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TransFormações em Psicologia (Online)

versión On-line ISSN 2176-106X

TransForm. Psicol. (Online) vol.2 no.2 São Paulo  2009

 

Artigos originais

 

Ensino, Pesquisa e Extensão na Formação em Psicologia: a experiência na Bandeira Científica

 

 

Carina Ferreira Guedes1; Clarissa Giacomo da Motta2; Fernanda Ghiringhello Sato3; Ianni Regia Scarcelli4; Pedro Rodrigo Penuela Sanches5

 

 

 


Resumo

O objetivo deste artigo é refletir sobre a importância da participação em projetos que articulam o tripé pesquisa, ensino e extensão para a formação de profissionais de Psicologia. Partimos da experiência no Projeto Bandeira Científica, um projeto de promoção à saúde vinculado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária e à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, para problematizar a Psicologia no campo da saúde, o trabalho interdisciplinar e as ações com comunidades. Apresentamos um breve histórico do Projeto Bandeira Científica e da inserção do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo neste. Em seguida, a partir de experiências em um município de pequeno porte situado ao norte do país, expomos como compreendemos o ensino, a pesquisa e a extensão universitária nesse projeto. Concluímos que ele contribui ao propiciar o questionamento dos termos e da articulação do tripé universitário, bem como dos saberes e práticas do psicólogo.

Palavras chave: Psicologia Social, Psicologia Clínica, Formação do Psicólogo, Promoção da Saúde, Extensão Universitária.


Abstracts

This article aims to reflect on the importance of participation in projects that articulate the trivet research, teaching and extension for the training of Psychology. We start from the experience in "Projeto Bandeira Científica", a health promotion project linked to the Pro-Rectoship for Culture and University Extension and the Faculty of Medicine of the University of São Paulo to discuss the Psychology in the health field, interdisciplinary work and actions with the community. We present a brief history of "Projeto Bandeira Científica" and the Institute of Psychology of the University of São Paulo inclusion in it. Then, from experiences in a small municipality located in the northern part of the country, we expose how we understand the teaching, research and university extension in this project. We conclude that it helps to provide the questioning of the terms and the articulation of the trivet university, as well as the psychologists knowledge and practices.

Keywords: Social Psychology, Clinic Psychology, Psychologist Education, Health Promotion, University Extension.


 

 

O objetivo deste artigo é refletir sobre a importância da participação em projetos que articulem o tripé pesquisa, ensino e extensão para a formação de profissionais de Psicologia. Partimos de nossa experiência no Projeto Bandeira Científica para problematizar a Psicologia no campo da saúde, o trabalho interdisciplinar e as ações com comunidades. Tais questionamentos nos levaram a refletir sobre propostas e lugares que a Psicologia pode ocupar no campo social.

Para melhor explanação, primeiramente apresentaremos um breve histórico do Projeto Bandeira Científica e da inserção do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) neste. Em seguida, realizaremos a reflexão proposta a partir de experiências em um município de pequeno porte situado ao norte do país.

 

O Projeto Bandeira Cientifica e a Psicologia

Vinculado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária e à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o Projeto Bandeira Científica envolve atualmente estudantes e docentes dos cursos: Audiovisual, Ciências Econômicas, Engenharia, Fisioterapia, Gestão Ambiental, Jornalismo, Medicina, Nutrição, Odontologia e Psicologia. A partir de seus dois subprogramas – Expedição Anual e Programa de Desenvolvimento Sustentável em Saúde –, a Bandeira Científica tem como objetivo implementar ações de promoção, proteção e recuperação de saúde em municípios e/ou comunidades de pequeno/médio porte, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre 0,6 e 0,7, que carecem de recursos necessários para desenvolvimento de políticas públicas na área de saúde.

A cada ano uma nova diretoria é formada por estudantes dos diferentes cursos participantes. Sob a supervisão geral dos docentes coordenadores de cada área específica, a diretoria atua desde a escolha e contato com o município a sediar o projeto, até o levantamento de demandas, captação de recursos e determinação da logística a ser adotada.

Coordenado pelo Departamento de Patologia da FMUSP, o projeto teve inicio em 1957 com ênfase em pesquisa e atividades educativas para a comunidade. Foi interrompido em 1969, em virtude da situação política instalada a partir do golpe militar de 1964, para ser retomado em 1998, quando foi ampliado e passou também a oferecer assistência à população local, sendo realizado anualmente desde então (Silva et al, 2007).

Desde sua retomada, atividades educativas, científicas e assistenciais vêm sendo desenvolvidas de acordo com as demandas de cada município. Nesse sentido, busca-se avaliar as condições locais e problematizar possibilidades de atuação de longo prazo para um processo de transformação gradual que envolva a população e o poder público nas diversas esferas sociais. Os participantes do projeto também se comprometem a elaborar um relatório sobre as condições de saúde local e os diversos indicadores sociais relacionados, disponibilizando um banco com dados colhidos durante as expedições (Silva et al, 2007). Ao final desse processo visa-se colaborar com o planejamento de políticas públicas locais.

Em 2006, os participantes da Bandeira tiveram a iniciativa de integrar membros de outros cursos, visando ampliar a compreensão do município, bem como construir intervenções menos pontuais e com mais troca entre os participantes. Foi nesse contexto que surgiu a proposta da participação de estudantes do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).

A primeira formulação desse projeto restringia-se a intervenções exclusivamente clínicas semelhantes à maior parte dos estágios realizados durante a graduação. A insatisfação frente a essa proposta mobilizou as estudantes de Psicologia a procurar um docente que coordenasse o projeto, outros referenciais teóricos e projetos com atuações semelhantes.

O diálogo proposto inicialmente foi de aproximação da Psicologia ao campo de saber e práticas da Saúde Coletiva, que envolve diferentes disciplinas e tipos de conhecimento. Esse campo busca romper com o paradigma biomédico e as tendências patologizantes e normalizadoras que privilegiam o olhar sobre a doença em detrimento da saúde como processo e expressão dos determinantes psicossociais, sócio-dinâmicos e institucionais. Assim, preocupa-se com os modos de vida e as relações entre os sujeitos no contexto social, propondo mudanças significativas na organização e no processo de trabalho em saúde e, principalmente, na reorientação da assistência com ênfase na promoção, prevenção e proteção da saúde (Scarcelli & Alencar, 2009).

Essa linha de reflexão foi incorporada na elaboração definitiva do projeto desenvolvido pelas estudantes de Psicologia em conjunto com a docente responsável. Na tentativa de não cair nas armadilhas de falsas antinomias – mente/corpo, normal/patológico, indivíduo/sociedade – que estão presentes na Psicologia e nas demais disciplinas ligadas à área de saúde, o ato de interrogar instalou-se como principal método de trabalho, na busca por subsídios que possam propiciar superações de formas restritas de compreensão do mundo e da complexidade humana.

Problematizar o conceito de saúde fez-se necessário. Dejours (1986), ao considerar a pergunta sobre quem é especialista em matéria de saúde, afirma que a contribuição dos cientistas nessa área, apesar de necessária, é limitada, pois a saúde das pessoas é um assunto ligado às próprias pessoas. A saúde, portanto, não é apenas estado de normalidade relacionado a um bem-estar biopsicossocia, é também uma sucessão de compromissos com a realidade do ambiente material: afetiva, relacional, familiar e social.

Numa outra perspectiva, a saúde está associada a um conjunto de valores (vida, solidariedade, equidade, democracia, cidadania, participação, etc.) e à idéia de responsabilização múltipla (Buss, 2003). São esses referenciais da Promoção da Saúde que, articulados a pressupostos teóricos da Psicologia Social, especialmente as formulações de Enrique Pichon-Rivière e José Bleger, sustentaram a elaboração do projeto.

A Promoção da Saúde pode ser entendida como campo conceitual e metodológico que pressupõe uma combinação de ações, desenvolvidas de forma conjunta por diferentes setores do governo e da sociedade civil, tendo em vista a melhoria das condições de vida e saúde, a promoção da eqüidade e o desenvolvimento da cidadania. Baseia-se em uma concepção ampla do processo saúde-doença e seus determinantes e se expressa em duas dimensões: a intersetorialidade, entendida como convergência de esforços de diferentes setores governamentais e não-governamentais, para produzir políticas integrais; e a participação social, em diferentes contextos, na construção de agendas sociais, na perspectiva de potencializar as redes existentes e contribuir para a formação de novas redes sociais promotoras da qualidade de vida6.

A perspectiva específica em Psicologia Social, tal como a concebemos a partir da proposta por Pichon-Rivière, é intersubjetiva e analisa o interjogo entre sujeitos, sem perder de vista a análise do acontecer intrasubjetivo e a eficácia dos processos inconscientes.

É importante destacar que outras duas questões, específicas da área da Psicologia, mobilizaram nossa participação no projeto. Uma delas diz respeito às possibilidades do comparecimento e das contribuições que a Psicologia, como campo de conhecimento, pode trazer à discussão que envolve políticas públicas e Saúde Coletiva e de como esta pode ser ampliada a partir da participação nesse debate. A outra está relacionada à intenção de compreender os efeitos das políticas públicas sobre as vidas das pessoas e das lacunas que se estabelecem entre os âmbitos político-jurídico e técnico-assistencial quando está em questão a implementação de planos e programas (Scarcelli, 2005). De forma análoga, a tentativa de compreensão do sofrimento psíquico também deve considerar tais atravessamentos e lacunas.

Nesse sentido, Pichon-Rivière (1986) aponta que as dimensões intra e intersubjetivas entrelaçam-se em um jogo no qual mutuamente se determinam, resultando em um conjunto de relações em permanente transformação. Para a compreensão de um, é indispensável a consideração do outro. Partindo dessa premissa, buscamos considerar propostas de intervenção, na construção do projeto, que sintetizassem abordagens reconhecidas exclusivamente como clínicas ou sociais.

Partindo dessas conceituações, o projeto organizou-se no sentido de conhecermos a realidade do município onde seria realizada a expedição, a partir da perspectiva de seus moradores. Mais especificamente, tivemos como objetivos: a) caracterizar o município atendido, buscando conhecer a população, os movimentos sociais, os grupos, as instituições e as organizações; assim como seus interesses, necessidades e sonhos em relação à cidade; b) identificar problemas e suas causalidades a partir de informações fornecidas por diferentes segmentos da sociedade.

Para tanto, foram realizadas: entrevistas com referências comunitárias e com usuários dos serviços de saúde atendidos pela Bandeira Científica (pesquisa exploratória), intervenções clínicas (interconsultas, atendimentos em grupo, individuais, visitas domiciliares), apresentação para a comunidade e discussão dos dados compilados e analisados7. Além disso, durante a expedição, a equipe se reunia diariamente e registrava suas impressões em diários de campo individuais.

Desde a inserção do IPUSP na Bandeira, em 2006, o conjunto de experiências tem suscitado novas indagações e reflexões sobre os debates apresentados acima. Faremos, a seguir, um recorte da experiência em um pequeno município na parte norte do Brasil.

 

Entre vidas secas: escutas de um silêncio

Na expedição ao município mencionado fizemos, como estava prevista, a caracterização a partir da ótica de seus moradores, sendo que um dos instrumentos foi o trabalho nos postos de atendimentos do Projeto Bandeira Científica.

Em cada expedição são montados, em geral, três postos de atendimento, procurando-se dar cobertura às áreas urbanas e rurais do município visitado. A cada dia são realizados atendimentos de diversas especialidades médicas (pediatria, ginecologia, fisiatria, psiquiatria, etc), da Nutrição, Fisioterapia e Psicologia. As pessoas que vêm para consulta, previamente agendadas por agentes de saúde, passam por uma triagem e são atendidas por estudantes de Medicina. Freqüentemente, os encaminhamentos para as outras áreas de atendimento são realizados com base em critérios objetivos.

Os encaminhamentos para os estudantes de Psicologia ocorrem de forma diferenciada. Mantendo-se disponíveis para conversar com os estudantes e supervisores das outras áreas, avalia-se a necessidade do atendimento individual ou em interconsulta. Esta é uma forma de investir na troca de saberes entre as áreas de conhecimento, de modo a problematizar e discutir os estereótipos e as fronteiras que usualmente são estabelecidas em uma discussão interdisciplinar. Proposta trabalhosa essa, que exige a apresentação diária do trabalho desenvolvido pela Psicologia aos outros estudantes da Bandeira.

Nos postos são, também, entrevistados os usuários do SUS, conforme o objetivo da pesquisa. Fragmentos das anotações dos diários de campo dos estudantes revelam cenas ilustrativas dos desafios que se colocam nas expedições:

Comecei a entrevistar uma mulher que estava com um menino, de uns 4 anos de idade, agarrado em seu colo como um bebê. Ele olhava para mim com curiosidade, escondendo seu rosto, em seguida, nos seios de sua mãe. Perguntei a ele seu nome e a mãe riu, dizendo que seu filho era surdo e mudo. Continuei as perguntas da entrevista, mas pouco depois, reparei no olhar do menino, meio travesso e perguntei se estava entendendo o que eu dizia. O menino riu, corou e rapidamente balançou negativamente a cabeça, escondendo-se no colo da mãe.

Na seqüência, outras mães contaram que seus filhos eram surdos e mudos. Em atendimentos, ou por meio de conversas informais, foi possível ter contato com diversas outras crianças com denominação semelhante. Contudo, surpreendentemente, ao serem convidadas a desenhar e brincar, as crianças "mudas" falavam e ouviam.

Nos atendimentos, o trabalho consistiu em desenvolver uma investigação clínica a respeito de queixas ligadas às dificuldades de fala e motora (de andar, preguiça, etc.) que resultaram na constatação de que não havia qualquer tipo de lesão ou insuficiência orgânica. Uma hipótese formulada foi no sentido de relacionar o problema a um vínculo familiar que posicionava a criança na condição de bebê. Na maioria dos casos, constatou-se que a criança ocupava um lugar de principal objeto de afeto da mãe e vice-versa, em um vínculo aparentemente simbiótico8. O crescimento do filho parecia ser sentido pela mãe como ameaçador, uma forma de abandono. Algumas dessas crianças eram cuidadas como se fossem ainda bebês, ficando atreladas ao colo da mãe, que não cessava de oferecer o peito para que mamassem, ou eram, ao contrário, negligenciadas, tratadas como pequenos adultos e, portanto, desprovidas do cuidado materno.

O trabalho foi encaminhado no sentido de pensar junto com as mães sobre a possibilidade de outros cuidadores se incluírem nessa relação diádica, de modo a exercer a função de triangulação e de criação de espaços de distanciamento progressivo entre mãe e bebê. Para além disso, refletiu-se sobre alternativas que aproximassem a disparidade das duas posições que se apresentavam para a criança (de bebê ou de adulto), colocando em questão qual seria a infância possível na realidade do município9.

Parecia indispensável conhecer a forma como a criança e seus cuidadores viviam: a casa e sua organização, a renda familiar e o cotidiano. A contextualização auxiliava na compreensão do sentido da queixa apresentada por cada família. Em alguns casos, supunha-se haver um ganho secundário proporcionado pela queixa, dado que os familiares traziam as crianças pedindo um laudo médico de invalidez, o que garantiria uma renda a mais. Esse pedido torna-se ainda mais significante ao considerarmos que a maioria dos moradores do município tem, como única fonte de renda, benefícios oriundos de projetos sociais governamentais (Bolsa Família, entre outros).

Analisando os possíveis significados da semelhança entre as histórias dessas famílias, sem perder de vista a singularidade de cada uma delas e considerando as informações que advinham do trabalho de caracterização da cidade, das entrevistas com as referências comunitárias, do contato com a realidade social, histórica, política e econômica da cidade, levantamos a hipótese de que deveriam existir, na cidade, outros tipos de silenciamentos. A hipótese formulada posicionava, ainda, a criança como porta-voz10 de um acontecer grupal. A mudez das crianças parecia ser, assim, representativa de um modo de vida carregado de penúrias de todos os tipos..

Nas entrevistas realizadas, as respostas, em sua maioria, eram evasivas ou se fechavam com um único monossílabo. Muitos dos entrevistados, indicados por serem referências na comunidade, mostraram-se surpresos, sem saber ao certo o que dizer. Percebíamos uma atmosfera de tensão e medo durante as entrevistas. Aqueles que ousavam falar um pouco mais a respeito do município, solicitavam que o conteúdo ficasse em segredo. Contudo, muitas vezes insistiam em acompanhar as entrevistas ou "apareciam" nos encontros com as pessoas indicadas por elas. A mudez parecia ser também política, como disse uma das referências, fato que relacionamos à herança autoritária e violenta ainda presente nessa parte do país. Um entrevistado confidenciou: "o problema é que os moradores da cidade são como sapo: vão morrer inchados e de boca fechada". Um outro ainda disse: "Esta cidade é surda e muda".

Demo (1996) considera que habitualmente encaramos a pobreza no plano do ter, da posse material e da falta, mas que a dinâmica da pobreza avança também na esfera do ser, chamada por ele de pobreza política. A impossibilidade de crítica, de consciência da própria pobreza e de participação como cidadão, que requer envolvimento e implicação emocional, aparece como decorrente dessa pobreza maior. Em última instância, a pobreza política seria a ausência de voz e crítica, de uma história construída por um sujeito, que se torna objeto, destituído de ser.

Um ponto a ser destacado diz respeito à reprodução dos mal-estares da cidade na dinâmica estabelecida entre os membros da Bandeira Científica. Alguns estudantes comentavam que essa expedição era como estar nas "vidas secas", referindo-se à aridez do clima e das palavras, como no romance de Graciliano Ramos. Referência certeira, uma vez que muitos moradores da cidade falavam de forma difícil, monossilábica, sempre com a mão na frente da boca, em sons que pareciam um dialeto pertencente ao município.

E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. (…) Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma linguagem com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas (Graciliano Ramos).

No município não havia sinal de celular, o que dificultava a comunicação da organização do projeto. Os desencontros, as dificuldades de se reunir e o silêncio também atingiam a Bandeira Científica. Alguns estudantes manifestavam o desejo de ir embora, e não raro, os estudantes de Psicologia foram procurados para cuidar deles. O mal-estar social parecia ser reproduzido na Bandeira Científica. Nesse sentido, Bleger (1984/2003) afirma que "por responder às mesmas estruturas sociais, as instituições tendem a adotar a mesma estrutura dos problemas que têm que enfrentar" (p. 62).

Ao considerar tais vicissitudes apontadas por Bleger, destacamos a necessidade de a prática conter, também, um momento que viabilize o distanciamento da experiência e a reflexão sobre ela. A possibilidade de transitar entre esses dois momentos enriquece o processo formativo dos estudantes, visto que "o mais importante em um campo científico não é o acúmulo de conhecimentos adquiridos, mas a utilização dos mesmos como instrumentos para indagar e atuar sobre a realidade" (Bleger, 1979/1993, p. 58).

Podemos destacar um aspecto que diz respeito aos âmbitos que devem ser considerados na análise e intervenções dos problemas que os psicólogos são chamados a ajudar a debelar. Na perspectiva da Psicologia Social fundamentada nos pressupostos de Pichon-Rivière, o grupo é considerado instrumento de investigação e intervenção e envolve sempre três tipos de análise: a psicossocial, analisadora da parte do sujeito que se dirige aos diferentes membros que rodeiam; a sociodinâmica, que analisa o grupo como estrutura; e a institucional, consiste na investigação dos grandes grupos - sua estrutura, origem, composição, história, economia, política, ideologia, etc (Pichon-Rivière, 1986).

Essas dimensões de investigação vão se integrando sucessivamente: não há uma separação clara entre elas. São dimensões que se apresentam como recortes metodológicos, em que cada manifestação do indivíduo, grupo, instituição ou comunidade leva consigo elementos das outras dimensões.

Ao incorporar a hipótese de sujeito como sujeito do grupo, tal como proposta por Kaës (1997), que compreende o indivíduo com duplo status - como indivíduo e como membro de uma cadeia à qual está submetido - entende-se que parte do funcionamento psíquico e das funções psíquicas das pessoas na sua singularidade é cumprida pelos outros, pelos grupos e pela instituição. Em perspectiva semelhante, Bleger (1993) desenvolve questões dessa mesma ordem, a partir do entendimento de que as instituições fazem parte de nossa personalidade.

Nessa perspectiva, é possível compreender que, tanto a mudez expressa pelas crianças, quanto os silenciamentos nas entrevistas e os impasses na equipe pertencem a uma mesma cadeia que atravessa os âmbitos psicossocial, sociodinâmico e institucional. O adoecimento das crianças, por exemplo, fica limitado se considerado de uma forma meramente vertical, apenas em relação às histórias pessoais dos sujeitos.

Tais contribuições permitem levantar uma relevante discussão, por exemplo, para se pensar sobre efeitos das políticas e práticas de saúde sobre o psiquismo e, também, para redimensionarmos o tipo de prática interventiva no âmbito das instituições. No caso das crianças acima relatado, é certo que necessitam de atenção por parte dos serviços de saúde. No entanto, a compreensão do problema no contexto da cidade exige outros tipos de ação para além de atendimentos específicos na área da saúde e para uma dimensão mais ampla das políticas públicas em geral.

A partir do recorte apresentado, fica evidente como a experiência em projetos como a Bandeira Científica suscita a problematização de práticas clínicas, concepções de saúde, trabalho interdisciplinar e ações com a comunidade. Parte desses questionamentos podem ser transpostos para o debate sobre a formação do psicólogo enquanto profissional de saúde. Assim, retomamos o propósito inicial deste artigo: refletir sobre a importância da participação em projetos que articulem o tripé pesquisa, ensino e extensão para a formação em Psicologia.

 

Na articulação do tripé: algumas reflexões

Por meio das relações entre experiência, teoria, investigação científica e formação de estudantes, imprescindíveis para Bandeira Científica e para outros projetos semelhantes, vemos a expressão da essência do tripé universitário.

Segundo o artigo 207 da Constituição Federal (1988), as universidades devem obedecer "ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão". Entretanto, acreditamos que tal associação não ocorre automaticamente e a relação entre os termos do tripé é construída de forma particular em cada projeto.

De modo geral, a opinião dos participantes da Bandeira é positiva em relação ao impacto que o projeto tem sobre a formação. Um dos motivos refere-se ao contato dos estudantes com a população de municípios distantes, com realidades particulares. Tais, por serem de pequeno/médio porte, possibilitam que se conheça a organização política e social em diversos âmbitos, circulação impossível em uma cidade como São Paulo.

Além disso, o contato com essa realidade nos faz indagar sobre a 'reificação' das técnicas. Um dos estudantes da medicina resumiu muito bem o tipo de impacto que um projeto como a Bandeira Científica tem sobre a formação. Disse ter percebido que, quando está no internato do hospital universitário, sente-se protegido pelo aparato tecnológico, sem prestar atenção nas outras áreas de conhecimento e no trabalho de outros profissionais chamados, freqüentemente, de não médicos. Entretanto, ao estar diante de tanta precariedade e com poucos recursos, foi obrigado a pedir ajuda aos colegas de outras áreas e/ou outras especialidades, descobrindo um novo modo de atuar.

Em relação aos estudantes de Psicologia, o projeto tem propiciado, também, a problematização das abordagens tradicionais, de modo a fugir de uma prática psicológica cristalizada em modelos estereotipados e construir novas formas de atuação, ao invés de tentar adaptar as demandas, o desconhecido, a formatos e moldes. Tem-se mostrado também cada vez mais fictícia a separação entre Psicologia Clínica e Psicologia Social. Concordamos com Bleger (1984), quando afirma ser falsa a antinomia indivíduo e sociedade e que a Psicologia estuda ou deve estudar seres humanos reais e concretos. Nessa perspectiva, não se trata de saber como indivíduos isolados tornam-se seres sociais, mas sim como de integrantes de uma cultura e de seres eminentemente sociais, chegam a produzir-se ou resultar em homens isolados.

No balanço que fazemos em relação aos aspectos positivos referidos à Bandeira Científica, ainda restam limitações que precisam ser superadas, principalmente, no que diz respeito ao retorno que tais ações podem oferecer às populações com as quais trabalhamos. Parece-nos que a troca ainda é desigual, no sentido de que os ganhos para a Universidade, referentes à formação, ao ensino e à pesquisa, ainda são maiores do que aqueles que conseguimos retribuir. Entretanto, tal desigualdade não anula o mérito de projetos como esse, pois nos impulsiona para uma tentativa de superação desse e de outros desafios.

Estamos de acordo com Sampaio (2004), quando nos diz que:

a extensão ocupa lugar privilegiado na academia, porque procura responder, com sua especificidade, à pergunta sobre o sentido tanto da produção quanto da socialização do conhecimento realizadas no âmbito da universidade, ajudando, assim, a efetivar a relevância social e política do ensino e da pesquisa. (...). A extensão é, desse modo, capaz de transformar o saber acadêmico em um bem público a que todos podem ter acesso e de estabelecer parcerias com a sociedade para a construção de um projeto social que traga dignidade de vida a todas as pessoas. É, igualmente, capaz de transformar conhecimento em sabedoria e de ser uma espécie de tempero ético que dá sabor de vida ao ensino e à pesquisa (p. 18)

A importância da extensão na universidade é inegável; contudo, sua efetivação é outro desafio, exigindo constantes reflexões e reformulações. Atualmente, a solução que encontramos para nossos questionamentos é a apresentação do que pudemos apreender e pensar sobre o município, sob a forma de jornais, folhetos e/ou reuniões. Assim, esperamos abrir um espaço de discussão em que estas informações circulem, de forma que a comunidade possa decidir como utilizá-las. Nesse sentido, Demo (1996) assinala que:

Cada vez mais fica inimaginável resolver a pobreza sem a participação do pobre. Torna-se impossível resolver os problemas levantados em uma cidade sem a participação conjunta do poder público e do povo, o qual deve ter acesso às ferramentas necessárias para organizar-se e exigir seus direitos (p. 9-10)

Além da troca com comunidade envolvida, essa discussão demanda que haja construção em ato com outros campos de saberes, colocando em xeque estereótipos de profissões e práticas cristalizadas. No entanto, esse debate ainda se faz pouco presente na formação universitária dos futuros profissionais de saúde. Tais estereótipos são em parte perpetuados pelo isolamento das unidades e cursos de diversas áreas. De forma semelhante, notamos que há poucos projetos de extensão que propiciem ao estudante de Psicologia contato direto com a comunidade, para além dos muros da universidade, o que dificulta, também, a produção de conhecimento nesse âmbito.

Para Bleger (1984/2003), a Psicologia, a partir do momento em que se começou a estudar o ser humano "como totalidade em situações concretas e em seus vínculos interpessoais" (p. 33), foi ampliando gradativamente os âmbitos de sua atuação: de um campo psicossocial (indivíduo), passando para o sócio-dinâmico (grupos), depois para o institucional (instituições), e em seguida, para o comunitário (comunidades). Convém esclarecer que, para o autor, o modelo conceitual utilizado não necessariamente precisa coincidir com seu foco da atuação. Ele considera, inclusive, que houve uma ampliação dos âmbitos com a permanência do modelo da Psicologia individual, o que levou os autores a explicarem os grupos, as instituições e as comunidades pelas características do indivíduo. Para o autor, é necessário criar novas conceituações para que se possa operar a inversão desse sentido: estudar os indivíduos com modelos dos grupos, das instituições e das comunidades, etc.

É identificada, nesse sentido, a necessidade de se avançar na produção científica para dar conta de novas possibilidades de atuação. Pesquisa é aqui compreendida, segundo Minayo (1996), como "atividade básica da Ciência na sua indagação e construção da realidade. Embora seja uma prática teórica, ela vincula pensamento e ação, portanto as ações de investigação devem estar relacionadas a interesses e circunstâncias socialmente condicionadas" (p. 17).

Bleger (1984/2003) afirma que todas as ações do psicólogo devem ser consideradas e analisadas como variáveis do fenômeno que ele investiga e que, por sua vez, este sofre modificações no processo da investigação. A análise de todas essas variáveis possibilita ao psicólogo ampliar ou retificar suas hipóteses. Os campos da ação (extensão) e indagação (pesquisa) são, portanto, vistos como inseparáveis e "se enriquecem reciprocamente no processo de uma práxis" (Bleger, 1984/2003, p. 24). Tal indissociabilidade contribui para que a Psicologia não se restrinja a um "ramo da Psicologia aplicada" (p. 33), mas se constitua como um campo de investigação.

Figueiredo (1993), em uma crítica à dicotomia entre formação básica e formação profissionalizante tece as seguintes considerações:

O que se poderia deduzir destas dicotomias é a tese de que o conhecimento da Psicologia básica – um conhecimento acadêmico – deve ser convertido em procedimentos técnicos de forma a ser aplicado às atividades do profissional da Psicologia. Contra essa visão excessivamente simplista e que muito claramente não corresponde ao que se passa nas atividades práticas do psicólogo, pode-se argumentar que esta modalidade de relação unidirecional jamais esteve presente nas obras teóricas e no exercício efetivo de homens como Freud, Jung, Rogers, entre inúmeros outros. A partir destas experiências seria necessário, no mínimo, conferir às práticas um estatuto cognitivo incompatível com a noção de que sejam meras aplicações de conhecimentos básicos. Elas, muito claramente, estão nas origens das teorias e estas, embora possam ser dirigidas a outros alvos – como é o caso dos chamados estudos de psicanálise aplicada a fenômenos culturais – têm como destino a prática de onde emergiram (p. 1-2)

Demanda-se, assim, um espaço para a construção coletiva de conhecimento. Em nossa prática, ao invés de chegarmos ao município com visão e tarefa pronta a ser aplicada, optamos por abrir um espaço para conhecê-lo a partir da ótica de seus próprios moradores. Ainda de acordo com Figueiredo (1993):

estou propondo que a segunda função da teoria é a de abrir no curso da ação o tempo da indecisão, o do adiamento da ação, tempo em que podem emergir novas possibilidades de ver, de escutar, de falar. (...) Mas vejam bem, não se trata de pensar apenas a proximidade e a complementariedade entre teorias e práticas, mas de pensar suas distâncias e diferenças: manter a tensão é deixar que a prática seja um desafio à teoria e que a teoria coloque problemas para a prática (p. 8).

Nossa expectativa é de que, a partir desse tempo de indecisão, dessa tensão entre teoria e prática, possamos construir compreensões alternativas àquelas que se fundamentam apenas em dados epidemiológicos tradicionais. Mais do que isso, esperamos que o tripé - pesquisa, ensino, extensão - possa ser articulado, não de forma complementar, mas que, a partir de seus conflitos e tensões, possibilite o questionamento como método próprio à ciência.

 

Referências

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1 Psicóloga, formada pela Universidade de São Paulo. Estudante de Licenciatura em Psicologia pela
Universidade de São Paulo - carinafguedes@yahoo.com.br
2 Psicóloga, formada pela Universidade de São Paulo.- cgmotta1@yahoo.com.br
3
Psicóloga, formada pela Universidade de São Paulo - fernandagsato@gmail.com
4 Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.- iannirs@usp.br
5 Psicólogo, formado pela Universidade de São Paulo. Mestrando em Psicologia Clínica pela mesma Universidade.
6 Esta concepção é oriunda do Centro de Estudos e Documentação Cidades Saudáveis – CEPEDOC – da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
7 Os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido tal como previsto no Projeto do IPUSP aprovado pelo comitê de ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e registrado na CONEP do Conselho Nacional de Saúde.
8 Para Bleger (1975), o desenvolvimento humano tem como ponto de partida um estado de indiferenciação entre o eu e o outro, vínculo simbiótico ou sincrético, em que é estabelecida uma "ligação profunda, pré-verbal, que nem sequer necessita da palavra, que, ao contrário, teria sido perturbada pela palavra" (p. 63). Nesse momento, a separação da mãe é vivida pela criança como uma ameaça de aniquilação de pelo menos uma delas (Pichon-Rivière, 1982/1998).
9 Pichon-Rivière (1986) retoma o conceito do complexo de Édipo proposto por Freud, ressaltando a importância de um terceiro elemento que configure uma relação triangular no desenvolvimento da criança. Esse terceiro é representado, na teoria da comunicação, pelo ruído que interfere na mensagem entre emissor e receptor, no caso a relação antes simbiótica entre mãe-bebê. Essa interferência proporciona uma abertura para o social, na medida em que, gradualmente ocorre a transformação do tipo de vínculo estabelecido, permitindo a diferenciação entre o eu e o outro, e conseqüentemente a possibilidade de transitar entre diferentes papéis.
10 O conceito de porta-voz, pilar da teoria pichoniana, conjuga o que chamamos verticalidade e horizontalidade grupal, entendendo-se por verticalidade aquilo que se refere à história pessoal do sujeito, e por horizontalidade o processo atual que acontece no aqui e agora, na totalidade dos membros. É o sujeito que em um momento denuncia o acontecer grupal, o conjunto de fantasias inconscientes, as ansiedades e necessidades da totalidade do grupo. (Scarcelli, 1998)..