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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
versión On-line ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.3 no.2 Juiz de fora dic. 2010
ARTIGOS
O lugar do trabalho na vida do egresso do sistema prisional: um estudo de caso
The role of work in the life of the prison system's former inmate: a case study
Lidiane de Almeida Barbalho1; Vanessa Andrade de Barros
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
RESUMO
Por meio de um estudo de caso teve-se como objetivo conhecer o lugar que o trabalho ocupa na vida de um ex-detento, de que forma esse sujeito se depara com o mundo após sua saída da prisão e como o trabalho perpassa suas relações sociais pós-presídio. Procurou-se, especificamente, verificar se o trabalho contribui para que um expresidiário não reincida no crime. Para tal, foi adotado como metodologia de pesquisa o método de recolhimento da história de vida, que analisará as condições subjetivas e objetivas do sujeito pesquisado na perspectiva da Psicologia do Trabalho e da Psicossociologia.
Palavras-chave: Trabalho, Egresso do Sistema Prisional, Psicologia do Trabalho
ABSTRACT
The objective of the case study is to learn of the role that work plays in the life of former prison inmate, how this person faces the world after his release from prison and how work affects his post-prison social relations. We seek to verify, specifically, whether work helps a former prisoner not be a recidivist. To this end, we adopted as research methodology the method of collecting the life history, examining, then, the subjective and objective conditions of the research subject from the perspective of Work Psychology and Psychosociology.
Key words: Work, Prison System's Former Inmate, Work Psychology
O interesse pelo estudo sobre o lugar do trabalho na vida de um egresso do sistema prisional surgiu como tentativa de desvendar o mundo do trabalho e destrinchar suas relações com a formação do indivíduo enquanto sujeito. Considera-se importante entender o contexto social em que as pessoas estão inseridas e o trabalho como mediador dessas interações. Será que o trabalho tem sempre papel constituinte do ser humano? Será que, para o egresso do sistema prisional, o trabalho cumpre esse papel?
Para tal, foi preciso ir a campo, ao objeto de estudo. Segundo Marx (1932/2004), é preciso que a Psicologia saiba penetrar no que é a parte sensível mais concretamente presente, para que seja uma ciência real e rica de conteúdo. A partir disso, teve-se como objetivo deste estudo compreender, mediante as condições concretas de vida de um egresso do sistema prisional, o lugar que o trabalho ocupa em sua vida.
Considerações metodológicas
Foi adotado como metodologia de pesquisa o método de recolhimento da história de vida, que analisará as condições subjetivas e objetivas do sujeito pesquisado, na perspectiva da Psicologia do Trabalho e da Psicossociologia. A escolha desse método permite compreender melhor o lugar que o trabalho está exercendo na vida de uma pessoa que já ficou encarcerada. Como nos ensinam Barros e Silva (2002):
Por esse método, procura-se ter acesso a uma realidade que perpassa o narrador e o transforma. Trata-se de apreender o vivido social, o sujeito e suas práticas na maneira pela qual ele negocia as condições sociais que lhe são particulares. Pede-se ao sujeito que conte sua história da maneira que lhe é própria, de seu ponto de vista, e, por meio dessa história, tentamos compreender o universo do qual os sujeitos fazem parte. Isso nos mostra uma faceta muitas vezes ignorada pelos pesquisadores: a do mundo subjetivo em relação permanente e simultânea com os fatos sociais (p. 136).
Trata-se de uma pesquisa qualitativa baseada em um estudo de caso. Não se pretende aqui fazer generalizações. A escolha de um estudo de caso deveu-se ao desejo de aprofundar e desvendar uma realidade vinculada a um determinado contexto social, retratando a objetividade das situações relatadas, mas sem perder de vista o aspecto individual.
Deixa-se o indivíduo falar livremente sobre suas vivências, passadas ou presentes, anseios, o que pensa e sente. Com isso, queremos compreender seu contexto de vida, com todos os elementos psicossociais que perpassam sua trajetória. Assim, é possível compreender a interrelação entre elementos psicossociais, o que poderia não ser possível mediante outros métodos.
Segundo Barros e Silva (2002), uma importante característica dos métodos biográficos é "sua condição de ponte entre história individual e história coletiva. Trabalhando com histórias de vida, podemos religar o nível individual ao nível geral de análise, já que estas histórias nos enviam sempre ao campo social" (p. 140).
Evidencia-se, aqui, a dimensão sociopsicológica do processo de constituição histórica do sujeito: as histórias pessoais não são redutíveis aos jogos afetivos de ordem psíquica, mas confrontadas pelas relações sociais - culturais, econômicas, ideológicas - indissociáveis umas das outras. Ou seja, é toda a experiência biográfica do indivíduo que marca o seu desenvolvimento - a palavra biográfica utilizada em "seu sentido objetivo de curso de vida" (Sève, 2001), e não apenas subjetivo.
Em uma perspectiva vygotskiana, o interesse da narração não está na descrição de um passado (re)presentificado, mas na 'liberação' de alternativas que tinham sido mascaradas pela ordem das coisas, de outras maneiras de resolver a tensão entre as determinações e as intenções, na possibilidade de retomar (dizer, pensar, agir) o que foi esta história (Jobert, 2001, p. 220).
Assim, o pesquisador é conduzido pelo seu objeto em um processo de construção de conhecimento junto ao sujeito narrador. É a realidade que vai revelar os fatos e construir o conhecimento, e não uma teoria pré-construída se afirmar na realidade. Para a Ontologia - tradição filosófica centrada na interrogação sobre a realidade do mundo - o sentido não é atribuído, e, sim, descoberto. Portanto, é preciso se debruçar sobre determinada realidade para conhecê-la. Minayo (2000) nos diz que:
A rigor qualquer investigação social deveria contemplar uma característica básica de seu objeto: o aspecto qualitativo. Isso implica considerar sujeito de estudo: gente, em determinada condição social, pertencente a determinado grupo social ou classe com suas crenças, valores e significados. Implica também considerar que o objeto das ciências sociais é complexo, contraditório, inacabado, em permanente transformação (p. 22).
Chegou-se ao sujeito da pesquisa por intermédio do Núcleo de Prevenção à Criminalidade de Belo Horizonte, por ocasião de um curso no qual se encontravam vários egressos. Falou-se da pesquisa que ia ser feita, fez-se o convite e dois deles de dispuseram a participar. A escolha do início da pesquisa com Renato (nome fictício) deveu-se ao fato de este ter se apresentado mais interessado, mais disponível e menos esperançoso em relação a possíveis benefícios que a pesquisa poderia lhe trazer. Foi esclarecido junto ao outro candidato a participante que o objetivo da pesquisa não era fazer terapia, e ele desistiu.
Para o início da pesquisa com Renato, foram explicitadas as características da pesquisa, seus objetivos, explicações quanto ao método, consentimento quanto à gravação e publicação, preservação do anonimato e a devolução da narrativa por escrito, para que o sujeito pudesse refletir sobre sua trajetória.
Foram realizados 15 encontros no total, deixando-se o sujeito falar livremente sobre sua história - o que fazia com que o tempo de duração fosse variável - desde uma hora a três horas e meia de relato. Os encontros eram gravados com o consentimento de Renato, e as fitas eram transcritas. Foram observados os aspectos quanto à aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa e ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, para preservação do sujeito participante.
Concepção sobre trabalho
Antes de falarmos sobre a história de Renato, é importante discutirmos o que é trabalho na perspectiva da Psicologia do Trabalho, para que, ao final de nosso estudo, possamos associar a história desse sujeito com o que vemos na teoria, estabelecendo-se, assim, um diálogo entre teoria e pesquisa.
O trabalho é fundante do ser humano. É pelo trabalho que ocorre a inserção do indivíduo no mundo social. Para Lukács (citado por Fortes, 2001), ele é
o instante inicial da sociabilidade, o complexo originário, ineliminável que expressa a posição e a condição primeira da gênese e do devir homem do homem [...], ao mesmo tempo em que revela a realidade objetiva da natureza como a base imprescindível do processo de autoconstituição do ser social (p. 13).
Não apenas o trabalho é responsável pela sobrevivência, mas ele transforma o indivíduo ao mesmo tempo em que este transforma o mundo. Sobre isso, Soratto e Heckler (1999) dizem:
[...] falamos em trabalho quando, independente da relação financeira definida por vínculos empregatícios, contratos de trabalho, salários, deveres e direitos trabalhistas, uma atividade resulta em um produto que transforma a natureza e permanece no tempo e no espaço (p. 111).
É nessa perspectiva que pretendemos discutir o trabalho neste estudo, buscando elementos para a compreensão das relações entre o trabalho, o indivíduo e a sociedade.
Em Lima (2002), encontramos a mesma ideia que nos trazem Soratto e Heckler (1999):
O homem se produz, ao mesmo tempo em que modifica a natureza e, através dessa ação,consciente e proposital, ele realiza sua subjetividade na materialidade objetiva. Portanto, ao compreender o trabalho, podemos efetivamente apreender como se dá o interfluxo subjetividade/objetividade, o que, no nosso entender, é a chave para a compreensão dos processos psicológicos humanos (Lima, 2002, p. 25).
Dessa forma, é impossível pensar o homem sem o trabalho, uma vez que tudo o que existe é fruto do trabalho humano. Exceto a natureza bruta, tudo o que nos cerca é decorrente do trabalho, é fruto da transformação que o homem fez sobre a natureza, e esse processo vem ocorrendo desde os tempos remotos. Mas como citado, ao modificar a natureza, o homem modifica a si mesmo e cria a si próprio. Segundo Chasín (1993), o homem é o único ser que se autoconstrói, e o trabalho tem papel central nesse processo de autoconstrução. E o resultado do trabalho é a objetivação do homem no mundo, é o seu espelho. O trabalho não só é mediador entre natureza e ser social, como também entre subjetividade e objetividade, sendo, portanto, de fundamental importância seu entendimento para a Psicologia.
O trabalho está relacionado com a subjetividade humana na medida em que é uma atividade dirigida a um Outro (não só para si), constituindo-se símbolo de reconhecimento social (ou de exclusão). Segundo Yves Clot (2006), a atividade é afetada pela atividade do outro, é endereçada. Como forma de reconhecimento e identidade que o trabalho carrega consigo, o processo de trabalho para os moradores dos aglomerados, além de egressos do sistema prisional, é de interesse do presente estudo, pelo fato de o sujeito estudado nesta pesquisa ser um morador de favela. Como esses sujeitos se apropriam (ou tentam se apropriar) do trabalho, as relações sociais e sua interação com o modelo neoliberal de mercado decorrentes dessa apropriação serão aspectos abordados no decorrer deste estudo.
É importante ressaltar que o sentido que o trabalho assume para determinado sujeito, e como afeta sua subjetividade, só pode ser compreendido a partir de suas condições concretas de existência.
Por isso, apresentaremos o relato da história, de acordo com a vivência do sujeito e suas condições objetivas de vida. Procuraremos, ao final, entender como o sujeito estudado afetou seu meio (transformou a natureza), foi afetado por ele (autotransformou-se) e qual identificação foi estabelecida com o Outro, seu grupo e a sociedade em geral.
A história de Renato
A seguir, são apresentadas algumas categorias de análise, tendo sido feitos vários recortes da sua história integral devido à limitação do número de páginas para este relato de pesquisa. As categorias foram construídas de acordo com os temas mais recorrentes na fala do sujeito, aqueles que foram expressos de modo mais detalhado e com maior significação pelo mesmo.
Família
Renato relata que sua família é grande, todos humildes. São nove filhos, todos adultos, o mais novo com 26 anos. Renato tem quatro irmãos e quatro irmãs e conta com seus 29 anos. Tem uma filha de sete anos, que mora com a mãe. Ele conta que seus pais se mudaram de Rio Casca para Belo Horizonte porque no interior a vida era muito difícil. Só o irmão mais velho nasceu lá. Então, vieram em busca de melhores condições de vida e hoje moram no aglomerado de Santa Lúcia.
Conta que a convivência em casa é harmoniosa, que respeita muito seus pais e que sempre os ajuda quando pode. Diz que admira muito seus pais e que eles sempre foram trabalhadores, um exemplo para sua vida. Hoje, Renato mora com a mãe, o pai, um irmão e o outro está preso. O irmão que mora com ele toma remédio controlado após ter passado pela prisão. Diz que também tem uma irmã e três sobrinhos que praticamente moram com eles também.
Diz que se fosse por sua família, nunca teria pego nada de ninguém:
Vou falar c'ocê, nunca tinha pegado em nada, nem sonhado em triscar nem numa agulha dos outro. Igual, esse negócio de que eu já roubei e tal e tudo, era pra ajudar dentro de casa e tal e tudo. Mas a maioria das mãe fala: 'Ó...' Igual minha mãe já falava. 'Cê pode parar com isso, que cê nunca precisou de roubar. Se ocê já roubou ou alguma coisa é porque cê quis. Foi ato que cê aprendeu pra rua com seus colega. Porque seus pai nunca obrigou. Nem que for arroz com feijão aqui em casa nunca faltou'. Eu catando os papel, e puxando os carrinho de ferro velho, ela fala: 'Isso aí é muito mais bonito, muito mais bonito' (Renato).
Relata que nunca deu credibilidade para as palavras e conselhos da mãe, mas foi ela quem sempre esteve com ele. Na casa de Renato, só o pai dele está empregado, como segurança, e tem um depósito de ferro velho também. A mãe não podia trabalhar mais por questões de saúde. Apesar da baixa condição socioeconômica, o posicionamento da família era de que o envolvimento com drogas e roubo era errado.
Trabalho
Renato trabalhava com carteira assinada em seu primeiro emprego. Começou em decorrência de ter engravidado a namorada. Renato diz que eles alugaram um barraco e foram morar juntos. O trabalho era como ajudante de pedreiro. Ele ficou nesse emprego por cerca de oito a nove meses. A obra acabou e ele estava recebendo segurodesemprego. E fazia "bicos" por fora. Nessa época, ele e sua namorada não estavam mais morando juntos e ele diz não ter se preocupado em procurar outro trabalho com carteira assinada, pois o que recebia de seguro-desemprego dava pra ele comer, beber e vestir:
Aí, eu peguei e de uma pra outra e falei: 'Não vou ficar nessa de ficar trabalhando de peão de obra'. Peguei e não cacei esse negócio de trampo fichado mais, não. Aí, eu comecei a trabalhar é de bico mesmo, com meu cunhado. Ele é empreiteiro (Renato).
Ele relata a dificuldade de se conseguir um trabalho com carteira assinada, após ter passado pela prisão: "Puxa o prontuário e tal. 'Ah, não'. Às vezes não fala com a gente não, mas fala: 'Ele tem passagem na Justiça e tal. Não tenho confiança nele pra trabalhar comigo não' (Renato)." E acrescenta que ficar sem trabalhar "é ruim demais". Ele apenas arruma um bico uma vez ou outra. Compra doces para revender perto de sua casa. Começou a trabalhar com um empreiteiro, com carteira assinada, por um período de três meses de experiência; mas o trabalho, segundo Renato, era cansativo e muito longe. E como Renato estava em livramento condicional, tinha que faltar do trabalho para prestar assinatura no órgão de Justiça responsável. E fala do vazio que é ficar sem trabalho:
Tem vez que eu não faço nada, tem dia que eu fico o dia inteirinho dentro de casa, falo: 'Puta merda! Hoje, eu não fiz nada!' Aí, eu falo: 'Tem alguma coisa pra fazer. Vou lavar essas vasilha, lavar essas roupa, deixar meus negócio tudo arrumadinho e tudo, que é melhor'. Eu que arrumo (Renato).
Como alternativa à falta de emprego, Renato exercia a atividade de catador de papel:
De vez em quando, eu saio pra catar um papel, uma coisa, pra não ficar à toa de tudo. Porque pelo menos ganha uns cinco reais, uns sete, dá pra comprar pelo menos alguma coisa, né? Um pão, um leite, alguma coisa. É uma mixaria que dá, isso não dá muita coisa, não. Mas melhor do que ficar à toa. Aí, de vez em quando eu saio. Muitas das vezes o pessoal junta pra gente. 'Aqui, tem um papelzinho branco, cê quer levar?' O pessoal dos prédio, de onde é que eu cato. Eu já conheço eles (Renato).
Apesar da atividade como catador, ressaltava a falta de acesso ao consumo:
Nós já tamo no meio do ano. Daqui a pouco, chega o fim de ano, todo mundo tem uma roupinha boa pra usar, tem alguma coisa. E eu a mesma roupa de sempre, ou o mesmo chinelinho de dedo de sempre. E aí cê sabe. Todos nós gostamo de andar do jeito que a gente gosta. Se ocê, do jeito que ocê se sente mais bem e tal. Eu vou te falar. Se eu tiver com um chinelim, tiver arrebentado, 'ai, nossa, eu não tenho dinheiro'. Minha mãe: 'Ah não'. Ou, às vezes, meu pai: 'Eu ando com chinelo arrebentado e tal, ou emendo ele com preguim e tal'. Eu: 'Não, pai. Seu jeito de pensar é esse, mas o meu não é' (Renato).
Observa-se, nessa fala, um desejo de possuir coisas. Fato que também se constata na tese de Seron (2009), em que em um dos relatos dos entrevistados transparece a presença de um desejo de adquirir produtos de marca e de renome, uma ambição de possuir coisas que não as usuais em seu seio familiar como forma de reconhecimento ou destaque no grupo do qual o entrevistado fazia parte.
Embora a atividade de catação de papel não proporcionasse a Renato uma vida com condições materiais dignas, ele se sentia reconhecido pela atividade útil que desempenhava:
"Graças a Deus que nós somo conhecido e tem muito tempo que nós cata papel também e tal. Porque os homem [policiais] te aborda ocê e tal e tudo, falo: 'Não, eu tô catando papel, senhor. Se ocê quiser pode olhar em meu carrinho e tal e tudo, não tem nada roubado e tal'" (Renato).
A vida no morro
Renato fala da vida sofrida, da violência presente no morro e do seu envolvimento com "más companhias":
Então, a gente que mora nesses lugar assim, tem que ficar é cada um pra o canto dele e caçar um serviço pra casa, e de casa pro serviço. Quem não vai na igreja, fica dentro de casa tranquilo, muito mais melhor. Porque esses menino tem umas confusão deles, de vez em quando eles troca tiro, umas coisa lá e tal. Ficar no meio, às vezes, né? Uma hora que ocê tá ali com um negócio que não é agradável. Aí, as polícia chega. Aí, já era. Falar: 'Uai, se ocê tá com ele, tá conversando com ele ou coisa, cê conhece ele, cê tá no meio' (Renato).
Viu-se, por esse relato, que a favela tem sido alvo da Justiça, mas pelo fato de esta querer combater a violência e o crime com repressão. Entendemos que a população que ocupa as favelas são pessoas à margem de uma posição social digna. Na própria narrativa de Renato, este fala sobre como sua família veio morar na favela, da migração dos seus pais do interior à procura de melhores condições de vida:
"Nós somo de interior, né? Aí, meus pais mudaram pra cá e... porque no interior é muito difícil. Acho que só um irmão meu que nasceu lá. Só o mais velho. Que a vida no interior, acho que lá é mais sofrida" (Renato).
No entanto, viu-se que esse plano não pôde ser concretizado. A família de Renato foi mais uma a ocupar a massa de excluídos urbanos. Ele relata ainda como sua família foi despejada do bairro São Bento, onde moravam, por incomodar "os ricos":
Nós moramo muitos ano numa quadra onde meu pai trabalhava. Aí o homem pegou, foi e falou assim pro meu pai: 'Essa quadra aqui tá... essa quadra aqui é da associação do bairro'. Foi e falou: 'Fica muito difícil pro senhor, trabalha aqui, vai embora todo dia lá pro morro...' que é a favela e tal, '... por que que o senhor não faz uma casinha aqui pro senhor?' Aí, pegou e deixou meu pai fazer uma quadra, fazer uma casinha de madeira lá nessa quadra. De onde é que nós morava, que eles tiraram nós. Por baixo do Ponteio. É pertim. É perto também. Aí, nós tomamo conta desse lote muito tempo pra os pessoal lá. Nós plantamo, nós tinha umas galinha, uns cavalinho, um bocado de negócio. Aí, nós moramo muitos ano lá. Quem tirou nós de lá foi o moço, é chefe da associação do bairro. E lá só mora gente rico. Aí, ele pegou e foi e falou com meu pai que... A dona chegou lá, foi e falou: 'Não, essa quadra aí, infelizmente ela é minha e eu vou precisar dela. Vou construir nela'. Ela arrumou um papel lá, não sei. Arrumou uns papel, chamou as polícia. Eu tava até preso, minha mãe que me contou isso. Eu tava ainda lá dentro lá. Aí, chamou os policias, pegou e foi e falou: 'Aqui, dona, o negócio é o seguinte. A única coisa que eu posso fazer pra a senhora é só pagar o carreto, só pagar o caminhão pra levar as mudança da senhora e eu não posso fazer nada pra a senhora, não'. E graças a Deus que nós tinha essa, essa área lá, que meu irmão tinha arrumado essa área. Lá pra onde é que nós tá morando hoje. Porque senão nós tava até morando embaixo da ponte (Renato).
Conta, ainda, sobre o projeto de serem retirados de onde estão atualmente e irem residir em apartamentos cedidos pelo Poder Público:
O governo, eles tá querendo dar um predinho ou alguma coisa pra nós morar. Que eu falei c'ocê que eles vai fazer shopping, uns negócio lá. Aí, eles falaram que ia tirar o povo. Esses pessoal é difícil, né? Se eles pudesse, eu acho que tinha uma barreira. Se eles pudesse, eles punha um muro de arrima pra não ver nem a cara dos pobre. Cê sabia, né? Tem uns que eles fica doido pra fazer isso. Às vezes, tem muitos que... eles fala que gosta da pessoa, ou coisa. Mas é só na hora que a gente tá trabalhando pra eles (Ren
Sobre essas ações do Estado, Nogueira (2004) diz:
As várias iniciativas privadas ou públicas (essas em especial, já que obrigatórias), que visam atender às populações urbanas, precisam ser pautadas na realidade, ser esvaziadas do discurso higienista, de ações paternalistas e 'quantitativistas' (é sabido que muitas políticas públicas se limitam à produção de relatórios, mais interessadas nos números, e na mídia que eles podem oferecer, que nas pessoas e seus problemas reais') (p. 11).
As favelas, ou aglomerados, têm assumido papel de destaque na sociedade, mais por incomodarem aqueles que estão incluídos no sistema neoliberal do que pela atenção que tem sido dada a esse segmento populacional. A cidade é o próprio retrato das contradições impostas pelo neoliberalismo, denunciando um contingente de pessoas estigmatizadas e fora de seus direitos enquanto cidadãos. Na fala de Renato, este diz sobre as condições precárias de sua casa e de moradia:
Um dia, eu falei c'ocê que tava chovendo mais dentro de casa do que lá fora. As roupa sujou tudo, um bocado de roupa. Teve um negócio de uma terra lá do vizinho que caiu em cima das telha lá. Quebrou uma telha. Aí, eu falei: 'Nosso Deus, tô quase saindo lá pra fora porque aqui dentro tá pingando mais do que lá fora, uai!' [Risos] Mas é difícil demais, nosso Deus! (Renato).
Renato diz também sobre a repressão que as favelas sofrem pela fiscalização e por parte dos ataques policiais:
Eu fui pego no mesmo dia que teve a morte do tenente. Porque não teve jeito, não, porque os homem cercou o morro. Chegou lá dois helicóptero lá no morro. O morro é pequeno. Chegou dois helicóptero e pousou lá na barragem Santa Lúcia. Aí, chegou, na hora que assustou já chegou já carro do Exército com esse caminhão do Exército e tudo. Aí, chegou e acampou acho que uns dois ou três lá em cima lá na boca da BR, na Nossa Senhora do Carmo. Rham! Aí, fechou tudo, a favela! Um monte de polícia e tudo. Aí, cercou. Aí, os que tava nos beco de bobeira, que eles desce, cê já viu? Quando desce, nossa, é a tropa, né? Eles vai a tropa, é cinco, seis, tudo um atrás do outro e tudo. Aí, se ficar de bobeira, eles pega mesmo! (Renato).
Em um momento da narrativa, Renato fala que ele e seu irmão foram chamados para trabalhar no ramo da construção civil, na casa de um delegado, e o encarregado de obra pediu para que eles não mexessem em nada. Fica evidente o processo de estigmatização sofrido por moradores de favela.
Nós tava trabalhando numa casa lá no Cidade Nova, lá. Casa de gente rico, né? Casa bonita, né, grandona e tudo. Aí, o empreiteiro pegou e acho que falou com meu irmão, foi e falou: 'Ó, se ocê achar alguma coisa jogada aí ou coisa, ocê não pega sem avisar não, deixa aí, e tal'. Aí, meu irmão ficou nervoso, foi e falou: 'Uai, ele deve tar achando que, só porque a gente mora em favela, a gente é ladrão'. O empreiteiro foi e falou: 'Não mexe nada lá não, que o homem é delegado, e tal'. 'Ó, vou falar c'ocê, ocê empregou foi trabalhador, não foi ladrão, não, que se eu fosse de roubar, não tava caçando emprego, trabalhando não' (Renato).
Sobre esse preconceito acerca dos moradores de favela, Barros, Nogueira e Sales (2002) dizem:
Expostos ao crescimento da violência urbana e convivendo cotidianamente com a presença perversa do tráfico de drogas, os moradores de favelas são, contraditoriamente, amalgamados a essa violência, o que lhes imprime uma dupla condição de sofrimento: por um lado, ressentemse dessa assimilação com a violência e, por outro, são vítimas potenciais e diretas desse infindável conflito urbano (p. 329).
Dessa forma, vê-se que a favela imprime uma função impeditiva de acesso ao trabalho, o que tem sido um dos fatores de dificuldade da reinserção do egresso do sistema prisional nesse caso estudado. A noção de favela está também interligada à noção de exclusão. O termo exclusão "pode designar toda situação ou condição social de carência, dificuldade de acesso, segregação, discriminação, vulnerabilidade e precariedade em qualquer âmbito" (Escorel, 1999, p. 21).
Pires e Gatti (2006) dizem que as favelas, constituídas pela população pobre segregada pelos governantes, em função de sua trama, propiciam o crime organizado e o aumento da violência e da insegurança. Mas tomam cuidado com a generalização de que não é apenas a camada pobre da população autora de violência. O que diferencia a ação da violência entre uma classe social e outra é a motivação ao crime. No caso das classes de menor renda, segundo os autores, as principais motivações ao crime são a falta de oportunidades no mercado de trabalho, o desejo de consumo e a falta de perspectiva de ascender socialmente pelas vias lícitas. Portanto, o preconceito generalizado contra moradores de favela é absurdo, embora muito comum, pois nem todo morador de favela é criminoso; e mesmo aqueles que em algum momento da vida cometem um delito, não deveriam ser julgados e estigmatizados por explicações moralizantes, de ordem individualista, descoladas dos fatores sociais, econômicos e subjetivos.
Trajetória criminal
Na época em que Renato foi preso pela primeira vez, ele tinha 22 anos. Ele relata que tinha ido cometer um assalto para conseguir dinheiro para comprar arma, a fim de se vingar de "uns meninos" que o tinham assaltado lá no morro e lhe dado tiro:
Então, 22 ano, ocê é muito, né, muito sem juízo demais. E eu, na época, eu bebia, nossa, fumava, eu fazia o escambal a quatro, nossa Deus! Depois que eu separei de minha ex-mulher, nossa Deus, a mãe da minha menina, nó, parece que eu fiquei atentado demais! Eu nunca tinha sido preso, ninguém nunca tinha, polícia nunca tinha posto algema em mim. Daí a pouco, eu já tava era atrás da cadeia e tudo, falei: 'Meu Deus do Céu, misericórdia!' Mas é por que a gente dá lugar, né? Porque a mãe da gente falava, minha mãe falava: 'Ô, meu filho, não fica aprontando não', e tal. Não dava nem ideia e ia pra gandaia... então, hoje em dia, graças a Deus, foi até... igual eu falei c'ocê da última vez, acho que da última vez. Deus até perdoa, em nome de Jesus, às vezes, foi até baum, Deus até permitiu que eu caísse lá dentro pra me ver que a vida não é do jeito que eu tava achando que era (Renato).
No total de tempo, ficou preso por seis anos e quatro meses. Da primeira vez que saiu de descida temporária, não voltou. Os policiais sabiam onde ele morava:
Eu já tava de fuga. Aí, eu fui e falei: 'Ah, já que eu tô de fuga eu não tô nem aí! Eu vou é aprontar mesmo!' Era dia de meu aniversário, eu tava sem dinheiro. Aí, a hora que assustou, eu e meu irmão vai lá pro lado do Sion, lá. Aí, pegamo e fomo lá pra aquele lado do Sion, lá, chegamo lá, os homem, aí, na hora que nós já tinha fazido os negócio já e tudo. Nós tinha pegado uma drogaria. Aí, andei um pouquinho e chega dois carro dos homem. Tava armado, peguei e dei uns dois tiro pro lado deles, e eles mandaram parar e... nó, aí, já era! Eu peguei, fui e reagi, eles pegou e me deu dois balaço. Aí, fui preso de novo e fiquei mais cinco ano (Renato).
Renato diz que não respeitava polícia. Hoje, ele pensa que deve haver uma punição ou algo similar. Acha que se a pessoa for para cadeia ainda tem que agradecer a Deus, porque, segundo ele, tem hora que não tem mais jeito:
Tem hora que não tem mais volta. Porque a vida do crime, eles não sabe. A gente tenta falar com eles e coisa. Se ocê pudesse, cê não falava, cê dava uma palestra, alguma coisa e tal. Porque não presta. A vida do crime é três opção: cadeia, cemitério e cadeira de roda. Porque é vida louca, é vida do crime. Essa vida não presta (Renato).
Percebe-se, no discurso de Renato, a presença de uma consciência pessoal do erro, do delito, e não uma consciência social, material, o que é corroborado no estudo de Seron (2009).
Sistema prisional
Viu-se que o ambiente das cadeias por onde Renato passou é degradante, não favorecendo a recuperação do ser humano. Renato fala do ambiente degradante da prisão: "A comida tem vez que é péssima. Uma vez veio tipo um abacaxi podre dentro da marmitex. Aí, eu peguei nem quis alimentar, e tudo. Café chega é gelado, nó! Pão duro igual um pedaço de... às vezes, o pessoal fala lá: 'Você vai virar um... vai acabar virando santo'" (Renato).
Por meio do relato da história de vida, foi percebido que nas cadeias ocorre a repressão e a mortificação do eu. Goffman (2005) fala sobre as instituições totais, que são definidas pelo autor da seguinte forma: "Seu fechamento ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo" (p. 16). É um espaço onde a liberdade é tolhida; não apenas a liberdade física, mas a de expressão e a de possibilidade de ação ou criação pelo trabalho. Daí, depara-se com um sistema social dos presídios que parece não preparar o sujeito para a vida de egresso. E o paradoxo é que "Frequentemente, as instituições totais afirmam sua preocupação com a reabilitação, isto é, com o restabelecimento dos mecanismos autorreguladores do internado" (p. 67).
Além disso, o sistema penal é pré-seletivo: geralmente as camadas mais frágeis da população é que vão para a prisão. Segundo Hulsman e Celis (1997), esse sistema "cria e reforça as desigualdades sociais" (p. 75: grifo dos autores). Inicialmente, a prisão foi criada para punir, corrigir e ressocializar. Foi concebida como fator de proteção da sociedade. Mas ela passou a desempenhar um papel negativo - é um dos elementos mais perversos de exclusão social, que estigmatiza o indivíduo para sempre:
O que eu já passei, nossa Deus! Não desejo isso pra ninguém. Mesma coisa de... sei lá, um animal, uns porco, ou uns negócio que eles cria. Porque uma, uma celinha. Uma cela, às vezes... Em distrito, tipo Furtos e Roubos, DI, ali quando ocê passa ali, ali ocê pena pra daná. Se ocê ficar lá, vamo supor, um mês, nossa, 15 dias ali dentro, ali, dentro de um quartim que ocê não sai pra nada, toma sol nem nada! Nó, é horrível (Renato).
Perante isso, como pensar a "recuperação" de um ser humano em um sistema perverso e desumano? A recuperação do preso é o que propõe o sistema carcerário em seu discurso oficioso. Entretanto, consideramos que "A transformação pretendida da pessoa presa em 'pessoa recuperada' é inviável, pois a criminalidade não está na essência do homem, mas na sociedade em que vivemos" (Brasil, 2007, p. 121).
O senso comum pensa a prisão como a "ordem", a "segurança pública". De fato, ela não é "só" o encarceramento. Segundo Hulsman e Celis (1997), é também um castigo corporal, perda de possibilidade de emprego, perda da possibilidade de manter uma casa e uma família, família estigmatizada juntamente com o preso, distanciamento do preso
de tudo que conheceu e amou. Ela não é mais a retirada do mundo normal da atividade e do afeto; a prisão é, também e principalmente, a entrada num universo artificial onde tudo é negativo (p. 62).
Trabalho no sistema prisional
Na primeira vez em que Renato foi preso, cumpriu pena do lado da Dutra Ladeira. Ele tinha cerca de 22 a 23 anos de idade. Permaneceu lá por quase dois anos. Nesse local, o detento trabalhava para reduzir a pena e todo mês tinha um dinheiro. Metade do valor era liberado e a outra metade era guardada. No dia em que Renato saiu dessa Unidade, estava com um cheque, com o qual comprou umas roupas para ele e para sua filha. E ele não esperava por esse dinheiro.
Porém, em outra Unidade, Renato não quis trabalhar só por remissão (sem ganhar dinheiro - a cada três dias trabalhados, reduzia-se um dia na pena). O trabalho era para capinar, roçar, o que fosse mandado fazer. Renato gostaria de trabalhar para ganhar "um trocado". Quando ele trabalhou, foi por 16 dias, sem remuneração.
Em outra ocasião, teve oportunidade de fazer artesanato e vender dentro da prisão. Ele fazia casinha, porta-joias e porta-retrato. Entretanto, fora da prisão, Renato não teve o valor dessa atividade reconhecido:
Aqui fora, eles não dá valor, não. Porque eles quer comprar de graça. Se ocê pedir 15, eles quer dar sete ou cinco reais. Ainda mais onde é que eu moro lá, que eles é tudo conhecido: 'Ah, que é isso? Faz por cinco'. Eu falo: 'Não, não posso, não'. Porque o material eu tenho que comprar. O palito de picolé, comprar a cola, tenho que comprar a camurça pra elas ficar tudo forradinha. Então, eu tenho que comprar um bocado de trem. Se eu for vender barato demais, eu não ganho nada! Aí eu vou pagar pra trabalhar (Renato).
Portanto, vê-se que a prisão impõe padrões comportamentais inadequados ao meio externo, especialmente em relação ao contexto produtivo.
Vida de egresso
Conforme relatado, o indivíduo tem uma sensação de liberdade ao sair do encarceramento:
Vida aqui fora é muita coisa, né? Graças a Deus. Nossa! Nó, aqui fora é bem melhor, aqui não tem nem comparação com a vida lá de dentro. Aqui fora é outra coisa. Nó, a gente trabalha, a gente corre atrás, a gente recebe uma mixaria, a gente compra os negocinho que a gente precisa (Renato).
Contudo, logo o indivíduo se depara com um outro mundo, uma outra realidade:
Tô de condicional, tenho que ir no Fórum de três em três mês. Graças a Deus, mas nossa Deus, é uma vida difícil, viu! Se ocê não tiver muita fé em Deus, cê cai em besteira, tem muitos que desespera e volta pra grade de bobeira. Eu não tô nem aí, eu não devo mais nada a ninguém, o que eu devia, eu tô pagando! O que eu tinha que pagar, quis que eu pagasse, paguei! Agora, tô na rua de novo, tô trabalhando, mas nó! A gente fica mais desesperado, por causa, né, tem que correr atrás, hoje não tem serviço, amanhã não tem também, depois já aparece. Então, graças a Deus, igual eu falei c'ocê, que eu sou, graças a Deus, eu sou sossegado, mas tem muitos que não consegue viver aqui dentro, não, já passou lá, às vezes, eles acha que isso não dá mais (Renato).
E fala sobre os apelos da criminalidade:
Porque muitos colega e tudo, se ocê reencontrar colega, chama a gente pra aprontar de novo. Se ocê não for forte, cê cai em besteira, porque... Os colega de antigamente que a gente aprontava e tudo. A gente tem que... porque se a gente for em bobeira, acaba indo é, voltando é pras grade de novo. Mexer com coisa errada tem que pagar, né? Não adianta, a pessoa às vezes quer ganhar o mundo, acaba perdendo é a vida. Não adianta ver aquele tênis de 500, 400 real: 'Ah, vou comprar e tal'. Vou comprar se Deus me abençoar, saber que eu tô comprando foi adquirido do meu suor. Muito mais melhor. Tenho certeza que se for comprar adquirido do suor da gente e tal... Se ele ia durar um ano, esse aí cê vai ter mais cuidado que ele vai durar uns dois e tudo. Porque quando cê tem as coisa muito fácil, não dá muito valor, não. Aí, graças a Deus, a gente tem que saber viver. Porque, não adianta. Querer pegar, às vezes por causa de mixaria cê passar por uma humilhação danada (Renato).
Sobre o encarcerado, Hulsman e Celis (1997) dizem: "E, quando sair da prisão, terá pago um preço tão alto que, mais do que se sentir quites, muitas vezes acabará por abrigar novos sentimentos de ódio e agressividade" (p. 72). E adiante: "O sistema penal endurece o condenado, jogando-o contra a 'ordem social' na qual pretende reintroduzi-lo, fazendo dele uma outra vítima" (ibidem: grifo dos autores).
Estigma
Difícil falar de um caso de um egresso do sistema prisional sem falar do preconceito que este tem enfrentado:
Ah, muitas vezes, é, a gente somo muito discriminado, não é? É totalmente diferente. Parece que... vou te falar c'ocê, parece que esse carma a gente vai carregar pro resto da vida. Nossa Deus, é péssimo! Graças a Deus, Deus dá força, né? Mas eu vou te falar c'ocê. Tem hora que nó, a pessoa é discriminada (Renato).
Para isso, foi reservada uma parte de sua história de vida à categoria "estigma". O nome vem da Grécia e se refere a sinais visuais que os gregos deixavam no corpo de alguém em sinal de que havia algo de extraordinário ou mau em relação ao status moral da pessoa que o portava (Goffman, 1980).
A sociedade contemporânea também estabelece o que é normal e "marca", de certa forma, aqueles indivíduos que fogem desse padrão de normalidade. Hoje em dia, está mais ligado a uma situação de exclusão do que de uma marca corporal propriamente.
O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem (Goffman, 1980, p. 13).
O autor diz que o sujeito estigmatizado pode tentar encontrar várias saídas, tais como: aceitação (predisposição à vitimização), tentativa de corrigir sua condição de maneira indireta, uso de ganhos secundários e ainda considerar as privações como uma bênção secreta. No caso de Renato, essa última saída se aplica quando este afirma que se não tivesse passado por esse sofrimento não teria aprendido a viver um pouco."Deus até perdoa, em nome de Jesus, às vezes foi até baum, Deus até permitiu que eu caísse lá dentro pra me ver que a vida não é do jeito que eu tava achando que era" (Renato).
Uma das grandes dificuldades encontradas é a exigência que os empregadores fazem em relação ao atestado de antecedentes criminais:
Porque quem tá aqui fora não é fácil, né? Que já foi ex-presidiário e tudo! Que cê tem que ter pelo menos uma carta de emprego ou alguma coisa. E eu vou pedir uma ajuda pra alguém, pro juiz, ou alguém deles e tudo, pra ver se me arruma uma carta ou alguma coisa. Porque o atestado de bons antecedentes pra gente ainda é difícil. Eu acho que não dá ainda, não. É só depois que ocê acabar. Igual eu, só tem mais três ano (Renato).
Outra dificuldade tem sido a obrigatoriedade de prestação de contas do livramento condicional:
Esse negócio [de assinar condicional] dá uma canseira danada. Eu cheguei lá um dia, quatro e meia, fui sair de lá seis e meia da tarde. Já pensou? Cê tiver trabalhando fichado, alguma coisa, toda mão cê faltar no serviço? A pessoa não gosta, acha que você tá enrolando. Como é que eu vou pedir um papel do Fórum Lafaiete pra me apresentar num serviço fichado? Eles vai falar: 'Uai, que é isso, uai?' Aí, se olhar, eles vai falar: 'Ah, ele já teve passagem na, no artigo 57, nossa senhora!' Eles fala: 'Manda esse rapaz embora amanhã', sem direito a nada, se marcar. É difícil, nossa Deus, que é isso? A pessoa é discriminada pra daná (Renato).
O preconceito e a depreciação são tão fortes que Renato tentava achar outras explicações para o tempo em que esteve preso, fora de sua comunidade:
Falei com ninguém que eu tava detido não, porque nossa! É uma pouca vergonha danada. Aí, eu peguei, fui e falei que eu tava lá na casa da minha vó, que eu tava viajando e tudo. Aí, um bocado nem sabe que eu tava preso nem nada. Um bocado acha que eu tava viajando mesmo e tudo. Mas só que eu não gosto de mentir (Renato).
Aquele que caiu no sistema é culpado e excluído pelo resto da vida.
A prisão tem sempre o significado de castigo e o estigma que imprime sobre aqueles que atinge se manifesta, contrariamente ao princípio proclamado, sob a forma de uma marginalização social mais ou menos definitiva daqueles que saem de lá (Hulsman & Celis, 1997, p. 94).
Considerações sobre a história de Renato
Serão feitas algumas análises gerais sobre a história de vida em questão de acordo com os elementos que surgiram dessa própria narrativa. Contudo, a ênfase será o trabalho (analisado no item subsequente) tema deste estudo.
Conforme pôde ser percebido nessa narrativa, a temática da exclusão perpassa toda a vida do sujeito: exclusão de condições dignas de moradia, exclusão do acesso ao emprego digno, exclusão do acesso ao consumo. Segundo Mariangela Wanderley (1999), quando ela nos remete à ideia de exclusão, diz: "[...] sob esse rótulo estão contidos inúmeros processos e categorias, uma série de manifestações que aparecem como fraturas e rupturas do vínculo social" (p. 17).
Significa, portanto, um não-pertencimento do indivíduo ao jogo das relações sociais. Mas os sujeitos não respondem passivamente a essa exclusão. Eles tentam se incluir no sistema, mesmo que desigualmente, e daí surgiu a ideia de inclusão perversa (Sawaia, 1999). E esse processo se deve ao fato de o neoliberalismo impor os problemas como individuais, passando a ideia de que no capitalismo as pessoas são livres. Os que se esforçam, os que não são preguiçosos, sob essa ótica, pois conseguem se sobressair e fazer parte do jogo social. Contudo, sobre isso, Barros et al. (2002) dizem:
Quanto mais o mercado ganha espaço no cotidiano, mais a vida social parece ser dominada pela abertura e competição. Conforme o discurso neoliberal, cada um pode (tem o direito) de participar e de competir, de acordo com seus méritos, suas escolhas e capacidades - neste sentido, o sucesso ou fracasso é de sua inteira responsabilidade. [...] Os problemas não são percebidos como relações de força, mas são moralizados [...] (p. 326).
Percebe-se, pois, que a liberdade dita pelo neoliberalismo não basta para que um indivíduo realmente tenha possibilidades. Da forma como está consolidado, tem sido responsável pelos processos de exclusão, de tentativa de inclusão perversa e de sofrimento psíquico:
Quando um conjunto social se pauta por valores utilitários como no caso da sociedade contemporânea, a ausência de inserção nesse modelo e/ou em suas formas organizativas e relacionais representa experiências de sofrimento e repercute na qualidade de vida de sua população (Jacques, 1996, p. 25).
O fato é que tanto a exclusão quanto a inclusão perversa causam sofrimento nos indivíduos que a vivenciam.
Outro fato observado é que o trabalho está intimamente relacionado com toda a história de vida de Renato: o fato de sua família necessitar da renda de seu trabalho para ajudar nas despesas domésticas; o trabalho desenvolvido pela família de Renato e por ele nunca ter lhe dado condição de habitar um local digno; a falta de acesso ao consumo por meio do trabalho e o desejo de possuir algo que não seja apenas da ordem da sobrevivência; a entrada na vida criminosa; a institucionalização como marco da exclusão de Renato do jogo social; a vida de egresso marcada pelo estigma e por uma acentuação da exclusão que já existia; e a dificuldade de obtenção de um trabalho lícito e digno que lhe permita viver fora da criminalidade. O trabalho está fortemente vinculado às vivências sociais desse sujeito - antes, durante e depois de sua passagem pela prisão - e é o mediador dos vínculos estabelecidos com o mundo.
A vivência do trabalho
O trabalho é o cerne de como a sociedade vive e se organiza. É pela observação e análise dos processos de trabalho que percebemos como se dá a vida em seu conjunto. Por este estudo, foi possível ver questões sociais inseridas na realidade objetiva do indivíduo estudado, e que trata de uma realidade que diz respeito a vários outros sujeitos.
Foi dito, no início deste relato de pesquisa, que o trabalho está intimamente relacionado ao Outro; não se trabalha apenas para sobreviver - o trabalho cumpre um papel identitário pela utilidade e pelo lugar que um indivíduo ocupa no jogo social. E traz desdobramentos, tais como a construção da autoestima, da autonomia e da necessidade de reconhecimento. Contudo, a função de intermediação entre homem e natureza que o trabalho exerce vem sofrendo transformações, ficando essa função comprometida. O trabalho tem sofrido distorções no mundo atual pelo uso que se tem feito dele. No texto "A função política do trabalho e a ordem social" (Barros, 2005), fica clara a ideia de que o trabalho também tem sido utilizado como estratégia de dominação social, em que parte das pessoas se beneficia dele e outra parte é explorada, sendo submetida a trabalhos precários, com sentido degradante, muitas vezes ocasionais e temporários.
Nogueira (2004) reforça essa ideia, dizendo:
De fato, no trabalho o sujeito vai encontrar os elementos que vão participar na construção de sua identidade, por meio da relação com a cultura, da identificação do/com grupo, da autorrealização e do sentimento de autoestima, mas o simples acesso ao trabalho não garante a 'dignidade', o reconhecimento (talvez garanta alguma 'sobrevivência' e ainda assim diversas são as situações em que os sujeitos se encontram submetidos a uma tal exploração e dominação que lhes fica impedido o 'acesso' a qualquer coisa que não seja trabalhar e refazer as forças para voltar a trabalhar) (p. 120).
O fato é que o indivíduo necessita sobreviver. Mas não apenas sobreviver, ele precisa de reconhecimento. E, segundo Zaluar (1994): "A saída criminosa é a entrada possível para a sociedade de consumo já instalada no país" (p. 113).
Viu-se, por meio da história de vida de Renato, que o trabalho nem sempre poderia atender ao seu desejo de comprar um tênis caro, de ter uma roupa de marca, de dar-lhe acesso à cultura e ao lazer. Nem de lhe dar reconhecimento perante seu grupo secundário (Rouchy, 2001). Como "saída" para esse jogo social, os atores não ficam passivos, podendo ocorrer a inclusão perversa, como já citado anteriormente. Mas se essa "saída" pode parecer eficaz a curto prazo, ela não se mantém sem ser punida pela mesma sociedade excludente (isso fica muito claro por meio do relato de Renato quando ele diz que a vida do crime é "vida louca"). O crime é tido como norma desviante, e para tal "pecador" deve haver uma punição. Vai ser mais um a contribuir para a superlotação das cadeias e presídios, impregnados pela repressão, pela vida degradante e não-reconstituidora, conforme visto. Tira-se, isola-se esse indivíduo da sociedade, como medida paliativa (o que nos faz lembrar aqui o isolamento dos "loucos" nos manicômios). Chamamos de paliativa, pois logo esse indivíduo estará de volta ao convívio social, "incomodando" as elites. Paliativa também porque, como foi evidenciado, o sistema penitenciário não tem dado respostas eficazes à mudança, à transformação de um indivíduo que teve um comportamento dito desviante.
Pode ser percebido, por intermédio do recolhimento dessa história de vida, que o trabalho realizado dentro do sistema prisional de nada contribuiu para a transformação desse sujeito, senão para passar o tempo. O trabalho é criação, é a impressão da subjetividade do sujeito no mundo em via dupla (assim como a objetividade afeta a subjetividade). O trabalho é estruturante, participa da construção da identidade, mas o trabalho útil, não um passatempo. Dentro do presídio, o sujeito ficou relegado a trabalhos impostos pelo sistema, trabalhos de mera repetição, sem haver nenhuma implicação do sujeito nela. A fabricação de casas de artesanato, por exemplo, de nada serviu para o sujeito após seu egresso. Ele mesmo narra que as pessoas não valorizavam seu trabalho, querendo comprar suas fabricações por "mixaria". Ou seja, não há, em decorrência do sistema prisional atual, nem sobrevivência, nem transformação.
Parece-nos que há apenas a afirmação para o sujeito de que a prisão é um lugar degradante, para o qual ele não deve voltar. Ele tem que fazer de tudo para que isso não aconteça, lançando estratégias de enfrentamento no novo convívio social, agora ainda mais difícil, pois, além de o sujeito ser estigmatizado por ser pobre, morador de favela, agora é um egresso do sistema prisional.
Imaginemos o quanto esse indivíduo luta por tentar se adequar ao sistema dito normal, o tanto que reluta por não cair em comportamentos ditos desviantes apesar dos apelos da criminalidade (talvez até como supridora das carências de sua condição material e social). O tanto quanto tenta ser um cidadão, apesar de a própria sociedade que o condenou nunca ter lhe dado a oportunidade de tê-lo sido integralmente, com acesso à cultura, lazer, trabalho e condições dignas de moradia.
Como afirmou Seron (2009):
Abandonados à própria sorte, sem possibilidade de exercer muitos de seus direitos individuais por não estarem inseridos em nenhuma estrutura coletiva que os integre na dinâmica social, à maioria dos egressos do sistema prisional brasileiro resta a alternativa de viver na condição em que o imperativo é somente a sobrevivência e não o bem-estar social (p. 65).
Nem para sobreviver, o egresso encontra, às vezes, um trabalho lícito, por falta de escolaridade e de qualificação para exercê-lo, além do impedimento do atestado de antecedentes criminais. Mais do que quaisquer outros indivíduos desempregados, esses egressos necessitam de proteção social - por estarem propensos a voltarem para o crime e serem excluídos do sistema produtivo.
Está impregnado na nossa cultura que há um antagonismo entre "criminoso" e "trabalhador". Ou se é um, ou se é outro. Sobre isso, Carreteiro (2001) diz:
[...] podemos dizer que há um deslocamento da noção de 'cidadão' para a de 'trabalhador'. O trabalhador, isto é, aquele que possui uma força de trabalho definida oficialmente, é alvo de certo reconhecimento social por parte de algumas instituições públicas (auxílio-doença, saláriofamília, seguro-desemprego, FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) (p. 157).
E ainda sobre isso, Carreteiro (2001) diz: "[...] reconhecerão sua existência como elemento que contribui para o desenvolvimento econômico e social. E o sujeito, definido como cidadão, terá a sensação de pertencer à nação" (p. 157).
De fato, a luta e o desejo pelo trabalho com carteira assinada têm sido uma luta na vida de Renato como egresso do sistema prisional. Contudo, mesmo tendo tido contato, após ter saído do encarceramento, com um trabalho com carteira assinada, viu-se que nem sempre o trabalho compensa - o trabalho degradante, com uso excessivo do corpo, baixos salários, ritmo intenso de trabalho e exploração da mão-de-obra em favor do lucro do capitalista. Sobre o uso do corpo, Carreteiro (1999) fala: "O 'corpo são' é valorizado positivamente, pois significa uma potencialidade, a de poder converter-se em capital" (p. 93). Esse trabalho (mesmo que de carteira assinada) não foi capaz de dar a Renato reconhecimento, por seu caráter temporário, de exploração e de não-transformação.
O sujeito estudado também tentou fazer parte do sistema considerado correto e honesto, tendo feito tentativas de vender balas em um ponto na frente de sua casa, capinando lotes e fazendo pequenos e ocasionais trabalhos de reforma. Da mesma forma, não encontrou sobrevivência no trabalho nem ao menos reconhecimento. Os vários empregos que tem tentado exigem atestado de antecedentes criminais, além de experiência e qualificação.
Uma saída encontrada pelo sujeito tem sido o trabalho como catador de papel. Não que esse trabalho garanta sua sobrevivência de forma adequada, dando-lhe acesso ao lazer e à cultura, mas lhe garante seu reconhecimento pela comunidade como trabalhador (o que é dizer que não é criminoso), o que lhe permite ser útil, imprimindo no mundo sua marca participando do processo de reciclagem (coleta, separação seletiva, reciclagem propriamente dita). Ao sair com seu carrinho de papel para trabalhar, ele se sente útil por ajudar a "limpar a cidade", ajudando no trabalho dos lixeiros, transformando algo que ia ser jogado fora em algo a ser renovado, além de ser visto pela comunidade (donos de lojas, empregadas domésticas) como uma pessoa que está fazendo o bem, realizando uma atividade útil e considerada honesta. Como ele mesmo diz: "Não tô roubando nada de ninguém, é achado". E algo que catar papel lhe confere: ser reconhecido pelos policiais como trabalhador, uma pessoa responsável por ajudar a manter a ordem.
Como catador de papel, Renato encontrava reconhecimento em contato com a sociedade (extra-aglomerado), sendo reconhecido por uma função útil para as pessoas. Segundo Alves (1999), no modo de produção capitalista:
A sociabilidade não é mais propriamente comunidade, mas sociedade, intercâmbio múltiplo e produção para este intercâmbio. Agora, a base da objetivação dos indivíduos não reside mais na produção para a subsistência da comunidade, tendo-a como pressuposto e limite, mas na troca, no intercâmbio social dos valores (pp. 93-94).
Não podemos deixar de falar que o trabalho como catador de papel é visto por algumas pessoas como uma atividade "suja", degradante. Como o próprio Renato narra: "Tem pessoa que vê ali pessoa catando lixo no saco de lixo e tal. 'Que é isso, catando lixo!' Às vezes, até as vizinhança: 'Olá, catando lixo e tal'". Sobre isso, Barros et al. (2002) discutem:
[...] observa-se a existência de outras situações que tornam o trabalho menos eficaz em sua ação de integração social, por exemplo, ofícios, cujo exercício, por si só, já apresenta um caráter excludente, uma vez que o trabalhador é 'contaminado' pelos conteúdos de suas tarefas: trabalhadores de cemitérios, funerárias e similares, agentes de limpeza urbana, catadores de papel, dentre outros (p. 329).
Apesar de estar executando uma atividade, um trabalho, o sujeito estudado se sente ainda à margem da sociedade. Não foi possível superar sua condição financeira e fazê-lo pertencer à sociedade como cidadão que usufrui os seus direitos e uma vida digna. Mesmo que um indivíduo esteja exercendo uma atividade remunerada, por ganhar pouco e não ter acesso aos apelos do consumo, esse indivíduo pode não se sentir parte do contexto social (Seron, 2009). Ele se sente bem trabalhando, mas não tem o poder de consumo que o neoliberalismo declara como de acesso a todos (bastando apenas esforçar-se).
Considerações Finais
Viu-se, por meio deste estudo, não apenas o que é o trabalho, mas seus desdobramentos atuais. No capitalismo, da forma como ele tem se configurado, não vale apenas o esforço de cada um. Não há lugar para todos, com condições de igualdade e de dignidade. Para que alguns estejam incluídos, o capitalismo exige que outros tantos sejam excluídos. E a explicação para o fracasso, para o não-pertencimento ao jogo social passa a ser individual e moralizada. Os que não conseguem se incluir formalmente tentam a inclusão de outra forma por meio de "bicos", trabalhos precários e temporários. Às vezes, essa tentativa de inclusão se dá mediante atividade ilícita, sem falar de quando o trabalho formal garante precariamente a sobrevivência e não é capaz de dar ao indivíduo possibilidade de acesso ao consumo e reconhecimento.
Portanto, o trabalho está no cerne da inclusão e da exclusão do sujeito. O simples fato de estar trabalhando não garante uma vida cheia de sentido. Nem toda atividade será útil e nem responsável pela transformação, autoconstrução, realização, sociabilidade e liberdade. Só o trabalho, tal como o definimos na Psicologia do Trabalho, como transformador do indivíduo ao mesmo tempo em que este transforma o mundo, é que pode trazer às pessoas status de cidadania e de participação efetiva na vida social (estando essas pessoas incluídas).
O lugar do trabalho na vida do egresso do sistema prisional vai depender, em maior ou menor grau, do papel que sociedade e Estado querem que o trabalho exerça. O trabalho tem sempre papel constituinte do ser humano, tem sempre um sentido - positivo ou negativo, a depender da forma como está posto para o sujeito. Nesse caso estudado, verificou-se que, apesar da precariedade do trabalho, este preservou seu aspecto positivo por sua utilidade (transformação da natureza), sentimento de reconhecimento e de se estar exercendo um ofício honesto (Renato visto como um não-criminoso). Porém, a autotransformação - o sujeito sendo afetado pelo trabalho - não foi condizente com seu esforço, não foi capaz de propiciar ao sujeito uma organização da vida social e fazê-lo se sentir pertencente ao mundo como cidadão pleno, que usufrui de seus direitos.
O egresso do sistema prisional, por ter seus vínculos sociais profundamente deteriorados pela experiência da prisão, pela exclusão do sistema produtivo e pela vulnerabilidade que o aproxima do crime, necessita de amparo tanto por parte do Poder Público quanto da sociedade como um todo. Mas chama-se a atenção aqui para um amparo que afete suas condições concretas de existência, sua condição objetiva de vida. Não se consegue modificar um indivíduo, transformá-lo, desvinculando-o de seu contexto social, como se ele fosse apenas sua subjetividade, sem materialidade. E o trabalho, por ser mediador entre objetividade e subjetividade, entre ser e mundo que o cerca, deve estar na pauta dos debates e ser foco das ações que se pretendem transformadoras e promotoras dos direitos do homem.
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Recebido em: 13/08/10
Aceito em: 16/02/11
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