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Revista de Psicologia da UNESP
versión On-line ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.19 no.1 Assis ene./jun. 2020
https://doi.org/10.5935/1984-9044.20200003
ARTIGOS
Sobre processos de pesquisa como criação e cuidado de si ou sobre um processo de pesquisa entre arte e clínica*
On research procedures as creation and you care (or on a search process between art and clinical)
Bruna Martins Reis
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
RESUMO
O presente artigo expõe algumas nuances de um processo de pesquisa realizado na interface entre a arte e a clínica, cultivado entre dança e loucura, que tem como efeitos processos de subjetivação e performatividades. Neste texto, que é parte de uma fala pública realizada na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Assis, alguns movimentos desse trajeto são explicitados como um modo de experienciar potencialidades criadoras, a partir da imersão num campo de pesquisa movido por afetos vitais. É com a apreensão de alguns desses afetos que uma perspectiva de cuidado de si pode ser vislumbrada, em uma elaboração que expõe certas práticas de pesquisa como possibilidade de produção de vida.
Palavras-chave: dança; clínica; loucura; processo criativo; performatividade.
ABSTRACT
This article exposes some nuances of a research process carried out at the interface between art and clinic. Research that was cultivated between dance and madness and which has the effects of subjectivation and performativity processes. In this text, which is part of a public speech held at the Faculty of Sciences and Letters of UNESP - Assis, some movements of this path are explicit, as a way to experience creative potentialities, from the immersion in a research field moved by vital affects. With the apprehension of some of these affections, a self-care perspective can be glimpsed in an elaboration that exposes certain research practices as a possibility of producing life.
Key words: dance; clinical; madness; creative process; performativity.
*
Salão de atos, Faculdade de ciências e letras, UNESP - Assis, São Paulo, Brasil, latitude 22º Sul, longitude 50º oeste. Quatorze de junho de 2019, sexta-feira, dia de greve geral no país contra uma reforma que deforma, contra cortes que pretendem aniquilar mais que gastos, contra outros abusos e violências do atual (des)governo, 20h15, sentada numa cadeira amarela, olhando para eles e para si.
Ela foi convidada a pensar sobre cuidado de si em tempos de crise. Ela não tem formulações prontas, apenas pistas. Com as mãos úmidas da crise que o convite lhe provoca, tateia seus feitos e desfeitos como possibilidades de elaboração, desencantando o medo das palavras novas. Ela se mexe na cadeira sem conforto, a passagem do tempo na pele, nas paredes e no piso de madeira. Num salão de muitos atos, pequeno e enormemente significativo. Quantas travessias até ali, memórias reinventadas, afetos e mais uma vez: falar do vivido e suas dobras. Atrás dela ninguém solta a mão de ninguém, no momento em que digita faz exatos 542 dias que foi morta, ninguém conta quem mandou matá-la. Ela está presente. Chora no canto do olho esquerdo, ao norte a Amazônia queima. Um colapso ambiental e seres dissociados em frente à tela? Subversivamente prefere a conversa. Com olhos e ouvidos abertos, convoca outros diagnósticos do presente. Retribui a provocação e propõe uma ação1 conjunta para desestabilizar o esperado.
Ela pensa na palavra CRISE e é só daí que pode começar.
Ela lê
CRISE: do latim crĭsis.is: momento de mudança súbita, crise; do grego krísis.eōs: ação ou faculdade de distinguir, decisão, momento difícil.
CUIDADO: do latim cogitātus,a,um: meditado, pensado, refletido.
Refletir sobre si em momento de mudança ou pensar sobre o si e sobre as mudanças súbitas que se apresentam, ou, ainda, refletir consigo em momentos súbitos. Meditar sobre os súbitos. Distinguir os inesperados. Decidir os nomes que acolham a crise.
Ela aceita o convite e lembra que "toda ideia de princípio deve ser considerada suspeita" (Passos, 2015, p. 14).
Há exatos 13 anos e 6 meses, sentada entre outros numa antiga sala de cinema para a cerimônia de sua colação de grau, nesta mesma cidade, nesta mesma univerCidade. Sem beca, vestido vintage de bolinhas e sandália de couro sem salto. Sem maquiagem e ainda sem rumo certo para aquilo que deveria ser seu futuro profissional. Atordoada de euforia, medo, despedidas e vontades.
Vontades de danças, vontades de liberdade, vontades de autonomia, vontades de outros espaços para criar e de outros contornos. Foi assim que deixou a cidade de Assis em 2006, misto de "semiárido paulista" e "terra do nunca", onde viveu durante os cinco anos de sua graduação em psicologia na UNESP.
Grávida de muitos mundos, buscando um sem nome de coisas, nutrida por forças cultivadas entre quedas e saltos, entre conversas e brigas, entre filosofia e saúde mental, entre loucura e circo, entre dança e psicologia, entre amigos e o bosque, entre descobertas e decepções.
Reconhece que busca coisas não convencionais, híbridas desde o gérmen. Intui alguns riscos, mas acredita numa coragem que viu crescer junto com seus cabelos, nestas terras.
E então, crise.
Como seguir trabalhando o hibridismo tão valorizado na bolha Assis?
Deste ponto e do encontro com o "mundo lá fora" é que essa conversAção parte.
Há aqui, também, um convite a acolher a proposta desta fala-partilha como possibilidade de explicitar certos estados experimentados ao longo de um trajeto de formação e trabalho, que vem sendo elaborado nesses 13 anos e há pouco ganha outros contornos-palavras no processo de escrita de uma tese de doutorado2.
Tese que se propôs a traçar a cartografia de uma prática de dança desenvolvida com usuários de um CAPS da cidade de Campinas, mas que acaba expondo outros estados e afetos que pediam línguas; territórios existenciais que se criaram evidenciando o processo de pesquisa como processo criativo que expõe, antes de qualquer coisa, a vida.
Essa conversAção é, então, sobre quando uma tese tem contornos clínicos, quando uma escrita dá passagem à crise e quando falar de um objeto de estudo é também falar de si, com tudo aquilo que nos compõe. É sobre avizinhar-se demais da loucura, aprender outros idiomas e antenas perceptivas. É sobre criar corpo com.
É sobre furos e desabamentos, sobre derivas, e sobre perder-se para encontrar abrigo.
É sobre também fracassar.
É sobre um processo criativo que extrapola uma pesquisa e coloca em primeiro plano aquilo que pulsa como potência e desconforto, como alegria e desespero, como certeza sem forma, como urgência de recriação da própria vida. Processo este que abriga vulnerabilidades, exigindo escuta intensiva do ritmo dos afetos sem nome que rebentam inesperados, desestabilizando o previsto, o conhecido.
E é essa escuta o que quero afirmar como possibilidade de resistência e de invenção de outras práticas de si, outras relações com o pesquisar e outras paisagens existenciais. Sem as certezas dos formatos estabelecidos, outros movimentos nos convocam a conceber processos de pesquisa numa perspectiva que assuma, desde os poros, o trabalho como território existencial, ancorado no paradigma ético-estético-político.
Penso então nesses espaços-tempos-imersões como trabalhos sobre si, nos quais nos colocamos em função de um processo que, antes de ser pesquisa, prática ou investigação, se configura como experimentação de si. Dos vácuos, das impermanências, dos silêncios que nos compõem e nos transformam.
No percurso em questão, meu vivido - e único sobre o qual posso dizer com honestidade -, o que se configura é uma cartografia que dá alguma tateabilidade às forças que se atualizam com novos povoamentos. Nos termos de Deleuze
Somos desertos povoados de tribos, de faunas e floras. Passamos nosso tempo arrumando essas tribos, dispô-las de outro modo, a eliminar algumas delas, a fazer prosperar outras. E todos esses povoados, todas essas multidões não impedem o deserto que é nossa própria ascese; ao contrário, elas o habitam, passam por ele, sobre ele. (...) O deserto, a experimentação sobre si mesmo é nossa única identidade. Nossa única chance para todas as combinações que nos habitam. (Deleuze; Parnet, 1998, p. 19)
Sobre tais povoamentos, ainda e sempre em mutação, gostaria de falar com o corpo das atmosferas surgidas. E se falo de um vivido ainda em estado de decifração, é necessário elencar as parcerias que deram condições de acolher as movências instauradas. Parcerias que são, também, frutos de uma escuta afinada na frequência do desejo.
Não é de qualquer modo que se cultiva um campo fértil para a experimentação de si; é necessário observar os relevos, mapear as circunstâncias e, sobretudo, farejar lugares fecundos em cada canto de nós, a cada dia, a cada hora, a cada mudança de estação. Fecundos, muitas vezes, por estarem alinhados à ordem das coisas que nos convidam por seus desvios do status quo, da passividade das paixões tristes, da ordem das coisas impostas e sobrepostas.
E se nesses desvios tomamos a vida como potência de criação e diferenciação, quem vem junto?
Como reconhecemos a força dos agenciamentos coletivos?
Quem convocamos como parceiros?
Como nos dirá Rolnik (2014), em que territórios geográficos e subjetivos nos colocamos à espreita dos gérmens de mundos que pedem para rebentar?
Somente um corpo, ou cada corpo, pode reconhecer onde estão seus abrigos, quais parcerias lhe proporcionam um aumento qualitativo de potência, no sentido que nos traz Espinoza (2009). Cada corpo-singularidade é que pode precisar que tipos de encontros lhe ampliam a capacidade de escuta da realidade como campo de forças.
Nas palavras de Rolnik (2014), é pela sensação e por aquilo que atravessa os corpos nas relações com tudo o que se passa no mundo, na esfera individual ou coletiva, que apreendemos tal realidade. Sensação que não é representável e que muda a textura da sensibilidade, transformando-a. Convocando à criação para dar outros contornos às formas corpomundo, para isso que se está apreendendo na experiência do presente.
E se é de um trajeto singular que posso falar, quero afirmar que trago comigo algumas parcerias e implicações que permitiram vislumbrar certos registros de força nesse percurso chamado vida. É com algumas delas que segui criando um modo de pesquisar, e é com ela que seguiremos nessa conversAção, que atualiza e recria memórias intensivas e, entre outras coisas, aborda uma cartografia intitulada: "Corpo fronteira: dança e loucura em estados de criação"3.
Disparadores - lugares de afeto e implicação
Uma dança concebida como desassujeitamento, um estado chamado Loucura e uma escrita sustentada como performatividade.
A dança abordada neste trabalho é concebida como experiência disparadora de processos de subjetivação que podem desencadear a criação de outros planos de existência. Danças e processos dançantes inabituais, que transbordam lógicas normativas de corpos "sãos", movimentos "belos", códigos aceitos e espaços consensuais do fazer artístico.
Dança como criação que extrapola o âmbito dos movimentos e gestos, criando também acontecimentos, subjetividades, modos composicionais, vontades, mundos. Numa perspectiva da arte relacionada à experiência da invenção de si, realidade a ser vivida e experimentada. Arte do vivido.
Tomo aqui uma ideia de criação ligada antes de tudo a um experienciar-se, no qual surgem outros corpos e vocabulários para expressar sensações. Cria-se, a partir dos confrontos com os limites do estar sendo, dos confrontos com a experiência insistente do desfazer-se, dos confrontos com a urgência de tornar-se o que somos.
Para tatear tais esferas de criação, foram necessárias certas estratégias de trânsito entre falar de fora e de dentro de uma instituição de saúde mental, entre dançar, performar, escrever e sustentar os desassossegos como disparadores criadores. Com os registros de já ter trabalhado como psicóloga em CAPS, de já ter vivido na pele certas durezas, de me saber também perdida às vezes em meio ao sofrimento alheio. E ao mesmo tempo, abrindo a atenção a um outro modo de acompanhar, através do movimento, alguns corpos carregados de marcas da "loucura". Um dançar junto.
Olho para as singularidades desses corpos-mundos como territórios existências, processos subjetivos, processos vivos e íntegros como cada ser humano pode ser. Entretanto, provocar movimentos do corpo-loucura requer um exercício de permeabilidade, de encontro com a alteridade no outro e em si mesmo. Desde as marcas rasgadas na carne nesses encontros até a invenção de recursos que possibilitem entradas nos corpos impregnados dos traços de histórias de adoecimento.
E o corpo escancara as qualidades do vivido.
Há na loucura um duplo movimento: por um lado, a potência de uma experiência de mundo como intensidade inventiva e, por outro, uma possibilidade iminente de "desencarnação", um fora humano, um movimento mínimo. E, seja como for, evidenciam-se corporalidades singulares.
Trata-se então de um trabalho que exigiu cumplicidade, escuta, escuta e escuta.
Premissas técnicas foram bem-vindas, mas insuficientes se não transformadas, postas à prova, desinvestidas de expectativas para chegar a outras poéticas, das coisas ínfimas, das trocas intensivas.
O pulsar junto desses ritmos loucos abre outras realidades em meu próprio corpo. Realidades desestabilizadoras. Que reiteram a vida como processo de transformação constante. Ao ponto que, habitando a pesquisa como território de criação subjetiva, descubro-me também enredada pelo universo dessas loucuras como tecido vivo que me constitui, de modo que, em processos intrínsecos às danças vividas no CAPS, outras danças e experimentações cênicas ganharam visibilidade ao longo do percurso de quatro anos do doutorado, reiterando essa prática como Fronteira, na qual propostas artísticas e pedagógicas têm potências e poéticas similares, sendo, portanto, indissociáveis.
Também nesse sentido, as proposições práticas4 foram usadas como modos de alcançar o corpo em seus limites e potencialidades, acordando os sentidos para uma reconexão, um aterramento, ou simplesmente abrindo espaços para experimentar outras possibilidades de mover-se, de sentar, caminhar, respirar, sentir o toque, abrir o olhar e reinventar a própria relação com o corpo.
Para além de uma técnica específica, há uma concepção de corpo, de dança e de relação de mundo que toma a prática somática como saber que alimenta reflexões sobre a pedagogia, a saúde e a estética do corpo e do gesto fora de uma normativa da dança pautada em códigos e modelos definidos. Corroborando a diferença e a singularidade como bases fundamentais de trabalhos corporais.
Importante dizer que neste trabalho os corpos não foram tomados como anormais, mas sim como processos em diferenciação, como cada ser humano é. Entrar em contato com isso é encarar realidades físicas e psíquicas que têm a precariedade como matéria expressiva, lançando-me questões como: o que essas materialidades propõem em meu corpo, como elas atuam em mim?
No corpo ficam impressas marcas e concretudes subjetivas nas formas mais diversas, e os registros corporais estão atrelados aos arranjos coletivos, sociais, políticos, escancarando relações que extrapolam a esfera individual. O corpo é manifesto dos processos vividos. Portanto, sem pensar generalizações ou estados corporais homogêneos, identificatórios da loucura, tentei afirmar a possibilidade de experiências corporais diversas, que aceitam diferentes temporalidades coexistindo em um mesmo corpo.
Nenhuma estratégia foi usada como possibilidade de cura, mas como tentativa de delimitar outras bordas para estabelecer relações com o mundo. Fazendo elos e pontes. Ampliando o olhar para o corpo próprio, para o outro e para o entorno. Num tipo de criação na qual cada um redescobre outros ânimos em si mesmo.
Estratégias de resistência que escavam espaços internos e externos, apostando nas coisas ínfimas como o respirar, o caminhar, o tocar, a escuta dos pulsos do corpo de cada dia, o olhar etc. Em alterações sutis que tornam possível reexistir-se de algum modo.
Nesse sentido, outra discussão que considero importante e que reafirma uma perspectiva ética deste trabalho é a oferta de recursos artísticos a públicos considerados inabituais, desfazendo o olhar discriminatório de que a eles só cabem as ofertas terapêuticas, ou de que tais corpos só podem ser vistos como "doentes", "deficientes", inaptos. Questão que recoloca o lugar do fazer artístico e o lugar da normalidade em nossa sociedade.
Assim, afirmando outras qualidades para os encontros com aquilo que convencionalmente se chamou de loucura e aquilo que convencionalmente se chamou de dança, outros povoamentos do sensível se iniciaram. Por ações simples - como percepção do fluxo da respiração, o toque no próprio corpo reconhecendo a ossatura, a entrega do peso, a percepção das temperaturas, o reconhecimento das articulações, o reconhecimento das tensões e das necessidades do corpo de cada dia - abrem-se outras possibilidades de se relacionar consigo e com outros corpos.
No intuito de dar visibilidade a esses afetos, algumas narrativas de usuários foram empregadas no texto-tese, de modo a costurar as reflexões levantadas e os enunciados de si suscitados, expressos, encarnados. Misturados aos meus, aos outros parceiros da filosofia, das artes, da psicologia. Porque era preciso ouvir narrativas singulares, daqueles que sempre foram considerados os "Outros". E falar junto, escrever junto, deslocar lugares de saber, ouvir as palavras germinadas em cada um.
E, neste falar junto, o desfecho do trajeto-pesquisa é um desvio a outras entradas.
Na contramão das conclusões precisas, o que aparece como saída é a afirmação de um fazer que provoca danças de distintas velocidades, internas e externas, cultivadas como resgates do corpo em sua capacidade de afetar e ser afetado.
Olho para este percurso e os fragmentos de vida nele expressos, como microrrevoluções instauradas por movimentos irrisórios, em uma poética das coisas mínimas na qual mexer o corpo, tocá-lo, conversar de várias maneiras foram acontecimentos que criaram sentidos e, portanto, produziram vida. Possibilidade de liberação dos movimentos corporais de suas amarras, buscando espaço para expressar-se como existente, em experimentações poéticas do corpo, concebidas também como política de reconfiguração da realidade.
Reitero, assim, as danças vividas como um fazer político, como uma ética que se estende à vida cotidiana à medida que amplia disponibilidades de relação, desfazendo, em alguma proporção, certas relações de dominação entre os corpos.
Assim, dançamos para extrapolar códigos, anestesias, condutas, mesmo se o fizemos por gestos imperceptíveis, por durações indefinidas, pela dinâmica do desejo. Para além de movimentos e giros precisos, dinâmicas harmônicas, saltos e afins, inventamos performatividades ligadas ao simples que se pode fazer de outros modos, todos os dias, no mundo.
O que salta desses acontecimentos dançantes são pistas que sigo sondando sem pressa. Sigo, e ouso dizer, seguimos, impregnados de outras referências de encontros, de toques, de desejos, de gestos, de energias e de sentir.
Foi por indícios que alguma possibilidade de ressignificação de certos aspectos assujeitados do corpo pôde ser observada, pelas vias da liberação de reações corporais automáticas, de condicionamentos do sentir e do pensar, do expressar. E é possível dizer que cada participante envolvido respondeu à intensidade que o atravessava, mediado por suas experiências, seus vínculos, seus modos de subjetivação. Isto inclui esta que vos fala, evidentemente.
De encontros dançantes se fez um processo-criativo-tese.
Uma polifonia que cresce ainda encontrando outras texturas, à medida que assimila cada composição. E ouso dizer que os feitos dessa tese se encontram ainda em plena decifração.
Um trabalho no qual os fins são aberturas.
Inícios que persistem. Vontades de outros nascimentos efêmeros e encarnados. Danças Possíveis.
Contornos, interfaces e um comum
As especificidades dessa abordagem se aproximam da clínica pela possibilidade de interferência subjetiva que, tanto na clínica quanto nos processos artísticos, pode ser pensada como condição básica de trabalho que atua diretamente num registro ético, estético e político como potência de criação de mundanidades.
Na esteira desses territórios provisórios, cabe enfatizar a força dos enunciados como construções coletivas, ou "agenciamentos coletivos" (Salvatierra citado por Ginot, 2014, p. 156), afloramento de um comum que fortalece os trajetos singulares, permitindo que tais enunciados tomem consistência de transformação, como rupturas criadoras por vir. É também a partir de uma exposição que a vontade de potência se afirma como possibilidade de arte, como resistência e criação.
Como nos diz Oneto, "a vontade de potência, que é também vontade de resistir e se manifesta como vontade de arte, é muito mais da ordem de uma exposição (um colocar-se para fora de si mesmo) e da composição (entrar em contato com o que nos circunda) do que da oposição" (Oneto citado por Lins, 2007, p. 202).
Como resistência também podemos conceber os processos, aqui dispostos, num plano das micropolíticas que fissuram um estado de coisas e reiteram o corpo como espaço de criação de si, seja mediante o adoecimento, seja mediante um fazer artístico, seja mediante o pesquisar.
Nas dobras deste trabalho, outras insurreições colocam-se na possibilidade de habitar zonas de contágio. Nelas, as relações artística-clínica-pedagógica estão imbricadas e, tanto a prática quanto a escrita tocam em estados de criação de vida, ou da vida. No embate entre dançar com a loucura, dançar a loucura, escrever com palavras que passem pelo corpo, é a vida que se coloca em cena e cria matérias expressivas. Cria territórios nômades, expondo, para além dos limites de uma prática, vontades de outros mundos. Performances do cotidiano e outros motores de experimentação.
Assumir práticas em pesquisa que envolvem amor é escavar modos de falar com elas e deixar, mesmo que por pequenas brechas, o apaixonamento escoar. Apostar na força do amor em tempos áridos também é resistir.
Este texto é uma passagem, não se propõe receita, forma ou modelo... e foi concebido para acionar uma conversAção. Breve recorte latejante de afetos reais. Este texto-partilha foi feito para dialogar. Expõe um atual em elaboração. É movente, instável e, como ela, será outro depois.
Referências
Deleuze, G. & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Editora Escuta. [ Links ]
Espinosa, B. (2009). Ética. Belo Horizonte: Autêntica. [ Links ]
Oneto, P. D. (2007). A que e como resistimos: Deleuze e as artes. In Lins, D. (Org.), Nietzsche/Deleuze: Arte e Resistência, Simpósio Internacional de Filosofia. (pp.192 -208). Rio de Janeiro: Forense Universitária. [ Links ]
Passos, E., Kastrup, V., Escóssia, L. (Orgs.). (2015). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina. [ Links ]
Reis, B. M. (2018). Corpo fronteira: dança e loucura em estados de criação. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Artes da Cena, Universidade Estadual de Campinas. Recuperado de: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/334354
Rolnik, S. (2014). Fala proferida durante o Seminário Fronteiras, franjas e intervalos. Instituto de Artes UERJ. [YouTube]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=bghAikhX1OE (última visualização em 17/04/2017). [ Links ]
Salvatierra, V. (2014). Micropolitique des affects somatiques. À propos d'une pratique de Feldenkrais en Appartements de coordination thérapeutique. In Ginot, I. (Org.), Penser les somatiques avec Feldenkrais - Politiques et esthétiques d'une pratique corporelle. (pp. 115-161). Paris: Éditions L'Entretemps - lignes des corps. [ Links ]
Recebido em: 06/03/2020
Aprovado em: 18/05/2020
1 Durante a fala proferida, propus à plateia que realizasse comigo um programa performativo que consistia em: Ao longo de minha exposição, os presentes poderiam solicitar três Diagnósticos, isso poderia ser feito a qualquer momento e por qualquer um, sendo que, para isto, bastava me dirigir a palavra diagnóstico. Esta palavra aciona um dispositivo performativo que faz parte das pesquisas e práticas do Núcleo Fuga! - Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar, que investiga hibridismos entre a linguagem da dança, do teatro e da performance, do qual faço parte junto com Ana Clara Amaral, Dora Andrade, Flávio Rabelo, Gabriela Giannetti e Roberto Resende. O dispositivo Diagnóstico funciona como um desestabilizador do momento presente e nas práticas com o Fuga! é experimentado em diversos contextos, seja em ações cênicas performativas, seja em falas e palestras. Em todos os casos, o dispositivo interrompe uma apresentação proposta disparando a realização imediata de uma breve narrativa em fluxo, feita na terceira pessoa do singular, na qual descrevemos pensamentos, imagens, sensações, percepções e afetos que nos perpassam nesse instante, expondo outras camadas das coisas que nos ocorrem a todo momento. Um diagnóstico singular e sentido do momento presente. Um modo de expor aquilo que não pôde ser dito ou aquilo que também está acontecendo agora. Neste dia foram solicitados seis diagnósticos e pode-se dizer que tal proposta estabelece um pacto de cumplicidade entre os presentes, por meio do qual todos de algum modo mantêm um outro tipo de atenção e escuta, afinando a percepção para momentos em que algo parece precisar ser dito para além das palavras usadas em uma exposição formal. Estabelecese então uma performatividade partilhada, na qual somos todos responsáveis por aquilo que será exposto. A partir disto, tenho considerado essa partilha como uma conversAção.
2 A tese citada tem o título Corpo fronteira: dança e loucura em estados de criação, defendida em agosto de 2018 no Instituto de Artes da Unicamp. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/334354
3 Título da tese mencionada.
4 As práticas corporais aqui citadas são referendadas principalmente pela Técnica Klauss Vianna de Dança e Educação Somática, técnica esta que é foco de minhas pesquisas práticas desde 2011. Para ver mais sobre as reinvenções dessa abordagem no contexto desta pesquisa sugiro a leitura da tese.
* Este texto é parte de uma fala proferida durante o evento Conversações em Esquizoanálise - O cuidado de si em tempos de crise, realizado na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Assis, como parte de uma disciplina e de um estágio cultivados e nutridos por alunos do curso de Psicologia e pela Professora Marília Muylaert, que exerceu cargo de docente naquela universidade por 30 anos.