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Revista de Psicologia da UNESP

versión On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.16 no.2 Assis jul./dic. 2017

 

ARTIGOS

 

A derrocada do inconsciente e a burocracia da subjetividade mínima

 

The falling of the unconscious and the bureaucracy of the minimal subjectivity

 

 

Mário Francis Petry LonderoI; Simone Mainieri PaulonII

IPsicólogo, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Email: francislonder@hotmail.com
IIDocente do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

Este artigo analisa os efeitos da subjetividade mínima na clínica e os desafios que a mesma enfrenta ao problematizar o contexto capitalista na atualidade. Através da genealogia, percorre-se a noção produzida sobre a loucura ao longo dos séculos até seu desaguar nos transtornos mentais. O estudo trabalha a noção de desrazão dos gregos, algo amplo, para além do homem; conceitua a loucura da idade clássica, interiorizada no homem a partir da psiquiatria; e finaliza a leitura sobre a loucura com o inconsciente psicanalítico, que interioriza essa força desarrazoada no sujeito. O artigo segue seu curso resgatando o conceito de biopoder, com seus mecanismos de docilização e regulamentação da vida, e sua produção de subjetividade mínima. Subjetividade corporal e orgânica, sem singularidades, na qual o sujeito nada tem a dizer sobre si, apenas sendo resultado de funções químico-cerebrais não funcionais que aparecem na clínica como transtornos mentais.

Palavras-chave: Desrazão; Loucura; Biopoder; Subjetividade Mínima; Clínica.


ABSTRACT

This article analyzes the effects of the minimal subjectivity in the clinic and the challenges that it faces as it questions the capitalist context today. Through the genealogy, we go over the notion produced about madness over the centuries, untill it disgorges in the mental illnesses. The study works the notion of unreason, from Greeks, something wide, beyond the man, conceptualizes the madness of the Classical Age, internalized in the man from the psychiatry, and ends in the reading about the madness with the psychoanalytic unconscious that internalizes this unreasonable force in the subject. The article brings the concept of biopower with its mechanisms of docilization and regulation of life, and its production of minimal subjectivity. Physical and mental subjectivity with no singularities, in which the subject has nothing to say about itself, being only a result of brain chemical functions that are not functional, and shows up in the clinic with mental disorders.

Keywords: Unreason; Madness; Biopower; Minimal Subjectivity; Clinic.


 

 

Introdução

Caso saíssemos por aí a perguntar ao que a palavra loucura remete, certamente, muitos enunciados seriam expressos. E, com eles, poderíamos pensar sobre o conceito de loucura a partir de vários ângulos e aspectos que dizem de sua construção histórica e de seu ancoramento no atual contexto político da vida, atravessada pelo que Foucault (1975-1976/2010) trata como biopoder. Loucura já teve origem oracular e divina, exterioridade transumana que desafiava a vida a diferir-se, muitas vezes, encarnada na figura de Dionísio, deus do caos e da desmesura; também a aproximaram do pecado e a travestiram de juízo final no período medieval. À luz de Descartes foi o contrário da razão: o erro. Mais adiante, com Pinel e Hegel influenciados pelo cartesianismo, a loucura ajuda a psiquiatria a dar seus primeiros passos a partir da dialética em transformar a desrazão em um elemento iluminado para engrandecer a razão do indivíduo antes aprisionado em seu labirinto desmedido. Com Freud, sofre uma torção, já que o pai da psicanálise indica que é a desrazão, nomeada como inconsciente, que comanda, e não a consciência cristalina, enraizando no interior de cada sujeito, mesmo nos ditos normais1, a desrazão. Ultimamente, com o advento das ciências neurobiológicas junto à psiquiatria e à indústria farmacêutica, desaguamos na expressão da moda: transtorno mental. Conceituado pelo DSM-V (2014, p. 20) como "perturbação clinicamente significativa na cognição, na regulação emocional ou no comportamento de um indivíduo que reflete uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou de desenvolvimento subjacentes ao funcionamento mental".

Se olharmos para essas transformações - não excludentes - que a palavra loucura ganhou ao longo dos séculos, da exterioridade radical à patologização, podemos analisar o quanto cada época produziu sentidos singulares de acordo com o enlace social. Da condição intempestiva, heroica, vidente, oracular e selvagem à reviravolta na qual a loucura passa a ser amaldiçoada, pecaminosa, punida, tratada, docilizada e evitada quando já interiorizada no homem. É o que podemos observar na esteira histórica da civilização ocidental em suas produções de enunciados e de visibilidades sobre a desrazão e, posteriormente, sobre a loucura, o inconsciente e o transtorno mental.

Hoje em dia vemos poucos loucos pelas ruas, ou mesmo nos manicômios que ainda perseveram mesmo com a luta da reforma psiquiátrica travada ao longo do século XX e que persiste até nossos dias. Loucura dionisíaca tampouco parece possível num mundo devidamente regulamentado no qual o futuro é forjado previamente. Os índices de loucura atualmente são reduzidos e, de certo modo, medidos pelos transtornos psiquiátricos, comportamentos destoantes da normalidade estabelecida, encarnados em muitos indivíduos que possuem falhas neuroquímicas e que fracassam em uma sociedade do espetáculo (Birman, 2003), que legitima o indivíduo que vive adequadamente as regulações criadas e midiatizadas pelos meios de comunicação e publicidade. Essa loucura amansada, individualizada, que não diz absolutamente nada sobre a exterioridade e que também desresponsabiliza o sujeito em relação ao seu saber sobre si - o inconsciente -, é voltada para os defeitos comportamentais-corpóreos-biológicos, em uma subjetividade mínima, voltada ao orgânico como sentencia Pelbart (2013).

A loucura fora tão filtrada ao longo dos séculos que ficou até antiquado taxar alguém com essa nomenclatura, na atualidade. O que temos agora são pessoas com transtornos, que, se bem medicadas, podem continuar seu percurso de produção e consumo. Não há mais vergonha, culpa ou responsabilidade em relação à doença psíquica que diz do transtorno. "Hoje, quem toma tais remédios não tem mais por que escondê-lo; pelo contrário, tal atitude denota alguém que investe na administração dos próprios processos de subjetivação, e que se mantém a par das últimas novidades da indústria farmacêutica" (Rolnik, 1999, p. 03). O pecado e a vergonha, no sentido atual, recaem sobre aquele que fracassa em conduzir as recomendações médicas, psiquiátricas e da rede de cuidados como um todo.

Ao interiorizar primeiramente a loucura e depois saná-la, via medicação, nos distanciamos a tal ponto da loucura entendida como desrazão que ela parece ser quase uma página virada na história. Mas essa leitura atual, que ilusoriamente acredita no controle da loucura via classificação e medicação, na sua exata extinção a partir das descobertas neurofármaco-científicas, diz de um modo de relacionar-se com o mundo, de produzir uma clínica, de olhar para a constituição do sujeito e do social, em uma lógica instalada que escuta e atua junto aos sofrimentos via corpo orgânico, escuta focada na organicidade de cada indivíduo em estado não funcional perante a organização social. O desmedido, o invisível e o singular sofrimento da alma são minimizados a uma disfunção química, referente ao orgânico do corpo.

A partir de uma leitura que entrelaça Foucault, esquizoanálise e psicanálise, este escrito deseja problematizar os efeitos que tal contexto produz no operar da escuta clínica. Para pensar tais efeitos e a possibilidade ou não, na atualidade, de afirmarmos a loucura como potência revolucionária no ato da escuta clínica, cabe resgatar um pouco das linhas que costuraram enunciados e visibilidades no decorrer da história sobre o conceito de loucura, seus jogos de poder e mecanismos de controle que, ao longo dos séculos, aprimoraram a diluição do contato com o desarrazoado, transformando-o em um mero fracasso neuroquímico sanado por uma gama de psicotrópicos.

Inspirado pelo método genealógico foucaultiano, o artigo versará sobre a busca pela extinção do sofrer advindo do que desvia do regulamentado e o que isso traz de efeitos na escuta clínica. A ideia é problematizar tal clínica para furar o discurso instituído que parece abafar, nos dias de hoje, a possibilidade de conversa com a desrazão, com a loucura, ou, para a psicanálise, com o sujeito do inconsciente. Desnaturalizar o objeto de escuta clínica, voltado atualmente à organicidade do corpoindivíduo, para salientar o quanto tal construção histórica está a favor de um projeto de regulamentação da vida (FOUCAULT, 1975-1976/2010), é a proposta deste estudo.

Neste panorama, ainda temos como afirmar como norte na clínica a escuta das dores da alma, para o que é inominável, inconsciente, o ato louco e desvairado que rompe com as regras da razão? Ou estamos destinados a uma verificação do corpo orgânico-químico em suas disfunções e medicações para conter os sofrimentos e lapsos que atrapalham a funcionalidade do indivíduo em seu cotidiano?

Guiada pelas questões acima, a escrita percorrerá a temática da escuta clínica da loucura na atualidade em três frentes: a primeira, trata de retomar a arqueologia da loucura foucaultiana, no quanto a mesma serviu para o nascimento da clínica psiquiátrica e no quanto com o passar dos séculos a desrazão, potência subversiva dos deuses perante os homens, passa a ser entendida como um mau funcionamento orgânico a ser curado; a segunda, trabalhará o conceito de biopoder, com o qual a vida passa a ser delimitada entre normal e anormal para o bom andamento da arquitetura burguesa do social; e, a terceira, tratará do conceito de subjetividade mínima trabalhada por Pelbart (2013), que problematiza um modo sobrevivencialista no contemporâneo no trato para com a vida e suas potências. A partir dessas três frentes exploradas -loucura, biopoder e subjetividade mínima -tentar-se-á ratificar a importância de sustentar o espaço da escuta clínica para a loucura e para o inconsciente como ato revolucionário, resistente às regulamentações da vida, que extrapola o sujeito da razão na medida em que acolhe as disfunções do sujeito contemporâneo ao invés de anestesiá-las.

 

A exterioridade enclausurada: a psiquiatria deseja para si o que é de Dionísio

Pelbart (2009, p. 26) resgata o lugar da loucura na Grécia platônica, a qual supunha advir do plano divino, palavra do "deus e do destino" proferidas no "discurso oracular". A exterioridade do além do homem envergava a alma de cada cidadão grego. A loucura dizia respeito à arte divinatória, o personagem louco, inspirado por alguma entidade divina, acessava virtualidades, trazia para a linguagem dos mortais uma razão exterior, traduzia o enigma da mensagem dos deuses. Na época de Platão, a loucura era reconhecida a partir da desrazão como "uma modalidade de experiência e saber exterior â razão" usual do cotidiano, mas que era fundamental na constituição da polis e da própria alma (Pelbart, 2009, p. 51). A desrazão, muitas vezes, "encarnada na figura de Dionísio, era o outro, o radicalmente estranho" a ordenação cotidiana, aquele que desafiava a vida a diferir-se (Vernant, 1914, p. 77).

Este lugar da loucura, do desarrazoado, no período medieval, ganha outras figuras expressivas que indicam as transformações da visão de mundo ocorridas na Idade Média. A desrazão sai de cena como obra inumana, e a loucura se institui como uma condenação moral, "começa a avizinhar-se do pecado, das formas excluídas da sexualidade e das transgressões religiosas" (Pelbart, 2009, p. 54). A loucura inicia um caminho de interiorização no homem e começa a perder sua vinculação com a natureza, com o divino. Ganha forma a partir das aberrações de homens que destoam da moralidade medieval-cristã. Nesta nova imagem sobre a loucura, na qual se desenha o indivíduo louco como representante maior, podemos resgatar alguns modos como a sociedade europeia lidava com esse diferente, assustador personagem que abria as portas do inferno, do juízo final. Não à toa, Foucault intitula o primeiro de seus capítulos da História da Loucura como Stultifera Navis. A nau da loucura - quadro pintado pelo holandês Hieronymus Bosch em meados do século XVI - mostra uma das práticas com as quais as cidades se livravam de seus amaldiçoados. Navegações iam e vinham trazendo e levando loucos para terras distantes e desconhecidas. O representante da loucura era colocado a vagar no "interior do exterior" (Foucault, 1961/2008, p. 12).

Com o passar dos séculos, os mecanismos de purificação das cidades e dos loucos começaram a tomar outros rumos. O louco ganharia novos lugares estratégicos para um social que se expandia demograficamente, passando a habitar um território cercado, fechado e redundante em si mesmo em sua proposta de enclausuramento. As cidades-fantasma, arquitetadas para receber os leprosos e, posteriormente, os sifilíticos, não causavam tanto alvoroço e medo após o controle de tais pestes e serviram, de maneira propícia, para receber todos aqueles que, de alguma forma, poluíam o ar das cidades medievais, isto é, os pobres, sujos, malvados, viciados e degenerados de qualquer ordem. "Os leprosários logo viram lugares para incuráveis e loucos" (Foucault, 19661/2008, p. 05). Enquanto depósito, essas grandes internações não tinham nenhuma intenção de cunho terapêutico para lidarem com a problemática dos degenerados, que se multiplicavam à medida que as grandes cidades industriais europeias se erguiam e exigiam uma população regrada para o cumprimento de determinadas funções.

Só mais tarde, com o interesse burguês aumentando no sentido de produzir cada vez mais mão de obra - força de trabalho a ser consumida como ou um carvão arremessado ao fogo para aquecer as tradicionais máquinas a vapor -, é que se inicia uma diferenciação entre o incapacitado ao trabalho e os outros, que, disciplinados, poderiam servir para algum posto. Dessa distinção é que podemos avistar o espaço asilar de Pinel, considerado o pai da psiquiatria e que, desde esse posto, projetaria uma "cidade perfeita, transparente, racional e moral, em que a loucura pudesse ao mesmo tempo aparecer e ser abolida" (Pelbart, 2009, p. 43). Temos aqui o surgimento do Jardim das Espécies (Foucault, 1961/2008), o qual, inspirado pela botânica, segmentava em espécies os loucos residentes dos asilos para melhor observá-los e classificá-los para fins de controle e possíveis intervenções. "Tal como para as plantas, há, nas doenças, espécies diferentes, de características observáveis, com tipos de evolução" (Foucault, 1978/2011a, p. 454). Esse mapeamento dos tipos de doenças mentais serviu para que, cada vez mais, florescesse a concepção da loucura como anomalia individual de que o homem louco era portador, em seu íntimo, da loucura. A interiorização da loucura era cada vez mais evidente à época, afastando-se progressivamente da ideia de desrazão.

O louco, a partir da modernidade, passaria a representar o homem tomado por seu lado irracional, por instintos primitivos que adivinham dele mesmo, mas que deveriam ser dobrados pela racionalidade que imperava na proposta asilar de Pinel. E o ideal do asilo de Pinel era a cura da loucura a partir de "sua estabilização num tipo social moralmente reconhecido e aprovado" (Foucault, 1961/2008, p. 47). Inspirado por Pinel, Hegel trabalha sua filosofia sobre a alienação mental, a qual "não será definida por ele como ausência de razão, nem seu oposto, mas simplesmente como uma relação interior â razão" (Pelbart, 2009). A filosofia hegeliana instituiu a loucura como uma parte existente no humano, em uma dialética que envolvia a subjetividade interiorizada e a consciência objetiva, em um constante estado de superação do homem sobre si mesmo. Pinel e Hegel inauguram o campo das doenças mentais, esvaziando qualquer tipo de sentido que poderíamos dar â loucura dos tempos gregos. "Ei-la amarrada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e segura. Não existe mais a barca, porém o hospital" (Foucault, 1961/2008, p. 42).

Com este solo trabalhado, Freud (1915/1996b) iniciou sua cartografia sobre o inconsciente ao questionar o quanto o sujeito é dono de sua própria casa, problematizando o homem concebido como o ser da consciência. Contudo, e ao mesmo tempo, Freud coopera para o enclausuramento da loucura no interior do homem a partir do que enunciou sobre um inconsciente pessoal-familiar. Freud e a psicanálise têm o mérito de encarar o desatino, diferente da psicologia nascente de sua época, que, como tantos outros mecanismos de controle, ocultava essas vozes (Foucault, 1961/2008). A problemática, que Deleuze e Guattari (1972/2010) apontaram, foi a vinculação deste inconsciente muito mais a um tipo específico de loucura, que dizia respeito a um mundo representacional, familiar e individualista, do que à potência dos encontros junto à exterioridade, que maquina diferenças e que olha o inconsciente como força inventiva e revolucionária. Certas leituras sobre Freud e a psicanálise, esqueceram que "a loucura é apenas um recorte do Fora" (Pelbart, 2009, p. 157), silenciando a exterioridade e auxiliando no investimento cada vez maior de um homem narcísico, voltado para si mesmo e fechado para o que poderia outrar-lhe: "Um pensamento fundado na exaltação da individualidade e não no registro do desejo. Dessa maneira, a psicanálise foi uma modalidade de discurso que contribuiu de forma decisiva para a constituição da cultura do narcisismo" (Birman, 2003, p. 85).

Nessa constituição da cultura do narcisismo, chegamos ao próximo ponto a ser tratado no artigo e que aponta para um novo tipo de relação com o que é inapreensível, com essa desrazão enclausurada na loucura, diminuída por um inconsciente familiar e individualizante e que, no último século, transfigurou-se em transtornos ligados ao corpo. Falamos da subjetividade mínima, voltada ao investimento no corpo e à sua condição atual de estar sempre em perfeitas condições, reluzente, "espetaculizável". Contudo, para aprofundarmos tal conceito, tratemos, antes, de situá-lo nas injunções de poder que o viabilizam. Para tanto, nos deteremos brevemente no conceito de biopoder, posto que é com o racismo de Estado, com a proteção da sociedade frente àquilo que a degenera, que poderemos pensar de maneira consistente sobre esse corpo sem marcas singulares, anestesiado e sustentado por uma onda imagética de regulamentação da vida.

 

Biopoder: a defesa da sociedade frente ao que sai do regulamentado

Esse excelente Hotel é muito antigo. Já nos tempos do Rei Clodovico se morria nele em algumas camas. Hoje, morre-se em 559 leitos. Produção em série, naturalmente. E numa produção dessas não se executa tão bem a morte individual, mas também isso é coisa que pouco importa. O que interessa é a quantidade. Quem, hoje, dá valor a uma morte bem executada? Até os ricos, que poderiam dar-se o luxo de morrer bem, começam a se mostrar relaxados, indiferentes; faz-se cada vez mais raro o desejo de ter uma morte particular. Mais um pouco, e será tão raro quanto ter uma vida particular. Meu deus: tudo isso está aí. A gente chega, encontra a vida pronta, basta vesti-la... E morre-se como o acaso determinar; morre-se a morte que faz parte da doença (pois, desde que conhecemos todas as enfermidades, também sabemos que os diferentes fins pertencem às doenças, não às pessoas; e o doente, na verdade, nada tem a dizer). (Rilke, 1910/2008, p. 10)

O desejo de ter uma morte particular, uma vida particular, fenece quando se encontra a vida pronta para se vestir. As singularidades, força primordial na constituição do sujeito, parecem se extinguirem com certa produção em série que o poeta/filósofo anuncia acima. Vida raptada que recebe os contornos de uma regulamentação biológicocientífica, legitimada perante a sociedade de maneira a não sobrar muitos espaços para questioná-la. Como realizar o encontro com a desrazão, em sua exterioridade, também conhecida como as pré-individualidades, tão necessária para que o homem se diferencie de si e invente mundos? Quais as forças, as estratégias de poder que estão presentes nesse encontro que produz, no início do século XXI, um sujeito quase mudo, inanimado, que se veste de acordo com a vida pronta, oferecida como produto a ser consumido?

Uma das indicativas para pensarmos sobre tal questão foi trabalhada no item anterior, isto é, o silenciamento da loucura, a fuga do diálogo com a exterioridade ao ponto de o sujeito calar-se, evitando relação com o desarrazoado. Mas além do silenciamento da loucura, podemos pensar o processo que tenta conter a vida como singularidade se olharmos para a constituição da sociedade de biopoder e compreendermos sua característica de pavimentar os movimentos irregulares. Como Rilke apontara na epígrafe, a pessoa nada tem a dizer sobre sua própria morte, doença e vida quando esta já é pré-fabricada.

No livro Em defesa da sociedade, Foucault (1975-1976/2010) discute o quanto a política é a continuação das guerras por outros meios, uma maneira, no caso, do Estado ser mais sutil em seu extermínio junto àquilo que o ameaça. Obviamente, ser mais sutil não quer dizer menos eficaz, aliás, é a partir da regulamentação da vida que o Estado burguês, apoiado, sobretudo, pelos meios científicos, se legitima em suas ações de docilização/eliminação de todo corpo que difere de si e que, por isso, o ameaça. Segundo Foucault (1975-1976/2010), isto seria o "racismo de Estado", constituído â medida que a classe burguesa se elevava sob o regime soberano, com seu velho "direito de espada" - o fazer morrer e o deixar viver. Os Estados nascentes na Europa se apropriaram do uso da força e estabeleceram estratégias de poder para gerir um Estado burguês em ascensão, que se tornara muito mais complexo e denso demograficamente do que qualquer feudo do período soberano. Não se precisava mais de guerreiros defendendo a dignidade de sua raça com a própria vida, mas sim de trabalhadores disciplinados, com a vida regulada, no ponto certo para doar toda a sua energia para a produção.

Neste sentido, não existiria mais a possibilidade do uso da espada para punir uma superpopulação que começava a se desenvolver a partir do século XVII. Da mesma forma, como a burguesia cada vez mais se elevava e requeria força de trabalho para que a produção industrial ganhasse fôlego, era preciso criar outros dispositivos de controle - agora não mais negativos e punitivos -, com os quais se fabricassem indivíduos aptos ao trabalho das indústrias.

Neste novo modo de administração, impresso pelo Estado burguês no destino europeu, são fundadas escolas, hospitais, exércitos, assim como manicômios e prisões. Por meio de uma vigilância datada por cada uma das instituições percorridas, o homem se tornava docilizado ao ficar extenuado diante dos olhares de controle sobre si. Uma extenuação que produzia no indivíduo um vigia de si mesmo e de seus pares. Maquinaria paranoica e distópica do biopoder tão bem delineadas no livro 1984 (Orwell,1996).

A nova lógica do trabalho industrial exigia um novo homem, regrado pelo tempo da cidade, e não pelo tempo rural, submetido às regras do jogo burguês, pronto para se adaptar às dificuldades do trabalho da fábrica, apto a apertar parafusos, como brilhantemente ilustrado pelo personagem de Chaplin, O Vagabundo, no filme Tempos Modernos, de 1936. Para o ritmo industrial continuar acelerado, era necessário dinamizar as forças dos trabalhadores para que cada vez mais dessem uma resposta melhor em relação à produtividade. Tratava-se de qualificar a gestão do espaço-tempo para uma melhor "otimização das forças" (Pelbart, 2003, p. 57). Essas eram as características básicas das relações de forças operadas nessa época e que diziam respeito ao que Foucault (1975-1976/2010) intitula como poder disciplinar: primeiro pilar que sustenta a sociedade pautada pelo biopoder. Um poder exercido diretamente sobre o corpo de cada indivíduo, verticalizado, introjetando em cada um as linhas duras das instituições, espécie de moldura burguesa-industrial, também conhecida como anátomopolítica.

Entretanto, para sustentar esta teia de controle do biopoder, apenas essa linha evolutiva que o poder disciplinar tenta dar ao corpo-indivíduo não bastaria, o controle vertical não daria conta da complexidade exigida. Haveria de se providenciar mais um movimento de controle, um controle que sustentasse essa teia horizontalmente, que abarcasse todos os indivíduos como coletividade, alinhando às normativas no indivíduo enquanto espécie, a chamada biopolítica.

O projeto biopolítico, pautado em regulamentar a vida, se apoia na instituição médica-psiquiátrica, que ganha pujança como ciência a partir do momento em que se desgarra de um mundo regido por Deus, mesmo que resquícios morais ainda se presentifiquem em suas propostas nosológicas e normativas. A ciência do homem é que agora arquiteta como se deve viver: Quais os modos de vida mais saudáveis a seguir? O que devemos fazer a cada dia para que cuidemos de nossa higiene? Como proteger a vida dos infortúnios? A saga de como não pecar continua e só muda de roupagem...

A biopolítica se espalha por todos os confins da sociedade burguesa industrial, produzindo saberes que prevenissem situações de crise que poderiam afetar a família, a saúde, a economia, a indústria, o social como um todo. Aprimoram-se as instituições de assistência, com mecanismos mais racionais, como: seguradoras, poupança individual, assistência médica, tudo que possa amortecer o impacto das imprevisibilidades da vida. O fazer morrer e o deixar viver, prática de poder da soberania, sai de cena, ao menos como personagem principal, e é substituída pelo "fazer viver" a qualquer custo. Foucault (1975-1976/2010) comenta que, nesse furor de fazer viver, a sociedade passa a se sustentar na tecno-medicina, virando as costas para a morte, único acontecimento que não consegue ser apanhado pela teia de controle do biopoder. A morte torna-se um ato indigno de ser vivido e, sempre que possível, é postergada à luz de todos os esforços possíveis que possam vir a prevenir tal acontecimento. E, nesse sentido preventivo, a regulamentação da vida opera de maneira a rastrear e silenciar tudo aquilo que desvirtue de suas normativas.

Pautada pela teoria darwinista da evolução das espécies, este Estado burguês/científico irá legitimar o uso da força contra qualquer acontecimento que colocasse em risco a vida da espécie humana. Em defesa da sociedade, tudo aquilo que não é pavimentado, que extrapola as normativas, que não é apto ao sistema, deve morrer. E aqui, neste ponto do desenvolvimento do Estado do biopoder, que, a princípio, defende a vida a todo o custo, temos o retorno das forças soberanas sobre a sociedade burguesa. O fazer morrer é novamente legitimado quando utilizado em defesa da sociedade. Quando as normativas advindas das ciências médicas, quando as moralidades regulamentadas de como se viver a vida forem desconsideradas, o matar torna-se o recurso a ser utilizado, limpando o Estado de qualquer degeneração que poderia causar riscos à evolução da sociedade.

Esse poder assassino do Estado, a tanatopolítica que Agamben (2008) explora, articulado com os dois pilares aqui já comentados, a saber, a anátomo-política e a biopolítica, produzem o que Foucault (1975-1976/2010) chama de auge do biopoder; o racismo de Estado. Estamos, pois, falando do apogeu do período nazista e stalinista que governavam com esses três poderes em sintonia: poder de matar, poder de docilização dos corpos e poder de regulamentação da vida. Não à toa, é a partir do regime nazista que temos as testemunhas, como Primo Levi, que nos trazem notícias e problematizam os campos de concentração e a sua produção de humanos mais mortos do que vivos, o resultado da experiência de um Estado de biopoder nos processos de subjetivação (Agamben, 2008).

Todavia, mesmo que não tenhamos mais este Estado ditatorial característico do auge do biopoder, Foucault (1975-1976/2010) indica que esta estratégia assassina de controle está bem viva, ganhando ares sutis, cada vez mais capilar, sustentada por uma teia que vampiriza tudo aquilo que difere do regulado, sugando toda a força da diferença para processá-la e destiná-la a algum fim produtivo. Talvez, não tenhamos assassinatos de populações em grande escala como nos tempos do Estado nazista, mas, certamente, o sufocamento de subjetividades díspares à regulação capitalista está sempre sendo efetivado.

O biopoder, em sua prática de controle, ao normatizar os movimentos da vida, produz um processo de subjetivação dominante que diminui a aparição de singularidades, o que conduz a humanidade para o que Pelbart (2013) chama de subjetividade mínima, que pouco aguenta o contato com a diferença, que pouco sustenta um espaço para o desarrazoado. Neste contexto, há um empobrecimento de alma, uma redução da potência humana como corpo afectivo que afeta e é afetado pelo que lhe é exterior. Fôrma elementar para o Estado de biopoder fabricar um corpo zumbi entregue ao primeiro deus que o conduzir.

A dificuldade de suportar a angústia, a dor, um acontecimento imprevisto ganha vigor a cada nova medicação inventada para controlar algum comportamento que destoe do regulamentado. Antes de ter qualquer vertigem por um acontecimento que nos remeta a sair da zona normatizada, faz-se sempre presente a "burocratização do amanhã" (Sousa, 2008). Prática do recuo, da negação da vida, da anestesia, de um retorno eterno ao que é familiar, em um circuito que não se cansa de reiterar o mesmo lugar, linearizando, sobretudo, o futuro em sua possibilidade de inusitados.

 

A lógica da subjetividade mínima: o inconsciente ainda faz questão?

Com o medo do tempo que passa

Passa por mim o tempo do medo

A organização é a maneira mais privilegiada de ser medíocre. (Zizo)

Zizo é um poeta libertário que mora nos bolsões de pobreza de Recife e que distribui, gratuitamente, seu tabloide que tenta questionar a ordem vigente do mundo capitalista. O poeta Zizo, personagem principal do filme brasileiro Febre do rato, dirigido por Cláudio Assis e lançado em 2012, deseja encontros intensivos que escancarem a beleza da vida sem maquiagem, em sua crueza que pouco se importa para as imperfeições do outro. Mesmo com tamanha vitalidade, nosso anti-herói se encontra em tempos difíceis para afirmar sua poética, já que a cidade, em sua ordenação segmentária, protege-se do caos da periferia, defendendo-se de ser contaminada por tais fluxos, assassinando o poeta quando pretendia levar Dionísio à urbe. A cidade, em seu narcisismo autoritário, não admitiu o que quebrava seu espelho, o que lhe é exterior tornara-se uma monstruosidade.

A película, de certa forma, nos traz um pouco dessa vida regulamentada, que espera indivíduos dóceis e resignados ao silenciar qualquer ato que seja imprevisível. A organização do Estado capitalista do biopoder torna medíocre o homem na leitura poética de Zizo. Em cada transeunte o tempo que se passa é o do medo. Medo que impede de querer mais do que apenas sobreviver.

Pelbart (2013, p. 28) nomeia este modo de estar na vida como "postura sobrevivencialista [...], de baixa intensidade, [...] na qual até os prazeres são controlados e artificializados: café sem cafeína, cerveja sem álcool, sexo sem sexo, guerra sem baixas, política sem política - a realidade virtualizada". Com um medo de sentir algo violento demais, de amar um amor que interrompa o fluxo do mesmo, de entrar em contato com o que não é familiar, instituímos um homem "analfabeto das emoções" (Pelbart, 2013, p. 29).

Nessa realidade virtualizada, as tecnologias da cibercultura nos oferecem um mundo de possibilidades, assim como servem como uma barreira para qualquer fluxo que se mostre ameaçador. Basta um clique para desfazer um aplicativo, uma amizade, um namoro, uma relação que não agrade. Tudo aquilo que encarne um desconforto, que nos interpele com uma diferença pode ser deletado.

Birman (2003) nos remete a pensar sobre essa lógica de evitação do outro na cultura do narcisismo, com a qual se produz um sujeito preocupado com a exaltação de seu próprio eu. Sem admitir aquilo que faz sombra ao seu modo espetacular de viver, o sujeito produzido na Cultura do Espelho, do investimento no próprio corpo, torna-se refratário a tudo que possa vir a deformar a imagem perfeita que construiu de si mesmo. O sujeito torna-se autocentrado e inacessível a tudo aquilo que possa problematizá-lo e produzir reinvenção de si.

Neste contexto narcísico, a subjetivação é voltada para o culto do eu, com o sujeito inflando-se à medida que consome imagens vendidas no campo social, isto é, no que lhe é exterior. De discursos ideológicos a acessórios de cozinha, somos como os antigos outdoors a publicizar-consumir marcas-fluxos que indicam o direcionamento do estilo do eu. Contudo, evidentemente, esse fluxo de imagens advindos de uma exterioridade capitalista não é propriamente a exterioridade que remete à desrazão e a toda a sua potência de imprevisíveis. Essa exterioridade vendida e consumida diz respeito a tudo aquilo que é propagado midiaticamente como fórmula mágica para o sujeito possuir uma vida perfeita e brilhante. Neste caso, temos um exterior homogeneizante, de marcas prontas, tapa-angústias que servem como ancoragem para não naufragar em um mar de consumo que a todo instante desterritorializa e convoca o sujeito a reatualizar-se com o que está na moda. Com um consumo de fluxos de imagens prontas, moldurantes, que destitui a possibilidade de se relacionar com o plano das singularidades, com encontros que tenham o valor utópico de abraçar outros possíveis. O sujeito vê-se vazio, um saco sem fundo que consome o que o outro, representado pela mídia, lhe sugere para continuar sua caminhada rumo à glorificação de seu eu individualizado e narcisicamente solitário.

Nesta imagem do sujeito vazio de singularidades e farto de um exterior plastificado midiaticamente, podemos entender um pouco mais sobre o seu desamparo, conceito basilar da teoria freudiana e atualizado por Birman. A subjetividade narcísica pouco se sustenta junto a um encontro-acontecimento. Apesar do superinvestimento no próprio eu, o sujeito sarado contemporâneo carece de forças singulares, pois as atrofia ao seduzir-se por campanhas publicitárias que o vestem de identidades sem ao menos saber se é isso mesmo que desejaria ser.

[...] o foco do sujeito deslocou-se da intimidade psíquica para o próprio corpo. Hoje, o eu é o corpo. A subjetividade foi reduzida ao corpo, a sua aparência, a sua imagem, a sua performance, a sua saúde, a sua longevidade. O predomínio da dimensão corporal na constituição identitária permite falar em uma "bioidentidade". (Pelbart, 2013, p. 27)

Essa bioidentidade parece diminuir a possibilidade de contato com o que faz descentrar o eu de si mesmo, pois é na relação com o outro que o discurso do eu tropeça, faz atos falhos, produz sonhos e mesmo sintomas, chaves de entrada para um outro eu, o do inconsciente, vazio de lugares prontos e prenhe de desejo, máquina desejante que vislumbra possibilidades para o sujeito outrar-se. Diante da bioidentidade podemos pensar que se produz um esvaziamento no reconhecimento do inconsciente, com a sua neutralização a partir dessa saída subjetiva voltada ao corpo biologizadopadrão. Em tempos de biopoder, de regulamentação da vida, em um cenário que nega o inconsciente como processo constitutivo do sujeito, fica difícil avistarmos uma relação de cuidado que escute este plano desarrazoado que faz questão ao eu corpóreo e consciente. A partir de intervenções químicas no corpo fisiológico de cada indivíduo, tenta-se solucionar os possíveis sintomas, dando fim e anestesiando a angústia no corpo, sem realizar nenhuma aproximação com a história de vida, com os afetos e relações para com o mundo. O inconsciente é silenciado, o sujeito torna-se a-singular e seu corpo é entregue a um modelo que se deve clonar:

Cada paciente é tratado como um ser anônimo, pertencente a uma totalidade orgânica. Imerso numa massa em que todos são criados à imagem de um clone, ele vê ser-lhe receitada a mesma gama de medicamentos, seja qual for o seu sintoma. (Roudinesco, 2000, p. 14)

O anonimato, que imprime um cuidado padrão a qualquer sujeito que chegue com um sofrimento, corrobora com a lógica da subjetividade mínima, na qual pouco importa o que cada humano possui de mais íntimo, de particularidade frente à vida, sua envergadura interior. Afinal, é somente o corpo em sua funcionalidade que é o foco, foco míope por certo, que embaralha e reduz toda a afectividade de uma vida nessa massa orgânica que agora fala pelo sujeito quase mudo, sobrevivente, em uma vida sem silhueta e, sobretudo, estéril de desejo.

 

Considerações Finais

A partir dessa lógica instaurada no cotidiano do mundo contemporâneo, avançase cada vez mais em direção à eliminação do contato com a exterioridade, a desrazão parece ser eliminada dos possíveis destinos da vida de qualquer transeunte e mesmo do campo social, e o inconsciente parece não ser visto mais como necessário no campo da clínica operada nos dias atuais. A derrocada do inconsciente, justamente, se passa à medida que essa subjetividade mínima avança nos processos de subjetivação contemporâneos, o que traz efeitos devastadores na relação clínica e na escuta do inconsciente em seu estado desarrazoado.

Com este atravessamento institucional, o clínico parece se esquecer da artesania que se passa junto ao sujeito que escuta, posicionando-se como um cuidador que vê em todos os pacientes as mesmas disfunções, com iguais soluções, via de regra medicamentosas. Implicado pela mesma lógica, o sujeito que procura auxílio em seu sofrimento, solicita medicação e anestesiamento de seus sintomas, julgando que eles não lhe pertencem e que estão aí só para atrapalhá-lo em seu desenvolvimento de vida. "Na realidade, não há doenças, mas transtornos de comportamento" (Izaguirre, 2011, p. 17). Não à toa assistimos ao crescimento na crença dos cuidadores de todo o mundo nas edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que apresentam estatísticas cada vez mais apuradas sobre os transtornos comportamentais do corpo humano e sua relativa solução via contenção química, calcada por uma psiquiatria enamorada à indústria farmacêutica.

Esperanza (2011, p. 58) sinaliza as torções de sentido operadas na clínica no que tange ao desarrazoado e como o social se relaciona com ele na atualidade, na qual "o transtorno substitui o sintoma, o organismo substitui o corpo, o indivíduo substitui o sujeito e o inconsciente desaparece em favor de comportamentos e condutas a modificar". Este cerco armado frente â desrazão foi retirando-a de cena, afunilando-a junto ao sujeito, aprofundando-a de tal maneira que agora é identificada apenas como uma falha orgânico-genética ou neurofisiológica. Neste contexto de subjetividade mínima, de intervenção no corpo desregulado do indivíduo que anestesia e que tenta reduzir toda a exterioridade advinda da desrazão a meros transtornos, como podemos pensar a clínica? Tal pergunta nos parece estar em pauta pela fácil visualização que temos da "valorização dos processos psicológicos de normalização, em detrimento das diferentes formas de exploração do inconsciente" (Roudinesco, 2000, p. 18).

Fica o desafio de pensarmos o que pode a clínica e como ela conseguiria escapar/problematizar estas forças que produzem uma escuta mínima do sujeito, pelas quais, mesmo quando tentamos resistir como clínicos, por vezes, acabamos contaminados, em uma escuta deficitária e regulamentadora da vida.

Falamos aqui de micropolítica, de contaminação pela afectividade dos encontros com o inusitado, de revoluções culturais no seio de um social burocratizante e de mínima afetação. Falamos de uma clínica aberta para aquilo que escapa, que acolhe a angústia e flexibiliza a vida a partir do momento em que, pela escuta, presentifica o parto de outras vidas possíveis no seio do que regulamenta e endurece a vida e suas relações. A desrazão, por mais angustiante que seja, é o que nos possibilita abrir frestas em uma escuta até então surda frente à exterioridade, à loucura, ao inconsciente que desafia, utopicamente, essa vida minimizada do contemporâneo. Escuta utópica que maquina espaços para o nascimento de singularidades, "fazendo nascer novos modos de existência, sem qualquer anseio de totalização", valorizando a experimentação deste encontro que nos exterioriza (Pelbart, 2010, p. 15).

 

Referências

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1 O livro "Psicopatologia da vida cotidiana" (Freud, 1901/1996a) é fundamental para termos uma ideia de quando Freud estende a existência do inconsciente para as trivialidades da vida, considerando que até mesmo sujeitos ditos normais volta e meia tropeçam na força advinda do inconsciente, sobretudo com os chistes e atos falhos. Nesse sentido, não somente as histéricas da época tinham uma excitação-tensão interna a partir do inconsciente, mas a humanidade civilizada em geral.

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