SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 número1Os sentidos do trabalho e o papel das incubadoras de empreendimentos solidários do ParanáAlienação e criatividade na constituição da subjetividade: contrapontos entre Lacan e Winnicott índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Compartir


Revista de Psicologia da UNESP

versión On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.15 no.1 Assis enero/jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Uma reflexão sobre a pesquisa e a produção de conhecimento na universidade

 

Some thoughts about research and knowledge production in the university

 

 

Paula Ione da Costa Quinterno Fiochi

Unesp-Assis

 

 


RESUMO

O presente artigo propõe uma reflexão sobre os modos de fazer pesquisa e sua relação com a produção de conhecimento na Universidade. Para tanto, nos guiaremos por três questões centrais que tentaremos responder: que saber ou conhecimento é este produzido na Universidade, como o produzimos no sentido do método utilizado e qual a concepção de sujeito com a qual trabalhamos. A depender das respostas a essas indagações temos possibilidades distintas de pesquisas: essas se fundam em éticas e paradigmas que vão ao encontro ou se distanciam de modos dicotômicos e tecnicistas de produção de conhecimento.

Palavras-chave: Conhecimento. Pesquisa; Ética; Psicanálise.


ABSTRACT

This paper proposes a reflection on the manners of scientific research and its relation to the production of knowledge in the University. Three central questions will guide this study: what kind of learning or knowledge is produced in the University? How is it produced in the sense of method used? And what is the concept of subject worked with? Depending on the answers to these questions there are different possibilities of scientific research: these are based on ethics and paradigms that meet or move away from dichotomous and technicist methods of knowledge production.

Keywords: Knowledge; research; ethics; psychoanalysis.


 

 

Queremos deixar claro que é na medida dos impasses experimentados para captar sua ação em sua autenticidade que os pesquisadores, assim como os grupos, acabam por forçá-la no sentido do exercício de um poder. No sentido de uma relação com o ser em que se dá a ação, os da fala, como a um dado do real, quando o discurso que ali impera rejeita qualquer interrogação desse lugar (LACAN, 1998, p. 618).

O presente artigo propõe uma reflexão sobre os modos de fazer pesquisa e sua relação com a produção de conhecimento na Universidade. Para tanto, nos guiaremos por três questões centrais que tentaremos responder: que saber ou conhecimento é esse produzido na Universidade, como o produzimos no sentido do método utilizado e qual a concepção de sujeito com a qual trabalhamos.

É fato que grande parte das pesquisas na Universidade se baseia em modelos positivistas, mesmo quando dizem fazer pesquisa qualitativa. Desde a escolha da "amostra" de trabalho, ou podemos chamar também de "sujeitos da pesquisa", até a análise e produção de conhecimento de uma dada realidade, constatamos a confluência ao modelo cartesiano de fazer pesquisa.

Observando a concepção "sujeitos da pesquisa" como referência ao grupo que dará as respostas de onde se produzirá o suposto conhecimento, percebemos o lapso da linguagem quando constatamos que o que chamamos de sujeito é uma amostra, deduzida por cálculos estatísticos, que fornece o número de pessoas participantes, que bem poderíamos chamar de "objetos" da pesquisa, pois é esse o lugar que ocupam para

o pesquisador. Primeiro ponto que podemos constatar, então, é que o que chamamos de "sujeitos" são "objetos", tomados como tal para uso do pesquisador. A segunda observação diz respeito ao fato de que, sendo esses os sujeitos da pesquisa, descarta-se a possibilidade de que o próprio pesquisador seja sujeito, pois, para o sucesso dessa pesquisa, o autor tem de estar fora. Assim, se aqueles que eram supostos sujeitos são objetos e o sujeito-pesquisador não está em questão, então, por dedução, temos uma pesquisa sem sujeito. Isso é possível?

 

Saber e Conhecimento

Mas, antes de adentrarmos nessa questão, faz-se necessária uma discussão anterior. O que produzimos na Universidade? Produzimos saber ou conhecimento? Ou os dois? Quais aos parâmetros para a produção de um e de outro?

Santos (2000) propõe o que chama de uma teoria crítica pós-moderna, que seria um meio de luta na transição paradigmática epistemológica proposta pelo autor, a saber, do paradigma dominante da ciência moderna ao paradigma emergente ou paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente. Há que se fazer uma crítica radical do paradigma dominante, tanto nos seus modelos regulatórios quanto emancipatórios, para, com base nela, propor novos modelos emancipatórios ao paradigma emergente. O objetivo da crítica seria a desfamiliarização em relação ao que está estabelecido, primeiro se desfamiliariza e, depois, cria-se uma nova familiaridade. Isso seria um novo senso comum emancipatório.

A teoria critica proposta pelo autor parte do pressuposto de que o que dizemos acerca do que dizemos é sempre mais do que o que sabemos acerca do que dizemos. Nesse excesso reside o limite da crítica. Quanto menos se reconhece esse limite, maior ele se torna. A dificuldade desse reconhecimento consiste em que algumas das linhas que separam a crítica do objeto da critica são também as que a unem a ele. Não é fácil aceitar que na crítica há sempre algo de autocrítica. (SANTOS, 2000, p.17).

É preciso reconhecer essa dificuldade para que, num exercício de autorreflexividade, se possa percorrer o caminho da crítica, pois ela convive com a ameaça constante de estar mais próxima do paradigma dominante do que do paradigma emergente, proposto pelo autor.

Uma teoria crítica pós-moderna seria aquela que não reduz a realidade ao que existe, toda a existência não está dada na realidade, pois esta seria um campo de possibilidades e existências variadas, há que se superar o que existe. Os impasses se dão justamente nesse momento, pois os teóricos críticos modernos tomam a sociedade como uma totalidade, propondo uma alternativa comum a toda essa sociedade. Constroem-se conhecimentos que objetivam dar conta de todo o corpo social. Esse conhecimento totalizante tentaria ordenar o caos, regular a sociedade, com pretensões de emancipação.

Para a teoria crítica pós-moderna, todo conhecimento crítico tem de começar pela crítica do conhecimento. Essa seria a maneira de fazer emergir o que ele chamou de conhecimentos emancipatórios, como dito anteriormente. Esse conhecimento tem uma vocação de ser multicultural, visando ao reconhecimento do outro como produtor de conhecimento, uma forma que funciona como princípio de solidariedade, gerando um conhecimento-reconhecimento. Ao contrário, o conhecimento regulatório é aquele que por vezes tenta calar os sujeitos, que não reconhece o outro como possuidor de algum conhecimento, tendo o caráter de ser absoluto.

Para o conhecimento emancipatório, conhecer é reconhecer, é progredir no sentido de elevar o outro da condição de objeto à condição de sujeito. Há a valorização do senso comum como conhecimento legítimo. Santos (2000, p.17) nos fala de uma ética, segundo a qual os coletivos possuem um conhecimento sobre sua prática cotidiana.

Se o conhecimento inclui uma crítica do próprio conhecimento e se todo homem é produtor de conhecimento, o pesquisador pode se autorizar a falar pelo outro, pode construir um conhecimento sobre o outro de modo fidedigno ao que esse outro conhece? De quem é a questão de pesquisa a não ser do próprio pesquisador? Se é dele, então nessa lógica não podemos admitir que se possa falar em nome do outro.

Com a discussão proposta por Santos (2000), podemos inferir para as nossas pesquisas que nosso "objeto de pesquisa" não nos exclui. Essa seria uma tentativa de superação do paradigma dominante da ciência moderna para um paradigma emergente, um novo paradigma pós-moderno, já referido neste artigo. onde a produção de conhecimento seria possível, se não fosse colonizadora e se não existisse a separação sujeito-objeto.

A ação de transformação num campo vem antes do conhecimento, pois primeiro transformamos, depois conhecemos. O modo tradicional de pesquisa na Universidade não funciona assim, visto que primeiro conhecemos e, na maioria das vezes, isso basta. Em alguns casos, damos o passo seguinte - o da transformação - nessa ordem, e tentamos intervir conforme o pressuposto de que o conhecimento adquirido anteriormente nos garante estratégias interventivas seguras e acertadas, ou seja, já sabemos do outro, vamos apenas confirmá-lo.

A psicanálise, como possibilidade metodológica de pesquisa, tem importantes contribuições a fazer. Lacan (1998, p.364), em um de seus Escritos, afirma que, desde Freud, a psicanálise já enfatizava ser uma prática subordinada ao que há de mais particular no sujeito, portanto, ela mesma deveria ser colocada em questão na análise, a cada novo caso, pelos analistas. O autor retoma o início do texto freudiano "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise":

Minha esperança é que a observação delas poupe aos médicos que exercem a psicanálise muito esforço desnecessário e resguarde-os contra algumas inadvertências. Devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade; não me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em relação a seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta. (FREUD, 1912/1996, p.125)

Ao trazer esse trecho freudiano, Lacan mostra que Freud deixa claro as coordenadas para o tratamento da psicanálise e a formação dos analistas. Não se trata de "modéstia freudiana", mas sim do reconhecimento da verdade de que "... a análise só pode encontrar sua medida nas vias de uma douta ignorância" (LACAN, 1998, p.364). Sendo assim, então o que o psicanalista deve saber? Responde Lacan: ignorar o que ele sabe. Nessa lógica, mantemos a coerência ética se dissermos o mesmo ao pesquisador quando vai a campo ao encontro do seu "objeto de pesquisa". Ou seja, que, como pesquisador ali, ele nada encontrará e que, no seu contato com os sujeitos que fazem parte do seu campo, ele nada pode saber sobre eles anteriormente, razão pela qual o pesquisador talvez tenha que rever e se colocar como questionador da teoria com a qual trabalha e na qual provisoriamente acredita. De qualquer forma, ele deverá também ignorar o que sabe sobre o campo que pretende investigar. Acrescenta-se a isso uma consideração fundamental, a ser discutida a seguir, que é a de que, assim como o analista, na relação com o analisando, não faz pesquisa em psicanálise - só o faz a posteriori - o pesquisador, nessa ética, também não o faz no campo, só o faz no depois da experiência.

Tal ética traz consequências fundamentais ao trabalho do analista perante os seus analisantes bem como aos campos de extensão da psicanálise e àqueles que pretendem levar essa discussão à Universidade. O analista só poderia se enveredar pela psicanálise quando pudesse "reconhecer em seu saber o sintoma de sua ignorância" (LACAN, 1998, p.360). O suposto saber pelo outro seria o sintoma que colocaria em risco a ética psicanalítica e, portanto, o trabalho do analista. Ignorância não seria ausência de saber, mas, sim, o não saber, que não é uma negação do saber, mas uma forma mais elaborada do saber. Um saber que conhece seus limites e que não pode saber pelo o(O)utro.

Como disse o próprio Lacan (1998, p.363) nesse mesmo "Escrito", a análise, por trabalhar essencialmente com o não-saber, liga-se à dialética. Para o materialismo histórico-dialético de Marx, o saber se dá no fazer. A lógica dialética, assim como a psicanálise, na relação com os métodos de pesquisa, introduz mudanças importantes.

 

A dialética na pesquisa

Grande parte das pesquisas científicas nasce da formulação de uma hipótese, que deverá ser verificada com a utilização de diferentes instrumentos, para que se chegue, ao final, a uma verdade objetiva sobre algo. Kopnin (1978), ao propor a dialética como lógica e teoria de conhecimento (afirmação presente inclusive no título do livro), pergunta se esse seria o único fim possível para uma hipótese.

Segundo Kopnin (1978), a hipótese utilizada como forma de conhecimento comporta dois juízos, intitulados por ele como: os juízos-sentenças, para os quais o verdadeiro ou o falso ainda não foram estabelecidos, e os juízos problemáticos, que ocupam posição central na hipótese e, por isso, podem existir em qualquer sistema de conhecimento científico. A sentença pode ser considerada como a alma da hipótese. Mas o conceito de hipótese se reduz quando esse juízo-sentença considera apenas o resultado de um pensamento e não o processo de sua construção. Isoladamente, uma sentença não desenvolve o conhecimento do objeto, pois isso se dá somente quando o colocamos em contato com outros conhecimentos. Para o autor, a crítica não está na existência das hipóteses, visto que elas fazem o conhecimento avançar, levam a novos resultados, mas sim no modo como se trabalha com ela na tentativa de alcançar uma Verdade.

Os juízos problemáticos, nos quais a veracidade ou falsidade ainda não foram demonstradas, trabalham com as suposições, então não há verdade definitiva, portanto, não há verdade. Nesse sentido, trazendo novas perspectivas para a questão da hipótese cientifica, a dialética tentará combater o idealismo e certa concepção deturpada da essência do conhecimento. Conforme nos diz Kopnin (1978, p.248), "as especulações idealistas em torno da hipótese e do caráter do conhecimento nela contido surgem em decorrência do caráter complexo da hipótese como forma de conhecimento". Para alguns, se é verdade, não é hipótese; se é hipótese, não é verdade.

Quanto ao risco de cairmos nos idealismos, nas dicotomias, nos "ou...ou", Zizek (1990, p.63) nos fala sobre os propósitos da ideologia,

[...] a ideologia não é, em sua dimensão fundamental, um constructo imaginário que dissimule ou embeleze a realidade social: no funcionamento 'sintomal' da ideologia, a ilusão fica do lado do 'saber', enquanto a fantasia ideológica funciona como uma ilusão, um erro, que estrutura a própria 'realidade', que determina nosso fazer, nossa atividade.

Assim, os juízos-sentenças assumem um lugar no campo das ideologias na medida em que constroem uma realidade ilusória que produz realidades e fazeres ilusórios de que há uma totalidade, há uma verdade. A fórmula marxista nos diz "disso eles não sabem, mas o fazem". Contudo, acrescenta Zizek (1990, p.63), "eles sabem muito bem que, em sua atividade real, pautam-se por uma ilusão, mas, mesmo assim, continuam a fazê-lo".

Então, o que podemos fazer no campo dos juízos-sentenças, dos paradigmas dominantes, dos idealismos? Em outro texto, Zizek (1996) nos traz a noção de espectro, segundo a qual uma realidade pode ser um espectro (paralelo com a ilusão já discutida neste trabalho) se for acabada, toda. Mas existe uma parte da realidade, a realidade sócio-simbólica, que não é composta somente do simbólico e do imaginário, mas também de uma dimensão Real, daquilo que no conceito lacaniano refere-se a um irredutível, um vazio, um não-nomeável; há que se deixar então, um lugar vazio na realidade, para que dela possa emergir sua dimensão pulsional e, portanto, Real, para que depois possamos recolocá-la no campo simbólico.

As pesquisas também podem ser espectrais, quando apresentam propostas nesse contexto, quando ilusionam uma exatidão, verdade e a crença de que representam uma dada realidade, que jamais poderia ser apreendida por completo por mais que o discurso do consumo, do mais-gozar, chamado por Lacan de discurso do capitalista, tente também criar essa ilusão. Haveria objetos mais-de-gozar que poderiam dar conta do suposto desejo e falta dos sujeitos, como pretendem alguns discursos científicos, principalmente os tecnológicos e médicos. Tais discursos esquecem que nada pode ser apreendido por completo, que dessa relação fica um "resto" que não será aproveitado pelos sujeitos, mas sim pela ciência, e que retorna a eles, pois sempre há retorno, como sintoma. (GONÇALVES, 2000).

Sobre as hipóteses de pesquisa, Kopnin (1978) as divide em: hipótese real e hipótese de trabalho. A hipótese real testa uma ou varias hipóteses, se aproxima da mais provável, tentando chegar à verdade. Faz descrição dos fenômenos e seu foco é o conhecimento objetivo do mundo. Ela surge e se desenvolve a partir das necessidades de aquisição do conhecimento objetivo do mundo.

A lógica dialética propõe outra forma de definir uma hipótese. No materialismo dialético, ela seria como uma imagem subjetiva do mundo objetivo. Já para a ciência moderna, a hipótese forneceria um conhecimento objetivo-verdadeiro das leis do mundo exterior e seu conteúdo não dependeria do homem, nem da humanidade, não seria uma ficção, mas sim uma fotografia dos objetos, dos fenômenos, daquilo que está na superfície do mundo material.

A hipótese de trabalho orienta-se pela dialética. Questionar se a hipótese é uma forma de expressão do conhecimento objetivo-verdadeiro implicaria saber se, nas hipóteses, o desenvolvimento do pensamento segue o caminho da obtenção do conteúdo objetivo ou se as próprias hipóteses e sua substituição se encontram à margem, impossibilitadas da apreensão do objeto pelo pensamento.

Nessa lógica, testam-se várias hipóteses, o que o autor chama de "multilateralidade". Uma hipótese real pode se transformar em hipótese de trabalho, pois há sempre contradições, fatos e aspectos que precisam ser investigados. A preocupação da hipótese de trabalho não é se explica algo, se é verdadeiro ou falso, mas o que ela oferece para a análise do processo, no que ajuda a orientar o pensamento, como se fosse uma idéia-guia. Todo conhecimento é hipótese de trabalho. Caso não se descubram os fatos correspondentes àquela hipótese, constrói-se nova hipótese.

Assim, o pesquisador utilizaria um enfoque multilateral de pesquisa, no qual há várias hipóteses simultâneas de um mesmo fenômeno. Essas hipóteses seriam as guias que orientariam o processo de produção de conhecimento e, nesse caso, o processo - e não o fim - seria o fundamental da pesquisa.

 

Psicanálise e dialética: método intercessor

No processo de produção de conhecimento, cabe-nos uma distinção também importante, motivo de muitas confusões quando se fala em teoria e prática e em produção de saber e conhecimento. Partimos de duas sínteses para explicar essa distinção: uma é a de que só podemos produzir conhecimento sobre a produção de conhecimento e não sobre o conhecimento em si; e a outra é a de que saber é aquele produzido na práxis, já que o conhecimento é produzido a posteriori.

Saber é aquele produzido na práxis, segundo leitura psicanalítica e dialética (LACAN, 2003; JULIEN, 2002; COSTA-ROSA, 2013) e o conhecimento é produzido posteriormente. O saber produzido na práxis está acessível somente aos sujeitos que lá estiveram, pois não há possibilidade, segundo esse referencial, de reprodução de um saber, tal qual aquele lá produzido. Portanto, o que fazemos na Universidade é a nossa leitura desse saber, é uma versão do que foi produzido lá, relacionando-o com outros elementos do campo teórico que investigamos e questionando, principalmente os saberes (S2) e os significantes-mestre (S1) construídos e já sabidos, na tentativa de produção de outros saberes.

A palavra práxis, fundada com base nos conceitos marxistas de trabalho e produção, é de origem grega e significa ação. Segundo essa concepção, práxis é o campo demarcado pela ação, a partir do qual o homem, ao transformar a natureza com seu trabalho, transforma a si mesmo. A noção lacaniana de práxis seria uma ação realizada pelo homem, qualquer que seja, que o coloca em condição de tratar o real pelo simbólico. No caso da psicanálise, ao mesmo tempo que o campo dos fundamentos da psicanálise esclarece sobre a práxis, esta estabelece também os fundamentos da própria psicanálise (HULLER, 2005). Por essa razão, no campo lacaniano não existe análise didática. Em linhas gerais, salvaguardadas as várias questões implicadas: quem se autoriza é o analista, e o final de uma análise tem como objetivo a produção de um analista.

Quando vamos a campo, no referencial tradicional de pesquisa, na qualidade de pesquisadores, vamos "coletar dados". No referencial dialético de pesquisa, é coerente dizer que não estamos isentos, isolados e separados de nosso campo, já que, quando nele estamos, já o transformamos, simplesmente pelo fato de dizermos a que viemos, ou seja, viemos "para coletar dados para nossa pesquisa", o que, por si só, introduz novoselementos na relação com o outro. Diante disso, como ir a campo de outra maneira? É possível outro modo de estar no campo para investigar determinada questão e depois produzir um conhecimento a respeito dessa experiência na Universidade?

No método psicanalítico, o sujeito não deverá ser tomado como objeto diante de um observador neutro, "[...] mas como só podendo constituir o objeto de um trabalho dentro de uma relação, uma estrutura da qual o analista faz parte." (OLGIVIE, 1988, p.39).

Em paralelo com a teoria dos discursos de Lacan, Julien (2002, p.194) mostra que, na psicanálise em intensão (relação analista-analisante), o psicanalista se encontra no lugar de agente no Discurso do Analista, que seria o a, como objeto causa do desejo, lugar vazio, que faz operar não o desejo de ser analista, mas o desejo do analista.

Quando o analista vai para psicanálise em extensão (relação da psicanálise com o Outro da cultura, com os saberes, com a própria psicanálise), ele passa a ocupar o lugar de agente no Discurso da Histérica, ou seja, o $, o sujeito dividido, o sujeito que contesta um saber. Assim, o analista vai à posição de analisando, não na relação com um outro analista, mas na relação com o público "[...] ali onde a psicanálise toma lugar na história humana como ciência nova".

A intensão funda a extensão. Ao contrário do poder do mestre ou saber universitário que pretenderiam fundar a práxis, para a psicanálise somente a prática funda a instituição psicanalítica e a teoria. Os efeitos de transmissão da psicanálise são possíveis quando podemos questionar a completude do Discurso do Mestre, da ciência, e pôr a trabalhar os sujeitos, no sentido de poderem inventar novos saberes, na medida em que esse trabalho se dá na relação com o não sabido e, portanto, se encontra movido por algo do Real.

COSTA-ROSA et al. (2009, 2007) propõem o método intercessor, segundo o qual um a priori de experiência se faz necessário nesse método para qualquer possibilidade de investigação acadêmica. O método comporta dois momentos diferentes. Primeiramente, temos uma intercessão, um campo onde nos situaremos naquilo que Lacan chamou de "ignorância douta" para talvez, desse lugar opaco, vazio, fazer operar algo dos próprios sujeitos com os quais nos relacionamos. Na intercessão não há pesquisa, há somente intercessão. Se isso nos trará questões que poderiam ser discutidas na Universidade, nada sabemos a priori. O segundo momento seria o de tentar, a partir da intercessão, construir um trabalho que possa trazer contribuições a outros intercessores. Na intercessão, trata-se de fazer surgir esse não-sabido, os significantesmestre produzidos pelo coletivo, pelo grupo de sujeitos. Esses significantes serão confrontados pelo intercessor no campo da intensão. E, na extensão, no lugar de produtor de conhecimento do campo da intercessão, colocaremos em xeque os saberes, significantes produzidos na intercessão, para que talvez, a partir desse questionamento, possam surgir outros saberes sobre nossa práxis.

Nesse lugar, segundo a teoria dos discursos de Lacan, na Universidade, enquanto pesquisadores, estamos no discurso da Histérica, vamos ao lugar de analisantes dos saberes já sabidos, já apreendidos na intercessão, ficamos no lugar de $, sujeitos divididos pela existência da falta e do desejo que nunca se fecha, se completa ou se consuma, como pretende o discurso do Capitalista.

Dessa forma, cabe-nos a reflexão sobre que lugar ocupamos na relação com o outro, com a cultura, com o público, quando estamos na Universidade produzindo nossas pesquisas. Estamos a serviço do quê? Somos objetos da ciência, com a ilusão de que podemos dar as respostas que faltam ao outro? Se assim nos posicionamos, estamos no lugar dos objetos mais-de-gozar, que tentam fazer uma suposta relação de complemento ao sujeito, na medida em que a ciência, no lugar do saber, produz esse discurso de tamponamento da falta, o que funciona em partes, pois esse objeto que se consome, vai se consumar também em nada, deixando o resto de angústia ainda com os sujeitos.

Portanto, acreditamos que se trata de um posicionamento ético. Os modelos propostos seriam Outras possibilidades de fazer pesquisa na Universidade, pois tentariam superar as dicotomias e a lógica tecnicista agregada ao Discurso do Capitalista, nos modos de produzir conhecimento.

 

Referências

COSTA-ROSA, A. O grupo psicoterapêutico na psicanálise de Lacan: um novo dispositivo da clínica na Atenção Psicossocial. In: ______. Atenção Psicossocial além da Reforma Psiquiátrica: contribuições a uma Clínica Crítica dos processos de subjetivação da Saúde Coletiva. São Paulo: Editora Unesp, 2013. p.233-270.         [ Links ]

GONÇALVES, L. H. P. O discurso do capitalista: uma montagem em curto-circuito. São Paulo: Via Lettera, 2000.         [ Links ]

HULLER, S. C. M. Da práxis que se autoriza do nome psicanálise. In: Revista Literal: Escola de Psicanálise de Campinas. Campinas, n.8, p.29-36, 2005.         [ Links ]

JULIEN, P. Psicose, perversão, neurose: a leitura de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002.         [ Links ]

LACAN, J. Variantes do tratamento-padrão. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.         [ Links ]

LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.         [ Links ]

LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.         [ Links ]

KOPNIN, P. V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.         [ Links ]

OLGIVIE, B. Lacan: a formação do conceito de sujeito (1931-1949). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.         [ Links ]

SANTOS, B. V. S. Critica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.         [ Links ]

STRINGHETA, L. V. H. O.; COSTA-ROSA, A. O Grupo Intercessor: saber e conhecimento da práxis "psi" na atenção básica em saúde. In: CONSTANTINO, E.P. (Org.). Percursos da Pesquisa Qualitativa em Psicologia. São Paulo: Arte & Ciência, 2007. p. 145-161.         [ Links ]

ZIZEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990.         [ Links ]

ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.         [ Links ]

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons