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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
versión On-line ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.5 no.2 Juiz de fora dic. 2012
Um estudo sobre a "Doença dos Nervos" para além de um sofrimento incorporado1
Identifying technologies of a legal device and their effects on the construction of a deviant biography
Luciana Fernandes de Medeiros Azevedo2
Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil. Centro Universitário do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil
RESUMO
Este artigo é um estudo teórico sobre a "doença dos nervos" como um sofrimento incorporado e suas repercussões nas práticas de cuidado em saúde. O corpo, sendo disciplinado através das relações de poder e da institucionalização de normas e condutas sociais, expressa a materialização do sofrimento advindo das condições de vida. A maioria das práticas de cuidado na atenção básica é permeada pelos conceitos, significados e crenças que os profissionais e usuários têm acerca da saúde, doença, corpo e sofrimento. O foco somente no sintoma contribui para que os aspectos políticos e socioculturais presentes nas queixas fiquem dissimulados, além de ser funcional para a manutenção do modelo biomédico. Contudo, as práticas de cuidado em saúde podem ser inócuas quando não trazem à baila discussões políticas e politizadoras nos serviços de saúde. Há necessidade de incluir no cotidiano dos serviços um espaço de discussão sobre esses temas.
Palavras-chave: Corpo; Práticas de Cuidado; Sofrimento Incorporado; Doença dos Nervos.
ABSTRACT
This paper is a theoretical study on Nerve Disease as an incorporated suffering and its impact on the practice of health care. The human body while being disciplined through power relations and institutionalization of social standards and behaviors expresses the materialization of suffering originating from living conditions. Most practices in primary health care are permeated by concepts, meanings, and beliefs that health professionals and users have about health, disease, the body and suffering. Focusing only on the symptoms contributes to the fact that the political, socio-cultural aspects present in the complaints are hidden as well as being functional for the maintenance of the biomedical model. However, health care practices may be harmless when political and politicizing discussions in health services are not mentioned. Therefore, there is the need to include in the daily life of services an area of discussion on these themes.
Keywords: Body; Care Practices; Embodied Suffering; Nerve Disease.
A "doença dos nervos" tem sido compreendida como um sofrimento multidimensional e complexo, caracterizado pelo amplo leque de sintomas e queixas. Vários estudos foram realizados para compreender melhor o que as pessoas querem dizer quando procuram os serviços de saúde afirmando que são "nervosas" e/ou que tem "sistema nervoso" (Azevedo, 2010; Duarte, 1986; Medeiros, 2003; Silveira, 2000). Em geral, observa-se que as pessoas procuram com muita frequência os serviços de saúde em busca de um atendimento médico, de medicamentos que façam "acalmar os nervos" e, às vezes, de psicólogos para falar sobre seu sofrimento. No entanto, por ser um problema difuso e com sintomas que mudam de forma e intensidade, os profissionais de saúde normalmente se restringem a prescrever medicamentos numa tentativa de minimizar os sintomas da pessoa. O problema é que o medicamento geralmente funciona como algo paliativo, isto é, alivia os sintomas do momento, mas não garante a resolução do sofrimento. Isso porque a pessoa continua recorrendo ao serviço e, mesmo que consiga acompanhamento psicológico, o nervosismo parece não diminuir.
Já se sabe que a "doença dos nervos" é um problema geralmente perpassado pelas condições de vida e pelas próprias dificuldades da pessoa em resolver seus problemas cotidianos. Medeiros (2003) e Traverso-Yépez e Medeiros (2005) constatam a precariedade material e sociocultural em que vivem as pessoas que sofrem dos "nervos". A violência, a falta de recursos, o desemprego, o alcoolismo dos cônjuges, a falta de perspectivas e as preocupações domésticas são temas recorrentes no discurso dessas pessoas. Todos esses problemas acabam encontrando uma via de escape mais socialmente aceitável, através da somatização e/ou da corporificação do sofrimento, que tende a ser denominado de "doença dos nervos" (Migliore, 1993). Assim, muitas pessoas procuram os serviços de saúde com dores generalizadas, tremores, agonia, depressão, ansiedade, descontrole emocional, entre outros sintomas que são englobados no conceito de nervoso. Mesmo que se considere a "doença dos nervos" como um transtorno mental, a gênese do problema continua, pois as pessoas permanecem sofrendo diante das condições de existência através dos sintomas físicos e de toda a ansiedade resultante.
É nesse ponto da discussão que se faz necessário questionar: por que esse sofrimento da vida cotidiana acaba por se expressar mais efetivamente no corpo? Para responder a essa questão, tomou-se como ponto de partida a pesquisa desenvolvida no doutorado da autora (Azevedo, 2010) sobre práticas de cuidado em saúde mental na atenção básica. Assim, o presente artigo objetiva analisar a "doença dos nervos" como um sofrimento incorporado (embodiment) e suas repercussões nas práticas de cuidado em saúde mental por meio de um estudo teórico sobre o tema. Para esclarecer o ponto de partida e o posicionamento epistemológico do presente estudo, será desenvolvida uma revisão teórica sobre o processo social e histórico que contribuiu para a constituição de uma ética do corpo ocidental e os seus usos. Em um segundo momento, a análise e a discussão sobre a "doença dos nervos" como um sofrimento incorporado e sua repercussão nas práticas de cuidado. Nas considerações finais, são apontadas as possibilidades e os limites acerca da compreensão do nervoso entre os profissionais de saúde e as práticas de cuidado desenvolvidas.
Contextualizando os significados do corpo na sociedade ocidental
Na discussão sobre o processo civilizador no Ocidente, Elias (1994) aponta que desde os primórdios da humanidade há uma preocupação em estabelecer normas de conduta e regras de comportamento nos usos do corpo entre os grupos sociais. No entanto, sua discussão inicia-se com mais ênfase na Idade Média por haver maior volume de informações e dados sobre o assunto. De fato, é no período medieval e, logo depois, na transição para a Idade Moderna, que as normas sociais que regulam os usos do corpo se tornam mais delimitadoras entre as classes sociais.
De acordo com Elias (1994), no período medieval, o padrão aceitável de comportamento se inicia geralmente nos estratos mais altos da sociedade e logo é difundido para as classes consideradas inferiores, que passam a usar o mesmo padrão. Sendo assim, as classes mais altas estão sempre em busca de diferenciação das outras classes de forma que ampliam cada vez mais as normas e os valores sobre os bons hábitos e as condutas socialmente aceitáveis.
De maneira geral, os costumes medievais normalmente expressavam relações sociais caracterizadas pela proximidade física entre as pessoas e pouca repulsa ao que vinha do outro. A tendência era morar em casas conjugadas e abertas para o exterior, não havendo maior diferença entre público e privado. Igualmente, existia pouca preocupação com os dualismos tão comuns da era moderna: sujo-limpo, saudável-doente, havendo um amálgama entre pessoas, animais e moradias (Rodrigues, 1999). Nesse sentido, Elias (1994) coloca que as pessoas comiam do mesmo prato e bebiam do mesmo copo sem maiores problemas e sem as atuais preocupações relacionadas à higiene e à contaminação.
Os valores de decência e moralidade, tão presentes na modernidade, não faziam parte do repertório dos usos do corpo nesse período. Na verdade, o corpo medieval era um corpo público no sentido de que ainda não havia a preocupação, nem o interesse em resguardá-lo do olhar do outro. As funções corporais eram tidas como naturais e as pessoas podiam delas usufruir em qualquer tempo e lugar. Ao mesmo tempo, o corpo também tinha um quê de sagrado de forma que invadi-lo, na forma de dissecação, por exemplo, era considerado um pecado. Rodrigues (1999) considera que "o corpo medieval não era um mero revelador da alma: era o lugar simbólico em que se constituía a própria condição humana" (p.56).
Na Europa, a partir do século XVI, cresce uma maior atenção ao corpo, surgindo a preocupação pela apresentação e os cuidados pessoais (Rodrigues, 1999). Diante do gradual aumento da consciência do sujeito como indivíduo, o pudor e a culpa, principalmente com relação ao corpo, passam a fazer parte do cotidiano. Essa modificação de sentimentos e comportamentos com relação ao corpo e suas necessidades acabam se institucionalizando de uma forma tal que hoje é muito "natural" não falar de "certos" assuntos, tais como as excreções. Aumenta também o sentimento de intimidade do casal, de se resguardar diante de outros, de manter no âmbito do privado as principais funções corporais.
Inicia-se, assim, um maior controle social sobre o comportamento das pessoas e sobre suas funções corporais. O corpo vai gradualmente sendo disciplinado pelo novo Zeitgeist que caracteriza o período moderno: o movimento renascentista com a mudança de visão teocêntrica para a antropocêntrica; a ideologia liberal com a ideia de liberdade e responsabilidade de cada pessoa por sua própria vida; o nascimento da ciência moderna com o foco na racionalidade; e o modo de produção capitalista que privilegia o corpo como instrumento de trabalho.
Esses movimentos não são estanques e, de alguma maneira, contribuem para a construção de um novo modus operandi do corpo. De um lado, um corpo que pode ser estudado detalhadamente através da anatomia e da fisiologia. De outro, um corpo que vai adquirindo um valor de uso, uma funcionalidade tanto no que diz respeito ao modo de produção quando funciona como instrumento de trabalho, quanto na conquista de status social quando suas expressões físicas - a dimensão material - se coadunam aos padrões esperados naquele lugar e época.
Os costumes medievais, que se caracterizavam pela cortesia e pela relação fisicamente mais próxima com o outro, vão paulatinamente dando lugar ao processo de individualização típico da Idade Moderna, que Elias (1994) denomina de civilité. A ideia de civilité está relacionada com o conceito de civilidade, isto é, aquilo que diferencia uma pessoa bem educada e polida (politesse) de outra considerada grosseira. Nesse momento, as pessoas passam a se observar mais, a imitar modelos e ao mesmo tempo se perceberem como indivíduos. Há um maior controle social sobre o comportamento das pessoas e sobre suas próprias funções corporais. É nesse contexto que novos sentimentos são desenvolvidos nas relações interpessoais, tais como vergonha e repugnância. Essa modificação de sentimentos e comportamentos com relação ao corpo e suas necessidades acabam se institucionalizando e aumentando o sentimento de intimidade, isto é, de se resguardar diante do outro e de manter no âmbito do privado as principais funções corporais.
Há autores como Costa (1999) que consideram que o movimento higienista, preconizado pela medicina, contribuiu para o maior controle social no advento da Idade Moderna. Para esse autor, o corpo foi sendo disciplinado pelas normas higiênicas e também pelos acontecimentos que promoveram a chegada da Idade Moderna: o científico, o objetivo e o comprovado fazem parte desses novos valores que restringiram as manifestações de espontaneidade e alegria dos quais o corpo participava intensamente. Esse movimento caracterizava-se pelo aumento do interesse da medicina nos cuidados à saúde através da instituição de normas higiênicas, da responsabilização das famílias pela saúde de seus pares e da entrada do médico na família como aquele que vai orientar e fiscalizar as práticas de saúde. Através das normas e da ordem médica, o corpo, o sexo e as relações afetivas são usadas como "meio de manutenção e reprodução da ordem social burguesa" (Costa, 1999, p.16).
No contexto brasileiro, Costa (1999) mostra como a família colonial sofreu influência da burguesia europeia em seus costumes e regras de conduta. Nos séculos XVII e XVIII, a família colonial vivia e convivia dentro de casa, no meio dos escravos e comendo com as mãos, não cabendo aí a noção contemporânea de higiene e limpeza. Com o advento do movimento higienista e da medicina familiar, a família passa a ser condenada pelos higienistas, pois "na família higiênica, pais e filhos vão aprender a conservar a vida para poder colocá-la a serviço da nação" (Costa, 1999, p.173). Essa afirmação mostra o discurso implícito na medicina higiênica: o de disciplinar os corpos para servir aos interesses do Estado.
Outra dimensão a ser disciplinada era a da alimentação dos membros da família. Disseminando o melhor tipo de alimentação, a medicina buscava "criar um corpo adulto, cuja força e vitalidade fossem prova do sucesso higiênico" (Costa, 1999, p.179). Em síntese, o objetivo de toda essa normalização era preparar o cidadão para ser subserviente ao Estado, saindo do jugo do pai para o jugo da norma médica e dos interesses do capital. A típica classe média floresce nesse contexto em que as regras de etiqueta, as normas de comportamento, a divisão de classes e o fortalecimento da família nuclear modificam todo um padrão cultural que ainda hoje se faz presente na maior parte da sociedade ocidental.
Começa nesse período a construção de um discurso moralizante que passa a fazer parte do cotidiano das famílias. Um discurso que prescreve normas e valores para que a pessoa seja aceita em seu meio social. Foucault (1988) discute a construção de um ethos sexual no período clássico e que se assemelha com a moral cristã que prescreve, em síntese, um controle dos corpos e dos impulsos. O discurso que reprimia a sexualidade era o mesmo que instigava sua confissão, ou seja, era preciso falar dos diferentes modos de vivenciar essa sexualidade para que, a partir desse conhecimento, fossem feitas as categorizações e classificações acerca do comportamento sexual. Desse modo, os discursos normatizadores acerca da sexualidade estão pautados na afirmação sobre o que é normal e o que é patológico e na elaboração de terapêuticas para "corrigir" os desvios e até mesmo aumentar e aprimorar o desempenho sexual (Foucault, 1988).
No caso da saúde e da doença, as instituições escolares e o próprio discurso médico contribuem para a disseminação de regras de conduta para um maior cuidado de si. Para isso, o processo saúde-doença é o plano de fundo para encobrir o verdadeiro objetivo, que era o controle do Estado sobre as famílias (Costa, 1999). O discurso higiênico é justamente uma maneira de institucionalizar comportamentos que visavam à manutenção da saúde, do controle das doenças e a condenação à vida desregrada, pervertida e promíscua.
Os discursos sobre corpo, saúde e doença foram se constituindo a partir do que Luz (2004) denominou de racionalidade moderna. Os avanços da fisiologia e da anatomia permitiram uma compreensão aprofundada sobre o funcionamento do corpo estimulando o uso de termos advindos da física, sobretudo da mecânica, para designar os diferentes sistemas orgânicos. O mecanicismo, portanto, foi a matriz pela qual o corpo começou a ser compreendido a partir do século XIX, tendo maior ênfase no campo da medicina, que fortaleceu a ideia de que o corpo é o principal locus das doenças, sendo, portanto, o principal foco de atenção da medicina moderna. O corpo passa a ter um sentido no mundo moderno que perpassa pelas questões mecanicistas e também biomédicas.
A partir dessa discussão, é possível tecer algumas considerações acerca da relação entre sofrimento psicológico e corpo: 1) o processo disciplinar do corpo, controlado através da higiene e das normas médicas, para servir aos interesses da classe dominante e do Estado, contribui para a concepção de que o sofrimento deve ser controlado e eliminado, para que a pessoa continue inserida no processo produtivo; 2) a secundarização do corpo em relação à importância dada à dimensão racional/mental na sociedade contemporânea contribui para que alguns modos de expressão desse sofrimento sejam mais valorizados do que outros; e 3) a incorporação ou personificação do sofrimento modelado pelos ditames da sociedade faz com que as pessoas, de um lado, busquem explicar suas sensações através de conceitos e discursos socialmente aceitáveis e, de outro, não identifiquem e/ou não reflitam sobre os reais determinantes desse sofrimento.
Essas considerações se referem ao fato de que o sofrimento, embora faça parte da vida e da existência, tende a ser camuflado sob a forma dos sintomas físicos e psíquicos denominados de nervoso. É um sofrimento que desemboca nos serviços de saúde e desafia os profissionais de saúde sobre como cuidar dessas pessoas, pois os medicamentos normalmente aliviam alguns sintomas, mas não resolvem o problema como um todo.
Compreendendo a "doença dos nervos" como um sofrimento incorporado
A "doença dos nervos" tem suscitado diferentes pesquisas no campo da antropologia, da sociologia e também da psicologia, tanto no Brasil como no exterior. Os estudos de Duarte (1986), Costa (1987), Davis e Low (1989), Gomes e Rozemberg (2000), Silveira (2000), Traverso-Yépez e Medeiros (2005) e Dutra, Jorge, Fensterseifer e Areosa (2006), são exemplos de como essa queixa está presente em diferentes contextos e se mostra passível de interesse em diversas áreas.
De acordo com os estudos citados, as pessoas que sofrem dos "nervos" geralmente se encontram nos grupos mais oprimidos da sociedade capitalista: na maioria dos casos, são mulheres vivendo, em geral, em precárias condições socioeconômicas, e com baixo nível socioeducativo. Esse grupo sofre também com os problemas relacionados ao gênero, tais como a violência doméstica e as iniquidades sociais entre homens e mulheres. Nesse sentido, a "doença dos nervos" acaba sendo um caminho socialmente "viável" para expressar um sofrimento advindo da revolta, da falta de perspectivas, da opressão, da sobrecarga decorrente dos inúmeros papéis sociais, e, uma tentativa frágil, mas ao mesmo tempo coerente com o sistema, de se livrar das amarras das desigualdades e das dificuldades do cotidiano (Medeiros, 2003; Azevedo, 2010).
Diz-se uma forma "viável" porque, de acordo com o modelo biomédico vigente, é mais aceitável que as pessoas se queixem de doenças orgânicas e outras afecções fisiológicas, que são "objetivas" e "concretas". Nesse caso, é possível procurar o profissional de saúde para que este reabilite o corpo doente e frágil. O corpo acaba sendo foco da manipulação médica, e, se ele apresenta sinais e sintomas, faz-se necessário observá-lo, examiná-lo, medicá-lo, bem como prescrever normas comportamentais. Isso não pode ser feito com os problemas decorrentes da opressão, dos valores em dissonância com o meio, das contradições inerentes à vida humana. Mas é no corpo que esses problemas se expressam, por ser uma via popular e aceitável socialmente (Dimenstein, 2000; Helman, 2009). Nesse sentido, é uma doença que se expressa e se concretiza no corpo, mas não tem uma etiologia orgânica, passível de diagnóstico médico.
Analisando a sintomatologia apresentada pelos queixosos de nervos no trabalho de Traverso-Yépez e Medeiros (2005) e Azevedo (2010), percebe-se que são sintomas que normalmente chamam a atenção, que mobilizam o grupo social no qual eles estão inseridos e que demandam um cuidado quase que imediato. É um sofrimento geralmente descrito como um descontrole, um momento em que a pessoa não consegue estar centrada em si mesma, precisando da ajuda de outros para sair da situação. E se esse outro é justamente aquele que oprime, é um momento de conseguir fazer com que essa situação seja suspensa pelo menos até a melhora dos sintomas. No entanto, mesmo que isso pareça um ganho secundário, a pessoa com a "doença dos nervos" acaba por sofrer também com os próprios sintomas, com o preconceito e outros sentimentos suscitados naqueles que a rodeiam.
O aprofundamento no estudo sobre "doença dos nervos" mostra que essa queixa não pode ser considerada como uma doença orgânica, tampouco como somente um transtorno psicológico, pois os sintomas que se expressam no corpo trazem significativo sofrimento para o queixoso. Numa tentativa de compreender melhor a "doença dos nervos" e a experiência do nervoso, tem-se encontrado a ideia de sofrimento incorporado que busca ampliar a discussão sobre a temática.
Para MacLachlan (2004, p.02), incorporação (embodiment) ou corporalidade "é a identificação de uma ideia abstrata com uma entidade física". No entendimento do autor, é como se a pessoa "encarnasse" as ideias, valores e sentimentos no e através do seu corpo. O corpo expressa o que se passa com a pessoa, suas experiências e aquilo que ela acredita, além dos seus desejos e necessidades. As concepções da pessoa sobre sua vida e suas expectativas são incorporadas, ou seja, fazem parte de sua maneira de se expressar no mundo. Os sintomas podem expressar uma parte da história de desespero que não pode ser descrita com palavras, mas pode ser observada na maneira como a pessoa a expressa através das queixas físicas e dos sentimentos.
Esse sofrimento da existência, advindo das condições de vida, das crenças e valores, se revela e se desvela no corpo dentro dos padrões disciplinares do contexto sociocultural em que se insere a pessoa. Pode-se citar o estudo de Migliore (1993) com ítalo-canadenses que moravam no Canadá cujo nervoso era uma forma de chamar atenção dos familiares. Já no estudo de Medeiros (2003), as privações da vida cotidiana são dissimuladas em sintomas físicos que podem ser controlados (com medicamentos) em comparação com a possibilidade de resolução das privações (em função do contexto de desigualdades sociais).
A ideia de sofrimento incorporado pode ser até compreendida como uma somatização, fenômeno estudado pela medicina psicossomática cuja concepção central é a de que a maioria das doenças tem um fundo emocional (Mello Filho, 1992). A explicação mais geral é que as doenças ditas orgânicas, tais como hipertensão, cardiopatias, câncer, entre outras, são causadas pelo estresse, pela angústia e outros problemas psicológicos que contribuem para a diminuição do sistema imunológico e, assim, possibilitam o desenvolvimento da doença. No entanto, a ideia de incorporação vai além da experiência somática no sentido de que esta última, em geral, fica ainda na relação causa-efeito e focalizada na doença. De um lado, a concepção de que questões psíquicas desencadeiam reações orgânicas, e de outro, que as modificações corporais contribuem para as sensações e emoções que levam à doença e ao sofrimento. Em termos metafóricos, a concepção somática é mais uma via de mão dupla do que um caleidoscópio multicolorido como é a compreensão sobre o que é sofrimento incorporado. MacLachlan (2004) analisa a somatização como uma experiência incorporada, mas não como a incorporação em si mesma.
MacLachlan (2004) aponta ainda que as pessoas tendem a ter sintomas significativos, relacionados com a experiência emocional e psicológica do seu sofrimento. Isso significa dizer que os sintomas físicos podem ser uma metáfora daquilo que a pessoa está experienciando realmente. O sofrimento se manifesta no corpo porque este é a entidade material do ser humano, bem como foi condicionado e disciplinado a se expressar dentro de determinados padrões sociais e culturais.
A concepção de "doença dos nervos" como um sofrimento incorporado é compartilhada por Finkler (1989), que a considera como um problema perpassado pelas precárias condições de vida e pelas preocupações do cotidiano, sendo corporificado e transformado em um sofrimento sentido e percebido como físico. É um sofrimento da existência que é incorporado, isto é, torna-se concreto no corpo e se expressa através dos inúmeros sintomas multiformes tal como descrito pela citação acima.
Escrevendo sobre sua própria experiência de sofrimento, Selli (2007) coloca que a dor e o sofrimento são entidades diferentes, no sentido de que a dor, geralmente física, pode ser minimizada com medicamentos. Mas, no caso do sofrimento, a autora afirma que ele "é mais global do que a dor, diria pela minha vivência, que atinge o âmago, a vida na sua plenitude" (p.298). Fica claro que expressões como "vivência", "âmago", "vida" e "plenitude" fazem parte do vocabulário do sofrimento e essas são categorias subjetivas que dizem respeito à maneira como a pessoa concebe sua experiência de sofrimento. Essa experiência é singular e repleta de significados. Normalmente, os profissionais de saúde não têm uma formação voltada para essas questões mais espirituais e psicológicas - em todo o sentido da palavra - e, portanto, tendem a querer agregar os sintomas expressos pelos usuários em classificações e modelos de entendimento que nem sempre são apropriados ao que os usuários realmente querem dizer (Azevedo, 2010).
As práticas de cuidado normalmente estão pautadas pelos modelos hegemônicos de compreensão da saúde e da doença, como o modelo biomédico e a dicotomia corpo-mente. Porter (1992) mostra como o corpo tem sido historicamente subordinado à mente, pois o privilégio à razão e a ênfase no controle das funções corporais fazem parte do modo de subjetivação ocidental no sentido de que o corpo deve ser policiado, controlado, higienizado e disciplinado para servir aos propósitos do que é considerado normal. De fato, a dicotomia corpo-mente contribuiu para a restrição e para a racionalização do uso do corpo (Porter, 1992). O advento da Modernidade, e com ela o capitalismo, traz em seu bojo uma nova visão de mundo e de homem e que precisa ser aceita por todos os ocidentais.
A dicotomia corpo-mente, fortalecida pelo pensamento cartesiano, contribuiu para o desenvolvimento da ciência moderna por ter objetificado a maioria dos fenômenos humanos. A medicina científica se interessou em dissecar o corpo até suas ínfimas partes, concebendo-o como uma máquina, enquanto que a mente ficou em segundo plano por não se adequar aos critérios de objetividade, neutralidade, generalização, entre outros, preconizados pela ciência moderna. A ideia de racionalidade científica expressa com clareza essa premissa de que a mente seria mais importante que o corpo. O problema é que ao enfatizar a razão, tende-se a esquecer da pessoa em si, de sua história e de suas idiossincrasias.
Em geral, muitos psicólogos tentam considerar que há uma interrelação corpo-mente, mas na prática, o seu trabalho está geralmente imbuído de conceitos onde o psi (mente) torna-se hegemônico. As explicações que ora privilegiam uma dimensão, ora outra, não satisfazem e nem se mostram suficientes para entender a complexidade que o sofrimento humano geralmente expressa quando diante da denominada "doença dos nervos", por exemplo.
Para Yardley (1999), a dicotomia mente-corpo é falaciosa, pois as experiências humanas não ocorrem isoladas de percepções e interpretações pessoais, de maneira que estão sempre perpassadas pela subjetividade. De fato, uma pessoa pode interpretar sua dor como algo insuportável, que a impede de exercer todas as suas atividades cotidianas. Mesmo que seja considerada de baixo grau, na avaliação clínica do médico, a pessoa está sentindo essa dor de forma terrível. Não é só o corpo, portanto, que dói, mas a pessoa toda se sente doendo.
Outra questão relevante é a funcionalidade da cisão corpo-mente para a sociedade capitalista de consumo. O corpo também foi apropriado pela medicina, pois é o foco privilegiado da intervenção médica. As medicações e os exames encontram seu lugar no corpo e as classificações das doenças normalmente consideram a sintomatologia física e a etiologia como de fundo orgânico, biológico. O denominado "remédio controlado" está presente em boa parte das intervenções por ser uma maneira socialmente legitimada de controlar as loucuras da mente e os excessos do corpo.
A maioria dos profissionais de saúde participantes da pesquisa de Azevedo (2010), embora identifique a importância das condições de vida na gênese do nervoso, não consegue desenvolver práticas de cuidado diferentes das habituais. Alguns por se sentirem impotentes diante das situações de desigualdades que perpassam a vida das pessoas, e outros por não acreditarem mais na consolidação das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS).
Fica evidente também que é a partir dos sintomas que se expressam no corpo que os participantes da citada pesquisa conseguem visualizar o problema dos usuários e identificar aqueles que sofrem com o nervoso. A exceção é quando os profissionais de saúde procuram, por iniciativa própria, conversar com as pessoas da comunidade e, assim, "descobrem" quem está em sofrimento. Esses profissionais incluem na discussão sobre sofrimento psicológico e nervoso a dimensão relacional, a importância de um acolhimento e de uma escuta mais atenta a essas pessoas que se queixam. Constata-se em Azevedo (2010) que aqueles profissionais mais envolvidos com o trabalho em saúde normalmente conseguem desenvolver práticas de cuidado que buscam acolher o usuário e estabelecer um contato maior com ele.
Esses mesmos profissionais de saúde referem muita frustração diante de situações como essas, pois as reais necessidades dos usuários extrapolam os limites dos serviços de saúde (Azevedo, 2010). Nesse sentido, a ideia de MacLachlan (2004) e Finkler (1989) sobre "embodiment" pode ser interessante para explicar porque o sofrimento advindo das agruras da vida cotidiana se expressa no corpo e para mostrar a falácia da dicotomia corpo-mente. No entanto, é um conceito que pode contribuir para o mascaramento das contradições e das questões de poder que estão na gênese desse sofrimento.
Considerações finais
O objetivo deste artigo foi analisar a "doença dos nervos" como um sofrimento incorporado (embodiment) e suas repercussões nas práticas de cuidado em saúde. Para atingir esse objetivo, foi realizada uma revisão teórica sobre o processo de disciplinarização do corpo, o conceito de sofrimento incorporado e a repercussão dessas ideias para as práticas de cuidado a pessoas com queixas de nervoso. A partir deste artigo, portanto, fica claro que quando as pessoas adoecem, o corpo é o primeiro a ser examinado, manipulado, sentido. As pessoas tendem a sentir mais o corpo e a prestar maior atenção às manifestações corporais em função dos conhecimentos já adquiridos pela medicina e pelo processo sociocultural analisado por Elias (1994).
A tristeza, a melancolia e a ansiedade tendem a ser "sentidas" no corpo, porque é nele que as pessoas, tanto os profissionais de saúde quanto os amigos e vizinhos, irão focalizar a sua atenção (Migliore, 1993). Dentro dos padrões socioculturais vigentes, o sofrimento da vida cotidiana precisa ser materializado para que seja cuidado, como no caso das queixas de nervoso e seu caleidoscópio de sintomas. O processo civilizador contribuiu para a constituição de uma sociedade disciplinar, sendo essa disciplina constituída por meio das relações de poder (Foucault, 1979). O corpo pode ser civilizado e disciplinado através da institucionalização da higiene, dos conceitos de saúde e doença, do modelo biomédico, da medicalização, entre outros.
A "doença dos nervos" é uma forma socioculturalmente aceita (já que se torna alvo da intervenção médica e psicológica) de manifestar esses sentimentos de angústia, inclusive pode ser compreendida como uma forma de protesto à disciplina imposta ao corpo pelas convenções sociais e padrões de beleza vigentes. Ao mesmo tempo, a "doença dos nervos" pode ser considerada um exercício de poder, uma vez que a pessoa que sofre, tão destituída de outras coisas, encontra nessa queixa uma maneira de ter atenção, de ser acolhida, de ser cuidada. As diferentes maneiras como esse sofrimento se expressa de fato conseguem "chamar a atenção" dos profissionais de saúde mesmo que nem sempre consigam ou possam fornecer o apoio necessário (Azevedo, 2010).
Em relação às práticas de cuidado, normalmente, os profissionais de saúde reconhecem a dificuldade em lidar com pessoas em sofrimento. Eles percebem que o sofrimento vai muito além dos sintomas físicos e psíquicos, geralmente constatam a relação com a pobreza, as más condições de vida, a falta de expectativas, mas nem sempre conseguem propor um cuidado mais específico. As justificativas para as falhas no cuidado perpassam pela falta de um conhecimento técnico, bem como pelas precárias condições de trabalho (Azevedo, 2010). No entanto, essas "falhas" irão continuar acontecendo, uma vez que o sofrimento denominado de "nervoso" não é necessariamente um problema médico ou psicológico por si só.
Dessa maneira, considerar as queixas de "nervos" como sofrimento incorporado pode até ser um primeiro passo para a compreensão dessa queixa. É um avanço em comparação com ideias anteriores que consideravam "nervos" apenas como distúrbio neurovegetativo ou "piti". Contudo, não é suficiente, nem se pode se acomodar a esse termo. Qualquer classificação da "doença dos nervos" pode ser uma forma não refletida de mascarar os reais determinantes do problema.
Ao analisar o termo popular "nervoso" como somente um sofrimento incorporado perde-se de vista os problemas sociais que contribuem direta ou indiretamente para o problema. As pessoas permanecem alienadas de si mesmas acreditando que sua "doença dos nervos" é algo físico e/ou psíquico e que os profissionais de saúde é que devem resolver. A questão não é a prática de cuidado em si, pois por mais que o profissional de saúde acolha essa pessoa em sofrimento, as privações continuarão a existir, bem como a violência, a exclusão, a má qualidade de todos os serviços que dificultam o acesso a melhores condições de vida e saúde.
Os profissionais de saúde podem desenvolver práticas mais conscientizadoras nos moldes do trabalho de Paulo Freire e talvez até precisem extrapolar mesmo seu campo de atuação no sentido de promover espaços de fala e discussões sobre os problemas sociais que afligem boa parte da população. Ficar no binômio consulta-medicação é só mais uma forma paliativa de manter o corpo que grita, disciplinado, e, portanto, alienado em sofrimento.
Nesse sentido, é possível ampliar as práticas de cuidado e melhorar a assistência a essas pessoas que sofrem de "nervoso". Contudo, manter o usuário com esse tipo de queixas restrito aos serviços de saúde e à atuação dos profissionais, pode perpetuar o que já vem acontecendo: a pouca reflexão sobre os problemas sociais e materiais que aflige boa parte da população.
Referências
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Recebido em: 29/09/2011
Aceito em: 08/07/2012
1 Esse trabalho é um recorte da tese de doutorado da autora que foi orientada pela prof. Dra. Martha Traverso-Yépez.
2Contato: lumedeirospsi@hotmail.com