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Revista do NUFEN

versión On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.2 Belém mayo/ago. 2020

https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02artigo71 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02artigo71

 

Vitalismo cristão e psicologia: contribuições de Michel Henry e Wilhem Reich

 

Christian Vitalism and Psychology: contributions of Michel Henry and Wilhelm Reich

 

Vitalismo Cristiano y Psicología: contribuciones de Michel Henry y Wilhelm Reich

 

 

Gustavo Alvarenga Oliveira Santos

Universidade Federal do Triângulo Mineiro

 

 


RESUMO

Esse artigo apresenta duas formas como o vitalismo de origem cristã influencia e embasa a Psicologia contemporânea. O termo vitalismo é conceituado conforme o entendimento da filosofia da libertação de Enrique Dussel que o relaciona ao humanismo semita. Em seguida demonstra-se como o vitalismo cristão é apreciado no pensamento de Michel Henry, filósofo francês que embasa uma certa psicologia fenomenológica e Wilhelm Reich, principal autor da Psicologia Corporal. O texto argumenta que o vitalismo enquanto movimento filosófico e cultural traz uma ética que ultrapassa a visão grega de homem, inaugurando um tipo de humanismo que permite a empatia e a compaixão, atitudes que concernem à ética cristã. A título de conclusão, compara-se o pensamento dos dois autores, Reich e Henry, demonstrando como cada um deles responde à questão da dualidade: mundo e vida, segundo Henry, e Vida e misticismo, conforme Reich

Palavras-chave: Psicologia; Epistemologia; Vitalismo


ABSTRACT

This article presents two ways in which vitalism of Christian origin influences and underlies contemporary psychology. The term vitalism is conceptualized according to the understanding of Enrique Dussel's philosophy of liberation, which relates it to Semitic humanism. Then, it demonstrates how Christian vitalism is appreciated in the thinking of Michel Henry, French philosopher who bases a certain phenomenological psychology and Wilhelm Reich, main author of Corporal Psychology. The text argues that vitalism as a philosophical and cultural movement brings an ethics that goes beyond the Greek view of man, inaugurating a type of humanism that allows empathy and compassion, attitudes that concern Christian ethics. In conclusion, the thoughts of the two authors, Reich and Henry, are compared, demonstrating how each of them answers the question of duality: world and life, according to Henry, and Life and mysticism, according to Reich

Keywords: Psychology; Epistemology; Vitalism.


RESUMEN

Este artículo presenta dos formas en que el vitalismo de origen cristiano influye y subyace en la psicología contemporánea. El término vitalismo se conceptualiza de acuerdo con la comprensión de la filosofía de liberación de Enrique Dussel, que lo relaciona con el humanismo semítico. Luego, demuestra cómo se aprecia el vitalismo cristiano en el pensamiento de Michel Henry, filósofo francés que basa una determinada psicología fenomenológica y Wilhelm Reich, autor principal de la Psicología Corporal. El texto argumenta que el vitalismo como movimiento filosófico y cultural trae una ética que va más allá de la visión griega del hombre, inaugurando un tipo de humanismo que permite la empatía y la compasión, actitudes que conciernen a la ética cristiana. En conclusión, se comparan los pensamientos de los dos autores, Reich y Henry, y se demuestra cómo cada uno de ellos responde a la cuestión de la dualidad: mundo y vida, según Henry, y Vida y misticismo, según Reich

Palabras clave: Psicología; Epistemología; Vitalismo.


 

 

INTRODUÇÃO

Esse texto tem como objetivo elucidar a contribuição de dois autores que, inspirados pelo pensamento cristão, trouxeram componentes vitalistas para a psicologia. Embora pertencentes a distintas correntes epistemológicas e de épocas distintas, Reich é oriundo da escola psicanalítica e Henry da filosofia fenomenológica, ambos coincidem ao realçar aspectos similares que se relacionam com o vitalismo inspirado em Cristo, tema do presente artigo.

É importante frisar que esse artigo não tem por intuito argumentar em favor do cristianismo como determinante e suficiente para a compreensão dos fenômenos psicológicos, tampouco se propõe aqui uma espécie de proselitismo religioso. O pensamento cristão, no contexto aqui abordado, é considerado um pensamento importante e fundamental para a cultura ocidental como um todo. Segundo Dussel (1969), o pensamento cristão expressa o humanismo semita que é um dos movimentos humanistas que, junto ao humanismo helênico, compõe o conjunto de valores que regem a ética da cultura ocidental.

Assim, seguindo a proposta de uma filosofia Intercultural defendida pelo filósofo cubano Raúl Fornet-Betancourt (2004) entende-se que o pensamento filosófico pode se expressar em linguagem mitológica, como é o caso da filosofia cristã e até mesmo da filosofia helênica. Portanto, quando tratamos de Cristo, referimo-nos a uma matriz de pensamento ético que fundamenta boa parte da cultura. O argumento aqui defendido parte do princípio de que essa matriz repousa nas bases vitalistas do pensamento semita que por sua vez, fundamenta autores diversos de distintos campos do saber. Portanto, podemos afirmar que muitas psicologias foram ou são inspiradas, mesmo que de modo indireto, na matriz ética cristã, esse texto demonstrará como esses dois autores, Reich e Henry, se referiram a ela diretamente tomando como base a palavra de Cristo expressa nos evangelhos.

O artigo conclui demonstrando as distinções e semelhanças das contribuições de Reich e Henry e como essas lidam com as dicotomias típicas do pensamento ocidental presentes em muitas psicologias como as de corpo x mente, aparência x essência, exterioridade x interioridade, tomando o vitalismo cristão como principio.

 

O VITALISMO EM REICH E HENRY: UMA BREVE INTRODUÇÃO CONCEITUAL

Entende-se vitalismo nesse texto como todo o pensamento que admite um princípio vital irredutível aos processos físicos e químicos dos organismos. Assim, como afirma Mora (1964): "Los autores plenamente vitalistas rechazan toda posibilidad de reducción de lo organismo a lo inorgánico" (p.913), do mesmo modo rechaçam a compreensão da vida a partir das leis mecânicas que regem o universo, como é típico das ciências biológicas. No pensamento contemporâneo, os vitalistas se distribuem em diversas áreas do conhecimento como na biologia, psicologia e ciências sociais. Para Dussel (1969), autor que tomaremos como referência para essa discussão, o vitalismo é uma tomada de posição ética necessária ao pensamento crítico em geral, sobretudo frente aos sistemas de dominação que se baseiam na opressão à vida, gerando necropolíticas. Esses sistemas de dominação estão presentes na sociedade ocidental, principalmente naquilo que ela tem de colonial. A colonização, do ponto de vista europeu, precisa justificar a morte e a dominação de outros não-europeus e se utiliza de uma episteme que faz do sujeito um objeto, expresso no cogito cartesiano. O vitalismo é uma resistência a esses modos de dominação, pois apela à dignidade do vivente, suas necessidades concretas de nutrição, gozo e fruição da Vida mesma (Dussel,1996).

Embora a maior parte do pensamento ocidental não seja vitalista, alguns autores críticos à modernidade o afirmam a seu modo, segundo Dussel (1996) podemos perceber certo vitalismo em Marx, Heidegger, Freud e Bergson, por exemplo. Os autores que iremos trabalhar nesse texto podem ser igualmente considerados vitalistas, pois admitem os mesmos princípios de que falamos no parágrafo anterior. Michel Henry vem de uma tradição fenomenológica e foi inspirado pela leitura do fisiologista Maine de Biran, um vitalista para sua época, século XIX, que rechaçava a visão mecanicista da fisiologia experimental de seus contemporâneos. Já Reich, além de ter tido uma clara influencia freudiana e marxista, é também apontado por alguns autores (Albertini, 1994; Bedani, 2007) como um continuador das idéias de Bergson, filósofo conhecido por sua adesão à corrente vitalista do pensamento.

Ainda segundo Dussel (1969), o humanismo semita foi de grande contribuição e inspiração para os pensadores vitalistas europeus modernos, nos quais os autores que trabalharemos se fundamentam. Essa base vitalista semita encontra na figura de Cristo sua maior expressão, pois é nessa que o transcendente divino se faz corpo vivo. O texto que aqui se apresenta, demonstrará de que forma esses dois autores, Reich e Henry, inspiraram-se na figura de Cristo por expressar princípios vitalistas centrais para suas teorias que, por sua vez, embasam uma psicologia vitalista.

Reich, em sua obra Análise do Caráter de 1933, elabora uma sofisticada teoria que propõe que alguns anéis segmentares do corpo, conhecidos como couraças, teriam funções psíquicas específicas que, a depender do modo foram sendo moldadas no contato do corpo com o ambiente imediato, poderiam reter o fluxo de energia da Vida, entendida por ele como orgonón, gerando determinados tipos de caráter. Esse se traduz em tipos de personalidades "encouraçadas" no seu modo próprio de reter e liberar os impulsos vitais e são análogos às estruturas neuróticas descritas por Freud, como masoquista, obsessivo, sádico, entre outros.

Ainda segundo Reich (2001/1933) a família, enquanto agente socializador de determinado sistema social, oprime a vida, seu fluxo natural e a possibilidade do sujeito fruí-la, moldando assim o caráter, estrutura que suporta as neuroses e patologias vitais que se manifestam como um todo psicofísico. A antropologia reichiana entende o corpo e a mente como uma unidade o que embasa uma teoria holista e uma terapêutica que se vale de recursos não apenas verbais, mas incluem: exercícios respiratórios, massagens e práticas corporais diversas que tem como intuito afrouxar as couraças musculares e liberar o fluxo vital, orgónen. A liberação desse fluxo vital promoveria no indivíduo a possibilidade de ele viver sua vida de forma mais plena.

Outro autor com quem dialogaremos nesse artigo é Michel Henry, fenomenólogo francês, articulador de um movimento dentro da fenomenologia conhecido como Fenomenologia da Vida. Segundo seu modo de entender, a fenomenologia clássica de base husserliana ou heideggeriana, atentou-se somente ao aspecto visível do real. O próprio termo fenômeno, do grego phainomenon remete àquilo que aparece, deixando de lado o aspecto invisível que o embasa que segundo Henry (2009) é a própria Vida. A Vida se autoprova, autoafeta, na dor, sofrimento, mal-estar, alegria, etc. Ou seja, os afetos são governados pela Vida em sua capacidade de autoafecção, que se mostram no mundo visível, embora não tenham aí sua origem. A vida em sua invisibilidade porta também sua arquinteligibilidade, ou seja, ela dirige os demais fenômenos visíveis, pois se fundamenta a si mesma, embora esse autofundamento não seja visível à consciência.

A Fenomenologia da Vida tem inspirado a prática e as teorizações de psicólogos interessados em compreender o processo terapêutico e o fenômeno da afetividade como Ferreira e Antúnez (2014) que entendem que esse pensamento pode ajudar no esclarecimento da clínica psicológica principalmente no que diz respeito à compreensão de fenômenos que, por sua natureza, ultrapassam o alcance de uma psicologia que se baseia exclusivamente na intencionalidade da consciência. Portanto, tudo o que diz respeito aos modos de autoafecção da Vida, o que inclui principalmente a afetividade e as patologias vitais, podem ser entendidos desde a perspectiva de Michel Henry. Nesse sentido, a partir dos estudos da Fenomenologia da Vida, a Psicologia Fenomenológica ganha uma perspectiva mais radicalmente vitalista do que quando se inspira na chamada fenomenologia clássica como a de Husserl, Heidegger e Sartre. Isso justifica o fato de fazermos referência a Michel-Henry enquanto um autor que tem trazido uma nova perspectiva ao campo da Psicologia e que, por sua vez, também se inspirou na máxima expressão vitalista do pensamento semita, a figura de Cristo.

Veremos a seguir como cada autor se apropriou, à sua forma, da figura e do pensamento de Cristo, com o intuito de desvelar nele o vitalismo presente em seus próprios pensamentos.

 

A PSICOLOGIA VITALISTA INSPIRADA EM CRISTO SEGUNDO A LEITURA DE HENRY E REICH

A tradição semita é o pano de fundo de onde emerge a figura de Cristo. Chamamos de semita todos os povos que originaram as antigas grandes civilizações tais como o Egito, a Mesopotâmia e a civilização hebraica, assim como os povos arameos, cananeus e caldeus. É também da tradição semita que se originaram as grandes religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Para o que nos interessa nesse texto, segundo Dussel (1969) a antropologia desses povos tem um aspecto comum que se contrapõe à antropologia helênica: "... El semita concibe al hombre unitariamente, como un todo indivisible; en este sentido puede hablar-se de monismo, por oposición al dualismo helénico." (p. 21).

O cuidado para com o cadáver devotado pelo povo egípcio é um exemplo claro de como essa antropologia monista se manifestava, enquanto os gregos jogavam os corpos ao mar, os egípcios o embalsamavam, guardavam e o veneravam. Nesse sentido, segundo Dussel (1969):

"El egipcio presta atención a la carne, al corazón, como sujeto de la persona concreta. Desde el Egipto prehistórico encontramos tumbas, a veces humildísimas, que nos hablan del respecto al cuerpo. Los textos de los sarcófagos, los textos de las pirámides, el libro de los muertos son unánimes en este sentido." (p.22)

Ainda segundo Dussel (1969), na tradição hebraica, expressa no velho testamento, da qual o cristianismo é herdeiro, entendia-se que a imortalidade se alcançaria pela ressurreição da unidade psicofísica e não pela imortalidade da alma desencarnada. Na chamada tradição apocalíptica de Ezequiel e de Isaías, expressa no livro de Daniel, não se fala em uma ressurreição do corpo, mas de um adormecimento deste, o ser do humano é concebido como uma totalidade psicofísica inviolável. O conceito de néfesh diz respeito a uma espécie de alma que permanece no cadáver, como uma guardiã que permite a continuidade da identidade pessoal. Já em livros onde a influência helênica é maior, como o Sabedoria de Salomão, o conceito de básar, carne, é traduzido como soma e néfesh como psykhé. De modo que a dualidade se faz presente, porém, segundo o autor, a antropologia do novo testamento reafirma a unidade psicofísica da tradição semita. Os primeiros versículos do evangelho de João dizem o seguinte:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus, Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. Ali estava a luz verdadeira, que alumia a todo o homem que vem ao mundo. Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem filhos de Deus; aos que crêem no seu nome; Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. João (1, versículo 1-14).

As concepções de Vida e Corpo presentes nessa passagem serão discutidas tanto por Henry quanto por Reich nas obras que iremos trabalhar nesse artigo, Palavras de Cristo, de 2003 de Henry e O Assassinato de Cristo de Reich, publicada originalmente em 1953. A associação entre o Verbo, o Logos, e a Vida, e a encarnação do Logos em uma carne (básar) humana, é a base de um antropologia que permanece monista tal como a hebraica antiga ao mesmo tempo que vitalista, pois tem no reconhecimento e na valorização da Vida um dos seus alicerces mais caros.

Mas é nas palavras do apóstolo Paulo de Tarso que Dussel (1969) irá encontrar a manifestação mais clara da antropologia cristã no que se refere à unidade psicofísica, embora esse opusesse a inteligência da carne à do espírito, o humano pode incorporar ambas de forma total. Ou seja, pode viver de acordo com a carne ou com o espírito. Os que permanecem apenas ligados à carne e ao sangue não poderiam, segundo a exortação do apóstolo aos Corintos, alcançar o reino de Deus. Não se trata de abandonar o corpo em função do espírito, mas de assumir um corpo espiritual. Não por acaso, Cristo, ao vencer a morte, não a faz como um espectro puramente espiritual, mas como corpo ressuscitado.

Espero haver demonstrado, recorrendo à leitura de Dussel da antropologia semita, a íntima coincidência entre a figura de Cristo e a unidade psicofísica que se dá na vida encarnada, fato que não passará despercebido pelos autores que iremos trabalhar agora. Esses irão ilustrar a intrincada relação dos homens com a Vida com a qual eles, por condição, não coincidem totalmente. Em ambos, a saída para essa dualidade se encontra na afirmação dessa mesma Vida como valor supremo.

Obviamente as perspectivas dos autores são distintas, enquanto Reich (1982a) entende que as potências do psiquismo humano precisam ser vividas para a superação de uma sociedade autoritária e autocrática, Henry (2012) se preocupa com uma reforma epistemológica no bojo da Fenomenologia e defende uma ética vitalista como saída para os entraves culturais contemporâneos, como descrito em sua obra A Barbárie de 2012. No que diz respeito ao mundo psi, que é o que nos interessa enquanto psicólogos, Reich provém desse meio, foi discípulo de Freud e um dos mais destacados de seus dissidentes, Henry tem sido, nos últimos anos, principalmente em nosso meio brasileiro, utilizado como embasamento e inspiração para psicólogos que adotam a perspectiva fenomenológica, como abordamos acima. Em ambos também é constatada uma dicotomia e, por vezes, até mesmo uma oposição entre a Vida e o Mundo humano, valendo-se de distintos conceitos que apontam essa distinção. Em Reich a Vida se opõe à Peste Emocional e em Henry ao Mundo Visível. Examinaremos com mais detalhes essas idéias com o fim de alcançar o objetivo desse texto.

Para Reich (1982a) o homem evade à vida através da Peste Emocional, essa é conseqüência do caráter encouraçado em um sistema social que funciona contra a Vida. Dito de outro modo, a estrutura do caráter humano provoca evasão do essencial da Vida. A filosofia contemporânea, segundo Reich, ao questionar o sentido da Vida, tampouco conhece a Vida mesma que é concebida, segundo a ciência moderna, como uma mecânica, enquanto sua essência seria funcional. Segundo Reich (1982a):

A função da Vida viva está em volta de nós, está em nós, em nossos sentidos, diante de nossos narizes, nitidamente visível em cada animal, em cada árvore, em cada flor. Nós a sentimos em nosso corpo e em nosso sangue. Mas para os prisioneiros ela continua o maior, o mais impenetrável dos enigmas. (p. 5)

A coincidência com a filosofia de Michel Henry é clara, a Vida, para o autor francês se mostra na sua autoafecção, seu sentido mais pleno permanece no invisível, ela só pode ser sentida e experimentada, mas não descrita e entendida com a mesma base que a fenomenologia se vale para descrever os fenômenos tal como se mostram à consciência. A vida é imanente, fluxo constante, mas os homens, segundo Reich (1982), odiaram o vivo e assassinaram a Cristo.

O homem encouraçado, revestido de um caráter neurótico que odeia a Vida, mata a Cristo em seu modo de ser e o faz quando o concebe como uma transcendência externa a si mesmo rechaçando sua essência imanente e vital. Para Reich (1982) Cristo é a essência da manifestação da Vida mais plena já conhecida pela humanidade, no entanto, ao ser transformado em uma imagem pelo cristianismo institucionalizado, sua figura reforça o caráter encouraçado e antivital. Seguindo o texto bíblico, Reich afirma que os humanos encouraçados mistificaram a Cristo fazendo dele um líder e, em seguida, submeteram-se à sua imagem e não à forma de Vida que ele trouxe.

Segundo Reich (1982b), Cristo em essência é o amor no corpo que se realiza inclusive e, sobretudo, no abraço genital pleno em que se transmite a energia pura da Vida entre duas pessoas em um ato sexual livre de hipocrisia. Para o autor, Cristo não quis ser o salvador da humanidade, mas os humanos religiosos o elegeram assim, pois necessitam submeter sua Vida a um Sistema opressor, já que suas couraças não lhes permitem viver e entender a Vida plena. O autor sublinha que, na atualidade, Cristo permanece sendo amado como uma imagem, mas não como a Vida mesma que ele manifestou. Por isso, os mesmos que amaram a Cristo, que o seguiram e o receberam com festa em sua entrada triunfal em Jerusalém, foram os que depois o assassinaram, já que ele não se colocou como o líder que o povo queria seguir e que pudesse ajudar os judeus a se libertarem do arbítrio romano. Para Reich (1982b) Cristo, com suas atitudes, quer demonstrar a Vida, assim diz o autor: "Eu sinto Deus em meu corpo e em minhas entranhas. Vós o vedes somente como uma imagem no céu." (p. 161).

O Zé ninguém, termo que o autor utiliza para se referir ao homem comum do povo, prefere uma verdade mística a uma verdade biológica, pois desconhece sua própria Vida que foi encouraçada pelo seu caráter. O Cristo de Reich é a verdade da Vida e não um salvador, sua afirmação de ser filho de Deus é coincidente a ser filho da Vida e não do meio social. Por isso Cristo nega sua família e o valor das leis e das instituições para afirmar uma verdade que não estava escrita, mas precisava ser vivida. As organizações sociais, através da família, jogam com a contraverdade que mistifica e oprime a verdade vital, pois carece de contato pleno com a Vida mesma. Segundo Reich (1982b): "A verdade é o contato pleno, imediato entre o vivo que percebe e a Vida que é percebida. A experiência da verdade é tanto mais plena quanto melhor for o contato." (p. 191).

Em síntese, assassinar a Cristo é bloquear o contato com a Vida e, em troca, amar a imagem de Cristo de forma submissa servindo como subterfúgio para seu próprio assassinato. Diz Reich (1982b): "Quanto mais se exclui a verdade mais nos afastamos da verdade biológica e migramos para uma verdade mística." (p. 194). Ao lidar com a contraverdade do Zé Ninguém encouraçado, no entanto, o autor adverte os terapeutas: não é pelo convencimento racional que se pode levar o outro a vivenciar sua verdade. Faz-se necessário conhecer a contraverdade que se dá pelo caráter, para facilitar a liberação das couraças de modo paulatino sem afetar o equilíbrio precário que essas permitem. Essas couraças estão intimamente ligadas a um sistema social que continua a assassinar a Cristo quando repreende a Vida através de uma repressão das experiências infantis, da sexualidade genital plena e por fim, a já tão falada aqui, transformação do Real em algo místico, o que cria uma superestrutura social hegemônica alheia à potência vital criadora e libertadora.

Já Michel Henry associa o cristianismo à sua filosofia desde sua obra A Encarnação de 2001, mas a assume mais enfaticamente em Palavras de Cristo de 2003. Henry exalta o vitalismo de Cristo, não dialoga diretamente com Reich, mas, podemos dizer, concorda com ele ao afirmar a coincidência de Cristo com a Vida mesma. O ponto de partida de Henry, porém, é outro, assim como a dualidade apontada por ele. Mais fiel à teologia cristã, o filósofo pressupõe a dualidade de Cristo enquanto homem e divino. Cristo assume a finitude da carne, tal como qualquer humano, e traz a mensagem da Vida como um Deus. Para Henry (2003):

Daí que a carne, cuja vida é finita, apresente duas séries de caracteres correlativos. Por um lado, as impressões que a constituem são tonalidades afetivas negativas tais como o mal-estar da necessidade, a insatisfação, o desejo, as múltiplas formas e matizes da dor e do sofrimento dos quais ela é a sede. Em todas estas tonalidades, o teor penoso ou desagradável expressa a falta fundamental que afeta a carne, na medida em que ela é incapaz de se bastar a si mesma. Desta primeira série de caracteres decorre, por outro lado, uma segunda propriedade de toda e qualquer carne, o seu dinamismo. Precisamente porque nenhuma das necessidades que marcam a nossa condição carnal pode ficar sem resposta, uma vez que se manifestam com uma insistência cuja pressão cedo se torna insuportável, nascem então da nossa carne, diversos movimentos através dos quais ela procura transformar seu mal-estar em um bem-estar de um desejo provisoriamente satisfeito. (p. 11-12)

Para o filósofo francês, Cristo conheceu essa carne, viveu nela, sentiu como todos os homens: apetite sexual, sede e fome, portanto fala aos homens como homem e como Deus, daí que suas palavras são encarnadas e vitais, pois ao falar como homem, Cristo vivencia a si mesmo como tal, mas com a vantagem de que, ao ser homem e Deus ao mesmo tempo, pode também anunciar como Deus se manifesta na carne humana. Essa manifestação se dá pelo coração, o homem prova a si mesmo no coração, no centro da sua afetividade e é por ele que o homem também pode encontrar a Deus dentro de si. Se a realidade do homem é essencialmente afetiva e a afetividade é a forma como a Vida prova a si mesma, é por ela que o homem pode encontrar a Vida dentro de si que é Deus.

Assim como o apontado por Reich, Henry também ressalta nas palavras de Cristo a oposição entre o mundo e a Vida. No entanto, para esse autor, o mundo não ganha os contornos do sistema social que se estabelece na família, mas está naquilo que ontologicamente é fenômeno, tema principal da fenomenologia clássica. O mundo é fenomênico, visível, a Vida é invisível, autoafetada. O mundo é o horizonte no qual se dá a existência em relação ao externo, a Vida se dá no segredo invisível onde se alcança a glória de Deus, segundo Henry (2003). Cristo, em suas palestras, denota essa oposição exortando o homem a não buscar a glória desse mundo, mas a glória do reino dos céus. Para Henry, o céu é uma alusão ao invisível da Vida, frente ao visível do mundo. O homem habita os dois reinos, sua corporeidade externa se manifesta no corpo apenas como invólucro que esconde sua interioridade que opera em seu coração. Esse hiato possibilita a hipocrisia vivida pelo homem, pois ele pode falar daquilo que não está no seu coração, em função de manter as aparências visíveis distante da sua interioridade verdadeira e invisível. Afirma Henry (2003): "Deste defasamento entre as nossas ações reais e a sua aparência, nasce a possibilidade da hipocrisia que habita o mundo dos homens e que, como aqui vemos, não se limita de modo algum às palavras, mas diz também respeito aos seus atos." (p. 21)

Cristo exorta a todo o tempo que os atos verdadeiros não devem buscar reconhecimento no mundo dos homens: "Se quereis agir como justos evitai fazê-lo diante dos homens, a fim de serdes notados." (Mateus 6; 1). A hipocrisia dos fariseus, os homens da lei que agem conforme seu regramento, mas distantes dos ditames do coração é comumente tema das palavras de Cristo. Nesse sentido, ele estabelece uma oposição entre as leis humanas e as leis da Vida, invertendo a ordem social baseada nas leis humanas do mundo visível, promovendo um deslocamento da realidade do visível aparente para o invisível vital e divino. Dessa forma, Cristo desqualifica o mundo dos homens para reafirmar o mundo divino, como afirma Henry (2003):

A desqualificação do mundo no qual os homens põem a sua confiança e a sua redução a uma aparência que, além do mais, é uma aparência enganosa, explicam por que se torna possível dizer: aquele que reza não reza, aquele que jejua não jejua aquele que dá esmola é completamente indiferente ao pobre e à dádiva impessoal com que o gratifica. É a totalidade das atividades humanas e das relações que nelas se baseiam que, ao esvaziarem-se de sua substância se tornam irrisórias (p.31).

Para o autor francês, as palavras de Cristo vêm revelar que não é frente aos homens visíveis que se encontram os verdadeiros atos, mas na interioridade invisível do coração. Além disso, as palavras de Cristo invertem as leis normais e morais da sociedade de sua época, a lei da reciprocidade. Cristo clama a um doar sem esperar nada em troca e não retribuir a agressão com outra. Ao fazer essas exortações convoca os homens a viverem de acordo com as leis de Deus, qual seja: a de uma doação constante e infinita que é o Amor. O fundamento desse não se encontra em realidades autofundadas como se dá na genealogia dos homens. Segundo a fenomenologia da Vida de Michel Henry, a Vida funda a si mesma, a Vida se autorevela. Na genealogia dos homens a mãe gera o filho, mas Cristo fala de algo anterior à gestação, pois mãe e filho são engendrados antes pela Vida que é a Vida de Deus, devendo a ele uma filiação comum, pois ambos são filhos de Deus. Por isso, para a fenomenologia da vida, a Vida não é uma coisa, tal como as coisas do mundo que as palavras do mundo referenciam, a Vida que provamos é uma revelação, viver é provar-se, revelar-se, e a revelação da Vida é a revelação de Deus em nós. A palavra divina, a de Cristo, não diz respeito ao externo visível do mundo, mas é a própria Vida falando de si mesma, revelando-se. Assim diz Henry (2003):

Com o cristianismo surge a intuição inaudita de um outros logos, um logos que é bem uma revelação não já à visibilidade do mundo, mas à autorevelação da Vida. Uma palavra cuja possibilidade é a própria Vida e na qual a Vida fala de si, revelando-se a si mesma na qual a nossa própria vida se nos diz constantemente." (p. 74)

A linguagem da Vida é a linguagem do sofrimento, alegria, tristeza, angústia, desespero, desejo insatisfeito, esforço, entre outras autoafecções. A palavra do mundo, cujo referente é externo, pode mentir, enquanto a palavra da Vida é verdadeira em sua própria revelação. A palavra do mundo pode fingir e se valer da hipocrisia; representa aquilo que não vive. A palavra da Vida é verdade porque se revela a si mesma e não busca demonstrar algo externo a ela. Henry (2003) adverte: "Situada no coração da realidade como sua revelação original, a palavra da Vida é a grande esquecida da reflexão contemporânea assim como do pensamento filosófico tradicional." (p. 80). Os linguistas trabalham a palavra do mundo, suas referências externas e tentativas de significar o não visto, mas o verbo que se faz carne é consubstancial à Vida mesma, e o homem ao se falar desde o seu centro afetivo, seu coração, fala como Cristo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao comparar a leitura de Reich e Henry sobre Cristo, tem-se claro que ambos concordam que a figura mítica revela uma dicotomia entre a Vida e o Mundo dos Homens. O fato de que o primeiro tenha se centrado no sistema social e o segundo no aspecto visível dos fenômenos, elimina a total coincidência, mas denota distintos pontos de partida. A herança psicanalítica de Reich lhe permitiu apontar a dissonância entre a cultura e a Vida, desde o início enunciada por Freud como princípio de prazer e realidade, e na segunda tópica com o Id, o Ego e o Superego. Reich amplia as duas pontas do esquema freudiano, de um lado a Vida, já antevista por Freud sob uma visão abstrata, segundo Reich entendida como o Isso, Id. Para Reich, a Vida deve ser concebida de uma forma funcional, topológica, pois encontra lugar no corpo, não podendo ser reduzida a um conceito abstrato. Na outra ponta o princípio de realidade, manifesto no Ego e no Superego, como o sistema sócio-cultural como um todo. Nesse ponto Reich (1983b) tece uma crítica a Paulo de Tarso que dissocia a carne do corpo funcional, segundo o autor o apóstolo contribuiu para a dissociação ocidental do corpo como algo sagrado e revelador da Vida, Paulo atribui os prazeres da carne às falhas humanas, prometendo uma vida extracorpórea mais plena. Para Reich é só no corpo e através do corpo que se pode encontrar a Vida plena e eterna de que fala Cristo.

Dussel (1969) entende que a concepção de carne em Paulo não afeta, mas reforça a integridade psicofísica do pensamento semita, ao afirmar que o homem é um todo enquanto corpo, pois assume sua dimensão terrena e espiritual. Essa distinção, para Reich, ajuda a mistificar o corpo como sede da própria Vida de Cristo. Para Reich (1982b) Cristo teve uma vida genital, exerceu-a e é na plenitude dessa Vida que está a realização plena da Vida no outro, capaz de engendrar outra Vida. Graças a Paulo, segundo Reich (1969), o fluir e o fruir da Vida se divorciou do espírito, uma vez que no cristianismo institucional, o corpo se torna lugar de pecado e falha. Por isso, na ética defendida pelo autor, a humanidade e a divindade do corpo deveriam se reconciliar, para que se encontre a essência do cristianismo, obnubilado pelas religiões cristãs.

A concepção de corpo em Reich se assemelha às concepções orientais, compreensão essa que a antropologia semita e grega não contempla. A divisão do corpo em anéis segmentados funcionais análogos aos chacras indianos, não tem lugar na unidade da carne, nem na afecção do coração, que é um dos anéis, chamado torácico, e tampouco na idéia de soma grego. Reich promove uma concepção inovadora e um modo de compreender a vitalidade a partir da herança vitalista freudiana. As terapias inspiradas em Reich envolvem uma intervenção no corpo, seja através de exercícios, massagens ou alterações conscientes no padrão respiratório. Do outro lado, Henry convoca o coração como sede do corpo cristão e berço da vitalidade, de onde as palavras podem revelar a verdade. A psicologia inspirada em Henry, não toca o corpo real, como a advinda de Reich, mas se atenta às palavras reveladoras da vida que provém do coração, por isso as terapias inspiradas no pensador francês permanecem prioritariamente verbais e cuidadosas na escuta do verdadeiro da vitalidade.

Em síntese, pode-se afirmar com segurança que esses autores têm com Cristo uma relação de verdade como a-lethéia, desvelamento, pois, uma vez sede da Vida, ele é a verdade imanente em todos os humanos. Entende-se assim que, por mais que a Psicologia tenha se tornado uma ciência, ela deve às concepções filosóficas expressas através de mitologias, as concepções que a embasam. O que norteia a prática do psicólogo nesse sentido, não é apenas uma episteme, que se alicerça em uma concepção de mundo, mas uma Ética, que na compreensão de Dussel deve se afirmar como um vitalismo essencial. Portanto, se isolarmos o pensamento cristão de sua pretensão religiosa e monológica, não aberto ao diálogo com outros pensamentos, encontramos uma ética de suma relevância para a cultura ocidental, uma ética que, ao se originar de povos oprimidos, aponta caminhos para a libertação (Dussel,1996).

 

 

Referências

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Dussel, E. (1969). El Humanismo Semita. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires.         [ Links ]

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Reich, W. (1982b). O Assassinato de Cristo. São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1953).         [ Links ]

 

 

Notas sobre o autor:

Gustavo Alvarenga Oliveira Santos - Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Prof do Departamento de Psicologia Clínica e Sociedade. Institudo de Educação, Letras, Artes e Ciências Humanas e Sociais (IELACHS).

Recebido em: 04/03/2019
Aprovado em: 25/04/2020

 

 

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