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Revista de Psicologia da UNESP

versión On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.16 no.2 Assis jul./dic. 2017

 

RESENHA

 

Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental

 

 

José Guilherme Nogueira Passarinho

Psicólogo, mestrando em Psicologia na linha de Atenção Psicossocial e Políticas Públicas pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho - Assis

 

 

WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017

Com a proposta de fazer uma análise minuciosa sobre o enorme crescimento na prevalência dos transtornos mentais nos Estados Unidos da América, o jornalista Robert Whitaker publica um trabalho que convida os leitores a repensar o modo como a sociedade estadunidense tem compreendido e tratado essa questão. O autor pretende responder questões como o porquê do aumento vertiginoso dos transtornos mentais e de seu grau de incapacitação em adultos e crianças; indaga também sobre a eficácia e os efeitos do tratamento baseado em psicofármacos, bem como se estas pílulas mágicas - magic bullets, no original - não teriam alguma relação com a referida epidemia psiquiátrica. As respostas que encontra, baseado na ampla revisão que faz da literatura científica, bem como em entrevistas com pessoas que receberam algum diagnóstico psiquiátrico, contradizem as narrativas correntes sobre a descoberta dos mecanismos subjacentes às chamadas doenças mentais e a revolução promovida pela psicofarmacologia em seu tratamento. Assim, no último capítulo, também se pergunta sobre a existência e a viabilidade de modelos alternativos de atenção à saúde mental e termina apresentando algumas possibilidades.

Atualmente, o modelo de prestação de atenção à saúde mental em nosso país continua fortemente centrado na prática médica e na prescrição de psicofármacos. Especialmente naqueles casos considerados mais graves, é raro encontrarmos algum sujeito em tratamento que não esteja medicado. Segundo dados do Ministério da Saúde (2019), somos o terceiro maior consumidor de ansiolíticos benzodiazepínicos no mundo e, entre 2012 e 2016, a prescrição de antidepressivos pela rede pública aumentou em 87% (p. 15). Estudos também mostram que em alguns CAPS a porcentagem de usuários com receitas de antipsicóticos podem chegar a 40% (Clementino et al., 2019). É nesse contexto que o livro de Whitaker ganha pertinência e importância para o público brasileiro; seu trabalho nos ajuda a refletir sobre uma epidemia que também assola nossa sociedade.

Na primeira parte do livro, o autor apresenta o aparente paradoxo que tentará solucionar, sendo este o trabalho que guiará o restante da pesquisa: como os números de diagnósticos e incapacitações por transtornos mentais pode ter aumentado tanto1, justamente a partir do momento em que houve uma dita "revolução" no tratamento psiquiátrico com a invenção dos psicofármacos? Desde a década de 1950, quando os primeiros pacientes psicóticos começaram a ser tratados com neurolépticos, seguido dos tratamentos com ansiolíticos e antidepressivos, começou a se formar um consenso em torno do uso desses medicamentos e a surgir uma promessa de maior eficácia da prática psiquiátrica. Porém, o autor se pergunta: "dispomos de tratamentos que lidam de maneira eficaz com esses distúrbios, por que a doença mental tem se tornado um problema de saúde cada vez maior nos Estados Unidos?" (Whitaker, 2017, p. 23).

Nos capítulos que compõe a parte II, aborda-se a história das práticas psiquiátricas e o questionamento da eficácia de seus métodos tradicionais de tratamento na década de 1940. Com a descoberta de compostos químicos capazes de alterar o comportamento, a promessa da existência de "pílulas mágicas" psiquiátricas tornou-se uma oportunidade para resgatar a psiquiatria de sua crise. Para legitimar esses remédios como curas para os transtornos psiquiátricos, o autor apresenta a tentativa dos pesquisadores de criarem uma teoria que explicasse a origem dos transtornos mentais de uma perspectiva bioquímica. Surge, com a descoberta dos mecanismos de ação dos psicofármacos, a teoria do "desequilíbrio químico do cérebro" (Whitaker, 2017, p. 76).

Com ela, a esquizofrenia se tornou um excesso de atividade nas vias dopaminérgicas - porque observaram que os neurolépticos reduziam essa atividade - e a depressão um déficit nas vias serotoninérgicas, uma vez que os antidepressivos aumentam a atividade dos neurônios produtores desse neurotransmissor. Entretanto, o autor demonstra que pesquisas posteriores não conseguiram comprovar nenhuma dessas teorias (Whitaker, 2017, pp.86-9). Em suma, descobre-se que os desequilíbrios químicos não são a causa das doenças mentais, mas podem ser causados pela administração de psicofármacos que alteram o metabolismo cerebral - produzindo respostas adaptativas que causam modificações duradouras no funcionamento do cérebro.

Em seguida, na parte III, o autor faz uma ampla revisão na literatura científica sobre os resultados obtidos pelos três principais tipos de psicofármacos utilizados em tratamentos psiquiátricos: os neurolépticos, os ansiolíticos e os antidepressivos. Retomando os principais estudos publicados a partir da década de 1960 até os anos 2000, ele encontra um padrão em seus resultados. Em um primeiro momento, os fármacos produzem alterações de comportamento que indicam uma melhora nos sintomas. Assim, nas primeiras semanas ou meses, os grupos de pacientes tratados com medicamentos tendem a se sair melhor que aqueles tratados por outros meios não-medicamentosos - com placebos ou sem tratamento algum. Entretanto, conforme passam os meses ou anos, as pesquisas mostram que os grupos tratados com os remédios não só voltam a piorar, como geralmente seus sintomas se tornam muito mais intensos, diversificados e frequentes do que eram inicialmente. Com o tempo, esses pacientes apresentam resultados gerais piores que os dos outros grupos, além de apresentarem efeitos colaterais variados e crises de abstinências, em casos de abandono repentino da medicação.

Na parte IV, tendo demonstrado não apenas que os psicofármacos nunca tiveram sua eficácia comprovada pela pesquisa científica, mas também que existem indícios de que ela possa ter contribuído para a epidemia de transtornos mentais, Whitaker tenta elaborar uma explicação sobre o motivo da narrativa a favor da "revolução psicofarmacológica" ter se mantido intacta até os dias de hoje. Ele demonstra que a psiquiatria passava por outra crise nos anos 1960 e 1970, por conta das críticas dos teóricos da chamada "Antipsiquiatria", dos estudos experimentais que questionavam a eficácia dos psicofármacos, bem como das cisões internas da própria psiquiatria. A solução encontrada, então, foi se agarrar na identidade médica, além de reabilitar a reputação dos psicofármacos e unificar a psiquiatria em torno de um modelo biomédico. Como disse um psiquiatra em um Congresso no final da década de 1970, em uma frase recuperada pelo autor: "o que vai nos salvar é que somos médicos" (Platt, 2009 apud Whitaker, 2017, p. 276).

Para tanto, o papel da psiquiatria deveria ser o de identificar corretamente as doenças com base em seus sintomas, criando uma nosografia diagnóstica rigorosamente científica, bem como oferecer os tratamentos mais "modernos" - ou seja, a prescrição de psicofármacos - aos pacientes. O autor demonstra como o DSM-III desempenhou esse papel, fornecendo um sistema de diagnósticos abrangentes e unificando a psiquiatria em torno do modelo biomédico - esse manual, por exemplo, recusou a maioria das categorias psicanalíticas utilizadas por uma parcela da psiquiatria até então2.

Outro fator que contribuiu para a restituição do prestígio da psiquiatria foram as alianças estabelecidas a partir da década de 1980. A principal delas, sem dúvida, foi com a indústria farmacêutica. O autor diz que essa parceria começou "quando a APA3 criou [em 1974] uma força-tarefa para avaliar a importância do apoio farmacêutico para seu futuro" e completa dizendo que a resposta encontrada foi que a importância dessa indústria para a psiquiatria estadunidense era "muito grande" (Whitaker, 2017, p. 283). Desse momento em diante, essa indústria passou a financiar mais direta e abundantemente pesquisas e eventos científicos ligados a psiquiatras influentes. "Para as empresas farmacêuticas, a melhor parte dessa nova parceria era que ela lhes facultava transformar psiquiatras das melhores faculdades de medicina em 'porta-vozes'" (Whitaker, 2017, p. 284).

Na quinta e última parte do livro, o autor apresenta uma série de experiências que considera alternativas viáveis ao modelo medicamentoso. Não se trata de pregar pela extinção da psiquiatria ou do uso de psicofármacos, mas de questionar sua centralidade em todos os casos e sua prescrição indiscriminada. Nesse sentido, seus argumentos dialogam com as propostas de Rose (2019), que defende uma psiquiatria fora do lugar de protagonismo na saúde mental, bem como um modelo de atenção baseado na ação comunitária, com uma visão complexa sobre o sofrimento psíquico e protagonizado pelos próprios sujeitos que buscam ajuda.

Desde o exemplo de médicos britânicos que preferem escutar e dialogar mais com seus pacientes, ou lhes prescrever exercícios físicos e atividades ao ar livre antes de lhes prescrever de imediato um fármaco; passando por uma residência para reclusão e tutela de crianças e adolescentes infratores, na Califórnia, em que os moradores não são tratados com medicamentos, encontramos os exemplos que advogam pela eficácia de outros modelos de atenção que não sejam exclusivamente ou preferencialmente baseados nas drogas psiquiátricas. Mas talvez o modelo alternativo mais desenvolvido apresentado pelo autor seja o do open dialogue5, utilizado em um distrito na Finlândia, que se fundamenta na escuta, diálogo e cooperação entre a equipe de trabalhadores de saúde mental e os usuários e suas famílias. Os resultados apresentados, após 17 anos de aplicação do open dialogue, foram a redução em 30% dos gastos em saúde mental e a erradicação da cronicidade da maioria das doenças mentais (Whitaker, 2017, p. 350).

O livro de Whitaker coloca novamente em questão muitas das certezas nas quais a psiquiatria contemporânea se baseia. Com linguagem acessível mesmo aos que não possuem formação especializada no assunto, o autor expõe os determinantes dessa que é uma das epidemias que provoca mais sofrimento em nossa sociedade atualmente. Seu livro, portanto, é de grande auxílio para todos que desejem enfrentar esse problema.

 

Bibliografia

Clementino, F. S., Miranda, A. N. M., Pessoa Júnior, J. M., Silva Júnior, J. A., Brandão, G. C. G. (2019). Atendimento integral e comunitário em saúde mental: avanços e desafios da Reforma Psiquiátrica. Trab. educ. saúde., Rio de Janeiro, 17(1), pp. 1-14. Recuperado em http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00177.         [ Links ]

Florence, A. & Yasui, S. (2019). Abordagem Open Dialogue na Finlândia: entrevista com Jaakko Seikkula. Interface, Botucatu, 23, pp. 1-13. Recuperado em http://dx.doi.org/10.1590/interface.180239.         [ Links ]

Lacan, J., Kammerer, T., Wartel, R., Zarifian, E., Caroli, F., Leguil, F., Ginestet, D., Olivier-Martin, R., Samuel-Lajeunesse, B., Simon, P., Lantéri-Laura, G., Gori, R.(1989). A Querela dos Diagnósticos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.         [ Links ]

Ministério da Saúde. (2019). Uso de medicamentos e medicalização da vida: recomendações e estratégias. Brasília: Comitê nacional para promoção do uso racional de medicamentos. Recuperado de: http://www.conpdl.com.br/wp-content/uploads/2017/03/Manual-APA_-regras-gerais-de-estilo-e-formata%C3%A7%C3%A3o-de-trabalhos-acad%C3%AAmicos.pdf.         [ Links ]

Rose, N. (2019). Our Psychiatric Future: the politics of mental health. Cambridge: Polity Press.         [ Links ]

Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.         [ Links ]

 

 

1 Para demonstrar o crescimento e justificar a palavra "epidemia", o autor apresenta dados sobre a internação de pessoas em Hospitais psiquiátricos em 1955, no início da "era da psicofarmacologia", em comparação com o número de pessoas consideradas inválidas por conta de um transtorno mental em 1987 e em 2007. Em 1955, haviam 355 mil pessoas internadas, ou 1 em cada 468 estadunidenses. Já em 1987, haviam 1,2 milhão de pessoas invalidadas por motivo de transtorno mental, ou 1 em cada 184 estadunidenses. E em 2007, eram 3,9 milhões nessa situação, ou 1 em cada 76 estadunidenses (Whitaker, 2017, pp. 24-25).
2 Uma série de textos compilados no livro A Querela dos Diagnósticos (1989), fornece um testemunho sobre este embate entre psiquiatria e psicanálise, sobretudo em torno das questões do DSM-III e dos psicofármacos, durante a década de 1980.
3 Associação Americana de Psiquiatria, ou American Psychiatric Association (APA), no inglês original.
4 Pode-se encontrar em português uma entrevista com Jaakko Seikkula, o principal responsável por formular a abordagem do open dialogue, publicada por Florence & Yasui (2019) e disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/interface.180239.

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