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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
versión On-line ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.1 Juiz de Fora jun. 2014
RELATOS DE EXPERIÊNCIA
Psicologia e CRAS: reflexões a partir de uma experiência de estágio
Psychology and CRAS: reflections from an internship experience
Larissa Papaleo Koelzer1; Mariana Schubert Backes; Andréa Vieira Zanella
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
RESUMO
A partir de uma experiência de estágio em psicologia supervisionado em uma unidade do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) em Florianópolis, Santa Catariana (SC) o objetivo do presente artigo é contribuir com o debate sobre a atuação do(a)s psicólogo(a)s na Política Nacional de Assistência Social. Durante o estágio foi realizado, entre outras atividades, o acompanhamento das visitas domiciliares realizadas pela psicóloga e a experiência com essas visitas é o foco das discussões neste artigo. Fica dessa experiência a proposta de uma atuação comprometida com a transformação da realidade e de si como sujeito e profissional, balizadas por uma perspectiva crítica, ética e estética.
Palavras-chave: Serviços Sociais, Psicologia, Atuação do Psicólogo.
ABSTRACT
From an internship experience in psychology supervised by one of the Reference Centers for Social Assistance (CRAS) in Florianópolis, Santa Catarina (SC) the purpose of this article is to contribute to the debate on the role of the psychologist in the National Social Assistance Policy. During the internship the monitoring of home visits conducted by psychologist was carried out, among other things, and the experience with these visits is the focus of discussion in this article. This experience is the proposal of actions committed to the transformation of reality and of the self as a subject and professional, supported by a critical perspective, ethics and aesthetics.
Keywords: Social Services, Psychology, Psychologist work.
Considerações Iniciais
O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) tem aberto importantes campos de atuação para os psicólogos em todo o Brasil. Pode-se considerar que se trata de uma inserção relevante e uma ampliação necessária do campo profissional, proporcionando um envolvimento mais direto da psicologia com as questões sociais (Senra & Guzzo, 2012). Mas tal realidade apresenta desafios a esses profissionais, sendo necessário discuti-los e problematizá-los.
O Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) é a porta de entrada dos usuários da política de assistência social, das famílias que buscam acesso aos direitos socioassistenciais e, portanto, proteção social. Por meio do trabalho de uma equipe profissional, o CRAS desempenha papel central no território onde está localizado. A composição da equipe depende do número de famílias referenciadas ao CRAS e é regulamentada pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RH/SUAS) (MDS, 2009b).
Dentre as principais atuações do CRAS prescritas na legislação destacam-se a prevenção de situações de risco no território e o desenvolvimento de um conjunto de ações de atenção às famílias e indivíduos em vulnerabilidade social, abrangendo o procedimento psicológico e social, com abordagens individuais ou grupais. Além disso, é prestado acolhimento, acompanhamento em serviços sócio-educativos e de convivência e quando necessário, viabilizando o acesso a benefícios e programas/projetos sociais da rede de proteção básica e especial. O CRAS também articula e desenvolve ações intersetoriais que promovem a convivência familiar e comunitária com o intuito de melhorar as condições de vida das famílias (MDS, 2009b).
Partindo de uma experiência de estágio supervisionado em psicologia em uma unidade do CRAS-SUAS em Florianópolis, no período de agosto a dezembro de 2012, o objetivo do presente artigo é contribuir com o debate sobre a atuação do(a)s psicólogo(a)s na Política Nacional de Assistência Social (PNAS).
Breves Considerações sobre LOAS, PNAS, SUAS e CRAS
Ainda que a Assistência Social sempre tenha feito parte da história da humanidade, foi somente a partir da década de 1940 que ela se consolidou como organização institucional. Na década de 40, foi criada a Legião Brasileira de Assistência (LBA), que oferecia assistência médica, social, jurídica, concessão de benefícios, programas educacionais e de desenvolvimento social. Esse cenário começou a mudar com as lutas dos movimentos sociais populares, responsáveis por importantes conquistas no âmbito da democratização que culminaram com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (Silva & Corgozinho, 2011).
Essa Constituição apresenta um título inteiro a respeito da Ordem Social, especificando direitos sociais relacionados à educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e infância e assistência aos desamparados (Angelim, 2002). É somente a partir da sua promulgação que houve uma renovação na Assistência Social, marcando historicamente o reconhecimento dela como direito, promovendo alterações nas normas e regras e distribuindo as competências entre União, Estados e Municípios, incluindo o Distrito Federal. Assim dava-se início a uma nova proteção social (Boschetti, 2006).
É neste contexto da "nova proteção social" que o SUAS foi criado em 2005 e é uma proposta similar ao Sistema Único de Saúde (SUS), porém voltado para a Assistência Social. Esse sistema introduziu novos procedimentos de gestão, promoção, execução e fiscalização da Assistência Social, dando prioridade ao atendimento de famílias consideradas em situação de vulnerabilidade social1. É um importante elemento na implantação da PNAS (MDS, 2005), sendo um componente do modelo de proteção social nãocontributiva e importante instrumento para integração da Assistência Social com outras políticas públicas (Cruz, 2009).
Os principais pressupostos do SUAS são: territorialização, descentralização e intersetorialidade. A territorialização refere-se à centralidade do território de abrangência como fator determinante para compreender as situações de vulnerabilidade e risco sociais, bem como seu enfrentamento. A descentralização é compreendida como redistribuição das responsabilidades quanto às ações e serviços de assistência social entre os vários níveis de governo, a partir da ideia de que quanto mais perto do fato a decisão for tomada, mais chance haverá de acerto. A intersetorialidade é a articulação entre setores e saberes visando a melhoria das condições de vida das famílias e possibilitando o acesso a serviços. A promoção da intersetorialidade pressupõe conexão, vínculo, relações horizontais entre parceiros, interdependência de serviços e respeito a todos os setores. A intersetorialização deve englobar escolas, postos de saúde, representantes das áreas de infraestrutura, habitação, esporte, cultural, lazer, entre outras (MDS, 2009b). Por meio da articulação desses pressupostos, a saber, territoriaização, descentralização e intersetorialização, o SUAS pretende promover a inclusão social e/ou melhorar a qualidade de vida da população de determinado território, resolvendo os reais problemas e dificuldades (Souza & Faustino, 2011).
As ações do SUAS organizam-se em dois níveis de complexidade: proteção social especial e a proteção social básica. O CRAS é uma unidade de proteção social básica do SUAS. Segundo a PNAS/2004, a proteção básica visa garantir: segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia), segurança de acolhida e segurança de convívio ou convivência familiar. São considerados serviços de proteção básica de assistência social aqueles que visam o fortalecimento dos vínculos intrafamiliares e extrafamiliares, potencializando a família como unidade de referência, bem como a promoção e inserção no mercado de trabalho.
O objetivo do CRAS é, portanto, a "prevenção de situações de vulnerabilidade e risco sociais" no território no qual está instalado, promovendo o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, o desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e ampliando o acesso aos direitos dos cidadãos (MDS, 2009a).
O psicólogo no contexto do CRAS realiza um trabalho junto a uma equipe de referência, composta por profissionais responsáveis pela gestão territorial da proteção básica. Sua composição é regulamentada pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS - NOB-RH/SUAS e depende do número de famílias referenciadas (MDS, 2009a). A equipe de referência é interdisciplinar e envolve técnicos de nível médio, de nível superior com formação em serviço social, psicologia e/ou outra profissão que compõe o SUAS, como pedagogo, antropólogo, sociólogo ou outra formação compatível com a intervenção social realizada (MDS, 2009b).
O psicólogo é um técnico de nível superior e, para atuar no CRAS, deve ter experiência de atuação e/ou gestão em programas, projetos, serviços e/ou benefícios socioassistenciais; conhecimento da política nacional de assistência social; dos direitos sociais; experiência de trabalho em grupos e atividades coletivas; em trabalho interdisciplinar; conhecimento da realidade do território e boa capacidade relacional e de escuta das famílias (MDS, 2009b).
Como atribuições do psicólogo, bem como dos demais técnicos de nível superior que atuam no CRAS, consta na legislação específica: acolhida, oferta de informações e realização de encaminhamentos às famílias usuárias, planejamento e implementação do Programa de Atenção e Atendimento Integral à Família (PAIF), de acordo com as demandas do território, acompanhamento e mediação de grupos de famílias; realização de atendimentos particularizados e visitas domiciliares às famílias referenciadas, desenvolvimento de atividades coletivas e comunitárias, e apoio técnico continuado aos profissionais responsáveis pelo(s) serviço(s) de convivência e fortalecimento de vínculos desenvolvidos no território, entre outras atividades.
O Ministério do desenvolvimento e Combate à Fome e o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) têm publicado guias para orientar e nortear o trabalho dos psicólogos nos CRAS e, desde 2006, consolidado uma produção e metodologia sobre a presença e referências para atuação desses profissionais nas Políticas Públicas. Porém, ainda que com auxilio dessas referências, os psicólogos que atuam nos CRAS frequentemente se deparam com demandas da comunidade atendida que extrapolam o previsto por esses órgãos e precisam constantemente reinventar e criar novas maneiras de intervir junto aos usuários atendidos (Silva & Corgozinho, 2011).
Dessa maneira, a inserção do psicólogo no CRAS significa uma transformação da atuação do psicólogo desde a sua regulamentação em 1962, uma vez que se trata de um trabalho que visa o social e o comunitário, diferentemente do trabalho meramente psicoterapêutico e elitizado (Yamamoto, 2007). Essa inserção, por conseguinte, vem se concretizando como desafio.
Os profissionais que atuam nos CRAS são instigados a lançar novos olhares sobre a Psicologia, reinventar e criar novas formas de intervenção e lidar com a imprevisibilidade do cotidiano de seu trabalho. Muitas vezes, no diálogo com outros servidores públicos como médicos e professores, há um equívoco a respeito do lugar da psicologia no CRAS, pois esses entendem ser a psicologia responsável apenas pelo diagnóstico e acompanhamento psicoterápico dos usuários do CRAS. Diante da falta de clareza sobre sua atuação, a prática clínica emerge como relativamente confortável ao psicólogo, do mesmo modo que lhe confere particularidade na equipe (Oliveira et al., 2011). Por sua vez, essa prática, alicerçada em uma perspectiva clássica de clínica, distancia-se do que é preconizado no SUAS.
O grande número de famílias referenciadas em proporção ao número de profissionais na equipe traz consequências para o serviço como um todo, o que foi possível constatar com o relato da intervenção realizada, refletindo-se na sobrecarga de trabalho, tempo reduzido nos atendimentos para que seja possível atender o maior número de usuários, fazendo com que o acompanhamento das famílias não seja contínuo.
Os limites da assistência social também devem ser reconhecidos enquanto política setorial, além da necessidade de articulação das respostas às expressões da questão social, de ações intersetoriais, principalmente as que envolvem a política econômica, política de emprego e renda e as demais políticas. Isso porque as demandas das famílias são urgentes e geralmente estão relacionadas à falta de renda e trabalho (Teixeira, 2010).
O Contexto e a Intervenção
Este estudo foi realizado em um dos CRAS de Florianópolis, local onde desenvolvemos atividades de estágio supervisionado no período de agosto a dezembro de 2012. O CRAS em que o estágio foi realizado possuía, na ocasião, seis funcionários: um assistente social, duas psicólogas, dois estagiários (administração e serviço social) e um auxiliar administrativo.
Além da participação em reuniões do Programa Saúde na Escola (PSE), discussão de casos e coordenação de um grupo de jovens de uma escola pertencente ao território do CRAS, a principal atividade do referido estágio foi o acompanhamento das visitas domiciliares realizadas pela psicóloga do CRAS. As visitas domiciliares possuem duas modalidades: visita domiciliar à família já cadastrada, bem como o acompanhamento da mesma, por meio de escuta qualificada e encaminhamentos de suas demandas, na medida do possível, e a chamada busca ativa, na qual a família não está inserida no CRAS por não ser cadastrada ainda ou por não estar mais frequentando o serviço há muito tempo, e que ocorre sempre que uma família é encaminhada ao CRAS através da rede intra e intersetorial ou mesmo por solicitação da comunidade.
As Visitas Domiciliares
As visitas domiciliares compõem algumas ações do PAIF, dentre as quais destacam-se a acolhida e a ação particularizada, que podem ser destinadas a uma família ou a alguns membros de uma mesma família. De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2012), visita domiciliar é uma estratégia utilizada para aprofundamento do acompanhamento psicossocial, uma forma de atenção com o objetivo de auxiliar na compreensão da família, sua dinâmica, valores, potencialidades e demandas, viabilizando orientações, encaminhamentos, bem como o estabelecimento de vínculos fortalecedores do processo de acompanhamento.
Como a visita domiciliar é um momento de atenção individualizada, os profissionais têm a possibilidade de conhecer a realidade dos territórios, as formas de convivência comunitária, a dinâmica das relações e os arranjos familiares, aproximando-se da sua realidade. Além disso, nas visitas pode-se realizar intervenções que nem sempre são possíveis coletivamente, como mobilização das redes sociais de apoio à família, entre outros. Por isso, devem ser realizadas com consentimento das famílias. A fim de facilitar o desenvolvimento do processo de comunicação entre o profissional e as famílias, sugere-se que, sempre que possível, haja um contato prévio e o agendamento da visita (MDS, 2013).
A visita consiste, também, num momento mais concreto que pode despertar na família o interesse na busca e construção de meios para romper com o quadro de violação de direitos com o qual convive. Essa atividade, portanto, deve considerar o respeito à privacidade da família, com um foco previamente definido, sendo utilizada sempre que se entenda necessária (CFP, 2012).
Alguns autores têm discutido as visitas domiciliares como estratégia metodológica, problematizando essa estratégia e suas implicações na atuação de psicólogos e outros profissionais (Afonso, 2004; Azeredo, Cotta, Schott, Maia & Marques, 2007; Beato, Sousa, Florentino, Melo Júnior, Neiva & Toffaneli, 2011). O papel do psicólogo nas visitas domiciliares é a de intermediar a comunicação entre a instituição e a família, entre a equipe e a família, além de prestar acolhimento e intermediação e incentivar a reflexão técnica dentro da equipe. Assim, pode-se dizer que o psicólogo atua promovendo um movimento de reflexão e mudança (Pietroluongo & Resende, 2007).
As famílias chegam ao CRAS de várias formas: demanda espontânea, indicação e solicitação das pessoas da comunidade, encaminhamentos da rede socioassistencial, ou da rede intersetorial, estes últimos, principalmente por meio da articulação do serviço com o Programa Saúde na Escola (PSE).
As visitas realizadas durante o estágio foram feitas nos bairros que o CRAS abrange, bairros esses integrantes de um complexo populacional vizinho ao centro da cidade. O serviço conta com um motorista que leva o(a)s trabalhadore(a)s até a casa da família, porém o acesso a esses lugares é difícil. Nessas situações o carro fica estacionado e a psicóloga faz o restante do trajeto a pé.
As demandas variavam entre as famílias visitadas: alimentação, saúde, medicamentos, transporte, problemas das relações familiares, violência, tráfico de drogas, estudo, morte, entre outras.
Relataremos aqui, sucintamente, algumas histórias relacionadas às demandas acima apontadas, a fim de apresentar situações nas quais estivemos imersas durante este estágio, realidade esta que nos tocou com intensidade, profissional e pessoalmente. Os nomes das pessoas aqui citadas são fictícios, estratégia esta que visa preservar e respeitar as pessoas e as histórias relatadas.
Visitamos uma senhora que morava com o filho de 42 anos, que apresentava sintomas fortes de cuspir grande quantidade de sangue. Ele estava tomando remédios para refluxo, fornecidos pelo posto de saúde. Essa senhora também apresentava problemas no coração e diabetes, não conseguia caminhar direito nem carregar peso. Sua casa fica no alto do morro, o que faz com que sua filha, que não mora com ela, lhe traga remédios e comida. Durante a visita foi realizado o cadastro e construído o Genograma Familiar ou Genetograma2. A utilização do genograma, no contexto das visitas domiciliares pela psicóloga que atua no CRAS onde o estágio foi realizado, serve como instrumento para melhor visualizar a configuração e dinâmica familiar, bem como acessar e resgatar a história da família auxiliando nas intervenções e encaminhamentos dados às mesmas.
Outra queixa recorrente nas visitas domiciliares foi a de violência familiar. Visitamos a casa de Denise, mãe de Mateus (16), Edgar (14), Sabrina (10) e Joana (23) e avó de Daiane (5). A neta, filha de Joana, também estava sob os cuidados de convivência. A psicóloga já conhecia a família e a queixa, vinda da escola, era de agressão aos filhos. Foram oferecidos vários serviços do CRAS, os quais não foram procurados pela família. Tempos depois, Edgar foi encaminhado a um abrigo da cidade devido à queixa de agressão feita pela escola ao Conselho Tutelar. Por solicitação da psicóloga do abrigo fomos até lá, pois Edgar havia falado da equipe do CRAS. Conversamos com ele, conhecemos o espaço e fizemos uma reunião com a assistente social do abrigo, pois a psicóloga não podia estar presente. Nessa reunião, a assistente social relatou o interesse da tia de Edgar em pedir judicialmente a guarda do menino, uma vez que sua mãe perdeu o pátrio poder e no momento ele estava sob tutela do Estado. Coincidentemente, nessa mesma manhã, a tia de Edgar estava no abrigo fazendo uma visita ao garoto, foi então que nós, a psicóloga do CRAS e a assistente social do abrigo conversamos com ela. Simone, a tia, trabalha, tem quatro filhos e costuma acolher as crianças da família que passam por situações como a de Edgar. Nos colocamos à disposição para conversar e orientá-la se preciso. Também foi informada sobre as possibilidades de serviços e benefícios que ela poderia solicitar através do CRAS, uma vez que ela não possui ainda cadastro no estabelecimento.
Em virtude da pouca disponibilidade do transporte para realização das visitas, ao número reduzido de psicólogos atuando no CRAS, à grande demanda da comunidade, à finalização do estágio e desvinculação com o CRAS, não retornamos a essas famílias, desconhecendo o desfecho das histórias aqui relatadas.
Ainda assim, essas narrativas foram enriquecedoras, tanto do ponto de vista profissional, como também pessoal. Estivemos de frente com as limitações de um sistema público que ao mesmo tempo auxilia e possui propostas de promoção da proteção social, mas, por outro lado, carece de estrutura e fomentos para ser efetivo e cumprir com seu objetivo.
As visitas possibilitaram questionar e discutir a atenção da psicologia junto aos CRAS nos moldes tradicionais. Esse modelo hegemônico, baseado numa crença de correção daquilo que foge à norma ou entende estar desviado, privilegia a dicotomização entre o sujeito e a vida, o consciente e o inconsciente, o interior e o exterior, a clínica e a política (Fonseca & Kirst, 2004).
Segundo Moreira, Romagnoli e Neves (2007) o atual contexto social adverso faz com que o psicólogo busque novas práticas para responder às novas formas de subjetivação. É preciso, portanto, repensar práticas, criar dispositivos que possam responder às necessidades de uma clínica que seja comprometida com o sujeito e sua capacidade de produção de vida, o que pode ser chamado de uma "reinvenção da clínica", que dê lugar ao sujeito, a partir de uma postura ética pautada no respeito pelas diferenças.
Bezerra (2001) denomina esse tipo de prática de clínica ampliada, pois lida não apenas com a interioridade psicológica, mas com toda a rede que envolve o sujeito. Ainda de acordo com o autor, por isso se dá a necessidade de novas modalidades de intervenção que resultem, para o sujeito, num modo mais criativo de ordenar suas práticas sociais e psíquicas.
Além disso, segundo Rinaldi e Bursztyn (2008) a clínica do social não apenas é um lugar de aplicação do saber, mas é onde ele se produz, como campo virtual de construção de discursos. O processo de flexibilização do trabalho clínico atual, possível por causa das práticas emergentes em Psicologia, surge como resposta aos mais variados elementos que permeiam a atuação do psicólogo nos diversos espaços em que esse profissional tem se inserido. Porém, vale salientar que o trabalho com o social não é por si só uma prática ética e libertária.
A clínica social como lugar de acolhimento de diferentes classes sociais, em diferentes espaços de trabalho. Perpassa, portanto, qualquer público e busca conexões e acontecimentos, assim como combater a massificação cada vez mais presente. A clínica social é a clínica do devir-outro, o que não corresponde a transformar-se no outro, fugindo de si mesmo, mas sim, apoiar a diferença desse outro, deixando-se afetar pelo ritmo, pela intensidade desse outro (Romagnoli, 2006).
Considerações Finais
A atual política de assistência social do país pode ser considerada uma conquista no que diz respeito à seguridade social. Seu caráter não contributivo e a existência de um sistema único, em tese, possibilitam que suas ações promovam cidadania e dignidade a milhões de pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social.
É importante considerar que é muito recente a criação dos CRAS, portanto, suas rotinas e gestão estão sendo produzidas. Não é possível, ainda, responder se eles caminham para uma nova forma de atuar em políticas públicas de assistência social ou se estão apenas reproduzindo modelos hegemônicos. São indagações relevantes para se pensar nesse novo e importante lócus de atuação dos profissionais da Psicologia, a fim de que venha de alguma forma a constituir espaços de valorização e potencialização da vida. Como supracitado, também é importante ressaltar que o número de psicólogos que atuam na assistência social é limitado. Falamos em uma nova forma de atuar, mas devemos nos questionar sobre as efetivas possibilidades de emergência desse novo.
Os relatos e discussões aqui apresentados são contribuições para a problematização desse cenário, mais especificamente em relação ao exercício profissional da psicologia na assistência social. Trata-se de um desafio para os psicólogos, pois sua população-alvo é um grupo que se encontra fora dos mecanismos de segurança social e cabe a esses profissionais, dentro de suas possibilidades e em colaboração com outros e contribuir para a promoção de inclusão social (Botarelli, 2008).
Por fim, podemos dizer que dessa rica experiência de estágio, permeada de indagações e limitações, fica a proposta de um profissional que atente para as dificuldades encontradas de modo a criar novas possibilidades de intervenção. Propõese uma atuação comprometida com a transformação da realidade e de si como sujeito e profissional, balizadas por uma perspectiva crítica, ética e estética.
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Recebido em: 17/07/13
Aceito em: 20/10/13
1 Contato: larissapk@hotmail.com
1 "[...] a vulnerabilidade social materializa-se nas situações que desencadeiam ou podem desencadear processos de exclusão social de famílias e indivíduos que vivenciem contexto de pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso a serviços públicos) e/ou fragilização de vínculos afetivos, relacionais e de pertencimento social, discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiência, dentre outras (MDS, 2005)."
2 Representação gráfica que mostra o desenho ou mapa da família, amplamente utilizado como instrumento para engajar a família, rever dificuldades familiares, verificar a composição familiar, clarificar os padrões relacionais e identificar a família extensa (Wendt & Crepaldi, 2008).