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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versión On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.15 no.3 Brasília set. 2015

https://doi.org/10.17652/rpot/2015.3.598 

RESENHA: sobre a dinâmica relação entre o trabalho e a psique

 

 

Anísio José da Silva Araújo; Paulo César Zambroni-de-Souza

Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil

 

Endereço para correspondência

 

 

Livro: Molinier, P. (2013). O trabalho e a psique: Uma introdução à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, 343p.

Em 2013, mais uma obra somou-se ao já expressivo acervo em língua portuguesa (considera-se, além dos livros, artigos e entrevistas) acerca da psicodinâmica do trabalho (PDT): o livro O trabalho e a psique: Uma introdução à psicodinâmica do trabalho, de autoria de Pascale Molinier, publicado pela editora Paralelo 15.

A PDT é uma abordagem que tem conquistado grande difusão no Brasil devido à reflexão e aos conceitos que veicula, e tem contribuído de forma efetiva para dar inteligibilidade a muitos fenômenos que acontecem no mundo do trabalho. A PDT, ao investigar, para além do adoecimento e do sofrimento, o prazer no trabalho, chama atenção para a potência que ele pode ter. Afirma, assim, a centralidade do trabalho na vida psíquica e social, recusando a tese contrária de que o trabalho vem perdendo importância enquanto vetor de integração social.

Reforçando ainda o status que a PDT alcançou no Brasil, pode-se mencionar também a presença constante de Christophe Dejours em eventos acadêmicos (já ocorreram três congressos de psicodinâmica e clínica do trabalho) no país, que inclusive extrapolam o mundo psi e penetram em territórios acadêmicos onde esse tipo de enfoque era pouco usual, como engenharia de produção e administração. Vemos também o mundo jurídico, confrontado com questões para as quais nem sempre encontra-se respostas no patrimônio legal, buscar nas ideias de Christophe Dejours elementos para fundamentar melhor suas decisões acerca dos conflitos no mundo do trabalho.

Pascale Molinier é psicóloga, professora do Conservatoire National des Arts et Métier (Paris), onde integra o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Ação (coordenado por Dejours), e membro do comitê editorial da revista Cahiers du Genre. O texto apresenta, logo de início, um conjunto de autores que esteve na origem da psicopatologia do trabalho (PPT) e sobre os quais ainda temos poucas referências em português. Segundo Molinier, esse seleto grupo de autores procura, partindo de diversas inspirações teóricas, problematizar a saúde mental relacionada ao trabalho, um tema que durante muito tempo foi ignorado pela investigação científica em função da prioridade conferida aos impactos do trabalho no corpo. Ela apresenta a biografia resumida de cada um desses autores, instigando-nos a conhecer mais profundamente as ideias que defendem.

Além disso, em momento de implementação da PEC das domésticas no Brasil, é bem-vinda a parte do livro que se dedica a refletir sobre a condição das trabalhadoras domésticas (em geral mulheres, embora a presença masculina venha crescendo), um tema que está na origem da PPT, especialmente por meio da análise realizada por Louis Le Guillant, do célebre caso das irmãs Papin1. Ainda nessa seção, cabe pontuar que, apesar de lançar luz à obra de Le Guillant, o livro acaba por fazer uma crítica que não se sustenta, alegando que sua obra não avançou pelo fato de ele ter ficado limitado à reflexologia pavloviana. No entanto, discordando da autora, podemos afirmar que a leitura atenta da obra de Le Guillant mostra que ele percebeu tais limites e buscou superá-los aproximando-se da fenomenologia e utilizando a noção de gestalt social para explicar o ressentimento das irmãs Papin.

A questão da normalidade é tratada com muita propriedade. O deslocamento da doença em direção à normalidade permitiu à PDT sair da encruzilhada científica em que se viu ao buscar confirmar a tese de que o trabalho no capitalismo era patogênico por natureza. A busca pelos casos de transtornos mentais esbarrou no fato de que os humanos resistem e procuram, por diversos meios, escapar da loucura. Tal empreendimento deixou os pioneiros da PPT de mãos vazias, tendo a sua frente um obstáculo teórico que não projetava nenhum futuro para a disciplina. Esse impasse teórico só encontra uma saída nos anos de 1970, com a retomada, por intermédio de Christophe Dejours, das pesquisas em PPT que, confirmando ser uma via promissora, gerou evoluções que culminaram com a constituição da PDT.

Sem negar o sofrimento e o adoecimento mental no trabalho, a PDT procura deslocar o olhar para a possibilidade de transformação do sofrimento em prazer, uma química favorecida pela dinâmica do reconhecimento cujo efeito principal é o fortalecimento da identidade. Nessa mesma seção, a autora faz referência à obra de Canguilhem, a qual reconhece que a PDT inspirou-se, em parte, para tratar a questão da normalidade. No entanto, ela defende que há uma "(...) ambiguidade do conceito de subjetividade em Canguilhem" (p. 73). Discordamos dessa posição, pois não nos parece que a subjetividade, central para a PDT, estivesse no centro das reflexões do referido autor.

A seguir, o autor dedica-se às noções de trabalho prescrito e real, presta homenagem à ergonomia da atividade, cujos achados teóricos tornaram-se condição para o desvendamento de muitas situações de trabalho não apenas pela PDT, mas também por outras clínicas do trabalho. A noção de real do trabalho, que se traduz nos imprevistos, nos incidentes, nos desfuncionamentos e nas panes, e para os quais não se conta com protocolos estabelecidos, é o terreno propício para o exercício da inventividade dos trabalhadores, momento em que a mobilização subjetiva se apresenta com mais densidade, principalmente porque é do indivíduo e/ou do coletivo de onde devem surgir as saídas pertinentes para as variabilidades no trabalho.

Outras contribuições que podem ser destacadas remetem:

-ao trabalhar, enquanto mobilização do corpo, da inteligência e dos afetos, e que tem o poder de operar um processo mutatório no sujeito e uma (re)criação subjetiva permanente. Para a PDT, o trabalhar possui três poderes principais: o de transformar o mundo, o de objetivar a inteligência e o de transformar o sujeito.

-ao tema da Métis, da inteligência prática e astuciosa, exercida em situação de trabalho e que persegue seus alvos a partir de caminhos mais curtos e econômicos, que atinjam rapidamente o alvo. A métis, nesse sentido, "designa a um só tempo uma forma de inteligência prática (métis) e uma deusa da cosmogonia grega (Métis)" (p. 111), na qual a PDT vai se nutrir para discriminar as propriedades dessa inteligência, cujas características básicas são o engajamento do corpo e seu caráter transgressor.

-à noção de atividade subjetivante, cuja identidade se assenta em quatro atributos: a percepção sensível, pela qual os sentidos operam de forma unificada para sentir o mundo e farejá-lo; a relação com o ambiente, que remete à questão da sintonia e sincronia com o ambiente e de sua "humanização" (p. 125); a troca com o ambiente, ou seja, a "troca simpática com os objetos e as pessoas" (p. 126), o engajamento, o envolvimento e o "colocar-se no lugar de" (p. 126); e o sentir e a experiência, que remetem ao pensamento intuitivo, empático, apoiado na interatividade com o ambiente e que resulta da prática cotidiana do confronto com o que este nos proporciona a cada momento.

-à questão das regras de ofício, sociais - o saber viver, a boa educação, a polidez, a convivialidade, a urbanidade, as relações "compreensíveis e pacificadas" (p. 133) -, técnicas (modos de fazer construídos no tempo por um determinado meio profissional), linguageiras (o jargão profissional, a linguagem de ofício, a condição de intercompreensão) e éticas ("o que é justo fazer e o que não é justo fazer", p. 140). Tais regras encontram-se na face oculta do trabalho e só se tornam visíveis quando transgredidas ou quando é necessário inventar uma nova regra.

-à questão da identidade, tão atacada em tempos nos quais o assédio moral predomina, trazendo situações nas quais o trabalhador tem de enfrentar as violências da organização do trabalho. Enquanto a personalidade diz respeito aos traços afetivos, cognitivos e morfológicos que permanecem estabilizados durante a vida, a identidade remete "(...) ao lado instável, imprevisível do vir a ser do sujeito" (p.151). Segundo a autora, A parte do sujeito que necessita de uma confirmação, retirada a cada dia, sem o que poderá ocorrer uma crise - de identidade - no curso da qual o sujeito não seria mais capaz de reconhecer-se a si próprio, sentindo sua continuidade ameaçada (p.151).

-à questão do reconhecimento no trabalho, tema que a PDT dedica atenção especial pelo poder que carrega de produzir a mutação do sofrimento em prazer e de fortalecer a identidade, protegendo-a do risco de adoecimento psíquico.

-à questão das estratégias coletivas de defesa, descoberta original da PDT. Ao mesmo tempo em que reconhece sua utilidade na proteção da saúde mental, chama atenção para o risco de, quando transformadas em si mesmas, impedirem de "(...) pensar naquilo que provoca sofrimento e que seria importante transformar" (p. 218).

Por último, Pascale dedica parte importante do livro à relação entre PDT e relação social de sexo. Reafirma, assim, a ideia de que o trabalho é sexuado e, por conseguinte, que o sofrimento e o prazer são igualmente marcados por essa condição. As relações sociais de sexo, segundo Daniele Kergoat, remetem a relações hierárquicas entre "(...) o grupo social dos homens e o grupo social das mulheres (...)" (p. 255), que, por sua vez, vivem em constante tensão em torno do trabalho e suas divisões.

Já na parte final do livro, a autora procura discorrer sobre as expressões do processo de adoecimento psíquico na atualidade em decorrência de organizações do trabalho que produzem desconfiança, suspeita, dissolução de coletivos e individualização, cujo resultado é o aumento de casos de lesões por esforços repetitivos (LER/DORT), depressão, síndrome do esgotamento profissional, suicídio nos locais de trabalho, entre outros. Nesse tópico, entendemos que a reflexão da autora poderia ser ainda mais enriquecida caso fizesse referência (e uma justa homenagem) ao papel da obra de Pierre Marty para o desenvolvimento da PDT no que diz respeito à dimensão psicossomática.

O livro seria ainda mais valioso se alguns capítulos pudessem ter sido mais desenvolvidos, devido à riqueza e à complexidade dos temas abordados. No entanto, o que ele apresenta já permite um excelente ponto de partida para aproximar as questões abordadas, e faz jus ao título do livro: ser uma introdução à PDT. Enfim, constitui mais um recurso para entender a realidade dos mundos do trabalho, discriminando o que pode e o que não pode favorecer a saúde mental. Desse modo, nos instiga a intervir, ainda que no infinitesimal, para que os mundos do trabalho tenham um destino mais favorável, revelando todo o poder transformador que o trabalho pode ter para os indivíduos e para a sociedade. Além disso, essa obra, ao lado de três outros livros de Dejours publicados no Brasil (Dejours, 2012a, 2012b; Lancman & Sznelwar, 2011), permite ótima aproximação à PDT para os iniciantes e possibilidade de revisão e reflexão para aqueles que já são mais próximos da abordagem.

Os leitores da Revista Psicologia Organizações e Trabalho certamente desfrutarão desse livro. Boa leitura!

 

REFERÊNCIAS

Dejours, C. (2012a). Trabalho vivo: Sexualidade e trabalho (Tomo I). Brasília: Paralelo 15.         [ Links ]

Dejours, C. (2012b). Trabalho vivo: Trabalho e emancipação (Tomo II). Brasília: Paralelo 15.         [ Links ]

Lancman, S., & Sznelwar, L. (2011). Christophe Dejours: Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Fiocruz, Brasília: Paralelo 15.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:

Universidade Federal da Paraíba
Cidade Universitária Campus I, Castelo Branco
João Pessoa, PB, Brasil 58051970
Telefone: (83) 32167337
Email: anisiojsa@uol.com.br

Recebido em: 02/04/2015
Aceito em: 19/06/2015

 

 

1Trata-se da análise realizada por Le Guillant a propósito do duplo assassinato cometido por duas empregadas domésticas, que eram irmãs, contra a patroa e sua filha.

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