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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versión On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. v.1 n.1 Florianópolis jun. 2001
ARTIGOS
Múltiplos comprometimentos no trabalho: articulando diferentes estratégias de pesquisa
Antonio Virgílio Bittencourt BastosI; Fabíola Marinho CostaII
IDoutor em Psicologia. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (virgilio@ufba.hr)
IIBolsista de Iniciação Científica do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (fabiolamarc@zipmail.com.br)
RESUMO
Reflexões sobre os rumos e perspectivas para a pesquisa sobre comprometimento no trabalho, entre outras considerações, aponta a necessidade de que se tomem, como unidade de análise, múltiplos compromissos e de que novas estratégias de pesquisa sejam empregadas, rompendo o modelo dominante de estudos quantitativos. O presente trabalho descreve um estudo, conduzido em duas organizações de distintos segmentos industriais, que utiliza duas estratégias metodológicas para analisar os vínculos de trabalhadores frente a três focos: organização, sindicato e careira.Na estratégia clássica, foram aplicadas escalas de atitude frente aos três focos que geraram escores de comprometimento e, em seguida, através de análise de cluster, padrões de comprometimento. No segundo, utilizaram-se procedimentos oriundos da teoria do núcleo central das representações (Abric, 1994; Moliner, 1993) e as concepções de esquemas cognitivos, que geraram evocações espontâneas frente aos três focos de comprometimento estudados. Representações gráficas foram utilizadas para comparar os resultados dos dois estudos, gerando mapas cognitivos dos grupos com padrões de comprometimento similares. Os resultados são confrontados, apontando-se as congruências e aspectos em que as duas metodologias se complementam.
Palavras-chave: Comprometimento organizacional; Padrões de comprometimento no trabalho; Pesquisa qualitativa e quantitativa; Representações sociais.
ABSTRACT
Reflections about the direction and perspectives for research about the commitment to work and related issues indicate the need to consider multiple commitments as a unit of analysis and that new research strategies be used to escape from the dominant model of qualitative studies. This papel describes a study, conducted at two organizations in different industrial segments, that used two methodological strategies to analyze lhe relationships of employees with three factors: organization, union and career. Using a classic strategy, scales of altitudes were applied to the three factors to generate commitment scores. Next, an analysis of clustering was conducted to identify standards of commitment. ln the second step, procedures derived from the theory ofthe central nucleus of representations were used (Abric, 1984; Moliner, 1993) as well as the concepts of cognitive outlines, to generate spontaneous comments about the three factors of commitment under study. Graphic representations were used to compare the results of the two studies, allowing the preparation of cognitive maps ofgroups with similar patterns of commitment. The results are compared, and the congruent and complementary aspects of the two methodologies are indicated.
Keywords: Organizational commitment; Commitment patterns to work; Qualitative and Quantitative Research; Social Representations.
1. Introdução
Partindo de uma revisão da pesquisa sobre comprometimento no trabalho, Bastos (1996) fixa alguns pontos como uma agenda necessária para esse domíhio de pesquisa. De forma sintética o autor salientava: (a) a necessidade de maiores investimentos na questão conceituai que cerca o termo comprometimento, o que deveria conduzir a estudos que retomassem, no contexto natural e cotidiano de trabalho, a noção de comprometimento para os atores organizacionais; (b) a importância de se consolidar - tanto no Brasil como no cenário internacional - o estudo de múltiplos comprometimentos, mesmo quando o interesse se volta, prioritariamente, para o vínculo do indivíduo com a sua organização empregadora; (c) a necessidade de buscar integrar diferentes enfoques sobre comprometimento; isto é, de se buscar dados de diferentes naturezas e fontes, rompendo o modelo linear de apreender o fenômeno através de escalas de atitude; (d) a 13 prioridade de se aprimorar os modelos teóricos explicativos de comprometimento, reduzindo o número de variáveis atitudinais correlatas, usadas como preditoras de comprometimento; (e) vincular o estudo do comprometimento a três temas centrais nas teorias organizacionais: a cultura, os impactos tecnológicos e as novas estratégias de gestão. Tais indicações colocam a necessidade de se estudar o compromisso do trabalhador como emergindo de um contexto extremamente complexo, dinâmico e em interação com aspectos individuais.
O presente trabalho procura contribuir, especialmente, com o terceiro ponto da agenda acima: a necessidade de se explorarem, concomitantemente, diferentes estratégias metodológicas na apreensão do vínculo de compromisso estabelecido pelo trabalhador com diferentes aspectos do seu mundo de trabalho. Mais especificamente, este trabalho articula o procedimento clássico de um estudo extensivo e quantitativo, com procedimentos oriundos do campo de estudos sobre núcleo central das representações sociais, explorando mais intensivamente e qualitativamente o mesmo fenômeno. Adicionalmente, atendendo ao item (b) da citada agenda de pesquisa, toma como categoria de análise, os padrões de comprometimentodo trabalhador, rompendo o modelo dominante, que se detém em buscar compreender os determmantes de um vínculo específico do trabalhador frente a um objeto do seu mundo laboral.
2. Padrões de comprometimento no trabalho: o desafio de como estudá-los
A pesquisa sobre comprometimento no trabalho ganhou forte impulso a partir do final dos anos setenta e início da década de oitenta, período fortemente marcado pela investigaçao do comprometunento organizacional.As raízes, as diversas vertentes, os múltiplos conceitos e formas de operacionalizá-los foram objeto de uma análise extensa por Bastos (1993, 1994)1.
O trabalho, agora clássico, de Mowday, Porter e Steers (1982) - especialmente, o instrumento de medida por eles proposto e validado - transformou-se no modelo dominante de pesquisa na área. Centrada na identificação dos antecedentes do comprometimento, consolidou-se uma estratégia de pesquisa que, em suas linhas básicas, se define pelo uso de dados quantitativos e emprego de análises estatísticas crescentemente sofisticadas para detectar vínculos causais entre dados coletados através de 'surveys'.
A Importante meta-análise produzida por Mathieu e Zajac (1990) fornece um excelente panorama da pesquisa produzida até o final da década passada, no campo internacional, de onde emanaram importantes pistas sobre os rumos a seguir neste domínio de investigação.
Os anos noventa caracterizam-se pela implementação de diretrizes, surgidas ainda nos anos oitenta (Morrow, 1983; Reichers, 1985), que questionam a noção unidimensional de comprometimento e apontam a necessidade do estudo simultâneo de diversos comprometimentos. Isso se dará no tocante àquilo que Becker (1992) denominou de focos e bases do comprometimento. Sob esses dois eixos, a pesquisa na área pôde incorporar as idéias de 'estrutura', 'padrões', 'perfis' ou, em síntese, investigar como trabalhadores organizam seus múltiplos compromissos no trabalho.
No Brasil, Bastos (1994) apresentou um primeiro trabalho que identificou padrões de comprometimento de trabalhadores de várias organizações frente a três focos: organização, carreira e sindicato.No exterior, a vertente que explora como vínculos de diferentes naturezas (ou bases) são desenvolvidos em relação ao mesmo foco (no caso, a organização) ganhou maior relevo na linha de pesquisa desenvolvida por Meyer e Allen (1984, 1997). Também aqui, a possibilidade de um tratamento multidimensional do fenômeno se revela adequada, como reconhecem os próprios autores e, no Brasil, o trabalho de Medeiros (1996) concretiza.
Em síntese, como argumentam Meyer e Allen (1997), "o comprometimento pode ser considerado multidimensional tanto em forma quanto em focos. Essas duas abordagens utilizadas para construir um quadro de referência multidimensional não são incompatíveis" (p. 20).
Interessa-nos, neste momento, retomar os achados relatados por Bastos (1994),já que o seu estudo é o ponto de partida para a pesquisa aqui relatada. Nesse trabalho, partindo de escores gerados por escalas de atitude que mensuravam níveis de comprometimento do trabalhador com a sua organização empregadora, seu sindicato e sua carreira2 e valendo-se de análises estatísticas que permitem a identificação de grupos de sujeitos com formas similares de se posicionar frente aos três focos, o autor identificou oito padrões de comprometimento que se organizam em quatro pares de 'padrões' antagônicos.
Esses padrões consistem em categorias de análise que Concretizam a idéia de se estudar múltiplos compromissos simultaneamente. O autor apresenta inúmeros indicadores que afirmam a diferença qualitativa entre esses padrões e chega a identificar equações que explicam, inicialmente, a inserção dos sujeitos em cada um dos padrões. Uma importante justificativa para que os comprometimentos sejam estudados enquanto estruturas ou padrões atitudinais reside no fato de que, no mundo do trabalho, as pessoas estão continuamente sob demandas de compromisso, muitas vezes conflitantes, de diferentes entidades. As decisões pessoais, portanto, são melhor compreendidas quando essas múltiplas fontes de attatchmentsão examinadas conjuntamente. Esses padrões, brevemente caracterizados no Quadro 1, estão discutidos mais profundamente em Bastos e Borges - Andrade (1995).
Comprometimento no trabalho, sob diferentes rótulos, sempre esteve presente no universo organizacional como um requisito de bom desempenho, relações interpessoais adequadas, eficiência e eficácia individuais e organizacionais. Devido a essa centralidade, a pesquisa sobre comprometimento no trabalho, em que pese os seus avanços em direção a uma abordagem multidimensional, não fica imune a discussões e tendências gerais que se firmam nos estudos organizacionais com crescente força, a partir dos anos noventa, especialmente, para a análise das relações indivíduo-organização.
Como bem assinalam Rousseau & Wade-Benzoni (1995), todos os conceitos chave, estruturadores do mundo do trabalho, passam por profunda mudança, a exemplo dos conceitos de empregado, empregador, organização, carreira e gestão. Uma verdadeira 'revolução cognitiva' tem sido desencadeada, envolvendo a revisão de importantes schemasinterpretativos da realidade por parte do trabalhador.
Congruente com o avanço de uma abordagem da 'construção social', claramente explicitada, por exemplo, nos trabalhos de Karl Weick, em que a organização é vista como 'significados intersubjetivamente partilhados' e com o papel crescentemente paradigmático assumido por uma abordagem cognitivista no campo, um novo olhar se impõe sobre a natureza do fenômeno que denominamos 'comprometimento' e dos processos que o geram.
Pairando sobre esse desafio posto à. agenda de pesquisa está, certamente, a questão metodológica. Tanto o impacto da abordagem cognitiva quanto a necessidade de se analisar o fenômeno do comprometimento em contextos de fluxo e mudança acelerados devem conduzir a uma renovação das estratégias comumente utilizadas no estudo do comprometimento. Múltiplos recursos metodológicos devem ser demandados para se apreender o fenômeno nas suas várias facetas e em suas articulações entre os planos individual e coletivo.
Para atender a essas duas demandas, buscou-se em dois domínios da Psicologia Social, elementos relevantes à reconceitualização necessária e ao aporte de novas estratégias metodológicas para o estudo dos padrões de comprometimento no trabalho. Trata-se da teoria dos 'schemascognitivos', fortemente ancorada na tradição dos estudos sobre cognição social, e a teoria das 'representações sociais' ou, mais precisamente, no seu desenvolvimento mais recente, denominada 'teoria do núcleo central das representações'.
2.1. Comprometimento como um 'schema cognitivo': uma releitura do conceito
Em uma abrangente revisão de literatura sobre Cognição Social, Markus e Zajonc (1985) concluem que "a teoria de schemasé a mais proveitosa e penetrante perspectiva sobre os mecanismos da cognição social". O conceito de schematem sido extremamente útil, entre outras razões, por ajudar a compreender os filtros que atuam nos estágios de atenção e organização das informações captadas pelos indivíduos. Para Fiske e Taylor (1991), o conceito de schemavem de múltiplas fontes que enfatizam "nossa construção ativa da realidade"(p. 139). A literatura pertinente revela que os esquemas têm sido definidos como estruturas cognitivas internas ao cérebro (córtex) que representam o conhecimento sobre um dado aspecto da realidade. Segundo Harris (1994, p. 310) "são tipicamente conceitualizados como teorias subjetivas derivadas de experiências de pessoas sobre como o mundo opera (Markus e Zajonc, 1985) que guiam as percepções, memórias e inferências (Fiske e Taylor 1991)".
Como mapas mentais, os schemasauxiliariam os indivíduos, guiândo as interpretações do passado e presente, orientando-os para o futuro. Os schemasguiam a busca para a aquisição e processamento de informação, como também orientam comportamentos subseqüentes em resposta àquela informação. Nesse sentido, auxiliam a reduzir as demandas de processamento de informação associadas com atividades sociais para prover um sistema de conhecimento já construído para interpretar e acumular informações sobre outros.
Ao nível das organizações, a teoria de schemastambém tem-se revelado útil para a compreensão, entre outros, de fenômenos como cultura organizacional e as teorias implícitas de organização (Downey e Brief, 1986). Bartunek e Moch (1987) referem-se a "sclumasorganizacionais" como a essência da cultura. Louis e Sutton (1991) definem cultura como "schemascompartilhados". Lord e Foti (1986) acreditam que esquemas individuais são particularmente centrais para desenvolver um entendimento da cultura organizacional. Segundo eles, no contexto organizacional os indivíduos encontram entidades sociais (eles mesmos, outras pessoas e grupos), eventos e situações, objetos não sociais e conceitos que devem ser por eles percebidos e aos quais deve responder. Neste caso, espera-se que os membros de uma comunidade tenham um interesse investido no estabelecimento de significados comuns para que uma ordem social, com alguma previsibilidade, seja possível. As pessoas desenvolvem, portanto, schemaspara organizar o seu conhecimento e comportamento em relação a alvos específicos. Em grupo, processos de influência e poder procuram criar schemascompartilhados que favoreçam a ação coletiva congruente com objetivos e expectativas.
Schein (1985: 168), ao discutir o que denomina cerne da cultura de uma organização, chama a atenção para a necessidade de compreensão da expressão compartilhar. Segundo ele significa "compreender que os membros do grupo reconhecem um sentimento particular, experiência, ou atividade, como comum". Assim, schemasindividuais tornamse similares como resultado de experiência partilhada e exposição a dicas sociais, considerando que os indivíduos comunicam, interagem e solucionam questões comuns, partilhando essas experiências em tempo e espaço também comuns. De forma congruente, Harris (1994) afirma que a cultura de uma organização é reflexo da emergência deschemoscongruentes, os quais são similarmente salientes, sendo formados pelo processo de construção do sentido social (sensemaking),através do diálogo intrapsíquico entre o eue o outro,gerando a experiência do "nós".
Tradicionalmente, comprometimento vem sendo tratado como uma atitude e, de forma dominante, dentro do modelo tripartite que caracteriza os estudos sobre esse importante construto psicossocial. Assim, comprometimento associa-se a um conjunto de crenças que geram a identificação com a missão e valores, a uma intensidade de ligação afetiva e a uma disposição de permanecer ou continuar em um determinado curso de ação.
A abordagem cognitivista, no entanto, tem redimensionado o próprio conceito de atitude, aproximando-o do conceito de schema,quanto à sua função seletiva dos processos perceptuais e avaliativos, sobretudo quando estes são vistos como estruturas avaliativas e afetivas (Augoustinos e Walkel, 1995).
Nesta perspectiva cognitivista, vários autores têm considerado que atitudes são avaliações estocadas na memória de longo prazo e que são ativadas quando a questão ou objeto da atitude é encontrado (Fazio, Sanbonmatsu, Powel e Kardes 1986; J udd e Krosnick, 1989; Pratkanis, 1989). Junto a essa avaliação podem ser estocadas, também, informações sobre atributos do objeto de atitude, acerca das respostas afetivas já emitidas em relação a este objeto no passado, e sobre quão significativo tal objeto é considerado por outras pessoas (Zanna e Rempel, 1987, apud Sherman et aI., 1989). Tal conjunto de informações, segundo os autores, fornece a base para a atitude e explica a sua variação como função do tipo de informação estocado.
Esse novo enfoque para o tratamento científico da atitude pode ser uma perspectiva heurística para o estudo das questões relacionadas ao comprometimento no trabalho. Isso se revela até mais claramente quando lidamos com padrões que organizam múltiplos comprometimentos, algo consistente com o movimento no interior dos estudos sobre atitudes que as tomam enquanto sistemas ou estruturas atitudinais.
Por outro lado, a forma como os trabalhadores estruturam os schemasindividuais e como esta estrutura se articula em nível coletivo nos conduz a buscar, no campo de estudo sobre as representações sociais, o suporte teórico necessário para as decisões metodológicas que nos permitam captar o comprometimento como um schemanão apenas de cada indivíduo, mas com um possível núcleo que é compartilhado pelo grupo.
2.2. O núcleo central das representações sociais: usando um novo aporte metodológico para o estudo de comprometimento
O construto 'representação social' tem uma longa história em diversos campos das ciências sociais. Ele chega à Psicologia Social a partir do seminal trabalho desenvolvido por Serge Moscovici, nos anos sessenta, sobre a representação social da psicanálise, para o qual o autor se apoiou no conceito de 'representações coletivas' proposto por Durkheim. Segundo Sá (1996), apesar da resistência em apresentar uma definição precisa, Moscovici em seus comentários diz entender as representações sociais como "um conjunto de conceitos, proposições e explicações originado na vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais." (Moscovici, 1981; apudSá, 1996). Consistem, assim, de pensamentos, idéias, imagens e conhecimentos partilhados por membros de uma comunidade. Nas palavras de Augoustinos e Walker (1995: 135),"As representações sociais se referem ao estoque deconhecimentos e informação comuns que as pessoas partilham na forma de teorias do senso comum sobre o mundo social. Elas são integradas tanto por elementos pictóricos quanto por elementos conceituais. Através desses elementos, os membros de uma sociedade são aptos a construir a realidade social".
Em uma outra tentativa de definir o que são representações sociais, Moscovici (1973, apud Augoustinos e Walker, 1995:135-6) incorpora elementos que consideramos importantes resgatar neste momento. Vejamos:
" ... representações sociais são sistemas cognitivos com uma lógica e linguagem próprias... elas não representam simplesmente 'opiniões sobre', 'imagens de' ou 'atitudes em relação a' mas são, em si mesmas, 'teorias' ou 'campos de conhecimento' para a descoberta e organização da realidade".
Sendo um conjunto organizado e estruturado de informações, de crenças, de opiniões e de atitudes, a representação social, para Abric (1998), constitui um sistema sóciocognitivo particular, composto de dois sistemas em interação; um sistema cental(ou núcleo central) e um sistema periférico.É o núcleo central quem determina a significação da representação, sua organização interna (consistência) e sua estabilidade (permanência). Já o sistema periférico é a parte mais acessível e mais expressiva da representação. Essas idéia constituem o fundamento de uma abordagem estrutural para as representações sociais, como proposta pela escola de Aixem-Provence, da qual Abric é um dos principais teóricos.
Para esse teórico, as representações sociais, como manifestações do pensamento social, possuem um núcleo central que fundamenta modos de vida, garantindo a identidade e perenidade do grupo social. Estando as representações engendradas coletivamente e determinadas historicamente, o núcleo central vai constituir a sua base comum e consensual. A investigação do núcleo central busca, portanto, a razão e o fundamento social da representação. Enquanto em seu sistema central as representações sociais são consensuais, o seu sistema periférico é caracterizado pela flexibilidade, adaptabilidade e relativa heterogeneidade quanto aos seus conteúdos. A representação se concretiza no sistema periférico, dando suporte para prescrição de comportamentos, ao tempo em que permite a adaptação das representações às mudanças do contexto. O sistema periférico assegura a defesa da representação, fazendo uma seleção dos elementos novos e contraditórios, a partir das experiências e características individuais.
O campo de estudo sobre representação social, especialmente a sua vertente estrutural mais fortemente ligada a conceitos de base cognitivista, possui uma característica que o tornou alvo de nosso interesse neste momento. Como bem assinala Farr (1993), um elemento singular desta teoria é o de não privilegiar nenhum método específico de pesquisa. Pelo contrário, procura valer-se de diferentes estratégias metodológicas para apreender seu objeto de estudo. Há, contudo, um eixo comum que orienta os seus estudos: a busca de estratégias metodológicas que não imponham aos sujeitos, a representação social dos pesquisadores, argumento que fundamenta a crítica principal ao uso de instrumentos fechados, como as escalas de atitudes. Esse princípio fundamenta o uso de técnicas semi-estruturadas e mesmo projetivas de forma a se ter acesso a conteúdos cognitivos dos sujeitos de modo mais espontâneo, menos afetado pela solicitação do pesquisador.
Em decorrência, tais técnicas permitem, como nos fala Sá (1998), que a pesquisa em representação social utilize amostras de participantes não tão amplas quanto nos 'surveys'convencionais, nem tão restritas, quanto nos estudos intensivos de casos. Mais especificamente, a proposta metodológica de Abric (1998) assume que a freqüência de citação de uma palavra é um importante indicador da sua saliência ou centralidade. Um segundo indicador dessa centralidade seria a prontidão com que o conteúdo é evocado. O cruzamento entre essas duas informações, segundo o autor, consiste no meio mais rápido de se ter acesso ao núcleo central de uma representação.
As idéias de núcleo central e as estratégias para estudálo se nos afiguram bastante úteis, quando consideramos o comprometimento no trabalho como um sistema que articula múltiplos vínculos e que se insere em uma rede de significados socialmente partilhados. Nessas idéias apoiamos as decisões metodológicas do presente estudo, naquilo que ele incorpora como uma possibilidade alternativa e complementar para a investigação sobre os padrões de comprometimento do trabalhador.
3. O desenvolvimento da pesquisa
O presente estudo combina características de um levantamento extensivo de corte-transversal com processos de coleta de informações mais típicos de estudos intensivos de casos. Possui, portanto, um caráter exploratório, por buscar confrontar duas estratégias de medida de um mesmo fenômeno. Suas decisões metodológicas mais significativas estão descritas a seguir.
3.1. Escolha dos casos e caracterização da amostra
Escolheram-se dois setores de duas organizações bastante diferenciadas em termos de segmento industrial e, particularmente, tecnologia em uso e qualificação da sua força de trabalho. Em um setor de uma empresa petroquímica (organização 1), trabalhou-se com 45 sujeitos, com predomínio de operadores e engenheiros. Em um projeto em andamento de uma construtora civil (organização 2) teve-se acesso a 92 trabalhadores, predominantemente pedreiros, pintores, ajudantes e eletricistas. Em ambas organizações, verificou-se um predomínio de sujeitos do sexo masculino (95,6% e 93,5%, respectivamente) e casados (77,8% e 78,3% respectivamente). Na petroquímica, 48,9% dos sujeitos afirmaram ter completado o segundo grau, enquanto que na construtora civil 70,7% dos trabalhadores encontravam-se com o nível de escolaridade no primário ou no primeiro grau.
3.2. Procedimento para a caleta e análise dos dados
Refletindo a decisão de articular duas estratégias de mensuração do objeto de estudo, o instrumento utilizado na coleta de dados, cuja aplicação se deu através de entrevistas, dividia-se em dois segmentos. No primeiro, era solicitado aos trabalhadores que falassem espontaneamente as idéias que os nomes da organização, sindicatoe carreiralhes evocavam, sendo as respostas registradas pelo entrevistador na ordem em que tinham sido evocadas, segundo procedimentos oriundos da teoria do núcleo central das representações (Abric, 1994; Moliner, 1993) e das concepções de esquemas cognitivos. A postura do entrevistador era a de fornecer o estímulo inicial e, de forma não diretiva, estimular a fala do sujeito. A segunda parte consistia das escalas de comprometimento frente aos três focos do estudo, as mesmas utilizadas por Bastos (1994). Partia-se, então, de itens pouco estruturados para que tais evocações não fossem afetadas pelos conteúdos da parte estruturada do roteiro de entrevista. Dados de caracterização dos participantes, da organização e do trabalho realizado completavam o instrumento.
Com base nos escores de comprometimento gerados pelas escalas, empregou-se a técnica de análise de clusterspara identificar os padrões de comprometimento, como no estudo original desenvolvido pelo citado autor. Em paralelo, os dados dos itens abertos foram trabalhados através de análise de conteúdo, criando-se categorias descritivas abrangentes e mutuamente excludentes. Destas categorias passou-se a ter dois indicadores importantes: o da sua freqüência de evocação(número de vezes em que a idéia apareceu na amostra) e o da sua força de evocação(uma média aritmética da ordem em que a idéia havia sido evocada pelos sujeitos; neste caso, quanto menor a média, mais forte a evocação, sinal de que havia sido a primeira idéia a ser lembrada pelo sujeito).
Identificados os grupos de trabalhadores com padrões de comprometimento distintos, em cada organização, passouse a descrever os conteúdos evocados espontaneamente por eles. Para cada grupo ou padrão, hierarquizaram-se as categorias de verbalizações por freqüência e força, construindo-se gráficos que, como mapas, distribuem no espaço o conjunto de idéias do grupo. Esse procedimento permite a identificação daqueles conteúdos que integram o núcleo cental da representaçãoque o grupo possui de cada objeto: nesse núcleo estão as categorias que, simultaneamente, estiveram entre as mais citadas (maior freqüência entre os integrantes de cada padrão) e entre as citadas com maior força (evocadas mais prontamente).
Para o presente relato, devido à quantidade de informações disponibilizada pelo estudo, privilegiaram-se para a elaboração dos mapas, os padrões de comprometimento com número mais expressivo de trabalhadores, nas duas organizações. Entretanto, os resultados gerais serão inicialmente apresentados, para uma visão mais ampla da congruência entre as duas medidas de múltiplos comprometimentos.
4. Principais resultados: integrando as duas estratégias de pesquisa
Como esperado, ao se tomar uma amostra reduzida de empregados de duas distintas empresas, não se encontrou uma composição do grupo similar quanto aos padrões de comprometimento. Alguns padrões identificados na grande amostra do estudo de Bastos (1994) não contaram com número expressivo de trabalhadores nos dois casos agora estudados. Na empresa petroquímica, por exemplo, os padrões 'descomprometido', 'profissional', 'profissional-sindicalista e o 'anti-sindicato' tiveram casos muito reduzidos (todos juntos representam em torno de 10% da amostra): Por seu turno, na empresa de construção civil, foram reduzidas as presenças do 'localista', do 'descomprometido', do 'sindicalista' e do 'profissional sindicalista'. Tais resultados, de início, indicador da variabilidade da amostra quanto aos padrões de comprometimento, revelam que esse fenômeno resulta de complexas interações entre características pessoais e organizacionais.
Os níveis positivos de comprometimento que caracterizam, no geral, a amostra em ambas as organizações, são congruentes com informações sobre políticas orgamzacionais em curso em ambas as empresas. Mesmo a empresa de construção civil possui um perfil inovador; na ocasião implementava um conjunto bastante diferenciado de políticas de pessoal do segmento a que pertence, com forte ênfase na qualificação e na preparação de trabalhadores 'polivalentes', como estratégia de ampliar a permanência dos mesmos na organização.
No Quadro 2 encontram-se, sinteticamente, para cada padrão de comprometimento que contou com um número mais expressivo de casos, de cada organização, as categorias evocadas que integram o núcleo central da representaçao do grupo frente a cada foco de comprometimento.
Uma visão panorâmica da congruência entre os vínculos de comprometimento de cada grupo mensurado nas duas estratégias pode-se perceber no exame do quadro acima. Para tanto, é importante atentar para a dimensão avaliativa presente nas categorias de evocação identificadas. Alguns exemplos podem ilustrar esse tipo de avaliação: 'grande empresa' e 'importância social' são casos de evocações com uma carga valorativa claramente positiva em relação à organização empregadora. As idéias de 'sobrecarga, sacrifício' ou 'trabalho pouco valorizado', quando associadas à profissão, têm uma dimensão avaliativa negativa, ao contrário de 'satisfação' ou 'conhecimento e qualificação'. De forma similar, evocações frente ao sindicato como 'defesa de direitos' ou 'útil e necessário' são positivas e se diferenciam de outras como 'desinteresse' ou 'atuação política inadequada'. Há, ainda, evocações neutras ou descritivas, das quais não se pode inferir, claramente, um conteúdo avaliativo por parte do indivíduo. Neste caso estão, por exemplo, a lembrança de atividades realizadas (diante da profissão) ou de características do local de trabalho (diante do foco organização).
Tendo em mente tais eixos avaliativos embutidos nas categorias verbais enunciadas pelos participantes do estudo, pode-se perceber um grau relativamente elevado de consistência entre as avaliações evocadas espontaneamente no início da entrevista e as avaliações guiadas pelos enunciados dos itens das escalas de atitude e que permitiram gerar os grupos de trabalhadores por padrões de comprometimento.
Vejamos alguns casos ilustrativos desta tendência geral. Os 'sindicalistas',na empresa petroquímica, embora a reconheçam como uma grande empresa, evocam mais fortemente seus 'defeitos' e os 'salários ruins'; também frente à profissão, há um predomínio de evocações com teor negativo ('trabalho perigoso', 'pouco valorizado'); de forma congruente com o padrão, frente ao sindicato, só evocam idéias fortemente positivas ('defesa de direitos', 'apoiador', 'orientador'). Os 'anti-sindicato',na empresa de construção civil, embora evoquem algumas idéias positivas ou neutras, o peso das categorias com carga avaliativa negativa frente ao sindicato é bastante forte. De forma congruente, o núcleo central das evocações despertadas pela organização e pela profissão são claramente positivas. Os trabalhadores 'descomprometidos apenas com a sua profissão'(comprometidos com a organização e o sindicato) revelam esse descompromisso ao evocarem poucas idéias diante da sua profissão e, ao fazê-lo, falarem de atividades desempenhadas, uma categoria neutra. O 'localista',pequeno grupo encontrado na empresa petroquímica, caracteriza-se por vínculos moderadamente negativos com a profissão e o sindicato e um vínculo apenas medianamente positivo com a organização. As idéias mais fortemente evocadas, frente aos três focos, incorporam avaliações positivas, neutras e negativas, revelando que nenhum dos focos é alvo de um vínculo forte (quer positivo ou negativo). O 'profissional'descreve o padrão de trabalhador que elege apenas o seu trabalho como foco principal de comprometimento, sendo fracamente orientado em relação à organização e ao sindicato. Esse grupo apareceu na empresa de construção civil, envolvendo trabalhadores que valorizavam fortemente o programa de qualificação em curso na organização, voltado para desenvolver um conjunto ampliado de competências profissionais. Mesmo assim, embora evoquem idéias claramente positivas ('boa empresa', 'tem boa remuneração'), predominam evocações neutras que descrevem o local ou contexto físico em que trabalha.
Essa tendência a encontrar no discurso espontâneo do trabalhador mais evidências de congruência com o padrão a que foi alocado por suas avaliações quantitativas, fortalece resultados de um outro estudo (Bastos e Borges-Andrade, 1996) que, com recorte diferente, explorou questão semelhante. No referido estudo, foi selecionado de cada padrão de comprometimento um participante cujos escores eram representativos daquele padrão. Através de entrevistas pouco estruturadas, o conteúdo das falas permitiu identificar dimensões significativas tomadas pelos sujeitos para avaliar seu comprometimento. No geral, encontrou-se elevada evidência do pertencimento do indivíduo ao grupo a que fora alocado a partir das medidas quantitativas. Para efeito de uma análise mais minuciosa, escolhemos o padrão 'comprometido'(elevado comprometimento com os três focos), que aparece em ambas as empresas com um número expressivo de participantes. Os resultados observados nas duas empresas foram consolidados nas Figura 1 e 2, integrando os mapas frente a cada um dos focos examinados3.
Os dois mapas permitem perceber a tendência que já destacamos anteriormente - uma congruência entre os elementos do discurso espontâneo e as características que definem o padrão de comprometimento a que pertencem as pessoas, especialmente quando consideramos a dimensão avaliativa embutida nas evocações coletadas. Nas duas empresas, os três focos foram alvo de evocações predominantemente positivas, quer entre as que definem o núcleo central, quer entre aquelas que podemos localizar no campo periférico.
Na Figura 1, o núcleo central que estrutura o padrão comprometido é integrado por idéias que, se fizéssemos um resumo de uma fala hipotética e representativa do grupo, poderia ser assim ser expressa:
"Estou em uma organização importante socialmente, pois ela muito contribui para o desenvolvimento da Bahia e do Nordeste; é uma empresa grande, forte, respeitada, de renome internacional por ser a maior empresa petroquímica do hemisfério sul. Ela faz parte da minha vida, me sinto orgulhoso, alegre, satisfeito por trabalhar aqui. Sinto-me responsável por aquilo que faço no meu trabalho. Ele me deixa satisfeito e realizado pois posso aplicar aqui o que aprendi na minha formação. Esse trabalho tem uma grande importância na minha vida. Eu o exerço com bastante autonomia e posso aplicar os conhecimento que possuo; ele me dá oportunidade, também, de desenvolvimento, crescimento e qualificação. O sindicato é o órgão de defesa do trabalhador e, como tal, é uma necessidade pois é o nosso porta-voz junto à empresa. É útil, necessário para a mobilização e luta. Ele favorece a reflexão e discussão política".
É importante assinalar, contudo, que, na empresa petroquímica, algumas idéias que integram a região periférica da representação contêm algumas idéias negativas.
Com reduzida força aparece a noção de uma empresa fria e distante, em que as pessoas trabalham como robôs.
Há referência, também, a defeitos associados a mudanças em curso na empresa, diminuição do sentimento de estabilidade, problemas nas relações entre chefes e subordinados. Também frente ao sindicato, aparecem considerações que questionam a sua falta de atuação política e, por outro lado, que consideram a ingerência político-partidária algo negativo.
Quando nos voltamos para o mapa do padrão comprometido na empresa de construção civil, a mesma tendência se expressa em uma qualidade diferenciada. Usando-se o mesmo recurso de um participante hipotético que sintetizasse as idéias que integram o núcleo central da representação desse padrão, sua fala espontânea poderia ser assim expressa:
"Minha empresa faz prédios; constrói um patrimônio para o estado da Bahia. É urna grande empresa e muito bem organizada. Ela me dá apoio e sempre conto com ela quando preciso. Ela respeita o operário. Ela é a minha família, muito importante para mim. Gosto de trabalhar para ela ... foi uma porta que Deus abriu para mim. Não tenho nada a reclamar. Eu faço de tudo (piso, limpeza, massa, bloco, assento azulejos), pego uma casa no chão e deixo na altura. Comecei como servente e passei para pedreiro, tenho chance de melhorar. Trabalho com gosto. É uma boa profissão e pretendo continuar. É a profissão que Deus me deu, um trabalho bonito. Devo ser um bom profissional, ter bom desempenho e ser produtivo. O sindicado representa o trabalhador e defende os seus direitos. Ele é útil porque traz beneficios e melhorias para o trabalhador. Antigamente ele era fraco, agora é forte. Mesmo que a gente pague uma taxa, a gente está lutando por nós".
Na empresa de construção civil, entre os trabalhadores comprometidos, apenas frente ao sindicato apareceu, na zona periférica da representação, uma idéia com dimensão avaliativa neutra ou negativa - o manifesto desinteresse, desconhecimento ou afastamento em relação ao sindicato.
Quando nos deparamos com as informações extraídas através da metodologia que busca identificar o núcleo central da representação, como no caso dos dois grupos 'comprometidos' acima descritos, vemos que, embora identificados quanto à intensidade dos seus vínculos com os três focos, os dois grupos apresentam algumas diferenças qualitativas bem importantes.
Pode-se observar, ao longo dos resultados apresentados, que a variabilidade nas categorias que os trabalhadores usaram para expressar suas relações com cada foco examinado confere riqueza e permite identificar singularidades que diferenciam os dois grupos. Só para citar um exemplo, a relação de comprometimento com a organização, entre os trabalhadores da empresa de construção civil, é calcada em um vínculo de subordinação e dependência que parece ampliado, quando uma categoria com as suas características encontra uma empresa diferenciada, em termos do tratamento convencionalmente dispensado a esse segmento de trabalhadores.
Enquanto na estratégia quantitativa a variabilidade fica contida nos limites da escala disponibilizada (no caso, 1 a 7 pontos para indicar a concordância ou não com cada afirmação) e não permite identificar diferenças na natureza da relação, na estratégia qualitativa, a grande diversidade do repertório lingüístico do indivíduo aparece nitidamente, mesmo quando lidamos com categorias descritivas que reduzem essa variabilidade. A combinação das duas estratégias parece, portanto, ter permitido uma medida extensiva dos níveis de comprometimento agregada a uma visão intensiva do conteúdo dessa relação.
Adicionalmente, a estratégia utilizada no presente estudo combina, em uma única medida, as duas vertentes em que se divide a pesquisa sobre comprometimento - os focos e as bases. Na realidade, as bases do comprometimento ficam explícitas no momento em que temos acesso às dimensões que as pessoas utilizam para avaliar cada foco. E, mais importante, pistas sobre essas bases surgem através de estratégias que direcionam menos fortemente os processos cognitivos que geram as avaliações e discursos dos participantes do estudo.
5. Reflexões finais
O presente estudo dá continuação a uma agenda de pesquisa para a investigação sobre comprometimento no trabalho, proposta por Bastos (1996). Constitui um esforço inicial de, tomando múltiplos comprometimentos como categoria de análise, explorar como esse fenômeno poderia ser capturado sob as teias de uma estratégia metodológica que vem se revelando útil e heurística em outros domínios do conhecimento sobre fenômenos psicossociais.
A transposição de procedimentos e estratégias metodológicas entre domínios de investigação não é uma tarefa simples e sem risco. É difícil avaliar-se, a priori, os ganhos advindos de alterações de rotas muito bem estabelecidas para se investigar um tema específico. Esse parece ser o caso dos estudos sobre comprometimento no trabalho. Nascido em uma forte tradição de estudos extensivos e quantitativos, a compreensão deste fenômeno expandiu-se bastante ao longo das duas últimas décadas. Essa expansão, contudo, vem sendo desafiada, por um lado, pelas mudanças aceleradas no mundo do trabalho e, por outro, pelos problemas conceituais e de significãncia fenomenológica envolvidos nos resultados que gera. Novas tendências no campo dos estudos psicológicos e psicossociais, como vilnos, têm redirecionado fortemente os conceitos que estruturam o entendimento das relações entre indivíduos e seu mundo de trabalho.
Os resultados apresentados no presente trabalho podem nos levar em duas direções principais, a saber:
a) O reconhecimento de que a pesquisa clássica sobre comprometimento no trabalho já desenvolveu um conjunto de ferramentas altamente sensíveis e apropriadas à mensuração quantitativa da intensidade do vínculo de compromisso que o trabalhador desenvolve com diferentes aspectos do seu mundo laboral. Isso pode ser inferido a partir do grau de congruência que observamos entre o conteúdo das evocações e a pertinência desses conteúdos ao padrão de comprometimento do indivíduo, identificado a partir das escalas de atitude. Ou seja, as escalas utilizadas são compostas de amostra bastante representativa de itens das dimensões que as pessoas normalmente utilizam para avaliar sua relação no trabalho. Neste sentido, se escolhemos trabalhar apenas a dimensão da intensidade do vínculo, os estudos quantitativos podem ser considerados realmente satisfatórios.
b) Os elementos qualitativos captados através.de um procedimento menos diretivo, por outro lado, nos fornecem significados adicionais que diferenciam bastante os grupos das duas organizações, a priori identificados sob o mesmo rótulo de padrão de comprometimento. Embora com dimensões em comum, os aspectos escolhidos para avaliar os três focos refletem fortemente as distintas características dos trabalhadores quanto à escolaridade, natureza da atividade, expectativas e valores relacionados ao trabalhar e à organização como empregadora.
Assim, se buscamos construir modelos teóricos cada vez mais abstratos e universais, os estudos quantitativos se revelam apropriados. Se pretendermos obter um conhecimento mais sensível ao contexto em que as pessoas o produzem e o usam, os estudos qualitativos nos dão acesso a sutilezas impossíveis de serem captadas sob o primeiro aporte metodológico. Por outro lado, dada a variabilidade lingüística, os dados das evocações espontâneas dificilmente poderiam ensejar o estabelecimento dos padrões de comprometimento que aproximam e afastam subgrupos de pessoas dentro de uma organização. Isso fortalece a compreensão que nos incentiva a ver as escolhas metodológicas como ferramentas instrumentais que podem ser úteis, ou não, para determinados fins a que nos propomos ao gerar conhecimento.
Diante do reconhecimento da natureza complexa e multifacetada característica de todos os fenômenos humanos e sociais, cremos ser possível concluir que as duas estratégias metodológicas combinadas no presente trabalho nos oferecem um quadro mais rico da realidade que buscamos compreender.
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1 Nestes trabalhos há lima síntese da literatura sobre comprometimento produzida até o início dos anos noventa que pode ser útil para uma visão inicial e introdutória a esse campo de pesquisa.
2 Foram as seguintes as escalas utilizadas: comprometimento organizacional - escala de Mowday, Steers e Porter (1979), validada no Brasil por Borges-Andrade, Afanasieff e Silva (1989), em versão reduzida de nove itens; comprometimentocom a carreira:escala de sete itens proposta e validada por Blau (1985); comprometimento com o sindicato:versão reduzida de dez itens (Fukami e Larson, 1984), construída a partir da escala inicial de Gordon et al.(1980).
3 Os mapas aqui apresentados procuram representar, simultaneamente, as idéias evocadas pelo grupo de trabalhadores que, em comum, apresentaram elevados escores de compromdimento frentes ao três focos. Cada plano representa um dos três focos de comprometimento analisados. Nos quadrantes que formam o vértice que une os três planos encontram-se as evocaçóes que integram o núcleo central-aquelas idéias mais fortes e mais freqüentemente evocadas pelos slueitos, frente aos três focos - organização, carreira e sindicato. Para cada foco, as idéias foram hierarquizadas nessas duas dimensóes (força/ordem e freqüência). Estabeleceu-se como ponto de corte a posição 6; ou seja, idéias que estiveram entre as seis mais fortes e mais freqüentes, simultaneamente, integram o núcleo central. As demais integram a zona periférica da representação do grupo.