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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versión On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.11 no.2 Rio de Janeiro jul./dic. 2019
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2019v2p.146
ARTIGOS TEMÁTICOS
O sujeito à mercê do mercado: desamparo e precarização das relações de trabalho*
The subject at the mercy of the market: helplessness and precariousness of labor relations
Le sujet à la merci du marché: detrésse et précarité des relations de travail
Franciana FigueiredoI; Perla KlautauII
IMestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA) / E-mail: pklautau@uol.com.br
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA) / E-mail: francianafigueiredo@yahoo.com.br
RESUMO
O objetivo principal deste artigo é construir uma discussão sobre as relações de trabalho tendo como pano de fundo um cenário de desamparo provocado pelos efeitos do neoliberalismo. A flexibilidade imposta pelo mercado, acompanhada da perda de direitos e estabilidade, traz consigo exigências constantes de produtividade que, por sua vez, engendram uma situação constante de vulnerabilidade. Tendo esse contexto delineado, o processo de precarização dos laços nas relações de trabalho e conceito de desamparo na teoria freudiana serão examinados com o intuito de tecer considerações sobre o trabalhador-empresa, ideia difundida pelo modelo neoliberal como o paradigma de realização profissional.
Palavras-chave: TRABALHO; DESAMPARO; VULNERABILIDADE; NEOLIBERALISMO; PSICANÁLISE.
ABSTRACT
The main objective is to build a discussion about labor relations against the backdrop of a helplessness caused by the effects of neoliberalism. The flexibility imposed by the market, accompanied by the loss of rights and stability, brings with it constant demands on productivity that, in turn, engender a constant situation of vulnerability. Having this context outlined, the process of precariousness of ties in labor relations and the concept of helplessness in Freudian theory will be examined in order to make considerations about the worker-company, an idea spread by the neoliberal model as the paradigm of professional achievement.
Keywords: WORK RELATIONS; HELPLESSNESS; VULNERABILITIES; NEOLIBERALISM; PSYCHOANALYSIS.
RÉSUMÉ
L'objectif principal est d'engager un débat sur les relations de travail dans le contexte d'une détresse causée par les effets du néolibéralisme. La flexibilité imposée par le marché, accompagnée de la perte de droits et de la stabilité, entraîne des exigences constantes en matiére de productivité qui, à leur tour, engendrent une situation de vulnérabilité constante. Aprés avoir exposé ce contexte, nous examinerons le processus de liens précaires dans les relations de travail et le concept de détresse dans la théorie freudienne afin de faire des considérations sur le travailleur-enterprise, une idée répandue par le modéle néolibéral comme paradigme de la réussite professionnelle
Mots-clés: TRAVAIL; DÉTRESSE; VULNÉRABILITÉ; NÉOLIBÉRALISME; PSYCHANALYSE.
Introdução
No dia 22 de abril de 2015, foi aprovada na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 4.330, regulamentando a terceirização da mão de obra pelas empresas, não só em suas atividades-meio, mas também em suas atividades-fim. Em 30 de agosto de 2018, o projeto teve a validação do Supremo Tribunal Federal. Isso significa, entre outras questões, que empresas como uma escola, por exemplo, podem contratar seus professores como pessoas jurídicas. Tal projeto, atualmente conhecido como pejotização, foi duramente criticado e também fortemente apoiado - deixando explícito que atualmente as relações de trabalho devem ser consideradas um assunto complexo e muito rico - pois contempla duas vertentes: a facilitação de contratações sem muitas formalidades e a transformação do trabalhador pautado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em trabalhador-empresa, que perde, assim, os respaldos e garantias que até então lhe eram assegurados.
Esse contexto deixa claro que a partir do novo modelo capitalista e de sua organização baseada na ideia de flexibilidade, a estrutura do trabalho alterou-se de maneira significativa. Ao trabalhador não restou alternativa a não ser adequar-se às novas regras do mercado. Essa adequação, entretanto, é mais complexa do que uma simples mudança de posicionamento profissional. A flexibilidade imposta pelo mercado, acompanhada da perda de direitos e estabilidade, traz consigo exigências constantes de produtividade que, por sua vez, engendram uma sensação generalizada de instabilidade. Esse estado de coisas deixa o sujeito à mercê das metas de produção de bens econômicos e instaura uma disputa do trabalhador com seus parceiros e, principalmente, consigo mesmo. Dessa forma, quando se apresenta a vulnerabilidade dos laços de trabalho, revelando que os sujeitos se encontram à mercê das intempéries do mercado, o conceito psicanalítico de "desamparo" torna-se uma poderosa ferramenta para analisar as relações contemporâneas de trabalho.
A situação de desamparo, quando pensada no interior do ambiente profissional, remete diretamente a questões que permeiam o mal-estar nos modelos de gestão por medo. Tal modelo adota como prática a exacerbação do medo que deixa o sujeito à mercê das exigências impostas pelo modelo neoliberal, que cada vez mais investe na autonomia do trabalhador em detrimento do amparo que era até então garantido por leis trabalhistas pautadas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Esse cenário, em que o individualismo é levado às últimas consequências, descortina o paradoxo produzido pela modernidade: a exigência de autonomia que incide sobre o indivíduo na ausência de suportes socialmente disponíveis para que esse processo se dê. Tendo esse contexto delineado, o processo de precarização dos laços nas relações de trabalho e conceito de desamparo na teoria freudiana serão examinados com o intuito de tecermos considerações sobre o trabalhador-empresa, difundido pelo modelo neoliberal como sinônimo de profissional bem sucedido, capaz de assumir os riscos e desafios em nome de si mesmo, sempre centrado em sua performance e em seu desenvolvimento.
O processo de precarização dos laços nas relações de trabalho
O trabalho é, como nos apresentou Freud (1930), uma das fontes de felicidade do homem, mas também de sofrimento, como disse Dejours (1994). Certamente, não nos faltam argumentos para apoiar tais significações dadas por esses pensadores. Quando se referiu ao trabalho em um contexto de felicidade e fuga do desprazer, Freud (1930) enfatizou, por exemplo, o trabalho dos artistas em criar, a alegria do pesquisador em suas descobertas. Sendo assim, o que está em questão é uma técnica de deslocamento de libido para o afastamento do sofrimento sustentada por um ganho de prazer a partir de um trabalho psíquico e intelectual. Dejours (1994), por sua vez, diz-nos que não existe trabalho sem sofrimento, por estarmos fadados a colocar-nos totalmente disponíveis a ele. Para o autor, o trabalhador de hoje sofre tanto quanto o trabalhador de outra época, mudando somente o tipo de sofrimento.
O significado da palavra "trabalho" pode remeter-nos à noção de sofrimento, tal como enfatizada por Dejours (1994). A palavra originada do latim tripalium (ou trepalium) nomeava, a princípio, um instrumento utilizado na lavoura e que, no final do século VI, passou a ser conhecido também como um instrumento de tortura. A palavra composta de tri (três) e palium (pau), traduzida por três paus, descreve exatamente o formato do instrumento. Antes mesmo de ser associado a um instrumento de tortura, entretanto, o trabalho já significava uma perda de liberdade. Em Roma, quem trabalhava era o escravo, enquanto o patrício era responsável pela política. Essa divisão chegou também à Idade Média. Sendo assim, a organização social estruturava-se da seguinte forma: a nobreza, a Igreja e os camponeses - estes últimos eram os trabalhadores.
Após essa origem ligada ao suplício, à tortura e para denotar uma condição inferior, o trabalho começou, no entanto, a ser ressignificado com a chegada do Renascimento e o surgimento do Estado. A partir da criação da economia mundial, o trabalho passou a ter um papel de suma importância: de tarefa restritamente aplicada ao escravo, passou a ser concebida como uma espécie de enobrecimento, uma importante atividade humana. Tal transição demonstra que além de o trabalho estar relacionado à ideia de sofrimento, começou a concebido também como fonte de reconhecimento, passando a ter um importante papel na condição de pertencimento do sujeito ao grupo.
Na modernidade, o trabalho passou a ser considerado o veículo hegemônico de inclusão social e um meio de acesso a importantes direitos e garantias. Seguindo essa lógica, Freud (1930) compreendeu que umas das facetas do trabalho estaria diretamente ligada a um modo de o sujeito estabelecer laços civilizatórios a partir do reconhecimento de um lugar na comunidade, conferido pela atividade laborativa realizada. Além de conferir um lugar no tecido social, o trabalho em forma de ofício pode funcionar como fonte de satisfação pulsional. Quando a produção em larga escala passa a ocupar, entretanto, a cena principal da geração de economia, a partir a produção em massa de um produto, tal como nos moldes do fordismo, a concepção de trabalho fica cada vez mais próxima de seu significado etimológico, aproximando-se da ideia de labuta e, até mesmo, de sacrifício:
Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos a eles vinculados, empresta-lhes um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se, por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como caminho para felicidade, o trabalho não é muito prezado pelos homens. Não se esforçam em relação a ele como o fazem em relação a outras possibilidades de satisfação. A grande maioria das pessoas trabalha sob pressão da necessidade, e essa natural aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis (Freud, 1930/2006, p. 75).
Diante do que foi dito, é possível perceber que a relação do sujeito com o trabalho, a partir da modernidade, foi tornando-se cada vez mais complexa. Com a chegada do capitalismo industrial, em meados do século XIX, e o consequente crescimento da produção, as exigências do trabalho deixaram a satisfação relegada a segundo plano e passaram a ameaçar a mão de obra trabalhadora. Nessa época, saúde confunde-se com sobrevivência: viver, para o trabalhador, é não morrer (Dejours, 1998). Nesse momento, não estava em questão a saúde psíquica, mas sim a física, pois a primeira vítima do sistema não é o aparelho psíquico e, sim, o corpo dócil e disciplinado, totalmente entregue à produção (Dejours, 1998).
Em 1914, essa espécie de luta pela sobrevivência dá espaço para uma luta pela saúde do corpo e, a partir de 1968, surge um período marcado pelo desenvolvimento desigual das forças produtivas. O contraste entre os estágios de desenvolvimento das ciências, processos e condições de trabalho dificultam uma analise geral da relação saúde-trabalho (Dejours, 1998). Esse foi também um período marcado por greves, paralisações e absenteísmo, que levaram a uma busca por soluções alternativas. Foi a partir desse cenário que a saúde mental no trabalho (Dejours, 1994) passou a ser observada. Surge um novo desenvolvimento de psicopatologia do trabalho, e isto acarreta uma reviravolta epistemológica. A questão a partir daí, é, como os trabalhadores se podem manter psiquicamente saudáveis no enfrentamento do trabalho. No início da década de 1980, é possível observar o começo da preocupação em fundamentar clinicamente a relação do sofrimento psíquico com o trabalho. Tal sofrimento, segundo Dejours (1994), é entendido como um "espaço de luta que ocorre no campo situado entre o bem-estar, e a doença mental ou a loucura" (p. 153).
Diante desse contexto, podemos perceber que o sofrimento sempre esteve presente no trabalho, mas o que vai diferenciá-lo são as mudanças ocorridas ao longo das épocas, e quais aspectos distintos de cada geração de trabalhadores foram sendo exaltadas. As mudanças ocorridas na sociedade contemporânea colaboraram fortemente para esses contextos e, entre eles, o mais forte foi a considerável diminuição dos sindicatos que representavam a luta dos trabalhadores. Se os sindicatos tinham sua atuação voltada para o grupo, atualmente estão obsoletos, e o trabalhador de hoje segue para uma luta individualizada.
Se, na modernidade, os trabalhadores lutavam unidos através de sindicatos e ideais; hoje, os trabalhadores cada vez mais se afastam uns dos outros. O coletivo está fragmentado, os sujeitos individualizados, cuidando cada qual de suas próprias questões. A solidariedade entre os trabalhadores está cada vez mais escassa e a competição cada vez mais presente no mundo coorporativo. Uma das consequências que pode ser observada é a dissolução dos laços fraternos entre os pares que, em muitos casos, acaba abrindo uma lacuna que vem a ser preenchida pelo isolamento e pela solidão.
Dessa forma, é possível perceber que o trabalho abandona o lugar de segurança que ocupava até então - lugar este que garantia ao sujeito atrelar a atividade laborativa ao desenvolvimento de projeto de vida e de construção de laços fraternos. Atualmente, para a maioria dos sujeitos trabalhadores, o trabalho é cada vez menos escolhido em função do sentido atribuído ao ofício a ser desempenhado: passa a ser regido pela lógica da produção de bens e a caracterizar-se, na maioria das vezes, como um conjunto de experiências isoladas que, entre outras questões, dificulta a construção de narrativas a respeito da própria experiência. Sendo assim, paradoxalmente, o trabalho passa a ser objeto de consumo, no qual o prazer tem que vir de maneira imediata.
E como ficam as relações de trabalho nesse contexto fomentado pelo neoliberalismo? As relações de trabalho, antes baseadas em um contrato com regras e várias ponderações, hoje se fundamentam por meio de acordos. As pessoas viram empresas e o que conta são números, rentabilidade, visibilidade e engajamento na meta de produtividade. O resultado disso é que as condições de trabalho vêm sendo deterioradas, as garantias trabalhistas conquistadas pelos sindicatos não se sustentam com as novas regras de contrato. Sem as garantias asseguradas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o trabalhador se encontra em situação de desamparo, à mercê das intempéries do mercado.
O desamparo e as relações contemporâneas de trabalho
Como foi exposto, as relações de trabalho sofreram grandes alterações nos últimos tempos. A globalização, a inovação tecnológica e as reformas trabalhistas vêm promovendo, uma grande mudança no ambiente organizacional, trazendo à tona uma competição exacerbada e uma cultura institucional impiedosa. Nesse cenário, os profissionais têm que se adaptar a uma estrutura de trabalho fragilizada, adequando-se aos valores e condutas institucionais em busca de manter o emprego e assim se sentirem pertencentes a um grupo seleto de sujeitos que possuem emprego.
A partir de uma leitura darwiniana do mundo contemporâneo, onde somente os fortes sobreviverão, Bauman (2000), observou que o desempenho, a disponibilidade, a flexibilidade e a abnegação são pré-requisitos para se manter no seleto grupo de sujeitos empregados. Quando este cenário se constrói de maneira permanente, o ambiente se transforma num jogo em que o outro é visto como adversário e as relações se tornam inconstantes e transitórias. Bauman (2001) evocou fluidez e liquidez como termos perfeitos para descrever essa tendência no ambiente de trabalho, onde nada mais é estável. Esse cenário facilita a fragilidade do laço social e sua precarização.
Para Freud (1921), quando os laços mútuos entre os sujeitos deixam de existir, um medo gigantesco e insensato é liberado. A consequência disso é a dissolução dos laços: cada sujeito passa a preocupar-se apenas consigo próprio, sem qualquer consideração pelos outros. Nesse sentido, "o medo tornou-se grande a ponto de poder desprezar todos os laços e todos os sentimentos de consideração pelos outros" (p. 122). A dissolução dos laços traz atrelada a si uma situação de desamparo que se configura a partir do excesso de insegurança e de desproteção.
A palavra alemã Hilflúsigkeit, escolhida por Freud (1895) para descrever um estado de desamparo, analisada ao pé da letra, fornece a seguinte configuração: hiflos é um adjetivo que qualifica aquele que está sem ajuda, sem auxílio e o final da palavra keit designa uma substantivação (Menezes, 2008; Pereira, 2008). Portanto, Hilflúsigkeit pode ser entendido como ausência de ajuda. Em seu "Projeto para uma psicologia científica", Freud (1895) ressalta a condição de desamparo do recém-nascido como fator crucial para a entrada no universo simbólico (Bezerra Jr, 2013; Klautau & Faissol, 2016). Isso significa que o desamparo primordial traz atrelado a si o estado de dependência em relação a outro humano - Nebenmensch que, traduzido para o português, pode ser entendido como a pessoa que ajuda.
A dependência da pessoa que ajuda imprime a presença da intersubjetividade como elemento crucial do processo de constituição da subjetividade, evidenciando a imprescindível função da alteridade na ação contínua de manutenção das coordenadas identitárias que asseguram o reconhecimento do eu ao longo do tempo. Dessa forma, a situação de desamparo vai muito além de uma experiência do momento inicial da vida. Ao longo de toda obra freudiana, o conceito de desamparo recebe sucessivas formulações até chegar a um lugar de importância inconteste. Em seu texto "Inibição, sintomas e angústia", Freud (1926) concebe a vivência da angústia originária como algo que comparece, mais tarde, sob a forma de reprodução de um estado afetivo em conformidade com uma imagem mnêmica existente e, consequentemente, indica a incorporação de tais estados no psiquismo como resultados de experiências traumáticas primitivas que se vão reatualizando diante de situações semelhantes. Dessa maneira, a situação do recém-nascido e a angústia desse momento são revividas em circunstancias de perigo. Sobre essa colocação de Freud, Rocha (2000) comenta:
O que define o desamparo é a situação de total passividade em que se encontra o sujeito, na incapacidade de poder, com seus próprios recursos, encontrar saída para seus impasses. Somente quando o sujeito (seja ele criança ou adulto) vai aos poucos, passando do estado de total passividade para o de atividade, é que ele se torna capaz de reconhecer o perigo e de preveni-lo com o sinal de angústia (p. 130).
Esse sinal de angústia pode ser relacionado a um estado de prontidão e de disposição que prepara para o perigo. Ele servirá de alerta para que o eu se defenda da ameaça, e apresenta-se como uma possível saída a fim de evitar que o processo de desenvolvimento de angústia se torne uma espécie de defesa que paralisa o sujeito.
A esse propósito, interessa-nos saber que a atual condição dos sujeitos, constantemente expostos ao perigo, na maioria das vezes, sem a devida proteção, servirá como uma espécie de motor que reatualizará o estado primitivo de desamparo. Isso leva o sujeito a reviver um estado de angústia, vivido como incontrolável, levando a uma espécie de estado de desamparo secundário, marcado por um excesso, um transbordamento.
Ao estudarmos a vida em sociedade, vemos que cada época é marcada por angústias, desamparos e dificuldades próprias. Talvez a questão seja determinar, na contemporaneidade, os fatores geradores de desamparo e esclarecer a especificidade de tal desamparo. Foi através do estudo dessa noção que Freud (1926) resgatou a importância da mesma para o desenvolvimento de teorias dos estados afetivos nos quais a angústia ultrapassa todo o limite. No mesmo texto, o autor afirma que o desamparo não é apenas uma condição traumática ou um retorno a uma condição traumática, mas também representa um perigo do qual o aparelho psíquico tenta se esquivar. É a instauração de um estado de desamparo, que se coloca como centro da situação de perigo. De acordo com Pereira (1999), entretanto:
Se, por um lado, o desamparo constitui o horizonte necessário, não acidental do funcionamento psíquico, nem por isso o sujeito se encontra sempre em uma situação efetiva de desamparo (...). Nesta, o termo mesmo de “situação” já sublinha o aspecto contingencial do desamparo (p. 253).
Em 1927, Freud reconheceu na situação de desamparo um representante do ponto crucial para a origem da ideologia religiosa. O sujeito busca um outro, a quem irá nomear como detentor do poder que irá atuar no controle de sua natureza agressiva e destrutiva. É a esse outro que o sujeito passa a creditar a responsabilidade por cuidá-lo e protegê-lo. Nesse ponto, Freud reforça a ideia de um desamparo como condição que acompanha o sujeito por toda sua existência. Sendo assim, mesmo com o credito ameaçador, o desamparo se apresenta como uma experiência estruturante, visto que, a partir dele, o sujeito necessita de ajuda, pois não consegue defender-se sozinho. Essa ajuda representa uma oportunidade de saída de uma situação de autossuficiência narcísica. Em outras palavras, o desamparo leva o sujeito a lançar mão de sua alteridade e a perceber o outro, além de cuidador, como também merecedor de cuidados. Surge daí, todavia, uma situação ambígua, pois aquele que não pôde ser amparado, no momento oportuno, dificilmente conseguirá ver no outro esta necessidade de cuidados. A empatia, nesse caso, não será possível, pois a figura do semelhante não terá, para ele, a devida importância.
Enquanto o desamparo tornou-se um conceito metapsicológico e uma condição estrutural primordial do ser humano ao longo da obra freudiana, as vulnerabilidades aparecem na pluralidade: são inúmeras, oriundas de ameaças que vêm de diferentes direções. Por intermédio da cultura, da civilização e dos laços sociais, procuramos fazer frente a essa condição. Entretanto, o mal-estar da vida em sociedade é inevitável e defronta-nos com inúmeras situações de vulnerabilidade, em seu movimento permanente de conflito entre civilização e barbárie. Em todas essas situações, o sujeito e seus outros estão diretamente implicados, muito embora estejam amiúde alienados dessa implicação bem como da responsabilidade por suas escolhas e seus atos. No campo do trabalho, para aplacar a angústia e encontrar saídas para a situação de vulnerabilidade imposta pelo mercado, o sujeito cria estratégias e tenta adequar-se aos novos formatos de trabalhos propostos pelo modelo neoliberal. No momento atual, uma dessas saídas, ou melhor, a saída mais difundida e vendida como um ganho para o trabalhador é o empresariamento de si mesmo. Uma nova proposta de atuação onde o grande responsável pelos ganhos e perdas é o próprio indivíduo. Ele está só, mas será que está livre?
O empresário de si: inovação ou mais uma consequência do desamparo?
Em seu texto "Metamorfoses da questão social: uma crônica do salário", Castel (2003) delineia, através de uma análise do mundo do trabalho, novos modos de socialização da contemporaneidade mediante a vulnerabilidade. Para o autor, o trabalho é estruturante da sociedade capitalista e, a partir de um cenário de precarização econômica, começa a impactar as relações e ameaça diretamente os grupos: "Toda a organização da temporalidade social foi conturbada, e todas as regulações que comandam a integração do indivíduo em seus diferentes papéis, tanto familiares quanto sociais, tornaram-se mais flexíveis" (Castel, 2003, p. 572).
Castel (2003) observa que o trabalho inscreve o sujeito como ser social, e quando a nova formatação do capitalismo flexível se apresenta, traz consigo três consequências: a desestabilização dos estáveis, a instalação na precariedade e o déficit de lugares ocupáveis na estrutura social. A desestabilização configura-se na vulnerabilidade social através de novas exigências do mercado de trabalho. A instalação na precariedade, por sua vez, é como uma resposta à exigência de flexibilidade, que resulta em instabilidade e incerteza. Por fim, o déficit de lugares ocupáveis representa a restrição dos trabalhadores quando estes perdem sua importância e reconhecimento, sendo considerados política e civicamente desqualificados (Castel, 2003).
Ehrenberg (2010) apresenta um movimento neoindividualista, que surge através da falência da capacidade política do Estado em fornecer suporte social aos indivíduos. Neste movimento o sujeito é móvel, autônomo e capaz de responder por si mesmo. Sendo assim, o autor nos traz a ideia de uma sociedade individualizada, em que predomina a referência a si. De acordo com essa lógica, o sujeito de sucesso é aquele que assume os riscos e desafios em nome de si mesmo, sempre centrado em sua performance e em seu desenvolvimento. Está ocupado com o governo de si mesmo, e não em seguir regras que lhe garantiriam estabilidade e tranquilidade - portanto, totalmente no caminho oposto ao do sujeito dócil (Foucault, 1977).
A estabilidade virou algo tão obsoleto que, hoje em dia, dizer que busca estabilidade em um emprego é visto como algo pejorativo. A nova geração do trabalho busca desafios e desmotiva-se ao sinal de qualquer tendência a estagnação. Ao aprofundarmos a pesquisa, porém, percebemos logo que a instabilidade, vista como agente motivador para o desenvolvimento e busca pela ascensão, relega o sujeito a condições de precariedade, restringe-o em relação à criação de laços e à elaboração de planos de longo prazo.
A partir dos estudos de Ehrenberg (2010), compreendemos a mudança nas relações sociais mediante os novos modelos políticos que estruturam o que ele chama de sensibilidade igualitária da sociedade, ou seja, dispositivos que permitem a sociedade pensar e resolver contradições existentes. O autor reforça a ideia de uma nova exigência social de impulsionar a vivência como indivíduo e em busca da visibilidade. Essa novidade acaba por gerar algumas consequências, como o esfacelamento das classes sociais, buscando novas modelagens de hierarquização; recuo do assujeitamento rígido, que é substituído pela possibilidade de singularidade; e, por fim, a degradação das políticas de emancipação coletiva, trazendo em troca políticas de projeto pessoal.
A última das consequências citada por Castel (2003) é, ao nosso ver, o mais preocupante pois coloca o sujeito desassistido socialmente em um lugar de invisibilidade e desqualificação. O remédio encontrado pelo neoliberalismo para compensar tal situação foi o de transformar o homem deixado à sua própria sorte em um empreendedor. Sendo assim, de acordo com essa ideia, não existe mais um problema referente à falta de trabalho (Castel, 1998). O estado de desamparo e as vulnerabilidades, antes refugiadas por trás de um Estado, hoje se tornam pertencentes à condição do sujeito trabalhador. Em outras palavras, o discurso agora impulsiona modelos de gestão de si mesmo, pautadas na autonomia e no desempenho. Novos formatos de relações trabalhistas aparecem como tendência dessa sociedade que busca sempre o imediatismo. O funcionário passou a ser colaborador e precisa ter o olhar de dono do negócio.
Foucault (1978) escreveu sobre as estratégias biopolíticas e apresentou uma sociedade, mais tarde também pensada por Deleuze (1992), em que os mecanismos de controle eram percebidos como um reforço às tramas de segurança, também presentes nos dias atuais; ou seja, a modificação de uma sociedade disciplinar para uma biopolítica evidencia marcas distintas de uma sociedade de controle. Nas palavras de Deleuze: "não cabe temer ou esperar, mas sim buscar novas armas" (p.220). Dessa forma, deparamo-nos com a discussão atual referente à busca por novas estratégias que, no lugar de uma sociedade disciplinar, marcada por confinamentos, adquire novas conformações. A sociedade de controle caracteriza-se como um novo modelo no qual os indivíduos são colocados de uma maneira modular, a fim de compor grupos, equipes em busca de cumprimento de metas, mas longe de ser livres de vigilância, pois o que está aqui sob um olhar avaliativo é a produção: "As pessoas não percebem o quanto não são livres lá onde mais livres se sentem" (Adorno, 1995, p.74).
Se deixamos de ser disciplinados, não deixamos, no entanto, de ser controlados. Ao pensarmos no espaço do trabalho, logo nos vem à mente a questão das mudanças de gerações de trabalhadores e reformas na legislação de trabalho, a economia, as oportunidades e possibilidades no contexto social de cada cultura. Tudo isso leva o sujeito a repensar constantemente a maneira de compor sua renda financeira. Diante do que foi dito, é importante ressaltar também as repercussões subjetivas de tal cenário na subjetividade de cada indivíduo. Quando pensamos no empresariamento de nós mesmos, o nosso maior desafio é vencer justamente nossas exigências, que estão muito além de qualquer outra imposta pela alteridade.
Em seu texto "Agonia de Eros", Han (2017b) utiliza-se do termo depressão do sucesso para tratar do sujeito do desempenho que busca, de uma forma desenfreada, o reconhecimento através de suas realizações. Segundo o autor, esse sujeito "mergulha e se afoga em si mesmo" (Han, 2017b, p. 11). Um sujeito que se pensa livre, na medida em que não se encontra submisso ao outro, mas que na verdade está preso a si mesmo e suas infinitas necessidades de autodesempenho. Foi exatamente isso o que a cultura contemporânea, pautada no neoliberalismo fez com o sujeito trabalhador: o transformou em autoexplorador. Vale lembrar, porém, que ela não fez isso sozinha; por trás, ou melhor, antes dela, o capitalismo exigiu uma postura agressiva desse indivíduo. Em uma sociedade em que prevalecem os empresários de si mesmo, o que vai reger as relações é a luta pela sobrevivência no mercado de trabalho e, a partir daí, ocorre uma quebra nas relações de confiança e o enfraquecimento dos laços entre os trabalhadores.
A precariedade que marca o trabalho na contemporaneidade tem grande responsabilidade pelo cenário de empreendedorismo: as relações de trabalho tiveram que ser flexibilizadas e um discurso sobre autonomia e desempenho tomaram frente, favorecendo novos formatos de realização do sujeito do trabalho. Na era do empresariamento de si, a formatação de trabalho deixou de ser formal. Não atuamos mais no horário comercial, o sujeito do desempenho, como nos apresentou Han (2017a), atua em tempo integral. Diante de tanta demanda, será mesmo que o novo trabalho é mesmo um empreendimento? Será que podemos pensar que nossa atuação como empresários de nós mesmos nos traz mais realizações do que aquele velho formato de horário de expediente? E mesmo como trabalhador formal, num cenário em que metas, melhoria financeira e desempenho são de total responsabilidade do sujeito, estamos mais livres? Ou será que tudo isso não foi uma consequência de um total desamparo?
Nesse contexto, torna-se imprescindível um olhar atento e uma escuta ativa em busca de uma compreensão mais adequada do que as mudanças de paradigma e o desenvolvimento desenfreado estão causando nos sujeitos e suas relações. Precisamos ser cautelosos e cuidadosos ao pensar neste momento de total individualização do trabalho.
Referências
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Recebido em: 15/02/2019
Aprovado em: 20/09/2019
* Este artigo é fruto da dissertação "A precariedade dos laços sociais nas relações de trabalho: mais um desamparo contemporâneo", desenvolvida com bolsa da Capes, no Laboratório de Práticas Sociais Integradas (Lapsi).