Márcia acha que o filho é muito emotivo, que ele chora por qualquer coisa e, para não deixá-lo mais nervoso, decidiu não contar. Para ela, o filho ainda é muito pequeno:
É... ele assim. O guri até é criança, esquece, porque na realidade não foi falado pra ele que eu estava com câncer. Eu baixei o hospital pra fazer uma cirurgia. Ele não sabe. Agora, quando eu baixei hospital de novo, ele sabe que eu baixei no hospital pra fazer alguns exames, mas ele nunca soube assim 'Ah, a mãe dele tá com tumor'.
Quando questionada se Guilherme não faz perguntas sobre o que está acontecendo, Márcia responde:
Não. Eu acho que ele sabe. De repente, o pai dele até falou. Não sei. Não perguntei, mas ele procura não falar e eu menos ainda porque não vou conseguir. Sorte que ele me abraça... não sei nem se eu tô fazendo o certo, mas... é complicado pra ele ficar falando assim. Eu me preocupo com isso, eu me preocupo bastante com ele, ele só tem dez anos. Então, é complicado, por mais que eu seja adulta... é filho.
Márcia e o ex-marido não se falam, uma vez que o relacionamento e a separação dos dois foi bastante conturbada.
Márcia menciona que os dois filhos sempre foram muito fechados e não gostam de conversar, porém essa situação agravou-se a partir do momento em que ela descobriu estar com câncer. Fernanda não gosta de falar sobre o assunto e Guilherme começou a ter notas muito baixas na escola após as internações da mãe. Além disso, o menino começou a apresentar um comportamento muito agressivo no colégio, chegando a brigar com outros colegas. Quando Guilherme briga com outra criança, ele se descontrola e diz que quer matar todo mundo. Márcia precisou ir até a escola do filho e pedir para que ele tivesse um acompanhamento psicológico, tendo em vista a agressividade do filho.
Entretanto, Márcia percebe que o comportamento de Guilherme para com ela é de carinho. Márcia diz que os momentos em que precisou ficar internada no hospital, o filho se mostrou preocupado com ela:
Então, o Guilherme queria ir no hospital, ligava. Ele tava sempre chorando. Eu sentia assim pelo telefone que ele tava nervoso, que ele tava querendo me ver. Daí, um dia de noite, ela [Fernanda] veio com ele e eu vi ele na sala de visita, no caso, na salinha de TV, mas só assim, né. Aí, ele me viu e eu senti que ele meio que aliviou porque ele queria vir aqui me ver pra saber se eu tava bem, mas é bem agitado assim, mas ele é bem carinhoso ao mesmo tempo, ele até é mais carinhoso do que ela [Fernanda]. Então, todo tempo, ele vem me abraça, me beija.
Márcia sempre tentou mostrar para os filhos que estava bem apesar do seu sofrimento. Ela conta que durante todo o tempo em que enfrentou os procedimentos cirúrgicos não deixou de trabalhar como doméstica. Quando perguntada sobre o que ela quis mostrar aos filhos durante esse período da doença, Márcia responde:
Que eu tava bem, que eu não precisava mais ficar em casa, mas o chorar escondida, o fazer as coisas assim pra mostrar... eu acabei me prejudicando. Eles vão ter que enxergar assim que, tudo bem, eu sou a mãe, né, tenho que levantar eles, mas a gente precisa também, né. Eu tô sempre querendo mostrar assim que eu tô bem, mas é complicado pra mim, é bem difícil.
Depois dessa fase, em que ela chegou a se sentir mal ao ir trabalhar, ela pediu demissão do emprego e agora só fica em casa.
Na entrevista, Márcia mostrou-se bastante ansiosa, uma vez que mexia muito com as mãos e dificilmente olhava diretamente para a entrevistadora. Em muitos momentos, ela chorou ao relatar sua história e parecia estar ainda muito abalada com toda a situação que está vivendo.
Discussão
Ao examinarmos como as três mães que sofrem de câncer perceberam seus filhos frente ao adoecimento, observa-se a existência de algum grau de aflição nos filhos e também das mães com a situação, segundo o olhar da mãe. A incerteza quanto ao seu próprio futuro e o futuro dos filhos é fonte de angústia e medo, por isso seus filhos também passaram a sofrer e a apresentar comportamentos peculiares diante dessa situação.
Conforme Souza e Santo (2008), as doenças crônicas são vividas com sofrimento por todos os membros da família do enfermo. Isso pode ser observado nas entrevistas realizadas, pois além do sofrimento da mãe com câncer, seus filhos apresentaram comportamentos diferenciados dos usualmente observados por elas, tais como: agressividade, rebeldia, choros sem causa aparente, adesão a questões religiosas que não são comuns na família, brigas na escola e rendimento escolar baixo. Esses comportamentos podem ser indicadores de ansiedade, depressão ou estresse, características comuns ao se lidar com a possível morte de um dos progenitores (Welch et al., 1996).
No caso de Cláudia, ela percebeu sua filha Luiza mais agressiva frente à sua doença, tornando-se rebelde, com dificuldades para aceitar o corpo mutilado da mãe, e com isso começou a brigar com ela e a chorar bastante. É possível pensar que, frente à doença e ao medo da perda da mãe, Luiza passou a apresentar um apego resistente e ansioso, o que parece estar ligado à insegurança que Luiza passou a sentir em relação à sobrevivência da mãe (Bowlby, 1989). A perda iminente da mãe e os possíveis medos de Luiza de que ela não estará mais presente em sua vida estão relacionados à ideia de irreversibilidade, que começa a ganhar sentido para a criança a partir dessa faixa etária, cinco ou seis anos de idade (Vendruscolo, 2005).
No caso de Helena, seu filho mais velho, Gabriel, de sete anos, apresentou um quadro que parece ser de ansiedade e de estresse. A ansiedade para separar-se da mãe, principalmente quando a mesma o deixava na escola, pode estar ligada ao risco de morte da mãe. Para lidar com tudo isso, Helena percebe seu filho mais preocupado com questões religiosas.
Segundo Bee (1997), a falta de uma compreensão real sobre o que é a morte por parte das crianças faz com que elas acreditem que podem revertê-la por intermédio da oração. Esse comportamento pode ser apenas uma resposta a toda a angústia que parece estar sentindo, pois, conforme as palavras da própria mãe, é como se ele a tratasse como se fosse a última vez que a visse viva. Já Lucas, o filho mais novo de Helena, de cinco anos, pode estar muito confuso com tudo o que está ocorrendo com a mãe, tendo em vista seu comportamento de "não estou ligando para o que está acontecendo contigo". Novamente, pode-se pensar que o fato de o menino ainda não ser capaz de compreender direito o que está se passando com sua família, está em dúvida se poderá ter a ajuda da mãe no futuro, fazendo com que a relação com a sua mãe seja marcada pela insegurança (Bowlby, 1989).
O terceiro caso, de Márcia e de seu filho Guilherme, diferencia-se dos demais em função de a mãe não ter contado ao menino sobre a sua doença na tentativa de negar o que está acontecendo. Assim, Guilherme percebe que algo não vai bem e não tem respostas para suas dúvidas, fazendo com que apresente comportamentos agressivos na escola, piora do rendimento escolar e excessiva preocupação com sua mãe. Além disso, a criança parece ter medo quando a mãe precisa ser hospitalizada e tem a necessidade de saber se ela está bem, o que pode estar ligado a um quadro de ansiedade. Esses comportamentos são bastante comuns em filhos de mães com câncer, uma vez que os indicadores de ansiedade, depressão e estresse são respostas que as crianças apresentam para lidar com a possibilidade de morte de suas mães (Welch et al. 1996).
Por meio dos relatos apresentados, é extremamente importante pensar o que se sucede nessas famílias, qual a situação em que estão inseridas e como suas mães reagiram frente a tudo isso. De agora em diante, serão discutidos os aspectos que são referentes às questões das reações das mães, para, posteriormente, ser possível averiguar no todo como a experiência do câncer influenciou essas famílias sob o olhar da mãe.
De acordo com Forrest et al. (2006), mães que não contam para seus filhos sobre sua doença fazem com que a situação na família fique muito mais complicada, uma vez que elas acabam por subestimar o comportamento emocional das crianças, que podem vir a se sentirem excluídas da família. No caso de Márcia em específico, essa questão aparece de forma bastante clara, pois ela foi a única mãe dentre as três entrevistadas que não conseguiu contar para seu filho sobre seu problema. Desse modo, é importante ater-se um pouco sobre a reação dela nesse caso. Márcia parece não ter conseguido ainda aceitar a sua doença, tentando negar que está com câncer, tanto que nem ao menos contou para o seu filho mais novo sobre seu estado de saúde. Outro dado importante é o fato de ela ter chorado durante alguns momentos na entrevista, além de não conseguir lidar com a situação de uma forma menos angustiada e sofrida. Com tudo isso, seu filho pode começar a se sentir excluído da família e tenta, desesperadamente, estar mais presente na vida da mãe.
Nos três casos estudados, as mães estão separadas dos pais das crianças. No caso de Cláudia, a figura do pai nem sequer foi mencionada pela participante durante a entrevista. Não há aqui como estabelecer uma relação entre o diagnóstico da doença e o estado civil das entrevistadas, uma vez que esse não foi o foco da pesquisa. No entanto, a literatura aponta que o apoio do companheiro é um fator importante que ajuda no restabelecimento do estado de saúde da paciente (Molina & Marconi, 2006). Sendo assim, essas três mulheres, ao estarem criando seus filhos praticamente sozinhas, podem estar ainda mais desamparadas em função da ausência de um companheiro que lhes proporcionasse apoio e as auxiliasse de forma mais ativa na criação dos seus filhos.
Nos casos de Cláudia e Helena, em que as pacientes precisaram fazer quimioterapia, os efeitos colaterais sobre sua autoimagem foram considerados trágicos para elas e para seus filhos. As crianças têm dificuldades em ver suas mães sem cabelo, pois a alopecia provoca um forte impacto emocional. No caso de Cláudia, sua filha de apenas seis anos, na época do diagnóstico, não aceitou a retirada da mama e a queda de cabelo da mãe, reagindo de maneira bastante ansiosa frente a isso, com muito choro, raiva e rebeldia, segundo a mãe. Já para os filhos de Helena, a sua nova imagem corporal foi vista com choque, além de servir como alerta de que o câncer estava presente em sua vida.
A mastectomia, cirurgia à que Cláudia e Helena foram submetidas, é um procedimento em que há mutilação da mama, com efeitos importantes para a mulher nos âmbitos físico e psicológico. O processo de retirada da mama acaba por gerar uma sensação de perda interna, isto é, as mulheres acometidas pela mastectomia sentem como se tivessem perdido uma parte de seu self, que faz com que elas tenham uma alteração na relação que estabelecem entre seu corpo e sua mente (Rossi & Santos, 2003).
Segundo Bervian e Girardon-Perlini (2006), a mastectomia provoca alterações na autoestima das mulheres que acabam sendo exacerbadas com os efeitos da quimioterapia. No transcorrer do tratamento quimioterápico, a relação que as mulheres estabelecem com seus familiares está relacionada ao modo como elas estão percebendo seu corpo, que acaba sendo influenciada pela quimioterapia no momento em que elas começam a ter sentimentos negativos para a aceitação de seu "novo corpo". Sendo assim, os efeitos da quimioterapia, e especialmente a perda do cabelo, segundo essas mães, não foram bem vivenciados pelas crianças em ambos os casos. Desse modo, as dificuldades das mães com sua autoimagem não atingem somente a elas mesmas, mas a toda a sua família, como foi possível observar nas famílias de Cláudia e de Helena.
Tendo em vista as problemáticas que essas mães enfrentaram junto aos seus filhos, nos casos de Helena e de Márcia, pode-se observar o uso de estratégias bastante diferentes para lidar com o adoecimento. Helena reagiu de maneira bastante positiva frente à situação, pois, desde o início, falou a verdade para seus filhos sendo muito franca com os meninos de sete e cinco anos sobre seu estado de saúde, conforme seu relato. A relação que os filhos de Helena estabeleceram com ela após o câncer, de cuidado e extrema preocupação com ela, pode estar diretamente ligada ao fato de ela ter sido honesta com os meninos sobre sua doença. Desse modo, esse caso mostra o quanto uma relação aberta com os filhos pode ajudá-los a enfrentar a situação. Helena, ao contar a verdade para seus filhos, usou estratégia de enfrentamento centrada no problema (Lorencetti & Simonetti, 2005). Talvez, com isso, ela apostou que conseguiria estar mais tranquila para enfrentar o seu problema, além de demonstrar uma forma de adaptação à sua nova vida, juntamente com Gabriel e Lucas.
Já Márcia, que sempre tentou levar a vida normalmente, negando a doença, escondendo seu sofrimento, e não contando ao filho sobre o que estava acontecendo, parece utilizar mais o tipo de estratégia centrada na emoção. O fato de não contar para o seu filho caçula sobre a doença pode ser entendido como um processo defensivo, uma vez que, agindo dessa maneira, ela evita confrontar-se diretamente com o seu problema (Lorencetti & Simonetti, 2005). Dent (2006) aponta que, nesses casos, pode haver dificuldades nas mães em abandonar a ideia de ser uma mãe ideal e perfeita para seu filho e aceitar que ela tem limitações e precisa de cuidados.
De acordo com Billhut and Segesten (2003), é comum que as mães com câncer não se sintam boas mães, pois elas têm medo de morrer antes de ver os filhos crescidos e ter de deixá-los aos cuidados dos pais ou de outras pessoas. Essa questão fica clara no relato de Helena quando diz que está a todo momento tentando ensinar aos filhos sobre o que é certo e o que é errado, pois acredita que conseguirá criá-los da forma que acha mais correta para si, uma vez que não gostaria que
o pai, ou a avó, com perfis tão diferentes do seu, fossem os únicos responsáveis pela criação dos meninos. Dessa forma, a presença do câncer na mulher-mãe na fase da adultez jovem gera incerteza não só quanto ao futuro e prognóstico relacionado à sua saúde, mas também receios e medos sobre o futuro daqueles que dela dependem, seus filhos pequenos.
Considerações Finais
Como é possível perceber a partir dos casos estudados, a vivência de uma doença como o câncer na mulher jovem com filhos pequenos é especialmente dolorosa, uma vez que elas têm que lidar com as demandas do seu tratamento e com os sofrimentos e dificuldades de seus filhos diante da doença da mãe. As crianças, por outro lado, parecem apresentar mudanças em seus comportamentos, demonstrando o quanto elas se sentem confusas, ansiosas e estressadas frente a uma situação completamente nova em suas vidas.
É importante comentar que a compreensão sobre o comportamento das crianças neste trabalho fica restrito ao olhar da mãe doente, que, por si só, é limitado. Essas mães, possivelmente, estão muito abaladas física e emocionalmente, e esse impacto pode gerar distorções na sua interpretação sobre o comportamento das crianças. Assim, o olhar materno aqui apresentado pode estar influenciado por suas angústias, medos e ressentimentos. De qualquer modo, esse entendimento que as mães têm sobre os seus filhos é o que vai guiar as suas próprias condutas para com eles. Nesse sentido, elas são importantes de serem avaliadas e valorizadas.
Conhecer o modo como as mães estão percebendo seus filhos durante esse processo é fundamental para se poder trabalhar não apenas com o indivíduo doente ou seu(sua) filho(a), mas poder enxergar todos os membros da família e como os relacionamentos dos mesmos estão sendo consolidados. Tem-se conhecimento de que o presente trabalho é exploratório e o número de mulheres entrevistadas é muito pequeno. Contudo, ele mostra a importância de se repensarem as formas de atendimento e de orientação a essas pacientes não só sobre a sua doença, mas sobre como lidar com a sua família, em especial seus filhos. Frente a uma situação tão difícil como a vivenciada por essas mulheres, o atendimento integral em saúde é uma forma de auxiliar as mães a despertarem os recursos necessários para o enfrentamento da situação.
Referências
Bee, Helen. (1997). O ciclo vital. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Bervian, P. I., & Girardon-Perlini, N. M. O. (2006). A família (con)vivendo com a mulher/mãe após a mastectomia. Revista Brasileira de Cancerologia, 52(2),121-128. [ Links ]
Billhut, A., & Segesten, K. (2003). Strength of motherhood: nonrecurrent breast cancer as experienced by mothers with dependent children. Scandinavian Journal of Caring Sciences, 17(2),122-128. [ Links ]
Bowlby, J. (1989). Uma base segura: aplicações clínicas da teoria do apego. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Carvalho, M. M. (2002). Psico-oncologia: história, características e desafios. Psicologia USP, 3(1),151-166. [ Links ]
Dent, J. R. (2006). Motherhood versus patienthood: a conflict of identities. Medical Humanities, 32(1),20-24. [ Links ]
Elmberger, E., Bolund, C., Magnusson, A., Lützén, K., & Birgitta, A. (2008). Being a mother with cancer: achieving a sense of balance in the transition process. Cancer Nursing, 31(1),58-66. [ Links ]
Elmberger, E., Bolund, C., & Lützén, K. (2005). Experience of dealing with moral responsibility as a mother with cancer. Nursing Ethics, 12(3),253-262. [ Links ]
Forrest, G., Plumb, C., Ziebland, S., & Stein, A. (2006). Breast cancer in the family: children's perceptions of their mother's cancer and its initial treatment: qualitative study. British Medical Journal, 10(1),1-6. [ Links ]
Franco, M. H. P., & Mazorra, Luciana. (2007). Criança e luto: vivências fantasmáticas diante da morte do genitor. Estudos de Psicologia, 24(4),503-511. [ Links ]
Gazendam-Donofrio, S., Hoekstra, H., van der Graaf, W., Pras, E., Visser, A., Huizinga, G. et al. (2008). Quality of life of parents with children living at home: when one parent has cancer. Support Care Cancer, 16(2),133-141. [ Links ]
Huizinga, G., Visser, A., van der Graaf, W., Hoekstra, H., Klip, E., Pras, E. et al. (2005). Stress response symptoms in adolescent and young adult children of parents diagnosed with cancer. European Journal of Cancer, 41(2),288-295. [ Links ]
INCA (2010a). Instituto Nacional do Câncer. Recuperado em 25 março, 2010, de (http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/cancer/site/oquee). Retrieved in 25/03/2010 [ Links ]
INCA (2010b). Instituto Nacional do Câncer. Recuperado em 25 março, 2010, de (http://mortalidade.inca.gov.br/Mortalidade/prepararModelo03.action [ Links ]
Kyriakides, S. (2008). Psychosocial issues in young women facing cancer and pregnancy: the role of patient advocacy. Cancer and Pregnacy, 178(1),247-252. [ Links ]
Lorencetti, A., & Simonetti, J.P. ( 2005). As estratégias de enfrentamento de pacientes durante o tratamento de radioterapia. Revista Latino Americana de Enfermagem, 13(6),944-950. [ Links ]
Molina, M. A. S., & Marconi, S. S. (2006). Mudanças nos relacionamentos com os amigos, cônjuge e família após o diagnóstico de câncer na mulher. Revista Brasileira de Enfermagem, 59(4),514-520. [ Links ]
Moreira, P. L., & Angelo, M. (2008). Tornar-se mãe de criança com câncer: construindo a parentalidade. Revista Latino Americana de Enfermagem, 16(3),355-361. [ Links ]
Nelson, E., Sloper, P., Charlton, A., & While, D. (1994). Children who have a parent with cancer: a pilot study. Journal of Cancer Education, 9(1),6-30. [ Links ]
Rolland, J. (1995). Doença crônica e o ciclo de vida familiar. In B. Carter, & M. McGoldrick (Orgs.). As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar (pp. 373-392). Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Rossi, L., & Santos, M. (2003). Repercussões psicológicas do adoecimento e tratamento em mulheres acometidas pelo câncer de mama. Psicologia: Ciência e Profissão, 23(4),32-41. [ Links ]
Sales, C., Paiva, L., Scandiuzzi, D., & Anjos, A. (2001). Qualidade de vida de mulheres tratadas de câncer de mama: funcionamento social. Revista Brasileira de Cancerologia, 47(3),263-272. [ Links ]
Schmitt, F., Manninen, H., Santalahti, P., Savonlahti, E., Pyrhönen, S., Romer, G. et al. (2007). Children of parents with cancer: a collaborative project between a child psychiatric clinic and an adult oncology clinic. Adolecence, 12(3),421-436. [ Links ]
Silva, Célia Nunes. (2001). Como o câncer (des)estrutura a família. São Paulo: Annablume. [ Links ]
Souza, M. G. & Santo, F. H. (2008). O olhar que olha o outro: um estudo com familiares de pessoas em quimioterapia antineoplásica. Revista Brasileira de Cancerologia, 54(1),31-41. [ Links ]
Welch, A. S., Wadsworth, M. E., & Compas, B. E. (1996). Adjustment of Children and Adolescents to Parental Cancer Parent's and Children's Perspectives. American Cancer Society, 77(7),50-442. [ Links ]
Vendruscolo, J. (2005). Visão da criança sobre a morte. Simpósio: Morte, Valores e Dimensões, cap. 3, 38(1),26-33. Recuperado em 25 março, 2010, de http://www.fmrp.usp.br [ Links ]
Yin, R. K. (2004). Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman. [ Links ]
Recebido em: 12/07/10
Aceito em: 16/02/11
1 Apoio: CNPq
2 Contato: elisa.kerndecastro@gmail.com
3 Todos os nomes utilizados são fictícios em função da confidencialidade dos dados das participantes.