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Revista de Psicologia da UNESP

versión On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.spe Assis  2019

 

ARTIGOS

 

Dispositivo Intercessor e Atenção Psicossocial: subversão da lógica tecnocrática da Reforma Psiquiátrica contemporânea

 

Intercessor device and psychosocial care: subversion of the contemporary psychiatric reform's technocratic logic

 

 

Carine Sayuri Goto

Psicóloga e mestre em Psicologia pela FCL, UNESP/Assis, especialista em Economia Solidária pela Unicamp. Psicanalista, supervisora clínico-institucional de dispositivos de Atenção Psicossocial e membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII) em SP. Integrante do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "Subjetividadessaúde" (LATIPPSS). E-mail: carinesayuri@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo busca refletir sobre o Dispositivo Intercessor, conceito cunhado por Costa-Rosa, no campo da Saúde Mental, levando em consideração que a Reforma Psiquiátrica e a Atenção Psicossocial são movimentos que se tornaram paralelos no momento atual. Através de uma breve discussão histórico-crítica podemos dizer que há uma Reforma Psiquiátrica inicial, baseada na Reforma Sanitária, e uma contemporânea marcadamente neoliberal. Enquanto inicialmente fazíamos discussões sobre a estrutura político-econômica da sociedade e os atravessamentos na saúde, na Reforma Psiquiátrica contemporânea passamos a fazer uma discussão tecnocrática privilegiando o tema "acesso". As portarias de 2018 para uma nova Saúde Mental e a Nota Técnica 11/2019 do Ministério da Saúde nos interrogam sobre a ênfase na discussão tecnocrática e o "escanteamento" da discussão da Atenção Psicossocial como ética no campo da Saúde Mental. Diante desse cenário retomamos a obra de Costa-Rosa sobre o Dispositivo Intercessor, norte para retomada da Ética necessária para produção de subjetividades singularizadas.

Palavras-chaves: atenção psicossocial; reforma psiquiátrica; dispositivo intercessor.


ABSTRACT

This article aims to reflect on the Intercessor Device, a concept coined by Costa Rosa, in the Field of Mental Health, but taking into consideration that the Psychiatric Reform (PR) and Psychosocial Attention are movements that have become parallel at the moment. Through a brief historical - critical discussion we can say that there is an initial PR based on Sanitary Reform and a contemporary neoliberal one. While it initially made political - economic discussions about the structure of society and its crossing s in health, the contemporary PR started to make a technocratic discussion privileging the theme "access". The 2018 directives for a new Mental Health and Technical Note 11/2019 from the Ministry of Health make us interrogate ourselves about the emphasis o n the technocratic discussion and the scoring of the discussion about Psychosocial Attention as Ethics, in the Field of Mental Health. In view of this scenario, we return to the work of Costa - Rosa about the Intercessor Device, as north to resume the Ethics necessary for the production of singularized subjectivities.

Keywords: psychosocial care; psychiatric reform; intercessor device.


 

 

Introdução

Nos últimos tempos uma questão têm se apresentado de forma corriqueira pelos representantes da psiquiatria hegemônica: o manicômio foi produto do mau uso do Hospital Psiquiátrico (HP), ninguém defende as atrocidades que ocorreram naquelas instituições, mas não podemos extinguir o HP por conta dessa experiência, pois da mesma forma temos visto hoje em dia vários Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) funcionando com condutas manicomiais. Por este mau uso também extinguiremos os CAPS?

Durante muito tempo a crítica aos serviços substitutivos foi mal vista pelo Campo da Saúde Mental, que entendia que qualquer crítica daria subsídios aos defensores do Manicômio, mesmo que ela fosse feita por defensores dos serviços substitutivos e engajados na luta antimanicomial em relação à constituição das práticas que deixavam as questões políticas em segundo plano para exaltar a técnica e o acesso.

Alguns rechaçavam as críticas, pois poderiam representar respaldo para a permanência dos manicômios, outros entendiam como momento não estratégico politicamente, já que desde meados da década de 1990 até 2015 tivemos na gestão federal uma frente favorável à Reforma Psiquiátrica, incluindo representantes de movimentos sociais.

Desde que os CAPS se tornaram política oficial, acreditamos e defendemos que a abertura desses serviços seria suficiente para modificar a realidade manicomial, com suficiente força para reorganizar uma lógica segregacionista encarnada institucionalmente. Hoje podemos refletir sobre esse mote, pois em várias regiões do Brasil os CAPS comportam-se como ambulatórios, ou pior, reproduzem a lógica manicomial utilizando o manicômio químico ao invés do arquitetônico, isso quando não identificam nas Comunidades Terapêuticas (CT) um parceiro no tratamento, justificada pela sua entrada na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) com a portaria 3088 (Ministério da Saúde, 2011).

Dessa forma, discorreremos sobre a Reforma Psiquiátrica (RP) e a Atenção Psicossocial, como discursos diferentes, entendendo que a primeira sofreu modificações desde que anunciada, e a segunda foi escanteada e pouco conhecida pelos serviços que outrora eram chamados de substitutivos, antes de anunciada a nova política de Saúde Mental, oficializada na Portaria 3588 (Ministério da Saúde, 2017).

Seguindo nossa lógica apontamos as portarias de 2017 e a nota técnica 11 de 2019, do Ministério da Saúde, como um produto dessa história da Saúde Mental no Brasil que não conseguiu defender a ética da Atenção Psicossocial no interior da Reforma Psiquiátrica, ética esta tão debatida e central na obra de Costa-Rosa (2011).

Por fim e de forma muito relevante, traremos o Dispositivo Intercessor (DI) como orientação da práxis na Atenção Psicossocial, mostrando como podemos interceder pela ética da Atenção Psicossocial.

 

Reforma Psiquiátrica como movimento político-econômico

A RP no país se organizou em um momento histórico marcado pela ditadura militar, privatização dos serviços médicos, fraudes no setor público com desvio de recursos para o setor privado e avanço do neoliberalismo para combater a crise de meados da década de 1970, mas também de mobilização social reivindicando mudanças. Madel Luz em sua tese de 1978 nos diz:

A atualidade crescente do estudo das instituições médicas não pode ser desligada dos recentes movimentos sociais deflagrados em varias formações sociais capitalistas. Tais movimentos sociais dirigem-se em geral contra o poder do Estado (consequentemente, das classes instaladas no Poder) e suas instituições como a Universidade e a escola em geral, as prisões, os hospitais, principalmente psiquiátricos (Luz, 2013, p. 63).

No momento de efervescência das lutas sociais em oposição à sociedade constituída até então, a Reforma Psiquiátrica (RP) fortemente influenciada pela Reforma Sanitária (RS) buscou contestar as instituições sociais, fossem elas políticas ou econômicas. A Psiquiatria Democrática Italiana, de Franco Basaglia, quando chega ao Brasil produz um casamento bastante harmônico com o que se discutia na época, alavancando e agregando bases para o avanço daquilo que até o momento ainda estava no campo das ideias. É dessa forma que pessoas com forte engajamento político conseguem propor problematizações que pretendem colocar em xeque a própria instituição psiquiátrica, nos moldes da crítica de Basaglia.

Esse movimento que se constituiu no início da década de 1980 e buscou por uma alternativa à psiquiatria, lendo-se essa psiquiatria como a organicista e manicomial, aproximou a nova psiquiatria ainda como rascunho, da complexa crítica social e econômica no campo da Saúde e do sofrimento psíquico.

A RP brasileira, como movimento de oposição ao instituído manicomial organicista, foi evanescente nesse movimento de contestação, mas pode avançar em algumas poucas experiências pontuais. Entre elas citamos a experiência de Santos que embora não tivesse orçamento específico para o desmonte manicomial, conseguiu rearranjar seus gastos e mobilizar seus trabalhadores para a desativação de um dos maiores Manicômios do Brasil, o Anchieta, ao mesmo tempo em que redefinia sua rede com a criação dos NAPS, com influência direta da experiência italiana.

Nesse contexto o setor saúde foi uma brecha importante para aprofundar a reflexão da própria sociedade. A RP tomou contorno, enquanto movimento social, contudo a transformação dos ideais iniciais em política pública reduziu a questão da loucura e da ciência psiquiátrica ao modelo de gestão e acesso, deixando de lado a discussão de modelo societário. Do início da RP e suas experiências localizadas, para sua implementação e ampliação verificamos um salto que inverte seus objetivos, despolitizando o próprio movimento a partir do novo viés, ou seja, transforma a ação política em questão de administração (Oliveira, 2010).

Tecnicamente a RP se configurou como um misto da Psiquiatria Democrática italiana e da Psiquiatria Comunitária norte-americana, as duas linhas teóricas mais expressivas, sob a influência da psiquiatria organicista, intensificada com o passar dos anos, além do aumento de poder da indústria fármaco-química sobre a psiquiatria, no contexto econômico neoliberal. Como resultado a psiquiatria está intensamente ramificada socialmente, patologizando a vida cotidiana e o sofrimento produzido pelo modo de viver na sociedade contemporânea, respondendo à demanda da própria população por essa especialidade que promete o alívio instantâneo (Costa-Rosa, 2013), as medicações são hegemônicas e quase exclusivas para lidar com o sofrimento, receitadas inclusive pelos clínicos gerais, em uma tentativa de acabar milagrosamente com o sofrimento que se apresenta cotidianamente na clínica. Ao mesmo tempo, ainda há uma grande quantidade de leitos psiquiátricos pelo país, que ao contrário das nossas expectativas não serão encerrados, conforme anunciado na Nota Técnica nº 11 (Ministério da Saúde, 2019), e mesmo anteriormente na Portaria 3588 (Ministério da Saúde, 2017).

Embora a experiência dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), da cidade de Santos (SP), tenham se mostrado mais radicais, com inspiração direta da Psiquiatria Democrática e na proposta totalmente substitutiva do manicômio (Braga-Campos, 2000), a escolha do Estado para um serviço alternativo em Saúde Mental (SM) materializa-se nos CAPS, que surgem inicialmente como lugar de transição entre o Manicômio e o ambulatório, sem a perspectiva de fechamento de leitos psiquiátricos até a reformulação teórica antimanicomial feita por seus trabalhadores. Enquanto naquele momento a RP, representada pelo poder público federal, toma rumos no sentido de inaugurar o manicômio reformado, humanizado, e de propor a existência de uma rede de serviços em Saúde Mental que não exclua o local de isolamento, a Luta Antimanicomial, influenciada pela Psiquiatria Democrática, radicaliza na proposta de acabar com os espaços asilares, propõe uma nova rede de atenção territorial, que posteriormente passou a ser chamada de Atenção Psicossocial (Costa-Rosa, 2013). Enquanto a primeira ainda gira em torno da psiquiatria e de suas transformações, o que contribui para que permaneça aceita e ampliada na sociedade, tendo como centro seus aparatos médicos, a segunda propõe ações subversivas.

Se inicialmente pudemos observar uma crítica ao modelo socioeconômico vigente, refletindo o que esse modelo produzia no interior das instituições, hoje é raro encontrar profissionais, usuários e pensadores da Saúde Mental que articulem o Modo de Produção com a produção de subjetividade. Esse movimento foi percebido já na II Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM):

Realizadas em circunstâncias históricas distintas da I CNSM, cujo relatório apresentava diversas proposições de caráter político, o texto da II CNSM não foi tão contundente na crítica ao modelo econômico nem ao momento político que se estava vivendo. Embora aquelas questões estivessem como pano de fundo, o relatório era muito mais extenso e específico nas questões da saúde mental (Costa-Rosa; Luzio; Yasui, 2001, p. 17).

A RP trouxe a crítica econômica influenciada pela Reforma Sanitária, mas vai se distanciando, em seu lugar entram as discussões técnicas e assistenciais, principalmente pela necessidade de criação dos serviços de Saúde Mental.

Já a psiquiatria não conseguiu desvincular-se de seu papel social de defesa da sociedade, justificando a exclusão e a permanência dos HP ainda hoje. Esse papel social atribuído ao psiquiatra com a Psiquiatria Comunitária continua fortalecido no exercício de sua prática. A coerência continua não sendo a preocupação da psiquiatria, seja já nas bases da Psiquiatria Comunitária, seja hoje em dia em sua serventia para disfarçar as contradições do próprio sistema capitalista e seu modo de produção, camuflando aquilo o que produz e não consegue resolver. Há uma supremacia da função social do HP, em detrimento de uma suposta função terapêutica, já que não encontramos argumentos que defendam o enclausuramento como forma de melhorar as condições psíquicas de pessoas em sofrimento. É, entre as visões críticas, de comum acordo que o asilamento não produz melhora na condição psíquica dos pacientes internados, que a institucionalização inaugura uma situação de cronificação e tutela, que os equipamentos substitutivos, mesmo sob orientação tutelar produziriam mais saúde pelo simples fato de não isolar a pessoa e deixá-la participar das atividades cotidianas. Mesmo assim a persistência do Hospital Psiquiátrico e a demanda social pelas internações nos fazem deparar com a função social desses espaços, que hoje mantém a conduta manicomial destinada aos "leitos neurológicos", quando na verdade são pessoas que sofrem as consequências da própria institucionalização1.

A Reforma Psiquiátrica se caracteriza pela posição a favor do fechamento dos Manicômios brasileiros, ao mesmo tempo em que convive com a contradição de serviços substitutivos de Saúde Mental solicitarem internações nas instituições que se propuseram fechar. As estruturas rígidas de hierarquia, a divisão social do trabalho bem marcada, inclusive com diferenças salariais gritantes, o médico ainda em seu lugar de poder, o autoritarismo da gestão e a falta de horizontalidade entre os membros da equipe nos HP, sobretudo, mas não raro de se encontrar no interior dos serviços substitutivos e nos processos de desinstitucionalização, permanecem como nas estruturas fordista/tayloristas. E são essas estruturas que permanecem declaradamente mais próximas das práticas manicomiais que das psicossociais, uma vez que as práticas da Atenção Psicossocial deveriam tender para uma auto-gestão, ou no mínimo para a horizontalidade.

Nos serviços substitutivos percebemos que há um esforço para que a organização se dê no modelo de equipes e redes. Ao mesmo tempo verificamos o discurso das "redes" na produção de um território capaz de apoiar a produção de autonomia. Zizek nos fala das "redes" no capitalismo de forma bastante interessante:

[...] A partir da década de 1970, surgiu uma nova figura: o capitalismo começou a abandonar a estrutura fordista hierárquica do processo de produção e, em seu lugar, desenvolveu uma forma de organização em rede baseada na iniciativa do empregado e na autonomia no local de trabalho. Em vez de uma cadeia de comando centralizada e hierárquica, hoje temos redes com miríades de participantes nos quais o trabalho é organizado na forma de equipes ou projetos e a atenção geral dos trabalhadores está voltada para a satisfação do cliente, graças à visão de seus líderes. Dessa maneira, o capitalismo foi transformado e legitimado como projeto igualitário: ao acentuar a interação autopoiética e a auto-organização espontânea, acabou usurpando da extrema esquerda autopoiética a retórica da autogestão dos trabalhadores, transformando o lema anticapitalista em capitalista (2011, p. 53).

A RP brasileira, discutida até aqui, foi concebida e alinhada aos ideais esquerdistas, mas o caminho trilhado nos mostra, hoje, que está contida na hegemonia neoliberal e que sua forma de organização atual amplia mercados e prega a lógica do individuo liberal - aquele auto responsável pelo seu sucesso e pelo seu fracasso, que acredita no esforço individual e desconsidera o contexto social de exploração -, tanto para usuários, quanto para trabalhadores. Da mesma forma as "redes" importadas para essa composição refletem a citação de Zizek, ou seja, a transformação de um lema anticapitalista em capitalista, assim como a própria RP.

O autor ainda faz a comparação desse sistema em redes com as novas configurações do cérebro na neurociência, deslocando o "Eu" cartesiano, centralizador da vida psíquica, para a interação múltipla, como um eco das mudanças sociais naturalizadas no cérebro (Zizek, 2011). Assim, tudo se resume às redes, seja pela explicação neurocientífica para o dito "transtorno mental", seja a forma de trabalhar dos serviços substitutivos, seja a composição desses serviços no território, mas sempre em consonância com o sistema econômico.

Quando tratamos da eficiência das equipes multiprofissionais e das redes na saúde mental, verificamos trabalhadores relatando suas experiências em acompanhar o sofrimento psíquico em quadros de vulnerabilidade social provocados por falta de emprego, alimentos, habitação, entre outros, em suma, pela condição de vida imposta às pessoas em situação de extrema pobreza, produto do próprio sistema econômico. Além do sofrimento psíquico, o trabalhador também se vê diante da responsabilidade de conseguir o essencial concreto para a vida, assumindo individualmente essa responsabilidade, embora articulado em rede. Nessas condições, cabe ao trabalhador constantemente remendar o capitalismo para que seus rasgos não produzam a revolta.

Nesse sentido, podemos trazer o conceito de ideologia, na medida em que uma suposta prática esquerdista e psicossocial, camufla ações neoliberais e manicomiais. Na visão de Chauí (2014):

[...] a função da ideologia é ocultar a divisão social das classes, a exploração econômica, a dominação política e a exclusão cultural, oferecendo aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, fundada em referenciais identificadores, como Humanidade, a Liberdade, a Justiça, a Igualdade, a Nação. Como salienta Marx, o primeiro a analisar o fenômeno ideológico, a ideologia é a difusão para o todo da sociedade das ideias e dos valores da classe dominante como se tais ideias e valores fossem universais e aceitos como tais por todas as classes (Chaui, 2014, p. 53).

Na redução da discussão do campo da Saúde Mental, as ações centradas no indivíduo trabalhador em equipe multiprofissional são a camuflagem de uma ideologia capitalista neoliberal que deposita no indivíduo o sucesso. Assim como aponta Chaui, a ideologia está fortemente fundamentada nos referenciais de liberdade, justiça e igualdade. Boa parte dos trabalhadores de Saúde Mental, por sua vez, alienado do panorama estrutural, acredita que sua função é salvar vidas afetadas pelo próprio sistema, assumindo irrestritamente toda a responsabilidade de um panorama econômico social devastador.

 

Por uma crítica da Reforma Psiquiátrica

Para aprofundar nossas reflexões acerca da RP na contemporaneidade faz com que nos aprofundemos no pensamento sobre o sistema capitalista e seu Modo de Produção, uma vez que a medicina responde à demanda da matriz econômica (Clavreul, 1983) e a RP sob forte influência da ciência médica não foge à regra. Embora contrária à existência dos aparatos arquitetônicos manicomiais, como uma ação de oposição à hegemonia, nossa análise nos dá condições de contestar tal premissa, uma vez que a psiquiatria hegemônica hoje é difusa na sociedade e é baseada no diagnóstico e medicação, a Psiquiatria DSM. A Psiquiatria DSM conformada à intervenção do Capital, representado pela grande indústria do cuidado, a indústria farmacoquímica, e da produção de tecnologia para exames, principalmente de imagens, transformou a Reforma Psiquiátrica em um campo de expansão do Capital. Não interessa ao nosso sistema econômico expansivo manter a medicina mental, tão lucrativa, restrita no interior dos muros dos hospitais, quanto mais entranhada na sociedade, mais cumpre o objetivo do mercado.

Lembremos que inicialmente a Economia Crítica da saúde foi base para o movimento da Reforma Sanitária (Arouca, 2003) e que ela influenciou a RP, contudo suas bases logo deram lugar à reflexão técnico-assistencial, sobre o acesso aos serviços de saúde mental e sua constituição, discussão pertinente no momento de abertura de novos serviços, mas que reduziu as perspectivas críticas da própria SM, uma vez que se priorizou o tema em detrimento de outros. Em resumo, a ampla discussão sobre o modelo de sociedade e as formas de organização social para modificá-lo, foi substituído pela dimensão técnico-assistencial, deixamos de lado a perspectiva de transformação social para falar de acesso aos serviços.

A centralidade da discussão da ampliação de CAPS, mas focado na Psiquiatria DSM, capilarizou ainda mais a medicalização pela sociedade e nos confrontou com a crítica de Illich sobre a iatrogenia2, para além da cronificação do HP, uma vez que os medicamentos, os hospitais e os médicos podem ser patogênicos (Illich, 1975).

Se no desenvolvimento da medicina podemos perceber a intrínseca ligação com a reprodução do Modo Capitalista de Produção, quando serve à manutenção da força de trabalho e produção de mais-valia, na psiquiatria essa lógica convive com a constante reforma da psiquiatria. Nas décadas em que o Manicômio foi absoluto e nos anos posteriores em que vivemos sob sua influência o trabalhador acometido pelo sofrimento psíquico, mas para o qual a medicina já não via esperança de retorno à produção, é encaminhado ao Manicômio e recebe a medicação como contenção. Para o trabalhador que a medicina vê possibilidades de retorno à produção, destina-se a reabilitação, tendo como foco a medicação.

A Psiquiatria Democrática ainda influencia fortemente a Reforma Psiquiátrica, mas se faz presente em defesas pontuais e através da repetição descontextualizada do slogan gramsciano "contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática". Das experiências de Gorizia e Trieste ressaltam-se as ações, ficando a reflexão recusada, a centralidade da obra basagliana no país acontece pela prática das experiências. Se cabe ao gestor pensar e ao trabalhador executar, a experiência italiana transformou-se em uma espécie de "receita de bolo", como importação de conceitos a serem aplicados, justamente o que Basaglia (1979) tentou evitar, explicitando tal posição em suas falas quando esteve em conferências no Brasil. Busca-se que os usuários dos serviços substitutivos de Saúde Mental participem de Assembleias, oficinas terapêuticas, ocupem a cidade e exerçam sua cidadania, mas vestidos de uma pretensa autonomia prescrita. Aqui chamamos a atenção para esta última definição, uma vez que expressa a contradição de uma autonomia alienada, na medida em que vem prescrita pelos profissionais da Saúde, na melhor definição de um discurso de mestria. Ou seja, se pretendemos que a pessoa seja autônoma, não podemos alcançar esse objetivo a partir da imposição de um Mestre.

Se por um lado o pensar e o executar permanecem cindidos, expressando a lógica entre gestor e trabalhador, por outro lado também temos a tutela e a impotência como tradução da relação entre o trabalhador e o usuário dos serviços de Saúde Mental. Ainda sob a influência das "receitas" italianas as experiências exitosas dizem sobre a abertura de associações de usuários pelos próprios trabalhadores.

 

Reforma Psiquiátrica contemporânea

A RP que ocorreu no país, aquela amplamente divulgada e investida, foi estritamente técnica, debruçando-se no funcionamento da rede, dos serviços e da gestão. Perdeu-se a ética e a natureza política. Dentro do discurso da técnica uma ou outra é escolhida diante de sua eficácia, ao mesmo tempo que abre espaço para sua contestação diante da inovação tecnológica, seara dominada pelo Modo Capitalista de Produção e o Discurso Universitário3.

Quando se está dentro da esfera da técnica, pretensamente neutra, o debate e imposição de uma nova técnica ocorre pela ciência hegemônica. Não é de desconhecimento que no Campo da Saúde Mental a psiquiatria conseguiu manter seu lugar de hegemonia, embora a RP inicial estivesse em um caminho diferente. Cada vez mais a psiquiatria, baseada em sua produção capitalista, apresentou inovações, oficializadas em seus manuais de diagnóstico-medicação. A Saúde Mental buscando prevalecer através da técnica não conseguiria vencer o aparato tecnológico hegemônico.

Neste caso, não estamos debatendo modelos societários, incluindo suas éticas, mas organizando um debate dentro da Pequena Política. Coutinho (2010) forja o termo Hegemonia da Pequena Política, termo derivado do conceito gramsciano Pequena Política para explicar a maneira como se dá a hegemonia no neoliberalismo:

A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). Portanto, é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política (GRAMSCI, 1999, p. 21 apud COUTINHO, 2010, p. 29)

A pequena política estaria ligada às questões parciais e cotidianas de uma estrutura já estabelecida, dentro de um mesmo grupo, enquanto a grande política estaria vinculada às questões da luta hegemônica e fundação de novos Estados. Reduzir as questões da grande política à pequena política seria uma das questões principais da grande política, para continuar como política hegemônica.

A luta hegemônica hoje não está entre modelos de sociedade, mas restringida a questões da sociedade capitalista apenas, voltada para algo diferente das Ideologias Orgânicas, aquelas que expressam de forma bem definidas uma concepção de mundo, a ideologia vigente é borrada, há falta de definição, levando à defesa do sistema econômico sem sabê-lo. Estamos no registro de concepções que proporcionam o desenvolvimento do Capital, através do enraizamento no senso comum de concepções de mundo, muitas vezes contraditórias, mas que orientam o pensamento das massas. Dessa forma, mesmo que a população não defenda diretamente o capitalismo, a concepção de mundo que se tem garante seu desenvolvimento e isso fica claro quando pensamos no individualismo, no privatismo e na naturalização das relações sociais (COUTINHO, 2010).

A partir desta reflexão, consideramos que a RP se manteve no marco hegemônico, centralizada na psiquiatria, utilizando como uma das principais ferramentas a medicalização, que por um lado proporcionou a abertura dos Manicômios, mas também a conquista de toda a sociedade como mercado consumidor de drogas psicofarmacêuticas. De outro lado, a dimensão gerencialista marcada pelo capitalismo de herança neoclássica moldou o foco de produção bibliográfica e a centralidade das discussões no Campo4, "escanteando" produções destoantes, entre elas a questão da ética da Atenção Psicossocial.

Ou seja, se durante um período no Campo da Saúde Mental estivemos observando uma possível guerra entre dois polos, pouco tempo depois a prevalência da psiquiatria hegemônica, marcada pelo neoliberalismo, nos deu indícios do vencedor, no entanto permanecemos como se estivéssemos ainda em guerra.

Se estamos todos dentro do mesmo marco hegemônico, torna-se possível o questionamento de um lado ou outro, sem que haja Processo de Estratégia pela Hegemonia. Na luta por hegemonia há dois polos opostos, com éticas bem distintas em oposição. A partir do momento que essas éticas são perdidas e estamos dentro de uma mesma esfera referente à técnica, não há polo oposto, apenas a disputa de qual a melhor técnica. Daí a possibilidade de que após 40 anos de Reforma Psiquiátrica uma Nota Técnica seja percebida pelo Campo como a total desconstrução dos avanços conseguidos.

Os pensadores neoclássicos na Saúde tinham a perspectiva de mobilização de recursos, contudo esses autores restringiam sua análise à indústria do cuidado em saúde, lembrando que é nesse período que vemos o grande desenvolvimento dos fármacos e equipamentos médicos. Esses teóricos constroem argumentos que servem ao capital e à indústria da saúde, principalmente, para financiamento dessa área pelo Estado (Braga & Paula, 1981).

A saúde pública é uma empresa comercial. A este título ela está sujeita às leis ordinárias do comércio, pode ser estimada segundo os critérios comerciais e comparada a outros aspectos da atividade econômica. As cidades, os departamentos, os Estados e a nação não possuem fundos ilimitados para os diversos setores de investimento. A utilização destes fundos será necessariamente decidida em função dos melhores dividendos. (Polack, J. C, 1972, p. 37 apud Braga & Paula, 1981)

As limitações da análise neoclássica são apontadas em: 1) saúde é vista como capacidade de desempenho das funções produtivas; 2) saúde não é vista como determinada pela estrutura socioeconômica; 3) melhoria da saúde é vista como função direta da estrutura de atenção à saúde; 4) não se percebe o movimento do Capital; 5) a terapia médica é usada para mascarar os conflitos capitalistas (Braga & Paula, 1981).

Quando os economistas neoclássicos se voltam para análise dos serviços de Atenção à saúde suas perspectivas se resumem a: 1) redução das unidades em sua operacionalização administrativa; 2) aplicação de conceitos econômicos como risco e incerteza à saúde; 3) introduzem o conceito de Capital Humano, a partir de 1950, ou seja, a qualidade do trabalhador definida como investimento, através do acesso à educação, treinamento e saúde (Braga & Paula, 1981).

Nessa perspectiva da racionalização econômica aplicada à saúde, um dos critérios utilizados pelos neoclássicos também se refere aos gastos excessivos ou otimização dos recursos, critério amplamente utilizado nas internações, inclusive manicomiais. Uma vez a medicina caracterizada pela racionalização neoclássica da economia, a questão econômica de financiamento torna-se relevante para pensar a própria constituição da saúde. Trata-se de um viés que coloca em primeiro plano a preocupação microeconômica e administrativa, restringindo-se à análise da indústria da saúde e reduzindo a saúde às dimensões econômicas (Braga & Paula, 1981). Aqui, precisamos estar atentos para identificar que as características neoclássicas são hegemônicas na Saúde Coletiva, e que a Saúde Mental não escapa a ela.

Entre as críticas ao pensamento neoclássico destacamos a saúde como o simples acesso aos serviços de saúde e a afirmação de que quanto mais serviços, mais saúde. A crítica é feita através da reflexão de que somente o acesso em saúde, sem a qualificação crítica desse acesso, pode ser ineficaz, como também pode trazer prejuízos à pessoa, além de que níveis de saúde podem ser inversamente proporcionais à ampliação da rede de serviços (BRAGA; PAULA, 1981). Illich (1975) é um dos autores que traz essa perspectiva crítica com relação ao pensamento reducionista apresentado pelos autores neoclássicos, argumentando como a medicina torna o sujeito dependente e incapaz de cuidar de si próprio, acreditando que não é possível lidar com qualquer intercorrência em sua saúde que não seja através da medicina moderna.

Neste primeiro tópico de pensamento resumimos assim: 1) luta pela hegemonia entre Atenção Psicossocial e polo hegemônico (psiquiatria hegemônica definida político-economicamente pelo neoliberalismo); 2) predominância do polo hegemônico; 3) discussões da RP centralizadas em administração, gestão e acesso (pautas neoclássicas da economia); 4) escanteamento de temas não hegemônicos, como a ética da Atenção Psicossocial.

Quando se busca defender um tema a partir da técnica, se busca a neutralidade política.

Navarro (1984) destaca que a reprodução do projeto neoliberal, na saúde é protagonizada pela OMS com programas de controle populacional, transferências de tecnologias, autocuidado e resiliência, e parcerias apresentadas como solução para os amplos problemas ligados à saúde e à pobreza, que se colocam como propostas técnico-emancipatórias não-ideológicas e em nome dos Direitos Humanos. A Epicentria do CSMC (Campo da Saúde Mental Coletiva) tende a reforçar o discurso da neutralidade técnica e despolitiza estas interferências, reforçando seu lugar de discussão para o técnico; e naturalizando a entrada de interesses estranhos à Reforma, na formulação das políticas para o setor. (Leão, 2018, p. 191)

Navarro decifra os reais interesses na Declaração de Alma Ata quando se estabelece a expansão do acesso em saúde, através da tecnologia e administração, colocando a esfera técnica como possível de resolver todos os problemas dos países periféricos, a Declaração não menciona e não busca a reflexão crítica sobre as consequências das relações de poder baseadas na exploração capitalista, pois já se revestiu da neutralidade científica (Navarro, 1984).

No entanto, quando pensamos sobre as éticas, claramente conseguimos distinguir polos opostos, o que não acontece quando estamos pensando em técnica. A partir da ética, torna-se impossível manter dentro de uma mesma política pública os equipamentos manicomiais e os equipamentos de Atenção Psicossocial.

 

Dispositivos

Giorgio Agambem (2009) para falar de Dispositivo retoma o termo Oikonomia, em sua origem teológica. Nos primeiros séculos da Igreja a Oikonomia estava ligada a organização da casa, oikos, fazendo referência à Trindade: Deus como ser era uno, mas na organização de sua casa, vida e do mundo que criou era Trindade (pai, filho e espírito). Na tentativa de não fazer referência ao politeísmo no interior do cristianismo que o termo Oikonomia foi introduzido na teologia, ou seja, para explicar o mistério da Trindade o termo deveria demonstrar como Deus era um, sendo três. No entanto, foi também por essa inclusão que a cisão entre ser e ação, ontologia e práxis foi evidenciada, na medida em que a Oikonomia está distinta do Deus uno, ela, "a ação (...) não tem nenhum fundamento no ser" (Agambem, 2009, p. 37).

O termo Oikonomia funde-se à noção de providência e passa a significar 'governo da salvação', sendo traduzido por Dispositivo nos textos dos padres latinos. Dispositivo, então, remete ao que divide e, ao mesmo tempo, "articula em Deus ser e práxis, a natureza ou essência e a operação por meio da qual ele administra e governa o mundo das criaturas" (Agambem, 2009, p. 38).

Mais que isso, Dispositivo "nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito" (Agambem, 2009, p. 38).

Nesta breve explicação de Agambem do termo Dispositivo, através de uma genealogia teológica da Economia, encontramos a complexidade do termo: expõe a divisão/articulação entre práxis e ser, ao mesmo tempo que dá nome a uma atividade que não é ontológica e, justamente por isso, produz um sujeito.

Costa-Rosa em sua obra frequentemente define dois tipos de subjetivação: a serializada e a singularizada. Cada tipo de subjetividade está ligado a um Modo de Produção e um paradigma. No caso da Saúde Mental, a subjetividade serializada é o produto do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador, aplicado ao Manicômio e estruturas análogas de funcionamento (asilos, Comunidades Terapêuticas, Hospitais Psiquiátricos e até mesmo serviços que inicialmente tinham pretensão substitutiva), que encontra no Modo Capitalista de Produção as ferramentas para organizar o trabalho. Já a subjetividade singularizada é produto do Paradigma Psicossocial, aplicado aos serviços substitutos do modelo manicomial, que encontra no Modo Cooperado de Produção a materialidade de organizar-se, este paradigma está ligado à Ética da Atenção Psicossocial.

Costa-Rosa não fica centrado na crítica ao modelo manicomial, embora seja parte fundamental para entender sua obra, sua centralidade está na proposição de meios para possibilitar a produção de subjetividades singularizadas como produto da Saúde Mental. A vocação de Costa-Rosa está na subversão. Aí aparece o Dispositivo Intercessor.

Que profissional poderia provocar a subversão pretendida por Costa-Cosa na Saúde Mental? Seria aquele avisado pela psicanálise, e não necessariamente psicanalista, mas que compreenda os processos psíquicos e leve em consideração a divisão consciente/inconsciente, promovendo o caminho para responsabilização do sujeito pelo seu sintoma, e por isso, não considerando o sujeito como um "paciente" que espera a intervenção alheia, ou objetos sobre os quais o saber médico vem intervir. Ao mesmo tempo, esse trabalhador também estaria avisado da composição político-econômica do mundo, sabendo o que se produz a partir dessa realidade: o Modo Capitalista de Produção com sua divisão social do trabalho define quem pensa e quem executa e desse modo aliena o trabalhador e condiciona seu produto ao mesmo processo. Nesse modo não é possível se produzir subjetividade singularizada e nosso exemplo mais radical é o próprio Manicômio, uma vez que funciona organizacionalmente muito mais parecido com uma fábrica, com toda a hierarquia e sua linha de produção, executada pela enfermagem fordista. A produção de subjetividade singularizada requer o Modo Cooperado de Produção e pessoas que estejam dispostas a ensaiar esse cotidiano. Ainda nesse sentido, a não divisão social do trabalho requer a práxis, ou seja a articulação entre saber e prática encarnados nos Trabalhadores-Intercessores. Serão esses trabalhadores que também levarão em conta a realidade institucional, procurando brechas para levar a subversão da Ética Psicossocial.

Podemos pensar que a palavra 'Dispositivo' também está ligada à palavra 'Disposição', e a disposição necessária aos Trabalhadores-Intercessores só pode estar ligada ao desejo no sentido psicanalítico, caso contrário, diante da grande tarefa logo se desistirá.

Aqui retomamos a fala de Costa-Rosa diante da pergunta se nunca havia sentido vontade de desistir da Saúde Mental, levando em consideração seus entraves e complexidade, ao qual respondeu: "para quem me conhece, basta ver minha vida e verificará que desistir para mim nunca foi uma possibilidade".

 

Para concluir

Voltando a nossa pergunta inicial feita, via de regra, por profissionais representantes da psiquiatria: "o manicômio foi produto do mau uso do HP, ninguém defende as atrocidades que ocorreram naquelas instituições, mas não podemos extinguir o HP por conta dessa experiência, pois da mesma forma temos visto hoje em dia vários CAPS funcionando com condutas manicomiais, por este mau uso também defenderemos a extinção do CAPS?"

Depois de desenvolvido nosso tema neste artigo, tendo como norte a ética da Atenção Psicossocial podemos responder: os dispositivos de Saúde Mental são incompatíveis com a lógica manicomial e alienante do HP. Enquanto o HP está organizado pela lógica do Modo Capitalista de Produção, funcionando muito mais como uma fábrica e produzindo subjetividade serializada (alienação dos internos e dos trabalhadores), os serviços de Saúde Mental como CAPS, Residências Terapêuticas e Centros de Convivência devem estar pautados pelo trabalho cooperado, em um modo de organização que tende à auto-gestão, produzindo subjetividade singularizada.

Ressaltamos que a orientação da Saúde Mental nos moldes da Atenção Psicossocial, é, primeiramente, ética e não técnica. Depende de como ela esteja constituída, uma política pública baseada na técnica pode ser contraposta com outra técnica, o que não acontece com uma política baseada na ética.

Notemos que toda a repercussão posterior à divulgação da Nota Técnica número 11 de 2019, do Ministério da Saúde, que ratificou a "Nova Política de Saúde Mental" pautou o fim da Reforma Psiquiátrica, desde as redes sociais, as notícias da mídia e notas oficiais de instituições. O teor da nota acusa a RP de desassistência e pontua a técnica psiquiátrica como mais eficiente, justamente o discurso da RP até então: técnica e acesso. Ou seja, mesmo depois de mais de trinta anos de luta por outro modelo de Saúde Mental que não o excludente, uma Nota Técnica teve o impacto profundo de dissolução de uma política pública. Ao rebater a nota técnica na mesma esfera técnica perde-se o caráter da própria Atenção Psicossocial como subversiva, mantendo-se dentro do que Gramsci chamou de Pequena Política. Não há, de fato, proposta de mudança de modelo estrutural nesta lógica.

Rebatendo técnica com técnica, na medida que tanto a psiquiatria hegemônica (agora no governo) quanto o discurso vigente da Reforma Psiquiátrica estão debatendo sobre qual a melhor técnica, perdemos todo o horizonte ético possível para o Modo Psicossocial. E é neste contexto que chegamos ao absurdo de ler que "o Ministério da Saúde não considera mais Serviços como sendo substitutos de outros, não fomentando o fechamento de unidades de qualquer natureza. A rede deve ser harmônica e complementar" (Ministério da Saúde, 2019, p. 4, grifo nosso).

Durante as décadas de luta da RP, com exceção de seu início, privilegiou-se a discussão sobre a técnica e o acesso, em detrimento da ética e modelo societário. Justamente por essa constituição do Campo, foi possível de chegar à Nota Técnica 11/2019 como símbolo da dissolução desta política substitutiva, ou seja, entendemos esta nota mais como um sintoma da forma de constituição da RP.

Abílio da Costa-Rosa foi um dos poucos autores da Saúde Mental que em sua obra privilegiou a ética e uma proposta concreta para o avanço do Modo Psicossocial: a formação do Dispositivo Intercessor. Neste Dispositivo, é necessário o trabalhador precavido pela psicanálise, análise institucional, materialismo histórico e filosofia da diferença. Colocar em pauta o sujeito do sofrimento, a subversão organizacional e o Modo de Produção capitalista, fazer a leitura dialética da realidade, engajar-se pessoalmente na clínica. Destaco aqui: psicanálise para reconhecimento do sujeito, materialismo histórico para análise da realidade político-econômica e análise institucional para compreensão dos equipamentos de Saúde.

 

Referências

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Recebido em: 13/09/2019
Aprovado em: 15/11/2019

 

 

1 No Brasil a Reforma Psiquiátrica conseguiu transformar os leitos de moradores (que não foram fechados) em leitos de curta internação, que geralmente dura cerca de quinze dias. Para os casos de pessoas em sofrimento psíquico intenso, conhecidos como "crises", destina-se a internação preferencialmente no CAPS III ou leito psiquiátrico em Hospital Geral, mas que muitos municípios não dispõem. Na ausência deles, recorre-se ao leito no Hospital Psiquiátrico. No entanto, a psiquiatria encontrou uma forma de burlar esse protocolo e permanecer com alguns leitos de longa duração, são os chamados "leitos neurológicos", quando o comprometimento psíquico é intenso e supostamente ligados a fatores neurológicos, entende-se que os sujeitos não possuem condições de viver em sociedade. Mas o que não é evidente no discurso psiquiátrico é que as pessoas que utilizam desses leitos são aquelas que entraram muito novas no manicômio, muitas sem qualquer problema psíquico inicialmente, quando normalmente despejavam pessoas indesejadas socialmente nas instituições asilares. Ou seja, os danos neurológicos foram causados pelos inúmeros anos de institucionalização no HP e são, para essas pessoas mais acometidas pelos horrores manicomiais, que reservamos os leitos neurológicos, um ciclo sem fim.
2 "O termo técnico que qualifica a nova epidemia de doenças provocadas pela medicina, iatrogênese, é composto das palavras gregas iatros (médico) e genesis (origem). Em sentido estrito, uma doença iatrogênica é a que não existiria se o tratamento aplicado não fosse o que as regras da profissão recomendam" (ILLICH, 1975, p. 23).
3 O Discurso da Universidade aqui é definido como saber expropriado do outro, que ganha ares de neutralidade e a certeza institucional, mas que não abre espaço para o saber novo. Trata-se da imposição de uma verdade ao sujeito.
4 "[...] Saúde Coletiva campo científico, onde se produzem saberes e conhecimentos acerca do objeto 'saúde' e onde operam distintas disciplinas que o contemplam sob vários ângulos; e como âmbito de práticas, onde se realizam ações em diferentes organizações e instituições por diversos agentes (especializados ou não) dentro e fora do espaço convencionalmente reconhecido como 'setor saúde'" (PAIM, 1998, p. 308).

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