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Revista Psicologia e Saúde
versión On-line ISSN 2177-093X
Rev. Psicol. Saúde vol.4 no.2 Campo Grande dic. 2012
ARTIGOS
Dispositivos Clínicos dos Psicólogos em CAPS de Salvador: entre Tutela e Clínica das Psicoses
Clinical Devices of CAPS Psychologists in Salvador: between Tutelage and Clinic of Phsychoses
Dispositivos Clínicos de Psicólogos en dos CAPS de Salvador: entre Tutela y Clínica de las Psicosis
Kelliane de Sá Cruz1; Andréa Hortélio Fernandes2
Universidade Federal da Bahia
RESUMO
A reforma psiquiátrica, ao pleitear mudanças nas práticas clínica e política, colocou o campo da saúde mental num momento de transição entre o antigo modelo asilar de cuidado e o modelo da atenção psicossocial, implicando no atual quadro de (re)construção permanente de conceitos. É por se estar em tal período de transição, que o exame dos dispositivos clínicos que estão sendo utilizados pelos psicólogos, nos CAPS, tem sua relevância. Para isso, foi feita a observação do fazer clínico desses profissionais em diversas atividades realizadas por eles em dois CAPS II da cidade de Salvador. A análise dessas observações permitiu a identificação dos seus paradigmas clínicos, como eles interagem e a fundamentação teórica em que estão embasados. Além disso, foi possível identificar a prevalência constante da dimensão política da Reforma sobre sua dimensão clínica e que o campo da saúde mental possui práticas inovadoras convivendo com resquícios do velho modelo asilar.
Palavras-chave: Dispositivos clínicos; Reforma psiquiátrica; Psicanálise; Oficinas terapêuticas; Saúde mental.
ABSTRACT
The Psychiatric Reform has demanded changes in political and clinical practices in the mental health field in order to transform the old asylum model of care to the psychosocial one, resulting in the current frame of permanent (re)construction concept. It shows a transition period that the analyses of clinical devices have been used by the psychologists who work at CAPS as relevant. We observed the clinical deeds of these professionals in various activities they perform in two CAPS II in Salvador. The analysis of these observations allowed an identification of their clinical paradigms, their way of interaction and their theoretical foundations. Besides, we could verify the constant prevalence of the political dimension of the Reform on its clinical dimension and the presence of innovative practices coexisting with remnants of the old asylum model in the mental health field nowadays.
Key-words: Clinical devices; Psychiatric reform; Psychoanalysis; Therapeutic workshops; Mental health.
RESUMEN
La reforma Psiquiatrica al pleitear mudanzas en las prácticas coloca al campo de la salud mental em um momento de transición entre el antiguo modelo asilar de cuidado y el modelo de atención psicosocial promoviendo em la actualidad um cuadro de permanente re-construción conceptual. Por estar em éste período de transición es que el examen de los dispositivos clínicos utilizados por Psicólogos en dos CAPS II es pertinente. Para tanto se hizo uma observación del hacer clinico que estos profesionales desarollan em CAPS de la region Metropolitana de Salvador . El análisis de estas observaciones permitió identificar los paradigmas clínicos, como interactuan y la fundamentación teórica que los sostiene. Fué posible también identificar que la dimensión política de la Reforma se sobrepone em importancia a la dimensión clínica asi como que en el campo de la salud mental convivem practicas innovadoras com resquícios del antiguo modelo asilar.
Palabras-clave: Dispositivos clínicos; Reforma psiquiatrica; Psicoanalisis; Oficinas terapeuticas; Salud mental.
Introdução
O movimento da Reforma Psiquiátrica, ao pleitear mudanças nas práticas clínica e política do campo da saúde mental, colocou-o em um período de transição entre o antigo modelo manicomial e asilar de cuidado e o modelo da reabilitação psicossocial; implicando o atual quadro de (re)construção permanente de conceitos. É justamente por esse movimento reivindicar mudanças nas práticas clínica e política e se estar em tal período de transição, que o exame dos dispositivos clínicos que estão sendo utilizados pelos psicólogos nos chamados dispositivos substitutivos de cuidado - os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) - tem sua relevância. É preciso verificar o que já se avançou com o movimento da reforma e quais resquícios do velho modelo asilar ainda se fazem presentes nas práticas de cuidado do atual modelo de reabilitação psicossocial.
Foi visando responder, ainda que minimamente, a tais questões que a presente pesquisa foi empreendida e teve como resultado a produção do texto que se segue, o qual tentará abordar os avanços da Reforma Psiquiátrica, discutir algumas de suas metas ainda não alcançadas, levantar se há ainda ou não práticas do modelo manicomial misturadas às do modelo substitutivo de cuidado e de que forma esses resíduos aparecem no atual trato da loucura. A pesquisa foi realizada a partir de um projeto de iniciação científica que esteve vinculado ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia e que contou com o apoio e financiamento do CNPq.
A doença mental, que se constituiu como um objeto há duzentos anos, implicava o pressuposto de erro da Razão (Amarante, 2005). Não gozando da razão plena, portanto, o alienado não tinha assim, segundo nos lembra o referido autor, a possibilidade de gozar da liberdade de escolha. Lembrando que esta liberdade era o pré-requisito da cidadania, concluiu-se que o louco não poderia ser cidadão. O asilo tornou-se então o espaço da cura da Razão e da Liberdade e ainda condição para o alienado tornar-se sujeito de direito e alcançar sua cidadania (Amarante, 2005).
Hoje, porém, as consequências dessa forma de pensar, que instituiu práticas de cuidado asilares, já são conhecidas e os seus resultados desastrosos sobre os loucos reconhecidos. Foi buscando reverter essas consequências que todo um movimento de reforma psiquiátrica se desenvolveu internacionalmente, alcançando inclusive o Brasil. O processo de desinstitucionalização defendido por tal movimento veio então para superar esse mundo do confinamento que, segundo nos lembra Amarante (2005), serviu, dentre outras coisas, à ordem política e econômica, que necessitava esquadrinhar o espaço público destinando lugares de inclusão e exclusão social.
Contemporâneo da Reforma Sanitária Brasileira, o processo de Reforma Psiquiátrica que se desenvolveu no Brasil, especialmente, a partir da década de 1980, é caracterizado, dentre outras coisas, pelas dimensões clínica e política, as quais marcam o campo da saúde mental desde o seu nascimento no país, conforme nos afirma Rinaldi (2006). Ambas as dimensões do movimento reformista buscam a superação do modelo hospitalocêntrico e manicomial de trato da loucura; modelo este que, em função de sua constituição histórica com um entrelaçamento específico de elementos políticos, econômicos e culturais, estruturou-se como um modelo, segundo Bezarra Jr. (2007), de características excludentes, opressivas e reducionistas. O velho modelo manicomial possuía, portanto, um caráter segregador e desumano de cuidado, que retirou dos seus tutelados o direito à cidadania, por anos de história.
Diante de tal situação, segundo nos lembra Rinaldi (2006), foi por denunciar esse caráter do modelo asilar e levantar a bandeira de luta pela cidadania do louco que a dimensão política da Reforma assumiu a dianteira de tal movimento. Uma questão que se pôde constatar com a presente pesquisa e que a literatura já levantava foi a de que, apesar do campo da saúde mental ser marcado tanto pela dimensão clínica quanto pela dimensão política, há sempre uma tensão e conflito entre elas; ocorrendo muitas vezes uma valorização da dimensão política em detrimento da clínica, o que não acontece sem consequências, as quais serão expostas mais adiante.
Ainda de acordo com o que nos diz a autora já referida, a Reforma Psiquiátrica brasileira, marcada pela influência do modelo reformista do italiano Franco Basaglia e visando promover a reinserção social dos sujeitos afetados pelo sofrimento psíquico, valorizou o dispositivo da atenção psicossocial (calcada na noção de reabilitação psicossocial), que tem por objetivo a recuperação da autonomia e do poder de contratualidade dos sujeitos acima referidos. Portanto, os CAPS, sendo fruto do movimento dessa Reforma Psiquiátrica, espelham seus ideais e objetivos.
Três eventos marcam o movimento da reforma psiquiátrica brasileira no ano de 1987, a saber: o II Congresso Nacional do MTSM (Bauru, SP), a I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio de Janeiro) e o surgimento do primeiro CAPS no Brasil, na cidade de São Paulo. Mas, foi este último evento juntamente com o início de um processo de intervenção, em 1989, da Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP) em um hospital psiquiátrico - a Casa de Saúde Anchieta, ambos os eventos com repercussões nacionais, que demonstraram de forma inquestionável a possibilidade de se construir toda uma rede de cuidados efetivamente distinta e substitutiva ao hospital psiquiátrico (Brasil, 2005). Apesar desses marcos na década de 1980, foi somente na década seguinte que passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais para regulamentação da implantação de serviços de atenção diária, fundadas justamente nas experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia (Brasil, 2005).
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) se constituem, portanto, como dispositivos de atenção à saúde mental com valor estratégico para a Reforma Psiquiátrica Brasileira, configurando-se como bandeira de tal movimento para fazer frente ao antigo modelo asilar. Mas, para cumprir este papel, esses dispositivos reúnem algumas funções: prestar acolhimento às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, buscando preservar e fortalecer os laços sociais delas em seu território; prestar atendimento clínico em regime de atenção diária, evitando assim as internações em hospitais psiquiátricos; promover a inserção social das pessoas com transtornos mentais através de ações intersetoriais; regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental na sua área de atuação e dar suporte à atenção à saúde mental na rede básica (Brasil, 2005). Os Centros de Atenção Psicossocial representam, portanto, dentro dos municípios, um núcleo fundamental para a organização da rede de atenção às pessoas com transtornos mentais, funcionando assim como articuladores estratégicos desta rede e da política de saúde mental num determinado território (Brasil, 2005).
Os ideais e os objetivos da reforma, como dito anteriormente, não escapam de refletir nas práticas nos CAPS, como se verá mais adiante, o já apontado conflito existente, no interior do movimento reformista, entre as duas dimensões que o compõem: a política e a clínica.
Segundo Rinaldi (2006), onde se constata um certo conflito entre as dimensões clínica e política do movimento reformista, estão em jogo as distintas concepções de sujeito e cidadania que orientam as diversas éticas presentes no campo da saúde mental. Ainda segundo a autora, a partir da proposta de inclusão social apresentada pela Reforma, a noção de sujeito constantemente aparece unida ao discurso dominante da cidadania, como sujeito de direitos e deveres. O sujeito é tomado como pessoa única, cuja individualidade deve ser resgatada; acentuando-se o objetivo central do trabalho dos técnicos que é o de promover a reinserção dos ditos loucos como cidadãos na sociedade, proporcionando-lhes assim uma socialização.
O doente, a partir do movimento reformista, deve deixar de ser um mero objeto do saber psiquiátrico e tornar-se um sujeito, voltando assim a participar do mundo dos direitos e da cidadania. Visando concretizar isso, esse movimento apostou numa desinstitucionalização, que significa, segundo Amarante (2005), mais do que uma desospitalização, significa tratar o sujeito em sua existência e em relação com suas condições concretas de vida, não oferecendo-lhe, portanto, apenas a administração de fármacos, mas construindo outros dispositivos que permitam a criação de possibilidades concretas de sociabilidade para o sujeito.
Foi nesse contexto que a Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira, em 2001, foi promulgada e com ela produziu-se, ou melhor, legalizou-se essa necessidade de reinvenção dos dispositivos de intervenção em serviços de saúde mental (Maraschin, 2012). Sendo nessa conjuntura ainda de modificações nos dispositivos que o movimento reformista apostou nas oficinas terapêuticas, presentes nos aparelhos de assistência à loucura desde há muito tempo (Maraschin, 2012), como um dispositivo com o potencial de alcançar os objetivos reformistas. Para isso, o movimento exigiu delas como condição apenas que passassem por uma série de reformulações que, segundo Maraschin (2012), permitissem-lhes se deslocar de um lugar de apenas entretenimento e ocupação do tempo ocioso para um espaço de expressão e de criação. As oficinas terapêuticas entram, portanto, nesse contexto necessário aos serviços e seus trabalhadores, segundo afirma a referida autora, de criação, invenção e avaliação de outras modalidades de práticas.
O Estudo de Caso das Oficinas em dois CAPS II de Salvador
Com vistas à examinar os dispositivos clínicos que estão sendo utilizados pelos psicólogos nos chamados dispositivos substitutivos de cuidado foi feito o estudo de caso de dois CAPS II da cidade de Salvador. Para isso, foram observadas, semanalmente, durante três meses do primeiro semestre de 2011, as reuniões administrativas e as assembleias dos pacientes de ambas as instituições, três oficinas de um CAPS e quatro oficinas do outro, além de suas ações de matriciamento. A pesquisa teve a sua análise realizada a partir das observações empreendidas do fazer clínico dos psicólogos em todas essas atividades citadas e da investigação de quais paradigmas clínicos eles se valem no campo da saúde mental e que os norteiam em suas ações de cuidado.
Os referenciais teóricos utilizados para respaldar as análises feitas possuíam como centro de suas discussões os paradigmas clínicos que perpassam o campo da saúde mental, o movimento da Reforma Psiquiátrica, o modelo médico-psiquiátrico e a ética que o norteia. As análises se serviram, ainda, das noções de doença para a psicanálise e para o modelo médico, das noções de sujeito para a psicanálise - sujeito do inconsciente - e para a Reforma, que o toma equivalendo-o ao ser cidadão, portanto, sujeito de direitos e de deveres e, por fim, de referenciais teóricos da psicanálise lacaniana acerca da clínica das psicoses.
Como as oficinas representaram o dispositivo clínico mais utilizado nos serviços substitutivos, foi reservado um espaço significativo para a análise delas não só no desenvolvimento da pesquisa como também no presente texto. Visto que as oficinas são espaços que se valem do uso do trabalho e de atividades para os seus desenvolvimentos, realizou-se um percurso histórico acerca do uso que se fez desses recursos ao longo do trato da loucura, com vistas a saber que uso esse dispositivo clínico das oficinas faz desses recursos hoje e se e de que maneira elas atualizam ou reatualizam esse uso. Isso permitiu não só a análise das oficinas observadas como também a identificação de a que elas vêm se destinando hoje no chamado campo da saúde mental e que uso e apostas poderão ser feitas com elas.
Clínica e Política: as tensões e suas consequências
Uma constante prevalência da dimensão política da Reforma sobre a dimensão clínica, como já apontada anteriormente, constituiu-se como um dado permanente no cotidiano dos serviços substitutivos de cuidado. Seria ingenuidade supor que ela não afeta a maneira como os serviços serão ofertados aos usuários e, especialmente, como o tratamento será disponibilizado e efetivado para eles.
A defesa da ideia de que as chamadas oficinas de expressão, aquelas que devem ter o seu desenvolvimento realizado a partir da expressão da subjetividade dos usuários seja através de pintura, de costura, de desenhos ou de outros meios de expressão, dão uma maior possibilidade de fala aos usuários pode ser citada como uma das consequências dessa prevalência que puderam ser registradas a partir das observações da pesquisa realizada. Mas, de que maneira essa crença representa o predomínio da dimensão política da reforma sobre a dimensão clínica? Visando devolver e garantir aos ditos loucos alguns de seus direitos negados por tanto tempo, a Reforma Psiquiátrica, especialmente, em sua dimensão política, possui como um de seus objetivos dar voz a esses sujeitos. Assim, se tais oficinas fizeram crescer a possibilidade de fala dos usuários, por outro lado, porém, o crescimento desta oferta não foi acompanhado do mesmo crescimento na possibilidade de escuta desses sujeitos em suas singularidades. Pois, lembrando que as oficinas são realizadas em grupo, isso implica perda da possibilidade de trabalho das singularidades de cada usuário, visto que não é possível escutar a todos nas suas particularidades ao mesmo tempo, restando o trabalho com o universal.
Nesse sentido, tais oficinas estão garantindo apenas aos usuários um espaço para que falem, mas se faz importante lembrar de que isso não basta, de que o que se precisa é poder dar um destino específico a cada uma dessas falas que trazem problemáticas singulares de cada usuário. Tal circunstância retrata, portanto, a prevalência da dimensão política da reforma, a qual se preocupa em dar voz aos loucos, não se dando conta, porém, de que o seu predomínio sobre a dimensão clínica está significando dar voz sem escuta.
Segundo lembra Mira (2005), esse termo escuta tornou-se uma das principais ferramentas para a superação do paradigma psiquiátrico, o qual é caracterizado pela indiferença para com a fala dos ditos loucos. Porém, a autora afirma que há, em geral, um não saber fazer com o que se escuta e uma indistinção entre escutar o sujeito e simplesmente dar voz aos usuários que buscam tratamento.
Outro ponto que pode, em alguma medida, ser apontado como consequência dessa prevalência e que se fez ver nas observações da pesquisa é a existência de usuários que possuem como recursos de tratamento, além da intervenção medicamentosa, apenas a possibilidade de participação nas oficinas. Lembrando de que elas possuem como um dos principais objetivos a promoção da convivência e da socialização e que é a dimensão política do movimento reformista que mais especialmente se ocupa de promover ao usuário a restauração da sua sociabilidade e o resgate de sua cidadania, é que se pode afirmar que o oferecimento apenas desse tipo de tratamento revela a prevalência mais uma vez daquela dimensão em detrimento da dimensão clínica. Pode-se dizer ainda que a concepção de sujeito, portanto, que corre por baixo ai é a que faz equivalência entre os conceitos de sujeito e de cidadão.
Essa preocupação central da dimensão política, em proporcionar aos portadores de transtornos mentais a possibilidade de socialização e construção de vínculos sociais, justifica-se pela luta que essa dimensão trava para garantir os direitos dos loucos, especialmente aqueles que lhes foram roubados por tantos anos. Porém, tal prevalência sobre a clínica por parte da dimensão política gera o equívoco de se acreditar que a oferta de um espaço para a convivência e a socialização, como o das oficinas, por exemplo, e a participação pura e simplesmente dos usuários nesses espaços será suficiente para promover a sociabilidade desses sujeitos e restaurar-lhes a capacidade de fazer laços sociais, devolvendo-lhes suas cidadanias. No entanto, o oferecimento do espaço para socialização, por proporcionar a possibilidade de troca social, inexistente nos hospitais, não garante que tal troca irá existir. Para muitos sujeitos não basta simplesmente ofertar tal espaço, é preciso dar-lhes, primeiramente, outros recursos para que lhes seja talvez possível um dia o usufruto, de fato, dessa convivência e desse meio social que estão sendo-lhes ofertados pela dimensão política da reforma.
A existência de usuários que possuem como recursos de tratamento, além da intervenção medicamentosa, apenas a possibilidade de participação nas oficinas é um dado que não aponta apenas para a prevalência da política em detrimento da dimensão clínica. Outro fato, além desse, justifica a ocorrência de situações como a que essa exemplifica. Mas, que elemento poderia justificar a maciça promoção de tratamentos quase que iguais para todos os usuários e nos quais o singular de cada sujeito perde lugar, sendo possível apenas tratar o que aparece de universal entre eles?
Figueiredo (1997) afirma que, para o modelo psicossocial, ser sujeito significa ser cidadão e igual aos demais. Segundo a autora, esse modelo refere-se à ética da ação social que é pautada no modelo da ética pública, a qual possui para sujeito aquela mesma definição. Tal fato justifica o dispositivo de atenção psicossocial ter na restauração da autonomia e do poder de contratualidade dos sujeitos ditos loucos seu objetivo central e, ainda, acreditar que tentar promovê-lo para todos esses sujeitos significa lhes proporcionar o bem, já que tal dispositivo tem o seu modelo regido por uma ética pautada na ética pública, na ética do bem-comum (Figueiredo, 1997). Assim é que o modelo psicossocial, por se pautar nessa ética e na definição de que ser sujeito é ser cidadão e igual aos demais, acredita que a promoção de seu principal objetivo será boa para todos e incorre no erro de ofertar aos usuários do dispositivo apenas, além das intervenções medicamentosas, espaços terapêuticos - a exemplo das oficinas -, nos quais a análise do que é universal reina e as singularidades de cada sujeito raramente têm lugar. Fazendo, portanto, desses espaços o principal e às vezes exclusivo modelo de tratamento.
A psicanálise, possuindo uma ética distinta da ética do bem-comum, não deseja o bem dos sujeitos necessariamente e nem estabelece previamente o que ele vem a ser, compreendendo que só os sujeitos poderão defini-lo para si. Assim, partindo de uma ética diferente e acreditando que os sujeitos são diferentes entre si, para a psicanálise a oferta de um tratamento quase que uniformizado inviabiliza a manifestação do sujeito na sua diferença (Rinaldi, 2006). Partindo-se, portanto, do fato de que os sujeitos não são iguais uns aos outros, nada mais justo do que lhes oferecer tratamento de acordo com tal desigualdade. Só assim suas verdadeiras cidadanias lhes serão, de fato, ofertadas e concretizadas.
Uso do Trabalho no trato da Loucura: percurso histórico
Como maior parte das atividades que foram observadas reunia características que as faziam ser nomeadas de oficinas terapêuticas pelas próprias instituições e sendo as oficinas espaços nos quais há o empreendimento de trabalhos e de atividades, considerou-se importante debruçar-se sobre uma análise de como se deu historicamente o uso do trabalho e da atividade no campo do trato com a loucura; com vistas a saber a que as oficinas se destinam, hoje, no chamado campo da saúde mental e como, a partir disso, as oficinas observadas poderiam ser analisadas.
Guerra (2004) afirma, em seu texto Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de uma prática, existirem três lógicas que respaldam o uso do trabalho e da atividade no campo do trato com a loucura. Segundo ela, essas lógicas apareceram num processo histórico que, inclusive, antecedeu a inserção das oficinas ditas terapêuticas no campo da saúde mental e, ainda hoje, elas se superpõem em tal campo.
Guerra (2004) identificou a primeira dessas lógicas como estando presente no século XVII. Período em que a ociosidade era tomada como pecado pela burguesia, a loucura, sendo vista como uma forma de improdutividade era tomada como um desvio à ordem social. Nesse período, a todos os desviados destinavam-se a exclusão nas casas correcionais e nos asilos, instituições nas quais o trabalho e a atividade se colocavam como um imperativo não com vistas à cura, mas objetivando evitar a mendicância, a ociosidade e as fontes de desordem sociais. Ou seja, a atividade e o trabalho representavam recursos mantenedores da ordem social.
A outra lógica pôde ser identificada como estando presente, segundo a referida autora, em fins do século XVIII, período no qual a loucura deixa de ser vista como forma de improdutividade e desordem social, passando a ser encarada como patologia. Além disso, esse é um período marcado pelo nascimento da psiquiatria, a partir da observação clínica dos fenômenos patológicos em pacientes internados. Ela apropria-se das instituições de internação e dos cuidados para com a loucura, agora vista como doença para a qual deve ser empreendida uma terapêutica. A loucura sendo tomada como doença da razão, como um desvio no interior da razão, dar lugar à crença na sua cura pelo tratamento moral. Assim, a psiquiatria, de acordo nos lembra Guerra (2004), partindo de um discurso exortatório e de fundamento moral, utilizou o trabalho e a atividade como recursos "terapêuticos" para promoverem o restabelecimento da razão e a normatização e correção do comportamento moralmente desviado.
A terceira lógica, que respalda o uso dos recursos do trabalho e da atividade no campo não mais da psiquiatria, mas da saúde mental, pôde ser identificada por Guerra (2004) como estando presente já no século XX. Diferentes movimentos contribuíram para a retomada do uso de tais recursos no tratamento dispensado à loucura, porém fincados sobre novas bases. Um deles foi, segundo a referida autora, a formalização do campo teórico-prático da terapia ocupacional, que sistematizou e conferiu um novo enfoque ao uso da atividade no plano terapêutico. Paralelo a isso, a ineficácia da terapêutica assistencial asilar somada à denúncia sociopolítica de tratamentos segregacionistas e desumanos, presentes nas ações de "cuidado" empreendidas por esse modelo manicomial, culminou no processo de sua desconstrução e na reorganização da assistência a partir de modelos abertos e de dispositivos reabilitadores (Guerra, 2004).
A reforma psiquiátrica italiana foi o principal movimento reformista que deu um novo formato à lógica assistencial, na medida em que buscava a superação dos manicômios e não mais a sua otimização para torná-los terapêuticos. Associando o caráter político ao clínico, essa reforma dar à noção de terapêutico a ideia de ampliação das possibilidades de trocas na vida pública, conferindo ao uso do trabalho e da atividade tal objetivo (Guerra, 2004). Busca-se, portanto, romper com a utilização moral e educativa da atividade e do trabalho, passando a tocar o território no qual de fato ocorrem as trocas sociais. Assim, segundo a autora citada, as oficinas surgem, nesse campo da reforma, como espaços nos quais o uso do trabalho e da atividade deverá objetivar o resgate da cidadania e da possibilidade de inserção social.
Antes de dar início a uma análise do uso da atividade e do trabalho historicamente no país, é preciso deixar claro que, segundo Guerra (2004), as lógicas expostas anteriormente se superpõem no respaldo de tal uso. Nas três primeiras décadas do século XX no Brasil, para a loucura, tomada como uma desadaptação social, destina-se a segregação. Com o advento da psiquiatria científica no país, essa exclusão se dá sob indicação clínica e o uso do trabalho e da atividade torna-se imposição não só para manter a ordem social como também sob a desculpa de ser terapêutico (Guerra, 2004). Assim, busca-se com as colônias agrícolas a ocupação do tempo ocioso do louco e o seu tratamento a partir do trabalho, com vistas à sua reeducação para o trabalho. Portanto, segundo o texto da referida autora, ao tratamento moral somou-se a ideia de reabilitação; buscava-se recuperar a relação entre o louco e a comunidade, porém em coexistência com a exploração de sua mão de obra em prol da manutenção das colônias. Nelas, as oficinas desempenharam o papel de introduzir o trabalho e a atividade como recursos terapêuticos de reabilitação, porém, por ineficácia em alcançar seus objetivos reabilitadores, as oficinas fracassam nesse período histórico (Guerra, 2004).
Outro período marcante para a história do tratamento oferecido à loucura no Brasil foi a década de 1940; ela teve influência decisiva sobre a forma como se concebe hoje as oficinas (Guerra, 2004). Fazendo frente à hegemonia do pensamento organicista da psiquiatria brasileira da época, a terapia ocupacional, de acordo com a autora citada, conseguiu se inserir nesse campo, dando novas conotações ao uso do trabalho e da atividade, alcançando a introdução de sua utilização ao lado das intervenções de cunho biológico. A atividade e o trabalho foram valorizados enquanto recursos terapêuticos e os desvios no seu uso como, por exemplo, a exploração da mão de obra gratuita para a manutenção das próprias instituições asilares foram denunciados. A atividade e o trabalho deveriam buscar, de fato, o benefício dos pacientes, e sua utilização ter fins claramente clínicos (Guerra, 2004). Nessa perspectiva, a referida autora afirma que havia a defesa da ideia de que o trabalho e a atividade deveriam ser ofertados aos pacientes, escolhidos por eles e não impostos a eles; portanto, não deveriam ter o caráter de obrigatoriedade nem uma expectativa por produtividade. Assim, houve uma extrema diversificação nas atividades terapêuticas, passando a ofertar atividades para além das de cunho laborativo, incluindo, as de cunho estético e recreativo. Com isso, defendia-se uma postura de respeito às produções subjetivas do louco. A introdução dessa terapêutica, no campo de cuidados da psiquiatria, fez surgir a perspectiva de uma nova lógica assistencial no campo psiquiátrico, porém ficou marginalizada devido à revolução medicamentosa e à hegemonia do pensamento organicista, sendo retomada apenas anos mais tarde (Guerra, 2004).
Na década de 1980, volta-se a questionar o saber psiquiátrico e seu campo de práticas vigentes. Num contexto nacional de abertura política e frente a internações desnecessárias, à má qualidade nos atendimentos, a infraestruturas precárias e à crise institucional e financeira da previdência, inicia-se ampla reforma psiquiátrica no Brasil, segundo lembra Guerra (2004). E, ainda de acordo com ela, esse movimento de reformulação da assistência, dispensada no campo da saúde mental, caminha para além da tentativa de reformulação interna dos hospitais, objetiva-se, dentre outras coisas, a superação destes e a desinstitucionalização da loucura; o que implica a formulação de novas práticas assistenciais e a desconstrução das práticas tradicionais vigentes. Assim, instituições como os CAPS e recursos como as oficinas terapêuticas surgem como as novas modalidades abertas de assistência; as quais apresentam, em comum, um ideal de ressocialização e buscam o resgate das cidadanias dos sujeitos e a (re)criação dos seus laços sociais (Guerra, 2004).
Inaugurando uma associação entre os projetos clínico e político-social, essa reforma busca conceder ao uso da atividade e do trabalho um novo enfoque no campo da saúde mental, a partir da retomada das oficinas, as quais vêem a atividade e o trabalho como recursos terapêuticos (Guerra, 2004). Tal associação implica um novo conceito de clínica, nomeada como ampliada, antimanicomial ou psicossocial. Guerra (2004) nos lembra também que, nesse momento, o uso do trabalho e da atividade sofre influência direta da psiquiatria democrática italiana, base da reforma psiquiátrica brasileira. Para essa psiquiatria, tratar de um indivíduo implica uma ação política de transformação e de enfrentamento dos problemas de ordem social pelos quais ele atravessa. Tendo o pensamento basagliano como base, as ações terapêuticas do novo campo da saúde mental extrapolam o registro clínico e têm o elemento sociopolítico como norteador de suas ações e de suas políticas na assistência à saúde mental (Guerra, 2004).
Resquícios do Velho no novo Modelo de Cuidado da Loucura
Tendo sido a pesquisa em questão empreendida num momento correspondente ao de um avanço e consolidação do movimento da reforma psiquiátrica brasileira, mas ainda num período de transição, e após se ter realizado um percurso histórico pelo campo responsável pelo trato da loucura, torna-se impossível a não percepção de como muitos aspectos que a reforma tentou superar se repetem nas mais variadas práticas cotidianas empreendidas pelos serviços construídos por ela.
Um desses aspectos diz respeito à não obrigatoriedade com que o trabalho e a atividade deveriam ser encarados. Pode-se afirmar, segundo o que já foi colocado anteriormente, que a reforma, iniciada desde a década de 1940 no Brasil, tentou conferir a eles um caráter de oferta, defendendo a ideia de que tais recursos não deveriam ser impostos aos pacientes e advertiu ainda que não deveria existir uma expectativa por produtividade. Porém, a recente observação de oficinas, realizada em dois Centros de Atenção Psicossocial, permite a declaração de que esses aspectos que se acreditou terem sido superados não foram e se (re)presentificam, de maneira disfarçada, em muitas ações de cuidado dessas instituições. O chamado insistente que é dado a todos os usuários a cada momento em que uma oficina se inicia e frases como "não vão vir trabalhar, não?", "B., não vai para a oficina, não é? Venha fazer um desenho aqui!", "C., o que você está fazendo aí parado, que não foi para a sua oficina?" são comuns, nesses serviços substitutivos, e podem ser traduzidos como uma "disfarçada" exigência por trabalho que tanto se tentou superar.
Além disso, a expectativa por produtividade, que a reforma também pretendeu abandonar, aparece sutilmente nos espaços das oficinas, a partir de frases como: "C., faça outro desenho!" e "B., você só vai pintar uma figura, é? Por que não pinta outra?". Filho (2001), através da teoria dos discursos de Lacan, traz importantes contribuições para se pensar a respeito do funcionamento dos CAPS. Segundo ele, a presença de usuários em oficinas com a obrigação de produzir algo aponta para a presença do discurso da dialética do senhor e do escravo, que corresponde ao chamado discurso do mestre. Diante de testemunhos como esses, resta a pergunta: hoje, o ócio é tão facilmente permitido nessas instituições? Ou, está à beira de tornar-se novamente pecado, como na Europa do século XVII, devendo ser combatido, portanto, pelo imperativo do trabalho?
Talvez, essa "disfarçada" exigência por trabalho, identificada na pesquisa, tenha sua presença justificada através de outra conotação nos serviços substitutivos de cuidado. Para entender de que maneira isso é possível, será preciso recorrer ao que Costa, Gabbay & Silva (2004) lembram a respeito dos pressupostos teóricos que orientam a prática da terapia ocupacional. Segundo tais autoras, tais pressupostos podem ser reunidos em três grandes grupos, a saber: humanista, positivista e dialética. Na visão positivista, o tratamento, para a terapia ocupacional, consiste na inclusão no fazer, pois se acredita que a atividade em si possibilita a melhora das funções perdidas ou alteradas. Lembrando que as oficinas, como pensadas hoje no campo da reforma, nascem no campo da terapia ocupacional, sofrendo, portanto, muitas influências desta, e que é a partir delas que a reforma empreende o uso do trabalho e da atividade enquanto recursos terapêuticos, fica a pergunta: será que a exigência por trabalho e, portanto, pela participação dos usuários nas atividades das oficinas, citada anteriormente, justifica-se por um entendimento atual de que o tratamento deverá ser empreendido a partir da inserção em trabalhos e em atividades, ou seja, a partir da inserção no fazer?
Mas, por outro lado, analisando historicamente, isso não seria um retorno ao período das colônias agrícolas, período em que o trabalho, também no Brasil, passou a ser meio e fim do tratamento? É interessante notar que tanto no período das colônias agrícolas quanto na atual reforma psiquiátrica brasileira há o entendimento do trabalho e da atividade enquanto meios de tratamento; e a coincidência não para por aí. No período das colônias, como exposto anteriormente, as oficinas desempenharam o papel de introduzir o trabalho e a atividade como recursos terapêuticos de reabilitação, visando-se com elas, portanto, uma reeducação para o trabalho. Hoje, a reforma também espera, como resultado do tratamento empreendido, a reinserção do usuário no campo do trabalho e da atividade. Ou seja, em ambos os períodos há também o entendimento do trabalho enquanto fim para o tratamento. Por ineficácia em alcançar seus objetivos reabilitadores, as oficinas fracassaram no período das colônias agrícolas, segundo as informações já explicitadas anteriormente; sendo assim, resta outra pergunta: o que será preciso se empreender, no campo da reforma, para que esse fracasso não se repita?
Outro ponto que o movimento reformista acreditou ter superado foi a utilização educativa da atividade e do trabalho. Porém, alguns fatores apontarão para essa não superação. Por exemplo, as autoras Costa et al. (2004) propõem conceituar as oficinas terapêuticas a partir de uma definição dada para oficinas pedagógicas dentro dos seguintes termos: um ambiente destinado ao desenvolvimento das aptidões e habilidades de portadores de necessidades especiais, mediante atividades laborativas orientadas por professores capacitados e em que estão disponíveis diferentes tipos de equipamentos e materiais para o ensino ou aprendizagem nas diversas áreas do desempenho profissional (Costa et al., 2004, pg. 271).
As referidas autoras sugerem apenas duas alterações nessa definição exposta, a saber: que se substituam as palavras 'pedagógica' e 'professores' por 'terapêutica' e 'técnicos' respectivamente. Outro ponto que indica essa não superação é a forte influência que a terapia ocupacional possui sobre o campo da reforma e a defesa de que, na visão positivista dos pressupostos teóricos da terapia ocupacional, a função do profissional dessa área deverá ser a de demonstrar como a atividade deve ser realizada (Costa et al., 2004). Assim, como não aparecer no uso do trabalho e da atividade uma lógica educativa?
É possível se pensar que, se a conceituação dada às oficinas pedagógicas foi encarada com sendo uma boa definição para as oficinas terapêuticas, precisando apenas da alteração em dois termos, isso significa dizer que o fazer das oficinas terapêuticas reflete, de alguma forma, a conceituação dada às oficinas pedagógicas. Sendo assim, a substituição dos termos "pedagógica" e "professores" por "terapêutica" e "técnicos" não altera nada, visto que o fazer permanece o mesmo. Para atestar tal fato, pode-se levantar, aqui, termos que são frequentemente utilizados nos CAPS e que puderam ser elencados a partir das observações nessas instituições, a saber: "aula", termo utilizado pelos usuários para se referirem à oficina; "professor", utilizado para se referir ao técnico e, finalmente, "perder ponto", termo utilizado para se referirem à não participação deles nas atividades das oficinas.
A verdade é que o desejo por reinserir o usuário na rede social e ajudá-lo a compartilhar da mesma lógica dessa rede faz com que muitas ações empreendidas na direção do cuidado se percam num eterno ensinamento de como ele deverá fazer as coisas; cristalizando, assim, o técnico algumas vezes na posição de mestre e não dando a possibilidade ao usuário conquistar sua autonomia, inclusive, tão desejada por esses serviços substitutivos de cuidado. É para isso que apontam os termos, acima citados, de uso tão comum nesses serviços. A experiência de acompanhamento de uma das oficinas observadas na pesquisa ajudou em muito na análise desse ponto. Essa oficina, apesar de ter pretensamente um caráter de expressão, na prática, o que acontecia era um ensinamento permanente aos usuários de como eles deveriam construir seus mosaicos. Outra situação que estampa muitas vezes um fazer muito mais de mestre por parte dos profissionais é a que se delineia no instante de construção do PTI (Projeto Terapêutico Individual); momento no qual o técnico incorre muitas vezes no erro de se determinar para quais atividades o usuário deverá se encaminhar sem estar atento às demandas e interesses do usuário. Fato que se evidencia em falas do tipo "venho porque meu técnico mandou", emitidas por usuários, quando são interrogados a respeito do por que frequentam determinada oficina.
Guerra (2004) afirma a existência de quatro feixes discursivos que sustentam o ideário das oficinas e sua prática no campo da saúde mental, a saber: o discurso do déficit, o discurso do inconsciente, o discurso da cidadania e o discurso da estética. A depender das concepções defendidas de loucura e de que uso deve ser feito do trabalho e da atividade, as oficinas obedecerão a lógicas diferentes de atuação e apresentarão como discurso norteador uma das modalidades citadas. Essa é uma separação feita muito mais em nome de uma didática, pois, na prática, tais modalidades mesclam-se e muitas vezes coexistem (Guerra, 2004).
Segundo a referida autora, para o discurso do inconsciente, o louco, visto como psicótico, é tomado como tendo uma relação particular com o inconsciente e tendo uma manifestação singular de sua estrutura clínica. Às oficinas que partem desse discurso, interessam essa singularidade do louco e sua subjetividade. As oficinas, atravessadas por tal discurso, objetivam a construção de uma suplência, o estabelecimento possível do enlaçamento social na psicose ou, ao menos, seu apaziguamento. Enfim, as oficinas, aqui, visam a uma operação subjetiva de estabilização (Guerra, 2004).
O discurso da cidadania encara o adoecimento psíquico como índice de sofrimento e não de exclusão ou de cronificação, sendo assim, toma o louco como cidadão e detentor de direitos que lhe devem ser devolvidos. Essa modalidade discursiva objetiva, então, a sua reinserção na vida política e social através da reabilitação e do resgate de sua cidadania. As oficinas são tomadas, aqui, como um dos espaços onde esse resgate se concretiza através da aquisição de habilidades e, sobretudo, da humanização da loucura (Guerra, 2004).
Apesar de já ter sido dito que essas modalidades discursivas mesclam-se, foi possível perceber, em algumas das oficinas observadas com a pesquisa, a presença de uma dessas modalidades enquanto eixo norteador, ou seja, a prevalência de determinados discursos sobre outros. Com vistas a exemplificar tal fato, far-se-á um relato de uma das observações realizadas.
Era frequente, na realização da pesquisa, a observação de uma oficina dita "de memória" seguida da observação da oficina dita "de mandala". A primeira oficina se caracterizava por se destinar, especialmente, a paciente psicótico, visando o restabelecimento de sua capacidade de memorização ou o evitamento da sua perda progressiva. Esse objetivo central, que se caracteriza como sendo a aquisição de uma habilidade ou o evitamento da perda dela, aponta para a prevalência do discurso da cidadania, o qual objetiva justamente a reabilitação e o resgate da cidadania através, por exemplo, da aquisição de habilidades. Nessa oficina, portanto, as manifestações singulares da loucura não tinham vez. Enquanto que, na oficina de mandala, tais manifestações se constituíam como sendo os conteúdos sobre os quais basicamente o trabalho da oficina se desenvolvia. Essa oficina caracterizava-se como oficina de expressão, na qual se priorizava as falas que surgiam durante e a partir da construção das mandalas; o que permite afirmar haver aí uma prevalência do chamado discurso do inconsciente.
Em certo dia de observação, um paciente psicótico, durante a oficina de memória, não se cansava de falar frases do tipo "quero defecar" ou "defecar é bom", as quais, além de não terem sido escutadas no que nelas existia de singular, representaram motivo para que o paciente fosse recriminado, a partir da justificativa de que a oficina não era lugar para "falar porcarias". Em seguida, o paciente participou da oficina de mandala, onde continuou a repetir tais frases, porém, o manejo foi outro. Interrogado a respeito do que era defecar e do por que ele estava repetindo insistentemente aquelas frases, o usuário respondeu: "defecar é falar"! Fato que explicita a importância de não se trabalhar, no campo da saúde mental, a partir de princípios normativos e de se ouvir os sujeitos naquilo que possuem de mais singular.
Voltando às modalidades discursivas elencadas por Guerra (2004) e expostas anteriormente, o discurso da estética encara a loucura como uma manifestação singular de expressão, que permite diversificadas formas de intervenção, objetivando ampliar seu potencial criativo e sua produção artística; permitindo uma inscrição singular da loucura na cultura, em especial, através da arte. A partir desse discurso, as oficinas se oferecem como meios de expressão, ampliação do universo cultural e circulação social.
Por fim, o discurso do déficit, por tomar o louco como criança e sujeito infantilizado, enxerga as oficinas como formas de tratar o louco a partir do entretenimento. É, segundo Guerra (2004), o antigo modelo de uma vertente de trabalho da terapia ocupacional capturado na rede da psiquiatria clássica. A verdade é que tal discurso pôde, através da pesquisa empreendida, ser facilmente detectado, no ambiente dos serviços substitutivos, a partir, inclusive, de diminutivos aplicados em frases do tipo: "Fique aí sentadinho na cadeira, viu, C." ou "Você, B., não gostaria de fazer um desenhinho, não?".
Segundo Tenório (2001), existe uma tensão fundamental de qualquer iniciativa que pretenda tratar sem segregar, a saber: a tensão entre tutela e cuidado. Segundo ele, "nesse fio delicado, entre mandato terapêutico e mandato social de exclusão, têm sido construídas as formas renovadas de aproximação com a loucura" (Tenório, 2001, p. 52). E é, justamente, por se encontrarem em construção que o risco de se tutelar um sujeito, ao empreender em sua direção formas de tratamento, ainda é muito grande. Figueiredo (1997) afirma que, quando isso acontece, pode-se dizer que ocorreu uma prevalência da ética do modelo médico, a ética da tutela, sobre a ética da ação social, que corresponde à ética do modelo psicossocial. Segundo a autora, isso acontece quando a atividade ocupacional é dirigida de tal maneira que o paciente, a quem se deve dar uma ocupação, é tomado como um doente regredido a formas mais infantis de expressão. Sendo assim, o seu plano de trabalho deve seguir etapas supostamente fundamentais ao seu progresso, independentemente de sua escolha ou vontade.
Na pesquisa em questão, foram inúmeras as situações que poderiam exemplificar a tensão apontada por Tenório e a prevalência da tutela sobre a ação social sublinhada por Figueiredo, porém far-se-á, aqui, o relato de apenas uma delas. Um usuário obeso, diabético e hipertenso, que nunca dava início ao seu tratamento físico, foi proibido (contra a sua vontade!) de frequentar o CAPS, enquanto não desse início ao tratamento da sua saúde física. Tomando, para a análise de tal situação, a retomada feita por Tenório (2001) da conceituação de Goldberg acerca da reabilitação, tem-se que ela corresponde, segundo Goldberg (in Tenório, 2001), a ofertar ao usuário todas as possibilidades de tratamento que estejam disponíveis, mas deverá caber sempre ele a decisão em relação ao que será feito do seu tratamento. Lembrando que a reabilitação psicossocial objetiva a autonomia, tem-se que ela corresponde a uma capacidade de gerir a própria vida (Costa et al., 2004). Portanto, ao proibir o usuário de frequentar a instituição, objetivando obrigá-lo a empreender seu tratamento físico, o CAPS feriu o seu próprio objetivo de produzir autonomia. Pois, ao decidir pelo usuário o que ele deveria fazer, ao invés de implicá-lo na sua responsabilidade sobre a escolha de não se tratar fisicamente, o CAPS o tutelou, tamponando assim o lugar da reabilitação tão almejada por essas mesmas instituições.
A diversidade de formação, presente no campo da saúde mental, pode ser apontada como algo que poderia ser considerado um enriquecimento, uma vez que cada um contribuiria com diferentes abordagens sobre a realidade do ser humano e seu adoecimento mental (Costa et al., 2004). Tal diversidade de saberes teóricos implica, segundo as autoras, diferentes modos de traduzir o acontecer nas oficinas. Porém, esse enriquecimento não ocorre devido a não existência de um tempo destinado para se refletir sobre tais questões. As reuniões de equipe discutem apenas questões administrativas ou que digam respeito à história de vida dos usuários, e isso a observação de reuniões de equipe, através da pesquisa, pôde constatar. Não se discute em que as atividades empreendidas nas oficinas estão sendo terapêuticas ou não. Figueiredo (2010), em seu texto Três tempos da clínica orientada pela psicanálise no campo da saúde mental, pontua a problemática questão da disputa de saberes que estas reuniões suscitam, colocando como sugestão a construção de caso clínico em equipe. Tal construção, segundo ela, deverá se dá "a partir dos elementos fornecidos pelo sujeito, e não da convergência de saberes múltiplos dos profissionais que, no máximo produzem um saber sobre o sujeito" (Figueiredo, 2010, p. 15). Fica, então, essa sugestão como uma aposta.
Psicanálise e Oficinas: apostas possíveis no trato da Loucura?
Resta uma pergunta: a partir de que lugar a psicanálise deve tomar as oficinas, recursos reabilitadores, de forma a produzir "efeitos de sujeito" e ao mesmo tempo não negligenciar o fato delas estarem na interseção entre clínica e política e, por isso, objetivarem o resgate de cidadanias e de identidades?
Em um campo marcado pela dimensão clínica e política, faz-se importante, primeiramente, lembrar o que Zenoni (in Guerra, 2004) afirma com sendo preciso: diferenciar a dimensão do sujeito e a do cidadão. A primeira implicaria a dimensão da liberdade, da implicação, enquanto ao cidadão, seria resguardado o direito aos cuidados, mesmo que ele não se implique enquanto sujeito no tratamento. Essa prerrogativa, segundo a referência apontada, é fundamental que exista para que o sujeito possa ter garantida sua possibilidade de escolha e de engajamento.
Como a psicanálise poderá contribuir e atuar num campo marcado por ideais reabilitadores? Rinaldi (2010) afirma que os procedimentos de reabilitação psicossocial não negam seu caráter normatizador a partir de parâmetros estabelecidos aprioristicamente sobre "níveis de contratualidade" e de "habilidades de efetuar trocas afetivas e materiais". Está, aí, outro fator que contribui para dificultar a atuação da psicanálise no campo da saúde mental, a saber: o a priori, que se presentifica em muitas das práticas de cuidado desse campo.
Generoso (2010) traz que o psicanalista Carlo Viganò considera a questão da reabilitação a partir da dimensão da clínica orientada pela psicanálise. Com essa perspectiva, Viganò (in Generoso, 2010) considera a reabilitação como a reconstrução ou construção das "condições simbólicas para enfrentar o real do gozo; do gozo do Outro materno, em seguida, do Outro reabilitado" (in Generoso, 2010, p. 110), e isso só terá sucesso se for acompanhada cada estrutura subjetiva, o que é propiciado pelo tratamento clínico.
Nenhuma prática de cuidado deveria ser empreendida, no campo da saúde mental, sem a apropriação das características clínicas que marcam a estrutura psicótica. Segundo Guerra (2004), a loucura traz a marca de uma diferença quanto à forma de organização subjetiva que permitiria ao sujeito fazer um laço simbólico com a ordem social; o louco, portanto, não se encontra submetido às mesmas normas simbólicas de organização por conta de sua constituição. A referida autora afirma, ainda, que a não incidência da castração, na psicose, é responsável pela consistência do objeto que se manifesta, por exemplo, nas alucinações. O Outro do psicótico goza dele, apresentando-se como absoluto e não simbolizado; o que fragiliza o laço social.
Assim, como pensar as oficinas como meios de reinserir o louco na vida pública e social, tendo ele uma inscrição no simbólico tão particular?
Para tentar responder a tal questão, se recorrerá, aqui, a algumas informações trazidas por Guerra (2004). Segundo ela, a oficina vincula-se mais estreitamente à questão do estatuto do objeto do que ao da própria fala, posto que seu funcionamento, seja qual for a tendência da oficina, sempre referencia um produto, uma produção material. Guerra (2004) lembra, ainda, a fundamental importância que o ordenamento do campo pulsional tem no estabelecimento do laço social. Assim, ela levanta a hipótese de que o trabalho com a psicose buscaria extrair desse Outro impositor o "excesso que o absolutiza" (Guerra, 2004, p. 51). Portanto, de acordo com a referida autora, ao criar coisas concretas inéditas, "talvez o psicótico estivesse extraindo do ventre do Outro objetos reais que, permitindo-lhe produzir um resto nessa operação - um objeto inédito - talvez lhe conferisse uma densidade simbólica sobre sua corporalidade real" (Guerra, 2004, p. 51). A partir, portanto, da criação de um objeto externo, o psicótico teria a possibilidade de sair dessa posição de objeto do gozo do Outro para ocupar o lugar de autor, de produtor (Guerra, 2004).
Assim, segundo Guerra (2004), as atividades de produção nas oficinas podem representar atividades de circunscrição de gozo, com as quais os usuários podem produzir sentidos históricos para suas produções. As oficinas, se não conseguirem alcançar uma suplência estabilizadora para os usuários, devem, ao menos, objetivar um apaziguamento para os sujeitos. Por fim, a respeito das oficinas, a referida autora afirma: "obviamente oferta que não opera sempre, nem para qualquer psicótico, mas que, estando presente, pode produzir efeitos-sujeito, escrevendo-se de uma vez por todas para alguns, ao modo da contingência" (Guerra, 2004, p. 52).
Considerações Finais
A pesquisa pôde identificar que, como todo período de transição, o campo da saúde mental possui, hoje, práticas inovadoras convivendo com resquícios do velho modelo asilar e, ainda, que o desconhecimento da clínica das psicoses faz fracassar o objetivo da reforma de unir os projetos clínico e político. Para que os objetivos políticos se concretizem é preciso ter conhecimento de que a não incidência da castração nos psicóticos faz com que estes não se encontrem submetidos às mesmas normas simbólicas de organização e que é isso que fragiliza suas capacidades de fazer laço social, ou seja, é preciso conhecer os limites e possibilidades da estrutura desses sujeitos; de acordo com Mira (2005), o desconhecimento dos limites da estrutura do sujeito elimina tal sujeito em vez de incluí-lo.
A tentativa de unir os projetos clínico e político atrelada ao fato de não se estar muitas vezes advertido para os limites e possibilidades da estrutura psicótica traz embaraços para os atuais responsáveis pelo trato da loucura. A clínica das psicoses, no atual campo da saúde mental, é possível desde que a conduta indicada por Lacan (1985) de secretariar o alienado não se transforme em tutelá-lo.
Por fim, baseando-se nas referências, anteriormente citadas, é possível afirmar a existência de um lugar possível, sim, para a clínica das psicoses nas oficinas, mesmo sendo elas recursos reabilitadores de resgate de cidadanias e de identidades e estando na interseção entre clínica e política. Esse lugar é possível desde que se aposte no fato de que as oficinas poderão constituir-se em espaços para a construção de condições simbólicas que tornem possível aos sujeitos psicóticos enfrentarem o real do gozo; podendo existir, na criação pelo psicótico de um objeto externo, sua possibilidade de sair da posição de objeto do gozo do Outro para ocupar o lugar de autor, de produtor. Acreditar nisso se faz necessário, mas não é suficiente. Para alcançar não só esse objetivo como os demais elaborados pelo movimento da reforma psiquiátrica faze-se preciso que as dimensões política e clínica de tal movimento caminhem juntas; ao menos, tentem andar sem descompassos ou prevalências de uma sobre a outra.
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Recebido: 30/08/2012
Última revisão: 14/11/2012
Aceite final: 16/11/2012
Sobre os autores:
Kelliane de Sá Cruz - Graduanda do Curso de Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia.
Andréa Hortélio Fernandes - Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, Paris 7.
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