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Revista do NUFEN
versión On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.11 no.3 Belém sept./dic. 2019
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº03resenha40
Resenha
DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº03resenha40
Três utopias contemporâneas
Resenha da obra: Wolff, F. (2019). Três utopias contemporâneas. Editora. UNESP. [ Links ]
Mateus Ferreira Rodrigues
Universidade Federal do Pará
Sempre houve no humano a vontade de ser para além do que realmente se é, isto aparece expresso em obras literárias e filosóficas escritas nos vários contextos históricos, de Platão e Aristóteles aos teóricos políticos contemporâneos. Parece existir naqueles e nestes uma vontade de adição e aperfeiçoamento daquilo que está sendo experimentado nas suas respectivas sociedades, um desejo de comentar e descrever capacidades aparentemente humanas como o bem, as virtudes, a inteligência; é a partir da vontade do para além do humano, da superação - ainda que ideológica - dos limites impostos pelo ambiente natural, que as estruturas de organização social acabaram revelando a exclusividade com que os homens encaram a própria existência.
Nesse sentido a concepção de utopia era expressa pelo viés de superação do momento atual, em função do vislumbre ideológico de uma sociedade ideal, pura e perfeita, em uma cidade estado onde todas as necessidades humanas pudessem ser satisfeitas e onde a separação entre o que é individual e privado seria tênue; um lugar em que a condição humana deveria ser experimentada de forma integral, dando aos seres pertencentes a essa forma utópica de sociedade, a sensação de erradicação de todo mal enfrentado nas situações da vida.
É dessa forma que Francis Wolff (2018) descreve as utopias antigas: modelos ideais de estruturação política e social, que dariam aos homens o seu lugar próximo dos deuses. Onde a igualdade imaginada para uma raça (de seres humanos) seria alcançada. Onde apenas a especulação racional seria necessária para a superação dos problemas que assolavam a sociedade. O autor afirma que esses modelos de utopia permaneciam confinados nas mentes de seus idealizadores, nunca sendo postos em prática. Alguns modelos pareciam revolucionários demais para a época ou eram demasiado racionais para saírem do papel. Nas palavras do autor os utopistas eram revolucionários quando não eram realistas, e quando eram realistas não eram revolucionários (Wolff, 2018, p. 8).
Ao contrário do que imaginavam as utopias antigas, o que se manifestou no decorrer da história foi um afastamento da vontade ideal de viver, e no lugar manifestaram-se revoluções de teor totalitário que associaram a política ideal à uma prática autoritária de intervenção. Foram os regimes totalitários, que eclodiram no século XX, a principal realização prática de um determinado ideal revolucionário da sociedade; não há mais uma tentativa de buscar o bem utópico, mas sim de evitar o mal que se manifesta frequentemente sobre os homens, afetando suas individualidades.
O que restou de prático da ideologia utópica antiga foi a tentativa de alcançar pares iguais, onde a comunidade compartilhasse aquilo que há de comum à todos os indivíduos, onde aqueles que vivem para a política apresentassem uma origem comum; a ideologia política eugenista, ao defender a supremacia da raça ariana, queria na verdade a prevalência exclusiva de uma sociedade humana com origens e vontades comuns. O movimento para alcançar essa sociedade foi proposto de forma a eliminar aquilo que se mostrava como um empecilho à homogeneização, através da subversão do diferente (o povo judeu), ou seja, a utopia antiga perdeu o lugar ideológico de um bem comum, para defender um discurso particular de uma pequena fração da sociedade alemã (os nazistas). A vontade pelo bem aos poucos transforma-se de coletiva à individual.
Na Antiguidade, em particular em Aristóteles, os homens eram definidos por duas grandes oposições: acima deles os deuses e abaixo deles os animais (Wolff, 2018, p. 21). O que apresentavam em comum com um, os afastava do outro; com os deuses compartilhavam a capacidade de raciocinar, algo que os diferenciava de outros animais, porém não eram imortais como os deuses, e isso os aproximava de toda forma de vida terrestre que apresentava seu ciclo de nascimento, desenvolvimento e morte. De qualquer forma, o homem ainda continuaria encerrado entre esses dois extremos, e isso seria suficiente para que se afastasse de ambos.
Desse dualismo manifestam-se duas utopias contemporâneas: a pós-humanista e a animalista. Na primeira os homens estão muito mais próximos dos deuses, e seu lugar na terra é, portanto, o lugar do privilégio sobre as outras espécies e sobre o ambiente; é essa primeira utopia que descreve a dominação particular da natureza que distingue o homem do outro, a criação de elementos que justifiquem sua dominância: armas, sistemas geopolíticos, cidades, veículos, etc.
A utopia pós-humanista elimina em partes alguns males da sociedade, em Aristóteles era impensável uma volta ao mundo, na verdade não se acreditava que isso fosse possível. Nos moldes da sociedade contemporânea isso não é somente possível, como também pode ser feito em um dia. A utopia pós-humanista ao mesmo tempo que aproxima mais os homens dos deuses - na medida em que a tecnologia supera as doenças, as distâncias, as mazelas sociais - também os deixa mais perto dos animais. Na utopia animalista, há o retorno humano a terra, ao lugar de onde evoluiu; há uma percepção de que esse lugar é o do pertencimento e como tal deve oferecer grandes esperanças de libertação e emancipação coletiva, como as revoluções do século XX; uma utopia que sonha com um novo nós, uma comunidade além da política de direitos que é exclusivamente humana.
Sonhamos para o homem um futuro divino ou um destino animal? Ainda é possível sonhar para a humanidade um destino à sua medida? É muito tarde para uma nova utopia política ou ainda não é hora para uma utopia humanista, para a revolução cosmopolítica? (Wolff, 2018, p. 22-23).
ALÉM DO HUMANISMO: A UTOPIA PÓS-HUMANISTA
Através de suas capacidades heróicas, o homem foi aos poucos assumindo o papel principal na história da vida na terra, consagrando-se como a única espécie capaz de vencer a natureza através de sua inteligência. A influência restrita de um grupo de primatas, em uma pequena porção do território Africano primitivo, foi munida de recursos suficientemente sofisticados para se espalhar como um vírus por todo o planeta. Logo, aquele animal que antes era desprovido de roupas, de armas, de habitações, entre outros utensílios com os quais a vivência seria impensável hoje, tornou-se senhor de seu mundo, habitando todos os continentes sob as condições mais extremas.
A filosofia trans-humanista que fundamenta a utopia pós-humanista apoia-se em um fato incontestável desde o século XIX: o progresso técnico e científico, especialmente biomédico, contribuiu para o prolongamento da vida e a melhoria das condições de existência do homem (Wolff, 2018, p. 26-27). As produções decorrentes desse avanço criativo foram bastante expressivas no século que viria em seguida, afinal de contas foi no século XX que as vacinas, raio x, anestesia, quimioterapia, implante de órgãos, entre outros recursos terapêuticos foram descobertos.
Esses avanços colocaram o animal frágil do passado em um outro patamar: da superação da dor e da doença, da transposição das sensações tão comumente manifestadas em outras espécies, como a dor e o medo; a possibilidade de substituição de um órgão por outro através de um transplante, passou a significar ao humano alguns anos a mais de sobrevivência. A medicina deixaria de ser cuidadora e terapêutica para se tornar desenvolvedora e melhorativa. A caça, antes uma atividade perigosa, foi substituída pelos mercados onde o animal fruto do abate já se encontra dado em uma bandeja, pronto para ser consumado.
Os avanços são ainda mais impressionantes na área tecnológica, na medida em que a máquina foi substituindo cada vez mais o trabalho humano, e a revolução na indústria fez com que os produtos pudessem ser fabricados em massa. Com menos tempo gasto no mundo do trabalho, sobra ao humano espaço para exercer outras funções, para aperfeiçoar-se e aprender mais, tornando seu processo de dominação sobre a natureza cada vez mais sofisticado e dialético: o conhecimento gera recursos, que geram mais e mais conhecimento.
Toda essa técnica deriva das capacidades humanas ressaltadas no iluminismo europeu, mas elas não representam o que Wolff (2018) chama de utopia pós-humanista; ao contrário, esta última surge justamente no rompimento do humanismo com o iluminismo, porque as novas capacidades humanas não seriam exaltadas com vistas a combater males e doenças, mas sim melhorar as qualidades naturais. Enquanto o humanismo defendia a capacidade de criar um óculos para aqueles acometidos de problemas visuais, a utopia pós-humanista acredita na possibilidade de criação de um novo olhar digital, biônico, capaz de vez muito mais longe.
Na utopia pós-humanista o salto para a frente é dado a passos largos, às vezes tão largos que as pernas humanas sozinhas não seriam capazes de fazê-lo; surgem ao auxílio as pernas biônicas, a máquina, a inteligência artificial, os meios de transporte super velozes. Nas palavras de Wolff (2018) "o homem pode se tornar um super-homem, se aceitar ser apenas uma máquina" ou ainda "o pós-humano será na verdade, uma espécie de humano cujas funções vitais, sensoriais e intelectuais não serão realizadas por simples e rudimentares órgãos naturais, mas por próteses de rendimento ilimitados".
Mas qual o custo desse avanço sem precedentes do pós-humanismo? A princípio é necessário entender segundo Wolff (2018), que a utopia pós-humanista surge no contexto intelectual da modernidade, apoiada na filosofia trans-humanista que por sua vez encontra seus alicerces no desenvolvimento da biotecnologia, especialmente durante a década de 1970. A partir do final do século XIX e todo o século XX, os ideias de liberdade individuais, de fortalecimento das democracias, possibilitaram aos poucos o acesso ao fruto do desenvolvimento técnico, como bens e serviços, mas isso não aconteceu de forma democrática.
Nesse sentido o autor comenta os desdobramentos éticos do avanço pós-humano. Fazendo uma divisão em três tipos principais de ética: a de primeira pessoa, de segunda pessoa e de terceira pessoa. Divisão necessária para entender que o avanço técnico não foi igualitário como imaginavam as utopias do passado; a utopia pós-humanista retrata uma ideologia libertadora e individual, de forma que o acesso aos recursos provenientes dos avanços políticos, como o criação de mais direitos à populações específicas (da mulher, da criança, dos lgbtq, etc), ou avanços biotecnológicos, expuseram uma crítica moralista evidente: de um lado os super-humanos, belos, fortes, inteligentes e do outro os humanos comuns, doentes, disformes e fracos.
Se antes a separação entre classes era fundamentada na lógica do capital, no pós-humanismo essa divisão pode se dar entre raças; os super-humanos, podem constituir a nova raça híbrida de homem-máquina, que estará anos luz a frente daqueles que não terão possibilidade de acesso a certos recursos. A lógica da ética em primeira pessoa é bastante evidente na frase "os pós-humanistas não sonham com uma salvação comum, mas com a salvação de cada um por si" (Wolff, 2018, p. 35).
Na ética em primeira pessoa existe uma consideração por tudo aquilo que concerne um bem pessoal, uma melhora individual, nela os homens são agentes e beneficiários da própria ação. Na ética em segunda pessoa, há a ação visando o bem do outro, nela os agentes da ação observam vocês como beneficiários da ação, aqueles que na sociedade são vistos como tutores ou acompanhantes: os médicos, educadores, etc. A ética em terceira pessoa é o que mais se aproxima de uma noção básica de utopia, nela os beneficiários de uma ação são eles e, portanto, os bens são pensados em um contexto coletivo.
Considerando a primeira das éticas, seria pouco agradável tornar-se um super-humano dentro da divisão desigual dos recursos; ser um quase deus implicaria um humano autárquico (que se basta) e imortal (que viverá para sempre). Caso isso fosse possível à alguém, este ou aquele veria desaparecer com o tempo toda sua rede de sociabilidade, veria morrer quem conhece e admira, de forma que não parece agradável um futuro pós-humano ao humano atual.
Francis Wolff (2018) explica que essa insatisfação que utopia pós-humanista causaria denota o caráter social e indissolúvel do humano; isso significa que não importa quão misantropo ou libertariano (que se diz um animal apolítico) um homem possa ser, ainda assim ele será um animal social.
AQUÉM DO HUMANISMO: A UTOPIA ANIMALISTA
A mesma lógica que permitiu ao homem desenvolver os recursos tecnológicos tão necessários à sua sobrevivência, como ferramentas, meios de transporte, sistemas políticos complexos, também permitiu sua dominação sobre outras espécies do ambiente natural. Esse fato coloca a visão de herói, prevista na utopia pós-humanista, de um lado oposto na utopia chamada animalista ou abolicionista; enquanto na primeira, o desenvolvimento do conhecimento técnico-científico é apoiado em grande parte pelas empresas de capital global, na segunda, os movimentos de massa (veganismo), os grupos de vanguarda e o militantismo condenam o homem como o carrasco do novo mundo.
Segundo Wolff (2018) os defensores da utopia animalista ou abolicionista não gostam dos heróis, pois encaram o avesso de um cenário que considera o homem triunfante do pós-humanismo, afirmando que aos pés dos heróis repousam suas vítimas. Nesse caso, na visão abolicionista, a tecnologia ao mesmo tempo que trouxe benefícios para o progresso antrópico, serviu como condenação às outras espécies diferentes do animal humano; quando construiu suas casas, fez suas cidades, inevitavelmente a humanidade condenou uma série de outras espécies em seu favor, e aquelas que não serviram bem aos seus próprios caprichos - como os cavalos e animais de carga, os lobos que ajudavam na caça, as vacas, ovelhas, galinhas, que forneciam os mais diversos alimentos - foram simplesmente afrontadas e dizimadas como pragas.
Assim como a filosofia trans-humanista, a filosofia animalista apoia-se em um fato incontestável: os progressos e técnicas, especialmente na área biotecnológica, contribuíram para melhorar as condições da vida humana, ao mesmo tempo que deterioraram as condições de vida animal (Wolff, 2018, p. 46). Nesse sentido o credo humanista, relacionado ao tratamento da pecuária ou do cuidado para com animais domésticos, contribuiu para a realização das práticas de abate respeitando o que o Farm Animal Welfare Council chamou de as cinco "liberdades": ele não deve passar fome ou sede; sofrer violência física; dores, machucados e doenças; medo e estresse; e deve poder manifestar comportamentos normais de sua espécie.
Mas essa liberdade não pode constituir o que é considerado por Wolff (2018) como uma utopia animalista, embora as práticas de bem-estar animal (welfarista de "welfare", bem-estar) sejam comumente adotadas em práticas de cuidado animal. Ao contrário, a utopia animalista começaria exatamente no rompimento desse bem-estar herdado do iluminismo; a noção revolucionária da abolição deve partir a história ao meio, porque segundo os militantes desse modelo utópico "desde sempre os animais foram submetidos às leis dos homens" e nesse sentido, qualquer proposição de um novo modelo que leve em conta o bem-estar animal não deve considerar o homem como usurpador ou predador.
A exploração animal é o último estágio do processo de dominação humano sobre a terra; quando não cabe mais a dominação de algumas classes sobre as outras (de homens sobre mulheres, de ricos sobre pobres, de brancos sobre negros), os oprimidos recorrem ao animal como mártir, reproduzindo neles o mecanismo de sua própria opressão. Os animais são as vítimas de toda a humanidade (Wolff, 2018, p. 48), portanto, falar em uma emancipação ou revolução animalista, significa falar também em uma libertação humana pessoal, afinal libertado os animais espera-se que se liberte junto toda essa cadeia de subjugados.
Mas de que forma isso pode ser feito? Segundo Wolff (2018) uma revolução abolicionista repousa sobre a convicção de que o homem é um animal como todos os outros, salvo que é o superpredador da natureza. Como a linguagem é a primeira forma de opressão, o autor sugere começar pela reformulação de alguns termos, como evitar falar "os bichos" e dizer "os animais não humanos", afinal todo animal, humano ou não, merece igual compaixão. Em seguida deve haver a consideração, por parte da humanidade, de que as comunidades utópicas verdadeiras são além da política humana tradicional, devendo contemplar todos os seres sensíveis, logo os animais não humanos.
Nessa nova utopia os direitos são iguais para todos, não haveria motivo para discriminar animais em função de sua espécie pela mesma razão que não há motivo para discriminar humanos por sexo ou raça. Embora os animais sejam incapazes, até onde se sabe, de reconhecer direitos ou pertencer à uma nação, eles são dotados de capacidades sensíveis e podem sentir dor e sofrer como bebês, deficientes e doentes mentais, aos quais os humanos devem cuidado e proteção. A política nesse novo tipo de sociedade seria de integração das diferentes populações no quadro comum do Estado.
Essa verdadeira nova comunidade é segundo Wolff (2018) diferente da proposta pelo humanismo, justamente por estar aquém e além dele; nessa sociedade não se vê mais "o homem" mas sim "animais sensíveis", de forma que o primeiro não seja mais a medida de todas as coisas, como ocorre desde os tempos imemoriais, deve-se procurar um novo padrão de medida superior, que inclua todas as espécies.
A ideologia por trás da utopia animalista ou abolicionista difere da proposta na utopia pós-humana em muitos aspectos, entretanto, conserva o mesmo princípio de individualidade que tem se desenvolvido na Modernidade; na ótica desse individualismo, os direitos devem contemplar o homem do novo mundo, tornando-o mais compassivo e sensível a tudo aquilo que o cerca e isso necessariamente inclui os diferentes biótipos e nichos ecológicos terrestres.
Do lado dos animais não humanos, o surgimento da ideologia animalista diz respeito ao avanço das técnicas de pecuária, especialmente aquelas relacionadas à indústria da carne; se antes um boi era morto e consumido dentro de um período de uma semana, geralmente por um grupo pequeno de pessoas, na nova organização alimentícia esse número é multiplicado por milhares. O genocídio animal contempla bovinos, suínos e aves em todo planeta de forma acelerada, e não está relacionado somente a indústria da carne, somando a isso ainda estão animais vítimas de pesquisas laboratoriais, testagem de cosméticos, tráfico, etc.
Por outro lado, se hoje o humano é sensível a causa animal é porque essa palavra ganhou um outro significado, fomentado pela proximidade entre os animais domésticos e os homens, e também pelo afastamento do homem do mundo selvagem. Aqueles que defendem uma vida dotada de direitos para animais não humanos, têm sua sensibilidade tocada principalmente pelo convívio indissociável com seus animais de estimação, que existem exclusivamente dentro do ambiente urbano enquanto figuras de afeto. Para os abolicionistas, não existe diferença significativa entre o gato que compartilha a morada da humanidade, é alimentado e protegido por ela, das outras espécies que vivem na natureza selvagem.
Wolff (2018) comenta que a ética por trás da utopia animalista se aproxima mais da de segunda pessoa (você) sendo os animais não humanos os principais beneficiários dessa ação. Ela seria pautada em duas considerações distintas: a primeira diz respeito a visão das outras espécies como sensíveis, e, portanto, não merecedoras da violência e maus tratos da humanidade, em segundo, a consideração de uma dívida histórica dos homens para com os animais que sempre foram explorados.
Embora a ética que constitua o pensamento libertário abolicionista seja de segunda pessoa, a longo prazo os benefícios de uma ação abolicionista completa, utópica, seriam visíveis nas éticas de primeira e terceira pessoa também. Em primeiro lugar, o eu (humano) veria sua rede ecológica se equilibrar, haja vista a ausência de interferências tão marcantes em ambientes antes destinados à pesca e caça. Em segundo lugar, como consequência dessa mudança o eles (comunidade) poderia desfrutar de um ambiente mais saudável e livre da exploração sem precedentes das outras espécies.
No fundo, o entrecruzamento das éticas em segunda (você) e terceira (eles) pessoas, contribuem para a expansão da ideologia política defendida na utopia: uma sociedade de iguais; iguais não importando a espécie ou a capacidade de proteção. Embora os animais não sejam munidos de direitos, ou amparados por uma constituição própria, o movimento humano para sua libertação mostra uma clara conscientização acerca do lugar que cada espécie assume na natureza, um lugar onde merecem viver todos os animais sensíveis.
NO PROLONGAMENTO DO HUMANISMO: A UTOPIA COSMOPOLÍTICA
As duas formas de utopia descritas até agora apresentam uma característica em comum: estar além do político e do humano; existe uma terceira utopia contemporânea que se distingue das duas anteriores justamente por ser humana e política: a utopia cosmo-política. Segundo Wolff (2018) essa utopia visa o alcance da pólis para os cidadãos do novo mundo através do movimento No Border (sem fronteiras).
A palavra cosmopolita refere-se a um estilo de vida individual que designa os homens conhecidos como cidadãos do mundo inteiro e não apenas de um lugar, são aqueles que se aproveitam da ideia de um território (terrestre) que se espalha ao infinito para defender o verdadeiro Estado original como sendo o mundo, e, portanto, as barreiras que separam os países e que delimitam suas leis devem ser abolidas. Ao contrário das duas outras utopias, a utopia cosmopolítica não tem o apoio do capital financeiro, como na pós-humana, ou o apoio político de movimentos de massa como na utopia animalista.
O conhecimento desse último tipo de utopia pela opinião pública, se dá principalmente devido aos debates acadêmicos e filosóficos acerca de seus conceitos, e também pelo ódio que provoca em alguns teóricos contemporâneos. Seus objetivos estão ligados à elevação do direito individual manifestado desde o iluminismo, despertando nos homens a noção de pertencimento em qualquer lugar do mundo e de estrangeirismo em lugar nenhum.
Assim como na utopia pós-humanista ela também visa o desenvolvimento sem precedentes das tecnologias, direcionadas à evolução da qualidade de vida humana, e assim como a utopia animalista prevê o prolongamento da comunidade jurídica e política global. Um dia, os homens não viverão em cidades, mas no mundo; um dia não haverá mais estrangeiros, mas concidadãos; o novo homem será cidadão do mundo (Wolff, 2018, p. 76).
Ao invés de separar o homem em duas realidades distintas: uma que se aproxima mais dos deuses, que evoca as virtudes para a política e civilidade; ou ainda, aquela que aproxima o homem do animal, evidenciando suas capacidades de sobrevivência mais primitivas, que justifica os conflitos e guerras que movem a história, a utopia cosmopolítica tem por base o homem neutro, que está no meio termo desses dois extremos. Para os cosmopolíticos, o homem é um ser social, é na sua interrelação com outros homens que desenvolve suas capacidades para o bem e para o mal.
Se está em um regime de leis boas, é capaz de demonstrar o máximo de suas virtudes, de ser bom, cívico, mas se por algum motivo escapa as regras morais do Estado ao qual pertence é sempre em favor de desejos pessoais, individualistas. Dessa forma, suas criações acabam refletindo sempre aspectos dessas duas extremidades, afinal, ao mesmo tempo que o século XX foi o século dos direitos individuais, do progresso técnico, também foi nele que as armas de destruição em massa foram inventadas, que milhares de vidas foram ceifadas em nome de um ideal que ultrapassou o político para dar lugar ao animalesco.
É sobre essa dualidade humana, essa vontade de hora pertencer a uma sociedade civilizada, hora transcender o Estado de direito democrático em função de guerras, que a filosofia do cosmopolitismo cultiva suas ideias. Para seus idealizadores, somente na utopia cosmopolítica, quando houver a abolição das fronteiras imaginadas pelos estados, que o homem poderá desfrutar a verdadeira pólis utópica, já que, a maioria dos conflitos e guerras permanentes são causadas por brigas territoriais, pela tentativa de legitimar certos nacionalismos.
Então como essa ideologia, que recebe pouco apoio mundial, pode ser efetivada? O cosmopolitismo humanista clássico é, segundo Wolff (2018), sobre essa constatação de guerra permanente. A ideia para sair dessa guerra sem fim, ou ao menos garantir aos cidadãos a segurança para transpor fronteiras sem serem considerados inimigos, é reforçar as políticas que regulam a interação entre os concidadãos do mundo, o chamado "direito internacional" (denominado antigamente como "direito de gentes").
Isso já é uma realidade da Modernidade, a exemplo da ONU ou das políticas reguladoras da União Europeia. Um jurisdicismo comum que transcende Estados particulares para dar conta das relações entre estados globais; mas a utopia cosmopolítica não é sobre isso, não é sobre estados particulares que regulam um interesse global, mas sim sobre um movimento revolucionário de extinção da autonomia desses estados particulares em função da pólis mundial.
Nesse sentido a utopia tem duas razões de ser, de se concretizar, a primeira delas referente à guerra sem fim e segundo a estraneidade; na cidade utópica ninguém teme o estrangeiro, a ponto de evocar um conflito que culminará em uma guerra, justamente porque não há estrangeiro, todos são os cidadãos da pólis. A tentativa de estender a noção de uma cidade global é apoiada em grande parte pelo que há de efetivo hoje, tanto em relação a tecnologia que permitem as viagens entre os diferentes territórios, como também a uma política além da política, algo em comum entre os diferentes Estados do globo, que é fomentada principalmente pela globalização.
Já existe, portanto, uma comunidade de cidadão globais, vista por exemplo através do Facebook, que é capaz de se compadecer acerca de fatos que ocorrem em pontos diferentes do planeta. Uma pessoa no Brasil e uma pessoa no Japão, podem juntos achar errado a criminalização das relações homoafetivas em alguns países do continente africano por exemplo, mesmo sem ter tido contato efetivo entre si. O além da política, herança do iluminismo e pós-humanismo, está na noção de um direito que é global: a liberdade; isso independe de uma política particular definida pelo Estado brasileiro ou pelo japonês.
Os defensores da utopia cosmopolítica trabalham com a noção artificial das fronteiras, que servem apenas para partir e afastar os cidadãos. Porém a manutenção destas, ainda que de forma militarizada, não é suficiente para barrar as realidades que eclodem com cada vez mais velocidade no mundo; por um lado as migrações estão crescendo, não apenas sul-norte, mas em todas as direções, por pressão de guerras, do aquecimento global e sobretudo da miséria, mas paradoxalmente, pela elevação na capacidade de aquisição financeira e pelo conhecimento que muitas classes estão adquirindo. O desejo de migrar é planetário (Le Bras apud Wolff, 2018, p. 87).
Inversamente ao movimento imigratório, observa-se uma fortificação das fronteiras, segundo Wolff (2018) era mais fácil atravessar o Atlântico no século XIX que o Mar Mediterrâneo hoje; em 1903, por exemplo, mais de 12 mil imigrantes podiam desembarcar em um único dia no porto de Ellis Island (Wolff, 2018, p. 87-88).
O que justifica a política mais severa para as leis migratórias, criadas a partir do século XX, pode ser entendido como a herança das guerras que eclodiram neste século. Entretanto, é também a partir de algumas organizações políticas especiais, como a cosmopolitização da Europa, que a utopia cosmopolítica busca concretizar-se. A criação da União Europeia surge da decisão dos Estados abdicarem de suas soberanias, em função de uma bem maior, e o melhor de tudo, sem que fosse necessário fazer uso de uma força coercitiva para isso.
A exemplo desta decisão dos estados europeus, pensa-se que é possível sim uma jurisprudência global, capaz de dar conta daquilo que diz respeito a cada território ao mesmo tempo em que determina condutas e regras que serão seguidas pela pólis global. Diversas instituições mundiais não dependem mais exclusivamente da lógica estatal do direito internacional, mas desse novo direito cosmopolítico que reconhece os seres humanos como detentores individuais de direitos fora da soberania dos estados: trata-se da Corte Penal Internacional (Wolff, 2018, p. 91).
Mas quais seriam então, as consequências desse individualismo liberal tão defendido por esse último tipo de utopia? O que ocorre no humano quando ele se sente cada vez menos dependente do local e mais pertencente ao global? Onde ficaria a essência do político? A sociedade seria mais despotista ou anarquista? Seria a utopia cosmopolítica o fim da diversidade cultural?
Essas questões podem ser tratadas apenas a partir de argumentos supostos, haja vista a imprevisibilidade com que os desdobramentos históricos acontecem. No primeiro caso, da essência do político, há a possibilidade de que a universalização do humano traga consigo o fim dos diferentes povos; toda política sempre diz respeito a um estado a um povo, também às identificações particulares de uma comunidade para com o território que ocupa. Entretanto, para o cosmopolítico não há distinção entre ser um cidadão brasileiro e ser um cidadão do mundo, se esse argumento vale para um estado, ele poderia ser estendido a outros.
O segundo argumento diz respeito a transformação do homem em um ser despotista ou anarquista, ou seja, que a consideração de um Estado Universal, mundial, faria com que as leis dos estados particulares, como os países, pudessem ser ineficazes no controle da conduta humana; a partir desse novo cenário, da pólis global, surgiriam novas subdivisões e um retorno aos conflitos já conhecidos entre diferentes povos. Wolff (2018) defende que a consideração desse Estado único seria o resultado do abandono progressivo das soberanias individuais, de forma que seria paradoxal que a mesma comunidade que optou pela abolição das vontades próprias e individuais pudesse, por algum motivo que seja, reivindicar para si uma soberania na nova pólis.
O terceiro argumento diz respeito a suposta perda das identificações culturais, que são tão importantes para o humano quanto a política é para um Estado; são as diferenciações que dão colorido ao mundo e permitem que exista variação. O mesmo argumento utilizado em razão da essência do político poderia ser estendido à cultura: nada impede um brasileiro de consumir sua própria cultura ao mesmo tempo que consome a japonesa, ou que consome a nova cultura fruto da nova pólis. Na sociedade globalizada, a integração cultural tem sido observada principalmente dentro das cidades cosmopolitas como Nova York ou São Paulo, onde diversos grupos étnicos convivem sem que deixem suas práticas culturais de lado; o que se observa nessas cidades, ao contrário do que se imagina, é uma alta tolerância ao diferente e um baixo índice de xenofobia. Ao aglutinar diferentes culturas, essas metrópoles acabam se tornando o expoente de uma comunidade integrada, diferente, onde os limites não são tão claros pois a livre circulação de pessoas transpõe o ideal de fronteira comumente observado nas divisões entre países.
A utopia cosmopolítica é entre todas as três utopias contemporâneas discutidas, a que mais afasta-se de uma possibilidade de efetivação, tanto pela falta de apoio global quanto por confusões de entendimento que seus debates ocasionam, em contrapartida, ela é das três a que mais representaria a filosofia humanista na atualidade, sendo sua consumação. Da forma como foi colocada, é visível que muitas de suas características já são observadas hoje, ainda que seu caráter revolucionário, que garante o status utópico de sua efetivação, possa estar longe do presente.
Essa utopia seria também a mais próxima de uma ética em terceira pessoa; ela concretizaria o bem-estar do eles, que inclui tanto o homem heroico e revolucionário do pós-humanismo quanto o homem além-das-espécies do animalismo, convivendo juntos no território global. Afinal, ao romper as fronteiras do mundo surge a possibilidade de interação com o estranho, com o novo, com aquilo que antes era desconhecido, e se isso no passado pareceu perigoso para a humanidade, talvez para o homem do futuro essas novas relações sejam a receita do seu sucesso existencial.
REFERÊNCIAS
Wolff, F. (2019). Três utopias contemporâneas. Editora UNESP Nota do Autor:
Mateus Ferreira Rodrigues - Graduando de psicologia da Universidade Federal do Pará. E-mail: mateuzsche@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/8116187529997946