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Revista do NUFEN
versión On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.14 no.2 Belém mayo/ago. 2022
ARTIGO
Jurema e o estar-sendo da mulher brasileira: uma análise kuschiana
Jurema and the staying-being of the brazilian woman: a kuschian analysis
Jurema y el estar-siendo de la mujer brasileña: un análisis kuschiano
Gustavo Alvarenga Oliveira Santos1 I
I Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Brasil
RESUMO
Demonstra-se como o mito e o rito conhecido por Jurema constituem-se como um símbolo que desvela a condição existencial da mulher popular brasileira. Para tanto conta-se a história da Jurema e o modo como ele se transformou em um mito da Umbanda brasileira. Demonstra-se como esse mito repercute em uma visão teológica umbandista e, através de uma análise kuschiana, de que forma ele desvela um modo de ser brasileira. Por fim, conclui-se sobre a importância do símbolo na compreensão e entendimento da ontologia popular e como ela repercute no fazer do profissional psi, sobretudo o que lida com a realidade da mulher brasileira em condições subalternas.
Palavras-chave: Jurema; Umbanda; Kusch; Psicologia Fenomenológica.
ABSTRACT
It is demonstrated how the myth and rite known as Jurema constitute themselves as a symbol that reveal the existential condition of the Brazilian popular woman. In order to do so, the story of Jurema is told and the way in which it became a myth of Brazilian Umbanda. It is demonstrated how this myth has repercussions on an Umbandist theological view and, through a Kuschian analysis, how it reveals a Brazilian way of being. Finally, it concludes on the importance of the symbol in the understanding of the popular ontology and how it affects the work of the psi professional, especially those dealing with the reality of Brazilian women in subaltern conditions.
Keywords: Jurema; Umbanda; Kusch; Phenomenological Psychology.
RESUMEN
Se demuestra cómo el mito y el rito conocido como Jurema se constituyen en un símbolo que desvela la condición existencial de la mujer popular brasileña. Para ello, se cuenta la historia de Jurema y la forma en que se convirtió en un mito de la Umbanda brasileña. Se demuestra cómo este mito repercute en una visión teológica umbandista y, a través de un análisis kuschiano, revela un modo de ser brasileño. Finalmente, concluye sobre la importancia del símbolo en la comprensión y comprensión de la ontología popular y cómo afecta el trabajo del profesional psi, especialmente cuando se trata de la realidad de las mujeres brasileñas en condiciones subalternas.
Palabras clave: Jurema; Umbanda; Kusch; Psicología Fenomenológica.
Introdução
A palavra Jurema não designa um único ente, nomeia uma árvore, a raiz dessa mesma planta, um culto, uma religião, uma cidade espiritual, uma entidade Cabocla da Umbanda, uma bebida, no entanto essa multiplicidade não quer dizer que esses significados não estejam entrelaçados e não se conectem. Tal conexão e polissemia, segundo o nosso argumento, remetem a algo mais profundo, a ontologia, e nos provoca aquilo que é próprio a nós latino-americanos, brasileiros, forjados em uma história de lutas, invasões e sobretudo, resistências, que se simbolizam na arte e na religiosidade popular. Entendemos, por fim, que Jurema é um símbolo a ser considerado nas teorizações e práticas dos psicólogos engajados com o popular.
O termo Jurema é oriundo do idioma tupi, Yu-r-ema, Cascudo citado por Assunção (2010) define como o nome dado a "uma árvore espinhenta do sertão, da qual o gentio extraía um suco capaz de dar sono e êxtase a quem o ingeria". (p. 19). O culto à Jurema não se restringe ao vegetal em si, mas engloba a bebida preparada a partir da extração e fermentação da casca de sua raiz, bem como a evocação dos espíritos das matas, índios, caboclos e mestres, que tratam genericamente de curas físicas e espirituais. Tal culto e expressão religiosa têm raízes indígenas; inicia-se no Toré que, segundo Grunewald (2018) "trata-se, a princípio de uma dança ritual que consagra o grupo étnico" (p. 44), não podendo ser exatamente precisada sua origem e forma. Em tal ritual, há evocação de espíritos não-humanos, assim como o uso de cachimbos, ervas e a ingestão da bebida conhecida como Jurema. Em um segundo momento, o termo Jurema foi utilizado na religião oriunda do semi-árido nordestino conhecida como Catimbó, já incorporando elementos cristãos ao culto indígena anterior, nesse há também uso de cachimbos, ervas, mas invocação de espíritos, muitos deles de origem bíblica, como o Rei Salomão bem como a incorporação da bruxaria ibérica e outras tradições de inspiração católica. Os espíritos de índios, caboclos e mestres são os evocados nas sessões do catimbó que consiste em cantos, rezas de origem católica, assim como culto aos santos e milagreiros regionais.
Em um terceiro momento a Jurema se torna uma linha da Umbanda, conhecida em alguns terreiros visitados por Assunção (2010) como linha das matas, na qual são evocados os espíritos de mestres, índios e caboclos, diferindo-se da linha das águas, da direita, e da linha astral, do alto. Por isso é considerado um trabalho mais pesado, à esquerda na linguagem umbandista, pois trabalha com energias mais densas e que podem ser destrutivas. Nos trabalhos à esquerda os espíritos evocados, segundo o estudo de Assunção (2010), estão dispostos ao bem e ao mal, agindo de forma construtiva, em prol da cura ou destrutiva, contra uma pessoa. De todo modo, trabalhar à esquerda é trabalhar com a correção, algo que precisa ser corrigido e, portanto, curado, por isso a linha das matas é uma linha basicamente de cura para males físicos e espirituais. Santos e Orixás, pertencentes ao astral, não conversam diretamente com os humanos, alguns se quer falam português, enquanto os espíritos evocados no trabalho de Jurema sim e podem com isso resolver problemas humanos (Assunção, 2010). Em todos esses cultos, há ingestão da bebida que tem sofrido ao longo do tempo, inúmeras modificações em seu preparo e, em algumas delas perdendo suas potencialidades expansoras da consciência Oliveira (2011).
Assunção (2010) ressalta o processo de umbandização do culto à Jurema no qual a bebida e o vegetal Cozta (2019) ganham cada vez mais aspectos antropomórficos. Isso se consolida com o surgimento do mito da Cabocla Jurema. Assim, podemos afirmar que a Jurema vai se personificando na medida em que vai se sincretizando com os elementos africanos e europeus, presentes no Catimbó e na Umbanda. Nessa última, a forma da Cabocla Jurema se consolida, assim como seus mitos e histórias humanizadas. De todo modo, a planta em si não se extingue nas narrativas, mas ganha distintos contornos. Em um dos mitos contado no Catimbó diz-se que a sagrada família quando fugia do imperador romano Herodes, descansou no pé da Jurema que os abrigou do sol. Já em um mito umbandista conta a história da Cabocla Jurema que foi abandonada quando bebê aos sete meses aos pés da árvore de mesmo nome. Nota-se que o elemento primeiro, a árvore, permanece nos dois, no entanto, enquanto no catimbó o vegetal ocupa um lugar de abrigo à sagrada família cristã, na Umbanda essa abriga sua personificação como Cabocla, como detalharemos mais adiante.
A polissemia dos significados de Jurema chama atenção de alguns autores, como Bairrão (2003) e Grunewald (2018), ambos destacam as influencias da modernização e urbanização desse processo que vai do vegetal ao humano, passando pelas experimentações psiconáuticas urbanas e estrangeiras, que faz com que a Jurema, enquanto bebida, ganhe espaço entre os adeptos da espiritualidade da nova era.
O interesse desse texto é sobre o símbolo Jurema e temos em Eliade uma hipótese bem interessante. Segundo o autor, a relação humano-vegetal, do ponto de vista mítico, remonta aos primórdios da humanidade e percorre a história das religiões, para Eliade (2016):
Uma árvore impõe-se à consciência religiosa pela sua própria substancia e pela sua forma, mas esta substância e esta forma devem o seu valor ao fato de que se impuseram à consciência religiosa, de que foram "escolhidas", quer dizer, se "revelaram". Nem a fenomenologia da religião nem a história das religiões poderiam superar a constatação dessa coexistência da natureza e do símbolo que intuição do sagrado vem valorizar. Não se pode, pois, falar propriamente de um "culto da árvore". Nunca uma árvore foi adorada por si mesma, mas sempre por aquilo que, através dela, se "revelava", por aquilo que ela implicava e significava. As plantas mágicas ou farmacêuticas, como veremos adiante, devem também a sua eficácia a um protótipo mítico (p. 216).
Pois não é esse o caso em questão? Não é Jurema uma árvore que, em princípio se revela pelos seus efeitos mágicos e farmacêuticos, uma vez que da casca da raiz da Jurema se extrai a molécula DMT, conhecida como um dos mais potentes expansores da consciência, de onde também se extraem elementos para curas de diversos males (Oliveira, 2011)?
A árvore não deixa de estar presente desde o Toré até os cultos urbanos da geração da nova era, ao mesmo tempo em que, como galhos que se espalham em distintas direções, toma distintos significados, ritos e articulações simbólicas. Tal é o caso do surgimento da Cabocla Jurema que se dá na Umbanda, tal entidade comandará uma falange de caboclos submissos a ela que corporifica e personifica os saberes das matas. É nessa religião apontada por Assunção (2010) como a religião brasileira por excelência, que Jurema ganhará uma história mítica, personificada, humanizada, conta-se que:
Jurema é entidade de força, de poucos risos, mas de um carinho fora do normal. A ela credita-se várias falanges de caboclos, onde ela é comandante, são chamados eles de falangeiros de Juremas. E tem sua filha Jureminha que responde também na linha de Jurema. Filha valente de Tupinambá. Adotada pelo mundo, foi encontrada aos pés do arbusto da planta encantada que lhe deu o nome; cresceu forte, bonita, como formosura da noite e firmeza do dia. Corajosa, a Cabocla tornou-se a primeira guerreira mulher da tribo, pois sua força e agilidade e manejo da armas e da ciência da mata, se tornara uma lenda por todo continente; onde contadores de estórias, aos pés da fogueira, falavam da índia de pena dourada que era a própria mãe divina encarnada. Nada causava medo na Cabocla, até que um dia ela encontrou seu maior adversário; o amor. Jurema se apaixonou por um caboclo chamado Huascar, de uma tribo inimiga chamada Filhos do Sol, que fora preso numa batalha. Os dias se passaram e o amor aumentava, pois o pior de amar não é amar sozinho e sim amar sem retorno, pois exige do amado uma ação em prol do amor. Jurema que aprendera a resistir ao conto do boto, ao veneno da cascavel e da madeira, já resistira bravamente a centenas de emboscadas e que sentia o cheiro à distância de ciladas, não conseguiu resistir ao amor que fluía do seu peito por aquele guerreiro. Observando o caboclo preso, ela viu nos olhos dele, as mil vidas que eles passaram juntos, viu seus filhos, o amor que os unia além da carne e percebeu que não foi por acaso, que ele fora o único caboclo capturado vivo e decidiu libertá-lo, mesmo sabendo que seria expulsa de sua tribo. Na fuga, seu próprio povo a perseguiu, e em meio a chuva de flechas voando na direção do caboclo fugitivo, foi Jurema que caiu, salvando o seu amado e recebendo a ponta da morte que era para ele, no seu próprio peito. Conta a lenda que o Caboclo Huascar voltou à Terra do Sol e fundo um império nas montanhas andinas e mandou erguer um templo chamado Macchu Picchu em homenagem a Jurema, onde só as mulheres da tribo habitariam e lá aprenderiam a serem guerreiras como a mulher que salvara a sua vida. E no lugar onde Jurema caiu, nasceu uma planta robusta e muito resistente que dá flor o ano inteiro, cujo formato exótico e o tom amarelo-alaranjado intenso chamou atenção de todas as tribos, pois tudo dessa planta poderia ser utilizado, desde as sementes até as flores e o caule; e porque as flores dessas planta estão sempre viradas para o astro maior; ela ficou conhecida como Girassol. Acredita-se que a árvore da Jurema é sagrada onde residem os Orixás, e é desta árvore que se faz a base do chá chamado "Daime".2
Quando me deparei com esse mito entendi que ele bastava para esse texto que ora apresento. O mito tem todos os elementos de um modo de existir que exalta a condição da mulher popular brasileira, guerreira na defesa de sua tribo, abandonada por seus ancestrais biológicos, condenada à morte caso se permita viver o amor intenso, apaixonado. Um equivalente genuíno do que seria um Édipo brasileiro no feminino, com representatividade sul americana, afinal, a maior obra arquitetônica ameríndia foi dedicada a ela. O mito, claramente, mescla elementos indígenas, africanos e da cultura européia que se populariza, embora carregue um aspecto trágico helênico, desvela a resistência, pois, mesmo morta, Jurema herda um reino em que mulheres guerrearão em um mundo encantado de forças e elementos mágicos capazes de curar as feridas dos humanos feridos e perdidos. Assim, não se ressalta o aspecto trágico, da predestinação da morte, presente na mitologia grega, inclusive no mito de Édipo, tampouco o aspecto dramático, em que a vida vence a morte, presente no mito cristão Dussel (1996). Jurema engloba os dois, mas é, sobretudo, mito de resistência, de marcação de território onde ela se preserva e cria uma falange de mulheres dispostas a guerrear. Assim, a estratégia de demarcação de territórios físicos e simbólicos, tão marcante na história dos povos subalternizados, é a saída do drama e da tragédia sugerida pela história.
Outro elemento importante e comum a outros mitos da humanidade é o abandono do individuo mitificado após o nascimento, o que criou um espaço para que a paternidade original da Cabocla seja reivindicada pelos Orixás africanos. O seu abandono, após sete meses de nascimento, não é ao acaso. Na doutrina umbandista o número sete se refere aos desdobramentos do pai criador Olorum e das irradiações estáticas que fluem do trono primeiro, como descreveremos em outra parte desse texto. Para tratar melhor esse aspecto, permitam-me uma citação de Eliade (2016):
...é sempre como um desafio lançado à face do destino. Confiada à terra ou às águas, a criança, tendo para o futuro o estatuo social de órfão, corre o risco de morrer, mas tem ao mesmo tempo possibilidades de adquirir uma condição diferente da condição humana. Protegida pelos elementos cósmicos, a criança abandonada torna-se frequentemente herói, rei ou santo. A sua biografia lendária imita, assim, o mito dos deuses abandonados, imediatamente após o nascimento. Lembremos que Zeus, Posídon, Dionísio, Átis e inúmeros deuses partilharam a dor de Perseu, de Íon, de Atalante, de Anfíon e de Zeto, de Édipo, de Rômulo e de Remo. Moisés também foi abandonado nas águas, tal como o herói maori Massi, que foi lançado ao oceano, como foi o herói do Kalevala, Vainamoinen, que flutuava nas vagas tenebrosas. O drama da criança abandonada é compensado pela grandeza mítica do "órfão", da criança primordial, na sua absoluta e invulnerável solidão cósmica, na sua unicidade. O aparecimento de tal "criança" coincide com um momento auroral: criação do cosmos, criação de um mundo novo, de uma nova época histórica de uma "vida nova" em qualquer nível da realidade. A criança abandonada à Terra-Mãe, por ela salva e criada, deixa de poder partilhar o destino comum dos homens, porque repete o momento cosmológico das origens e cresce no meio dos elementos e não no meio da família. É por isso que os heróis e os santos são recrutados entre as crianças abandonadas: pelo simples fato de as ter protegido e preservado da morte, a Terra-Mãe (ou as Águas-Mães) votou-as a um destino grandioso, inacessível ao comum dos mortais (p. 202).
Criada pelo Caboclo Tupinambá é o mundo da tribo e do vegetal quem protege Cabocla Jurema cuja paternidade original será reivindicada por Oxóssi, orixá caçador, protetor e guardião das matas e Iemanjá, rainha do mar, regente da origem de todos os seres que dela saem. Jurema, nesse mito, inaugura uma nova era, sendo quase um novo orixá, gestado em solo brasileiro. Assim, herda de seu pai de criação o conhecimento da guerra e a coragem e de Iemanjá o amor à geração ou o anseio pela maternidade (Cozta, 2019).
Na linha da esquerda, os trabalhos juremeiros, seja por sua intercessão, ou por suas entidades auxiliares, são trabalhos fortes, trabalha-se força, vigor, determinação, mudanças ao mesmo tempo acolhedor, compreensivo, materno. Cabocla socorre o povo das doenças, onde falta assistência médica de qualidade, oferece saídas para situações difíceis na parte financeira, no amor e nas peripécias do destino. Cabocla resiste junto com o povo do semi-árido nordestino, onde surgiu o Toré e o Catimbó, mas também nas periferias urbanas, trazendo conselhos, curas, estados de consciência nos quais é possível vislumbrar o outro lado e se sentir existente.
Jurema é um estado de consciência propiciado pela ingestão da bebida, pelos ritmos dos maracás indígenas, das palmas dos catimbozeiros e dos atabaques da Umbanda. Nos tempos que ser juremeiro era crime, o que se perseguia também eram esses estados que pareciam perigosos e ameaçadores aos colonizadores. Pelo lado teológico cristão a demonização, e pela ciência cartesiana, a irracionalidade, a loucura e a alucinação. Patologizada ou demonizada, exterminar a Jurema ou convertê-la a uma santa católica recatada em uma estatueta, seria o trunfo maior dos colonizadores, mas ela resistiu tanto na teologia em que se faz presente em estudos atuais, como na ciência que tem descoberto no DMT, principio ativo da bebida, um aliado importante para o tratamento de diversas patologias psíquicas como ansiedade, depressão, fobia social, estresse pós-traumático, entre outros (Santos & Bouso, 2019).
Em termos ocidentais, Jurema torna-se terapêutica, ou parte da espiritualidade urbana, do ponto de vista biológico seu principio ativo, equiparado ao da Ayahuasca, que dá o nome ao caboclo Huascar , faz parte da nova onda de estudos sobre psicodélicos nas neurociências. Esse aspecto terapêutico, cabe não esquecer, tem uma origem em uma cosmologia que segundo Dussel (1996) é o modo como os povos ameríndios tecem um saber filosófico.
Assim, argumentamos que entender melhor a Jurema, seja em seus aspectos mitológicos, ritualísticos e bioquímicos, propicia-nos uma base importante para o fazer psi popular, pois desvela um modo de ser-estar-no-mundo não tratado pelo ocidente. Antes de explicitarmos esse tema, veremos como a Jurema foi lida e entendida na atual teologia umbandista.
Jurema na teologia umbandista
Recentemente alguns grupos umbandistas têm se dedicado a sistematizar o conhecimento popular transmitido prioritariamente de modo oral, com o intuito de construir uma teologia dessa religião. Em 2019, André Cozta (2019) publicou uma obra intitulada: Jurema: guardiã do conhecimento. Nessa, o autor, ora de forma literária, ora valendo-se de uma linguagem teológica, apresenta uma fábula na qual a Cabocla Jurema junto a um curumim, criança em idioma tupi, percorrem os campos encantados, dimensões paralelas à nossa onde habitam os espíritos encantados e desencarnados. Nessa saga, a Cabocla e a criança encontram distintos Orixás e com eles organizam distintas linhas de Caboclas Juremas que serão regidas no entrecruzamento de suas forças, detalharemos melhor nos próximos parágrafos. Desse modo, Jurema, embora tenha uma filiação precisa, Oxóssi e Iemanjá, conecta-se com a totalidade do mundo encantado ou espiritual.
Em sua origem, Cabocla Jurema, segundo Cozta (2019) forma-se pelo entrecruzamento da irradiação do Trono do Conhecimento, guardado por Oxóssi do alto e pela irradiação paralela de Iemanjá, que guarda a geração e o amor. A idéia de entrecruzamento entre tronos do alto e irradiações paralelas foi esboçada sistematicamente por Saraceni (2021), definiremos brevemente esse conceito e não trabalharemos todos os seus desdobramentos que são de um nível de complexidade que extrapola o foco desse texto. Segundo Saraceni (2021):
O Divino Trono das Sete Encruzilhadas é o "Logos Planetário" que deu origem a este nosso planeta, e tudo o que aqui há só porque nosso Divino Trono planetário tem em si mesmo as qualidades, atributos e atribuições que sustem tudo o que aqui existe (p. 129).
Pois bem, cada trono é um desdobramento da origem do deus criador Olorum que formou uma coroa divina planetária desdobrada em sete essências: fé, amor, conhecimento, razão, lei, evolução e geração. Cada uma dessas essências é guardada pelos Orixás ancestrais, respectivamente: Oxalá, Oxum, Oxóssi, Xangô, Ogum, Obaluaiê e Iemanjá. Os Orixás naturais, que habitam a dimensão paralela e não astral, são gestados pelo entrecruzamento das irradiações do alto que são positivas, com as naturais, negativas. Na Umbanda como proposta pela teologia de Saraceni (2021) não há dualidade, senão complementaridade entre essas duas forças. Para que fique claro, um Orixá mesmo que ancestral, pode atuar nesses dois pólos, irradiando desde o alto, do trono, pólo positivo ou da dimensão paralela, pólo negativo. A Cabocla Jurema se forma da irradiação positiva de Oxóssi, guardião da irradiação do conhecimento e da paralela, negativa, de Iemanjá, guardiã da irradiação da geração. Nessas irradiações temos Orixás guardiões passivos e ativos que atuam no lado positivo e negativo das energias irradiadas. No caso em questão, Oxóssi é ativo e Iemanjá passiva.
Segundo essa visão, outras Caboclas Juremas irão se formando a partir de outras irradiações do alto e paralelas, encontrando-se com Orixás ancestrais e naturais, segundo a narração de Cozta (2019). Por isso temos Cabocla Jurema do tempo: irradiada do alto pelo trono da Fé e em paralelo por Logunã. Cabocla Jurema do amor, irradiada pelo trono do Amor, e em paralelo por Oxum. Cabloca Jurema do conhecimento, irradiada pelo trono do mesmo nome e em paralelo por Obá; do Fogo, irradiada do alto pelo trono da justiça e em paralelo por mãe Oro Iná. Cabocla Jurema dos ventos, irradiada do alto pelo trono da lei, e em paralelo por Iansã, dos Sete raios irradiados do alto pela Lei e em paralelo por Iansã; Cabocla Jurema da evolução, irradiada do alto do trono da evolução e em paralelo por Obaluaye e Mãe Nanã Buruquê; Jurema das almas, irradiada do alto pelo trono da geração e em paralelo por Pai Omulu, Cabocla Jurema do mar, irradiada do alto pelo trono da geração e em paralelo por Iemanjá e por fim, Cabocla Jurema da praia, irradiada do alto pela geração e em paralelo por Iemanjá.
Assim, no entender de Cozta (2019), Jurema entrecruza com todos os Orixás, reunindo essências e irradiações diversas desdobrando-se e criando falanges que se prestam a várias energias e propósitos terrenos e espirituais. Torna-se assim equiparável a um Orixá natural que irradia uma essência genuinamente brasileira, pois é formado pelo encontro dos povos subalternizados dessa terra.
Para a teologia umbandista Cabocla Jurema é, ao mesmo tempo, guerreira, caçadora, como seu Pai Oxóssi e materna e geradora, como sua mãe Iemanjá. Carrega as forças ativas masculinas da iniciativa e do conhecimento e passivas femininas da geração e do cuidado. Ainda para os teólogos umbandistas citados, as fábulas contadas a respeito dos Orixás são tentativas dos humanos entenderem as irradiações cósmicas que não tem forma humana a priori, mas para se traduzirem ao mundo humano precisam se mostram de forma humanizada. Nesse sentido, Deus é traduzido em linguagem humana, mas não se comunica por ela, segundo a compreensão teológica de Saraceni (2021).
O próprio Cozta (2019) admite que a história narrada por ele em livro, é uma fábula inventada, que tem por objetivo tornar mais compreensível aos humanos os mistérios das irradiações cósmicas e seus entrecruzamentos. Jurema é a tradução do mistério das matas que se autoproduzem, dentro da qual os humanos sem o devido conhecimento podem se destruir ou se nutrir. Por isso a Cabocla é originalmente, um tipo de irradiação que se dá no entrecruzamento entre o conhecimento e a geração, reúne assim amor materno e busca, guerra e paz, movimento e ninho e no complemento de opostos se faz o que é.
O Ser Brasileira e a Jurema
A preocupação principal do filósofo argentino Gunther Rodolfo Kusch (1922-1979) foi a de estabelecer os princípios ontológicos fundamentais que pudessem esclarecer a condição do ser do povo latinoamericano o que desencadeia na formulação de uma hermenêutica do pré-ôntico que consiste em considerar a condição anterior ao Ser que, segundo o filósofo é a do Estar.
Membro do grupo inicial que compôs o movimento conhecido como Pensamento Latino-americano da Libertação, o nome de Kusch figura ao lado de pensadores como Enrique Dussel e Juan Carlos Scannone, como fundadores desse movimento que visava a fundação de uma filosofia que se ativesse aos problemas específicos da população pobre da América Latina.
Kusch nasceu em Buenos Aires em 1922, onde se graduou em filosofia em 1948 pela UBA (Universidad de Buenos Aires), já no ano de 1976, em razão do golpe militar sofrido em seu país, o filósofo opta por se mudar para a região norte da Argentina atuando como docente na Universidad Nacional de Salta e vindo a passar os últimos dias de sua vida no pequeno vilarejo de Maimará na província de Jujuy. Atualmente, nesta cidade, existe um centro cultural com seu nome onde estão guardadas sua biblioteca e escritos originais, além de, por sua opção, encontrar-se seu túmulo.
A experiência vivida pelo filósofo no extremo norte argentino, onde a cultura dos povos originários se mescla com a urbana europeia, foi a fonte principal de inspiração de sua filosofia. Em sua principal obra, América Profunda de 1962, ele expõe com clareza os principais conceitos de seu pensamento desenvolvidos ainda em sete livros de cunho filosófico e duas peças teatrais. Kusch teve em sua obra uma notada influencia da fenomenologia-existencial, principalmente das obras de Husserl e Heidegger, ao mesmo tempo se mostrou crítico a esses filósofos por universalizarem a experiência da burguesia europeia ocultando outras realidades ontológicas como a dos povos ameríndios e o novo povo americano que surge pós-colonização.
Os principais conceitos de Kusch: Ser-Alguém, Mero-Estar, Pudor e Fedor, bem como a contribuição do seu pensamento para a psicologia fenomenológico-existencial latino-americana foram tratados por este autor em outro artigo (Santos, 2019). No artigo que aqui se apresenta, demonstraremos, a partir do pensamento do filósofo argentino, como a articulação dos conceitos de Ser e Estar podem elucidar a compreensão da construção de tudo o que concerne à Jurema enquanto construto simbólico popular típico da condição do Estar latino-americano.
Kusch distingue dois momentos ontológicos da humanidade. O primeiro se expressa no Estar da grande história. O Estar é o modo original como os humanos lidam com o cosmos e suas ambigüidades. Nesse sentido o trato com as forças naturais é direto, pois o humano teme a chuva, a tempestade, saúda o sol e o nascer das plantas como forças divinas, para além de si mesmo, e das quais depende para sua sobrevivência. Nessa condição os humanos buscam se harmonizar com os deuses através dos ritos, tentando, a todo o custo, encontrar a justa medida entre suas necessidades e as condições naturais. Para toda a desarmonia pode-se recorrer aos ritos e a magia em forma de sacrifícios, mandingas, oferendas, comuns a todos os povos do Estar, são a forma que os humanos tentam se comunicas com os deuses Kusch (1999).
Os deuses, nesse sentido, trazem em si as potências necessárias que nutrem e destroem, mas são concebidos como opostos que se complementa, tal como a noite complementa o dia e o mal complementa o bem. Deus e o Diabo, nesse sentido, são perspectivas do mesmo Deus, como o povo aymara entendia a pregação cristã. Enquanto modo ontológico original do humano e, embora típico do que atualmente podemos chamar de período neolítico, o Estar não foi extinto, pois a grande história para o filósofo não é uma sucessão de fatos que inauguram eras, mas uma estrutura perene que se mostra de distintas formas culturais através dos símbolos chamados de religiosos.
Ou seja, em uma compreensão clássica o Estar remete ao neolítico, mas permanece nos grupos subalternizados nas periferias das civilizações. O centro das civilizações gestou a pequena história, que é a que hegemonicamente entendemos como a História. Na Europa, a pequena história tem outro modo ontológico que segundo Kusch (1999) é o do Ser. No entanto, o Estar é anterior ao Ser, o próprio idioma latino, do qual essas palavras se originam, desvela essa anterioridade e primazia do primeiro em relação ao segundo. Ser significa estar assentado em algum lugar, estar fixo em um território, enquanto Estar significa estar de pé, perambulando. Assim, o Ser surge da experiência de estar assentado de algum modo.
A pequena história europeia gesta o Ser, as guerras, a caída de reis, o surgimento e queda de impérios e domínios nada mais são do que acontecimentos que se dão sob o comando dos centros dos impérios. A história das periferias, não escrita, permanece no fundo, esquecida, mas estando. A América colonizada desvela, para o filósofo, o abstracionismo do Ser frente ao Estar. O Ser europeu se impõe sobre o Estar americano, mas esse Ser é nada mais que um assentamento construído desde um Estar. Ou seja, a experiência que subjaz o Ser foi esquecida e o Ser se mostra na América rompido com sua origem espacial, como se existisse prioritariamente no tempo.
O assentamento, por assim dizer, do europeu se mostra a partir daquilo que ele apresenta como Ser e ignora outras modalidades de existir como o Estar do povo ameríndio, preto e miscigenado de nossas terras. Kusch (1999) ao defender a primazia do Estar, entende que esse acaba por fagocitar o Ser, pois é nessa condição primeira que os humanos constroem as bases do viver simplesmente, o mero-estar, erigindo saberes imprescindíveis para a vida cotidiana. Não copulamos, comemos, evacuamos, conversamos, como Ser, mas como alguém que está no mundo e cuida dos ciclos da vida até a morte. O Estar se expressa assim na sabedoria dos povos e se assenta nos símbolos que desvelam os sentidos do viver. Assim e por isso, o mais honrável dos seres pode vir a consultar o terreiro para a resolução de conflitos amorosos, problemas físicos não resolvidos pela medicina oficial, angústias sobre o destino e resoluções diversas. Nesse fundo em que não somos, mas estamos, todos se equivalem e as barreiras sociais e culturais tornam-se fluidas e híbridas. Assunção (2010) relata como alguns médiuns, donos de terreiros do interior nordestino se orgulhavam em atender os doutores, sacerdotes católicos, médicos e advogados e toda a sorte de gente que era, mas que ali, se igualavam em ninguendade3 frente às forças do sagrado.
A fagocitação, porém, não exclui a opressão, o Ser europeu oprimiu e oprime cotidianamente o Estar americano. Essa construção ontológica, a do Ser, foi promovida por Roma no século III DC e se deu, segundo Kusch (1999), pela necessidade de transformar a religião dos antigos em uma moral, exigida pela vida cidadã que o império preconizava, baseada em leis e normas de convivência. Esse foi o terreno fértil que Roma encontrou para aderir ao cristianismo que se impunha como religião moral.
A cidade é um construto humano que o separa do cosmos, motivado pelo medo da ira dos deuses antigos que trazem a potencia das forças naturais. Uma cidade bem construída protege os humanos das forças que ele teme, o homem citadino tenta se apartar do cosmos gerador, tentando não viver mais diretamente seus ciclos e sua forma ambígua. Aos poucos tem se a ilusão de que não morre, higieniza o corpo, o sexo, exagera nas vestes e no perfume quão mais se assenhora em Ser alguém. Cabe ao cidadão comum temer, não mais as forças cósmicas na medida em que se sente protegido por abrigos, casas e muros - mas a moral e as regras da cidadania, comandada, mas por outros homens que exercem o papel de serem autoridades. A história dessas autoridades, reis, rainhas, duques e príncipes compõem a história relatada, a pequena história do Ser, mas a história do povo deve seu modo de existir ao Estar que não é, a plebe que compõe a ninguendade onde a maioria dos homens existe.
Com o advento da modernidade, contudo, o Ser passa a habitar o individuo que se sente livre e gerador de si-mesmo. A reforma protestante libera o sujeito das amarras de um Ser que se expressa nas autoridades, criando o burguês livre e empreendedor, base histórica para o surgimento, mais tarde, do existencialismo moderno. Esse Ser burguês, aventureiro e desbravador, expressar-se-á no bandeirantismo brasileiro e se consolidará nos coronéis e fundadores que erguerão nossas cidades e vilas da costa aos sertões. Ele se encontra, porém, com o modo ontológico que aqui já estava, o Estar indígena.
O culto do Toré e do Catimbó, trazem todos os elementos desse Estar, são trabalhos voltados à harmonização dos opostos que se apresentam no cosmos e no corpo. Sempre é um excesso o causador das doenças que devem ser purgadas e eliminadas com o uso das medicinas sagradas das florestas. Já a Umbanda trabalha entre o Ser e o Estar, originada no espaço urbano, essa religião, tida como essencialmente brasileira, nasce com o médium Zelio Fernandino de Moraes que reivindica nos trabalhos espirituais kardecistas - que dava voz a intelectuais, médicos e personalidades de origem européia - a voz dos caboclos indígenas, pretos velhos, mulheres "perdidas" e de todos os que, de algum modo, não tinham expressão na sociedade da época, início do século XX.
Em termos kuschianos, a Umbanda reivindica o Ser do Estar popular brasileiro, agregando os elementos populares e se reinventando com eles, a essa operação, a de reivindicar o Ser do Estar, o autor entende que é a saída latinoamericana, que supre a carência de Ser, fundindo-a na sua condição de Estar, inaugurando o estar-sendo latinoamericano. Nessa condição, a cultura popular americana cria acertos fundantes, que se mostram como símbolos capazes de dar sentido ao Estar, erigindo um Ser relativamente estável (Kusch, 1976/2007).
Segundo Assunção (2010), a Umbanda se expande com a urbanização, mas não deixa de se reinventar com o encontro da urbanidade carioca, de onde se originou, com outras regiões brasileiras. Para o autor:
A Umbanda se constitui de elementos ideológicos de brasilidade, sendo considerada como "religião nacional" e portadora de uma identidade brasileira. No que tange ao nordeste, ela continua igual à Umbanda brasileira, mas apresenta uma marca nordestina pela incorporação dos elementos da cultura popular, como o culto da Jurema. A Umbanda é geradora de identidade. No caso da Umbanda do sertão nordestino, a identidade elaborada continua brasileira, mas com uma especificidade: a marca da cultura sertaneja. A Umbanda incorpora o índio que antes estava marginalmente integrado. E o índio é símbolo de brasilidade. É a Jurema que introduz de fato a tradição indígena dentro do culto da Umbanda, aquela tradição que, segundo Bastide (1989), estava apenas incorporada de uma forma indireta o índio romantizado e transmitido pela tradição oral e ideológica (p. 270).
Nos termos que aqui defendemos, o Ser do índio, ainda que reivindicado pela Umbanda carioca na figura das entidades Caboclas é de fato incorporado desde o Estar indígena na medida em que a Umbanda incorpora o culto juremeiro do sertão nordestino. Em um processo ulterior, a Umbanda forma o Ser Jurema na figura da Cabocla que destacamos nesse texto. No sentindo kuschiano, Jurema é um símbolo de uma forma de estar-sendo e um acerto fundante criado pela cultura popular.
Para Saraceni (2021) a Umbanda é o retorno à religião natural, verdadeira religião na qual os homens antigos viam os portais por onde se abriam os sete tronos irradiadores universais. Quando a religião passa a ser abstrata e Deus se personifica como imagem e semelhança dos poderosos, os humanos perdem essa relação direta com as forças irradiadoras, perdendo o contato com o deus criador Olorum. Os santuários naturais como cachoeiras, lagos, pedreiras, cemitérios, matas, praias e mares, que ainda atraem os humanos citadinos, inclusive do ponto de vista mercantil, são segundo Saraceni (2021) pontos de força por onde essas irradiações transmitem as vibrações dos tronos análogos. Os homens antigos encontravam-se com Deus nesses tronos enquanto os modernos se afastam de Deus, criando uma moral em nome dele.
A coincidência com a filosofia de Kusch e a teologia umbandista defendida por Saraceni (2021) salta aos olhos. A Umbanda, nesse sentido, é um modo de simbolizar o Estar popular, expresso em sua lida diária com as forças cósmicas por um lado e com os desafios do viver nas cidades por outro. De todo modo, não há uma dicotomia natureza e cultura e isso explica um pouco porque os problemas mundanos são ritualizados nas matas, cachoeiras, encruzilhadas e pedreiras. Há um continuum entre a relação homem-cosmo, expressa no Estar e a relação humano-cidade expressa no Estar abaixo do Ser e que buscar Ser, tal é o desafio dos populares marginalizados nas cidades.
Esse continuum faz com que a Umbanda seja uma religião híbrida nesses distintos modos ontológicos apontados por Kusch. Ao acompanhar a história da Jurema até sua umbandização, ela começa com o Toré indígena que lidava diretamente com as forças naturais e termina com a falange dos caboclos que lidam com os espíritos humanos encantados ou desencarnados. Tais espíritos já trazem o componente urbano, como determinados caboclos, as pombagiras, os boiadeiros, entre outros. A própria formulação do mito da Cabocla Jurema passa por isso, em principio uma árvore de poderes encantadores de logo um personagem com seus dramas e heroísmos mais próximos ao mundo civilizado do povo Inca.
Kusch (1999) entende que na América estamos condenados a lidar com a hibridez que o hiato entre o Ser e o Estar nos exige, pois se de um modo estamos, por outro lado somos convocados ao mundo do Ser na cidade. Na América joga-se entre o Ser e o Estar, pois o Ser puro é europeu, o verdadeiro médico, cientista, artista, localiza-se além mar ou se manifesta como espírito evoluído nos centros kardecistas, já aqui emulamos o Ser e afirmamos o nosso Estar. Isso nos convoca a tecer acertos fundantes que, segundo ele, são formas de dar consistência ontológica ao nosso Estar, ou seja, uma forma de Ser desde esse Estar. O acerto fundante não tem a característica estável do Ser europeu consolidado, mas cumpre a função de dar um sentido mais ou menos estático a um caminhar fluido, assentar-se de um determinado modo.
O acerto fundante se dá pela criação de símbolos que expressam o sentido e o significado da condição do nosso existir aqui e não lá. A Cabocla Jurema é um acerto fundante da relação entre os humanos e as matas em principio, passando para os desafios do ser mulher e amar na cidade, revelando um estar anterior, portador da sabedoria do viver aqui, amalgamada pela figura da índia, assassinada por se deixar seduzir pelo amor. Mesmo sendo, ela permanece estando, no estado de consciência gerado pelas suas plantas que é ela mesma e não é. O DMT que conduz ao mundo espiritual faz com que a cura não se dê pela conversão a uma crença, mas por uma experiência, um movimento interno, típico do Estar. Tal acerto fundante, compõe-se de símbolos abertos e sujeitos a agregar e se modificar de forma dinâmica mais do que os que se prolongam na pequena história européia, esse também é o caso da Jurema.
Importante ressaltar o que nos lembra Oliveira (2011) citando o teólogo afro Jayro Pereira de Jesus, de que a Jurema é uma expressão religiosa xenofílica, pois assim como outras de matrizes africanas e indígenas, ela assimila o Outro ao invés de excluí-lo como a tradição judaico-cristã. O mesmo princípio é válido para a Umbanda que tende a assimilar novas forças espirituais, caboclos e entidades, tal como o fez com a Jurema, fortalecendo-se com isso. Isso demonstra, a nosso ver, uma característica do acerto fundante que, mais próximo ao Estar, mostra-se menos denso e solidificado, como o concreto, mas aberto e sujeito a novos moldes como o barro. Tal característica depõe contra a concepção de tempo linear que entende o pensamento religioso como uma espécie de evolução que parte das religiões antigas às modernas, ou pós-modernas. O culto ao agrário, vegetal, o sol e lua, tratado como aspectos referentes a tempos remotos da antiga Europa, permanecem no cenário religioso brasileiro atual, desvelando essa condição de Estar anterior ao Ser.
Jurema expressa assim o Ser mulher das matas, o conhecimento das plantas e dos mistérios da floresta, expressando o caráter guerreiro de Oxóssi e o carinho maternal de Iemanjá. Se seguirmos Kusch (1999), Jurema é um acerto fundante, um modo em que o popular busca encontrar seu Ser em um espaço, e esse acerto, intuímos, é o da mulher popular brasileira. Do sudeste ao norte, do urbano carioca ao amazonas, seu culto reverencia esse acerto, tece esse compromisso com o Ser desde o Estar. Isso explica sua polissemia e variações nos ritos, cânticos e histórias, ao mesmo tempo sua unidade simbólica que se dá na canonização do nome Jurema.
Desse modo os significados diversos que Jurema toma ao longo de sua história se reúnem, o Toré que chamava os espíritos das matas, o Catimbó que cultuava os caboclos dessas mesmas matas à Umbanda que a insere no contexto da tradição popular subalterna, descendente de pretos e índios, sofrendo os efeitos da colonialidade. Jurema é o Ser brasileira, desde estares múltiplos e contíguos às suas múltiplas condições que, paradoxalmente, mostra-se como mesma.
Considerações finais: Jurema e a psicologia popular
Em sua polissemia que tanto atordoa os pensadores herdeiros do paradigma europeu, Jurema se faz presente em todos os movimentos territoriais de resistência constituindo como uma marca de quem, para além de sua expulsão da cidade e do Ser alguém, cria um modo de Estar perene e harmônico nos interiores e periferias do país. Jurema também é a força para a qual a mulher urbana tende a recorrer para reencontrar seu espaço próprio e um jeito de ser-estando-no-mundo. Popular nos chamados ciclos do sagrado feminino, serve, ora como símbolo, ora como rito, que aproxima as mulheres a um todo comum.
Enquanto personificação do excluído, bastarda e filha do cosmos, como nos mostrou Eliade (2016), ao mesmo tempo guerreira e vítima do amor, Jurema é uma chave simbólica profunda que convoca os psicólogos a lidar com a população marginalizada, facilitando seus possíveis dentro das condições em que existem. O possível que Jurema nos ensina se faz na construção dos laços entre os oprimidos (Dussel, 1996) que no mito se expressa quando Jurema chama as mulheres a compor seu reino seja no saber popular que herdam que cura e transmuta e no estado de consciência que possibilita que elas se reúnam com o todo. Nesse sentido, não se trata de lidar com um destino pré-concebido ou com uma luta gloriosa, como os mitos oriundos da Europa tendem a apontar, mas de preservar um estado de comunhão e laços em que o próprio se faz enquanto se cria como resistência em comunidade. Em termos práticos, facilitar o laço afetivo e comunitário entre as mulheres traz em si uma potência de cura e auto-preservação potente e criativa que se faz no junto, ou seja, na coletivização das mulheres oprimidas que expressam sua opressão e criam saídas comunitárias.
Jurema pode nos inspirar na escuta da violência que se dá no âmbito amoroso, das flechas traiçoeiras que ferem o coração atingido pelo seu próprio povo, do erotismo reprimido e proibido, nos estados de consciência marginalizados e sem nome. Em suma, Jurema é um mito e um rito que traz um saber que nos possibilita uma escuta desse Estar feminino que luta para Ser na cidade e apresenta como saída a coletivização.
Promover grupos de mulheres, entender demandas individuais como inseridas em uma coletividade, fomentar a luta por direitos e reivindicações libertárias dentro e fora das organizações sociais; são exemplos de repercussões práticas, simbolizados no mito Jurema que nesse artigo apresento como fonte de inspiração para todos os que lidam cotidianamente com a condição da mulher brasileira, principalmente as mais pobres. Trata-se de um trabalho denso que lida com afetos "pesados", mas que aposta no poder de transmutação e cura que Jurema desvela como símbolo, ela persiste em vida como um girassol!
Referências
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Endereço para correspondência
Gustavo Alvarenga Oliveira Santos
E-mail: gustalvarenga@hotmail.com
Recebido: 10/04/2022
Revisado: 10/05/2022
Aceito: 10/06/2022
Publicado: 30/06/2022
1 Gustavo Alvarenga Oliveira Santos: ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5440-3265
2 Texto divulgado em vários sites pertencentes a centros religiosos afro-brasileiros.
3 Termo inspirado em Darcy Ribeiro em sua obra O Povo Brasileiro (1995).