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Revista Psicologia e Saúde

versión On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.11 no.3 Campo Grande sept./dic. 2019

https://doi.org/10.20435/pssa.v0i0.426 

10.20435/pssa.v0i0.426 ARTIGOS

 

Acolhimento coletivo como espaço de cuidado: uma análise das demandas em saúde mental na adolescência

 

Collective reception as a care space: an analysis of mental health demands in adolescence

 

Recepción colectiva como espacio de cuidado: un análisis de las demandas en salud mental en la adolescencia

 

 

Luciana Barcellos FossiI; Fernanda Koch ReinheimerII

IMestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente do curso de graduação em Psicologia do Centro Universitário Univates. Psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial do município de Dois Irmãos, RS. E-mail: lubfossi@hotmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-1130-6147
IIMestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Especialista em Saúde Coletiva com ênfase em Pneumologia Sanitária e Gestão e Formação em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública do RS. Psicóloga no Centro de Atenção Psicossocial de Dois Irmãos, RS. E-mail: fernandakochreinheimer@hotmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-5439-5779

Endereço de contato

 

 


RESUMO

Este artigo se caracteriza por um estudo crítico que aborda a experiência da modalidade de acolhimento estabelecida por um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) como ferramenta para o cuidado e a promoção da saúde mental de adolescentes. O material utilizado para sustentar este estudo foi o registro escrito de acolhimentos da demanda relatada por pais de adolescentes que buscaram o serviço em questão, no período de outubro de 2014 a fevereiro de 2015. Para analisar e problematizar os resultados provenientes desses registros, apresentaremos uma discussão teórica acerca da adolescência, da Clínica Ampliada e da Redução de Danos. A partir da análise desse espaço enquanto ferramenta, conclui-se que o acolhimento nessa modalidade tem se mostrado eficaz e em consonância com a perspectiva proposta pelo Ministério da Saúde para os Centros de Atenção Psicossocial.

Palavras-chave: acolhimento, saúde mental, adolescência


ABSTRACT

This article is characterized by a critical study that addresses the mode of reception in a experience established by a Psychosocial Care Center (CAPS) as a tool for the care and the promotion of mental health of adolescents. The material used to support this study was the service write registration of the demand of reception teenagers concerned from October 2014 to February 2015. To analyze and problematize the results from these records, we will present a theoretical discussion about adolescence, the Expanded Clinic and the Harm Reduction. From the analysis of this space of care, it is concluded that the host in this mode has been proven effective and in line with the prospect of extended clinic proposed by the Ministry of Health of Brazil for a Psychosocial Care Center.

Keywords: reception, mental health, adolescence


RESUMEN

En este artículo se caracteriza por un estudio crítico que aborda la experiencia de el modo de recepción establecida por un Centro de Atención Psicosocial (CAPS) como una herramienta para el cuidado y la promoción de la salud mental de los adolescentes. El material utilizado para apoyar este estudio fue el registro escrito del servicio de la demanda de recepción de los adolescentes a partir de octubre de 2014 y febrero de 2015. Para analizar y problematizar los resultados provenientes de estos registros, presentaremos una discusión teórica acerca de la adolescencia, la Clínica Ampliada y la Reducción de Daños. A partir del análisis de este espacio como una herramienta, se concluye que el recepción en este modo se ha demostrado su eficacia y en consonancia con la perspectiva de la clínica ampliada propuesta por el Ministerio de Salud de Brasil para los Centros de Atención Psicosocial.

Palabras clave: recepción, salud mental, adolescencia


 

 

Introdução

Este artigo se propõe a apresentar a modalidade de acolhimento estabelecida por um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) como ferramenta para o acesso, cuidado e promoção da saúde mental de adolescentes. O CAPS em questão situa-se em um município do Rio Grande do Sul (Brasil) que possui pouco menos do que 30.000 habitantes. Portanto trata-se de um CAPS tipo I, que tem como atribuição atender toda a demanda de saúde mental do município. Sendo assim, o CAPS estabeleceu como forma de acesso ao serviço o acolhimento coletivo sem agendamento prévio e sem necessidade de encaminhamento de outros serviços da rede, em uma perspectiva de desburocratizar o acesso ao serviço, garantindo o atendimento universal do Sistema Único de Saúde. A partir da demanda atendida no acolhimento coletivo específico para pais de adolescentes encaminhados ao CAPS, iremos apresentar uma discussão sobre as demandas contemporâneas em saúde mental no período da adolescência e o papel dos serviços de saúde mental no cuidado do adolescente.

 

Acolhimento na Rede Pública de Saúde: Tecendo Sentidos, Construindo Saberes

Antes de apresentar as questões específicas sobre a modalidade do acolhimento coletivo para adolescentes, consideramos necessário tecer os sentidos e o conceito de acolhimento na perspectiva da saúde pública no Brasil, a fim de que esses conceitos dialoguem posteriormente com a experiência apresentada neste artigo.

O atendimento à demanda espontânea requer ações em todos os pontos de atenção à saúde, incluindo os aspectos organizativos das equipes em seu processo de trabalho, bem como os aspectos resolutivos de cuidado. O processo de adoecimento apresenta diferentes significados para cada pessoa, bem como a manifestação de sofrimento, pois cada usuário possui diferentes capacidades e recursos para lidar com seus problemas. O acolhimento é o ponto de partida para o estabelecimento de um projeto terapêutico e do vínculo entre usuário e profissional (Brasil, 2013).

Cavalcante Filho, Vasconcelos, Ceccim, e Gomes (2009) destacam o acolhimento como uma ampliação da acessibilidade aos serviços de saúde, bem como estruturante do processo de trabalho organizado tendo como foco as necessidades de saúde dos usuários. Além disso, o acolhimento tem o potencial instituinte de novas formas de produzir cuidado, considerando o protagonismo do usuário na construção do projeto terapêutico singular. Para Matumoto, Mishima, Fortuna, & Pereira (2015), o acolhimento pode ser entendido ainda como um processo que se inicia antes mesmo de o usuário chegar ao serviço de saúde, devendo ser definido como um "modo de resposta" às necessidades que são expressas pela clientela.

Silva Junior e Mascarenhas (2008) apontam três dimensões do acolhimento: postura, técnica e princípio de reorientação dos serviços. No aspecto caracterizado como postura, afirmam que o acolhimento pressupõe uma atitude de receber, escutar e tratar de maneira humanizada os usuários e suas demandas. A postura de acolhimento e escuta também pode ser pensada na relação dos profissionais da equipe entre si, considerando que relações democráticas estimulam a participação, autonomia e decisões coletivas, o que produz sujeitos de novas práticas em saúde pública.

Acolher uma necessidade como demanda de saúde dependerá dos atores em cena, da construção do objeto de ação, da forma como esse processo se realiza e das possibilidades de negociação. Não há como produzir respostas simples para situações complexas. O que se pode garantir é a construção de espaços públicos para a negociação de necessidades, garantindo o compartilhamento dos diferentes sentidos do objeto de ação dos profissionais (Cavalcante Filho et al., 2009).

De acordo com Vieira e Santos (2011), o acolhimento na perspectiva da saúde pública no Brasil é uma diretriz operacional que considera os seguintes princípios: atender todas as pessoas que procuram os serviços de saúde, garantindo a acessibilidade universal; reorganizar o processo de trabalho, a fim de que a figura central do médico se desloque para a equipe multiprofissional - equipe de acolhimento -, que se encarregará da escuta do usuário, comprometendo-se a resolver seu problema de saúde; qualificar a relação trabalhador-usuário, que deve se dar por uma lógica horizontal.

Cavalcante Filho et al. (2010) colocam que a inclusão do outro, a sensação de implicação com o atendimento, a desterritorialização dos profissionais de saúde no espaço do acolhimento coletivo promovem a circulação de conhecimentos que incidem na construção de autonomia. O acolhimento coletivo, dessa forma, desconstrói a imagem ideologicamente construída do profissional de saúde, sobretudo de nível superior, como aquele que é detentor do conhecimento a ser transmitido. Na perspectiva do acolhimento coletivo, os saberes são compartilhados horizontalmente e de forma democrática.

Conforme Queiroz, Ribeiro e Pennafort (2010), o acolhimento deve ser de responsabilidade de toda a equipe de saúde, pois somente dessa maneira é possível atender de fato as demandas e necessidades dos sujeitos reais do trabalho em saúde, considerando que as demandas em saúde não dizem respeito unicamente ao que o médico pode solucionar. Assim, o acolhimento se coloca como um espaço de produção de saúde que considera a saúde do sujeito em sua integralidade. A integralidade em saúde possui diversos sentidos, incluindo o direito universal ao atendimento digno e acolhedor das necessidades de saúde do usuário, bem como a oferta de respostas abrangentes e adequadas com resolutividade. Logo, a integralidade na atenção à saúde orienta a organização do sistema para responder às demandas e necessidades da população no acesso à rede de cuidados em saúde, considerando o processo saúde-doença como um tema complexo, atravessado por questões culturais e subjetivas, não restringindo ou limitando tal entendimento a uma perspectiva biologicista e medicalizante.

Feuerwerker (2014) destaca que um olhar cuidadoso por parte dos profissionais sobre o território pode revelar situações que necessitam de um cuidado mais intensivo, para além do que as equipes de saúde da família podem propiciar. Desse modo, mergulhar no contexto de vida dos usuários é fundamental. O olhar desarmado, interessado, sem preconceitos e menos prescritivo pode, além de reconhecer os problemas de uma determinada população, reconhecer as potencialidades dela. O olhar cuidadoso para o território revela as situações que demandam cuidado, portanto é necessário criar modalidades de atenção adequadas para essas situações.

Os princípios do acolhimento universal, da intersetorialidade e da noção de território direcionam e responsabilizam os serviços de saúde mental para o acolhimento de adolescentes. Tais princípios não devem ser tomados como regras enrijecedoras da escuta e da prática clínica que cristalizam as ações. Uma abordagem que descontextualize o sujeito de sua história de vida e de suas questões atuais pode recair em condutas previsíveis e prescritivas (Oliveira, 2007).

Estes são os saberes que constituíram o embasamento da prática do acolhimento por livre demanda, sem a necessidade de encaminhamento ou agendamento prévio, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em questão. Por se tratar de um Centro de Atenção Psicossocial do tipo CAPS I, ou seja, um serviço que atende toda a demanda de saúde mental em seu território, constatou-se a necessidade de garantir o acesso da população de adolescentes ao serviço. Assim, foi instituído, a partir de agosto de 2014, um espaço de escuta específico para a demanda de crianças e adolescentes nesse serviço.

A escuta dos pais dos adolescentes no âmbito de um serviço de saúde mental requer algumas problematizações acerca das questões específicas do contexto de vida e de desenvolvimento psicossocial dessa população. Por tratar-se de uma etapa de vida em que comumente acontecem conflitos e dificuldades, faz-se necessária a discussão de saberes teóricos sobre a adolescência e como tais questões são abordadas no espaço do acolhimento coletivo.

 

Adolescentes e a Demanda de Saúde Mental

A adolescência é construída historicamente pela sociedade como representação e fato sócio-histórico, portanto a adolescência é constituída de significações a partir de realidades sociais e de referências para a construção dos sujeitos, ou seja, é um momento significado e interpretado pelo ser humano. Assim, no seio da sociedade capitalista, a adolescência é um período de latência social em que o ingresso no mercado de trabalho e a extensão do período escolar são questões centrais características (Ozella, 2002).

De acordo com Osório (1989 ), a adolescência pode ser considerada uma etapa crucial do desenvolvimento em que acontece a estruturação final dos aspectos da personalidade do indivíduo. Sendo assim, a adolescência requer um olhar que não considere somente as modificações corporais, mas também o processo de transformação caracterizado, segundo o mesmo autor, como uma "crise de valores". A crise de identidade do adolescente é resultado de um amplo processo de transformações dessa etapa da vida. Esse processo de transformação psicossocial é potencializado pelas inevitáveis contradições socioculturais contemporâneas. Ele é sentido pelo adolescente, tanto nos aspectos físicos como na perspectiva das exigências do mundo, como invasor. Sendo assim, acontece um retraimento, como o intuito de buscar refúgio em seu mundo interno para conectar-se com seu passado, a fim de encontrar possibilidades para o enfrentamento do futuro (Aberastury, 1983).

Conforme Aberastury (1983), as modificações do adolescente se assemelham ao luto e, por tratar-se de um processo de luto, é necessário que o tempo transcorra para que ele seja elaborado. Portanto é possível afirmar que o olhar da saúde mental, no que tange ao papel dos CAPS, é importante na medida em que pode desconstruir uma visão patologizante desse período do desenvolvimento humano, bem como avaliar precocemente situações que requeiram intervenção psicossocial, a fim de prevenir o agravamento da saúde mental do adolescente.

Os adolescentes constituem um grupo populacional que requer outros modos de produzir saúde. Os agravos em saúde diante de um ciclo de vida particularmente saudável são decorrentes, na maior parte das vezes, de hábitos ou comportamentos que, em alguns contextos, podem representar uma condição de vulnerabilidade e conduzem os jovens a situações de violência e adoecimento. O processo histórico de exclusão e discriminação produz o contexto social de desigualdade que influencia as oportunidades às quais os adolescentes têm acesso (Ministério da Saúde, 2014).

De acordo com Rocha (2002), a contextualização da adolescência nos dias atuais está permeada por fatores como a aceleração do tempo provocada pelo desenvolvimento tecnológico e a cultura do consumo. Tais transformações da vida contemporânea trazem dificuldades na compreensão da realidade e da diversidade de formas de existência. É nesse contexto que os serviços de saúde se constituem como espaços de escuta privilegiados dos jovens e suas famílias.

 

Acolhendo Pais de Adolescentes: A Experiência de um Espaço de Escuta em Saúde Mental

O atual modelo de atenção à saúde, incluindo a especificidade do trabalho dos CAPS, demanda esforços, compromisso e criatividade para implementação do acolhimento, sendo fundamental integrar trabalhador e usuário, os múltiplos saberes, conciliando as diferenças, com a finalidade de incluir a voz do outro. Nesse sentido, o acolhimento produz o encontro com a diferença e a possibilidade de lidar com ela de maneira diferente. O trabalhador de saúde que realiza o acolhimento se coloca em uma posição de aprendizagem sobre o outro e sua diferença, expandindo seu olhar e seu entendimento sobre as questões trazidas pelos usuários como demanda de saúde (Vieira & Santos, 2011).

Para sistematizar o espaço do acolhimento de pais de adolescentes, foram definidos dia e horário fixos para a acolhida da demanda de adolescentes. Esse espaço é oferecido uma vez por semana, e o encontro com os pais acontece apenas uma vez, nesse encontro coletivo. No período analisado, foram realizados 15 encontros de acolhimento coletivo. Caso necessário, havia a possibilidade de agendamento de um segundo encontro, individual, com o mesmo profissional que realizou o encontro anterior. Os profissionais designados para se responsabilizarem por essa escuta foram aqueles que demonstraram, no momento da reunião de equipe, o desejo de assumir essa demanda.

No período analisado para este estudo, os acolhimentos coletivos com pais de adolescentes eram realizados por uma psicóloga, uma assistente social, uma enfermeira e uma estagiária de psicologia. Duas profissionais estavam sempre presentes no encontro, mas a formação das duplas costumava variar conforme as demandas do serviço. Por exemplo, às vezes, a assistente social estava em visita domiciliar ou a enfermeira estava atendendo alguma situação de urgência no serviço. A formação da dupla sempre era estabelecida conforme a disponibilidade das profissionais no horário designado para o acolhimento. Sendo assim, dois profissionais da equipe, com diferentes formações profissionais, passaram a coordenar as atividades do acolhimento coletivo para adolescentes. Além disso, no que tange especificamente à prática da psicologia, cabe ressaltar que os psicólogos contribuem para a consolidação da atenção integral à saúde no SUS, ao passo que investem em práticas que afirmam o compromisso da categoria com o direito da população à saúde, sendo necessária a diversificação das ações, a apreensão integral do sujeito e da coletividade e a participação nas equipes (Luna, 2014).

Segundo Maynart, Albuquerque, Brêda, e Jorge (2014), a escuta qualificada em atenção psicossocial requer que se estabeleça com o usuário vínculo que seja favorável ao tratamento, o que só é possível por meio de uma escuta que não se limite a questões superficiais. O profissional que faz essa escuta assume uma posição de conhecer e compreender os aspectos subjetivos e singulares do modo como o usuário manifesta seu sofrimento mental. Inicialmente, foram ouvidos os pais dos adolescentes que buscaram o serviço. A escuta inicial dos pais, e não dos adolescentes, se estabeleceu por existirem algumas especificidades do serviço que são apresentadas no primeiro encontro. É importante salientar que nem toda a demanda de saúde mental é atendida no CAPS. Sendo assim, o serviço e sua função dentro da rede de saúde são apresentados para os pais a fim de que estes compreendam o que o serviço pode - e não pode - oferecer ao seu filho. Esse é um importante aspecto, pois, muitas vezes, questões que não são condizentes ao serviço são trazidas ao CAPS, e, quando isso acontece, já no primeiro encontro, os pais são orientados a buscar outros recursos da rede de saúde, ou até mesmo em instituições que não pertencem à rede, evitando a exposição desnecessária do adolescente quando este não apresenta nenhuma questão de sofrimento psíquico.

Ainda sim, em muitos encontros, constatou-se a necessidade de escuta inicial dos pais, mesmo quando o adolescente apresentou necessidade de acompanhamento pelo CAPS, devido à ansiedade que esses adultos apresentam no momento da busca do atendimento para seu filho. Do mesmo modo, também foi perceptível uma demanda por respostas e soluções imediatistas desses pais, bem como a ideia de que quem iria realizar o atendimento seria um psicólogo, sendo que outros profissionais da equipe também assumem o atendimento de adolescentes.

De acordo com Oliveira (2007), crianças e adolescentes não chegam sozinhos ao atendimento, e geralmente não são eles que percebem a necessidade de tratamento. Os problemas comumente são identificados pelas famílias, escola, médico, justiça, entre outros. O acolhimento dessas demandas endereçadas ao profissional de saúde não significa que este deva atender exatamente ao que lhe é solicitado, como pedidos de prescrição de medicação ou de internação de um adolescente, portanto essa demanda terceirizada precisa ser decantada. Sendo assim, o espaço do acolhimento coletivo dos pais de adolescentes responde, justamente, a uma problematização de tais endereçamentos ao CAPS. As demandas trazidas no espaço do acolhimento geralmente são semelhantes entre si. No acolhimento coletivo, é possível estabelecer um espaço de troca de saberes, não somente entre os profissionais e usuários, mas dos usuários entre si, já que estes desenvolveram recursos próprios para lidar com suas questões.

Além da escuta realizada pelos profissionais do serviço, a troca entre os pais de adolescentes se mostrou como uma experiência construtiva para os sujeitos envolvidos, já que, nesses encontros, era possível o compartilhamento de dúvidas e vivências relacionadas ao papel de pai/mãe/responsável de um filho(a) adolescente. Tal processo de troca de experiências também se mostrou exitoso no sentido de modificar a compreensão que os adultos tinham sobre seus filhos adolescentes, ao perceberem que um comportamento compreendido como algo patológico era, na verdade, algo comum nessa etapa do desenvolvimento. Muitas vezes, as ansiedades dos pais são apaziguadas quando outros usuários compartilham situações semelhantes e seus entendimentos sobre como manejar tal situação em casa com o adolescente. O acolhimento se caracteriza como um espaço de produção e valorização dos conhecimentos que os próprios usuários possuem sobre si e sobre suas relações. Nesse sentido, destaca-se o caráter comunitário desse espaço de escuta.

Apresentamos a seguir o levantamento de alguns dados referentes ao acolhimento coletivo no CAPS, bem como a configuração das demandas trazidas pelos pais de adolescentes, a fim de fazer uma discussão sobre a abordagem dos profissionais do serviço para essas questões.

 

Caracterização da Demanda: O que se Passa com os Adolescentes que Acessam o Serviço?

A partir de um levantamento dos registros de acolhimento de crianças e adolescentes, produzidos pelos profissionais que realizam esses atendimentos, em livro específico para acolhimentos de crianças e adolescentes conforme a organização do serviço, verificou-se que, no período de outubro de 2014 a fevereiro de 2015, 27 adolescentes com idades entre 12 e 17 anos foram acolhidos no serviço, sendo que destes 14 eram do sexo masculino e 13 do sexo feminino. Menores de 12 anos não foram incluídos neste estudo, pois apresentavam demandas que não condiziam com questões da adolescência. Além disso, a média de acolhimentos dessa faixa etária realizados por mês foi de 5. Destacamos que, dentre as demandas apresentadas conforme os registros realizados, as mais recorrentes no período analisado estavam relacionadas ao uso de drogas, sintomas de ansiedade e dificuldades de aprendizagem. Apareceram também demandas relacionadas a automutilação e furtos. Dos 27 acolhimentos que foram feitos, 20 deles passaram para um segundo atendimento, e sete não foram considerados demandas para atendimento no CAPS.

Segundo Oliveira (2007), os sintomas mais comuns que levam as famílias a buscar os serviços de saúde mental para o atendimento de crianças e adolescentes incluem as dificuldades escolares, a hiperatividade, os comportamentos agressivos (automutilação) e outros comportamentos de risco, como o uso de drogas. Podemos perceber que as queixas trazidas pelos pais das crianças ou adolescentes relativamente são parecidas entre si, como o mau desempenho escolar, caracterizado pelo desinteresse pelo estudo. Os comportamentos agressivos, tanto no âmbito escolar ou em casa, também são comuns nas demandas trazidas pelos adultos. O que tem sido muito relatado é a falta de vontade dos jovens em sair de casa, estar entre os amigos, fazer coisas as quais são características esperadas para a etapa do desenvolvimento de crianças e adolescentes. Também observarmos situações de adolescentes que estão se envolvendo com drogas e a dificuldade dos pais em intervir nessa situação.

 

Uso de Álcool e Outras Drogas na Adolescência: O Olhar da Redução de Danos

No que diz respeito à demanda de adolescentes e o uso de drogas, compreendemos essa questão como algo, inicialmente, recorrente nesse grupo populacional, considerando que essa etapa da vida é um período de muitas experimentações pessoais e socioculturais. O uso de drogas pode estar relacionado a situações adversas do contexto de vida, em que o uso de substância pode ser considerado como uma tentativa de lidar com uma determinada situação (Ministério da Saúde, 2014).

Conforme Rêgo (2009), a clínica do usuário de drogas começa com o acolhimento e, a partir do contato com o usuário, identifica os elementos e os pontos de ancoragem entre o indivíduo e a droga, para traçar a direção do tratamento com a construção de um projeto terapêutico singular, retirando assim, o caráter universal da questão do uso de drogas, para abordar o caso em sua singularidade. Do mesmo modo, tal questão foi problematizada com os pais, pois estes se mostram aterrorizados diante da confirmação de que seu filho experimentou alguma substância psicoativa.

De acordo com Medina (2011), a concepção dominante sobre a relação entre drogas e juventude com enfoque no combate e enfrentamento precisa ser repensada, com o intuito de abordar o usuário pelo viés da saúde. Nesse sentido, a equipe do CAPS buscou compreender se o uso de drogas dos adolescentes acolhidos poderia ser considerado problemático ou se caracterizava-se como uma experimentação. Com essa postura, o serviço procura evitar a patologização e a estigmatização desses adolescentes, compreendendo cada sujeito e sua relação com as drogas de maneira singular. A Redução de Danos coloca em questão a criminalização e a patologização do usuário de drogas, já que apresenta uma diversidade de possibilidades de uso de substâncias, sem estereotipar os usuários (Passos & Souza, 2011).

No que concerne o uso de álcool e outras drogas, a equipe é uníssona na compreensão de que a Redução de Danos é a diretriz na abordagem do usuário. Conforme Queiroz (2001), a redução de danos é mais do que uma alternativa à abstinência no tratamento de usuários de substâncias psicoativas. A redução de danos trata do manejo dos comportamentos de risco e dos danos associados a eles. O que importa no âmbito das intervenções em redução de danos não é se determinado comportamento é bom ou ruim, certo ou errado, pois as intervenções devem ter como foco o que funciona (pragmatismo) e o que ajuda (empatia e solidariedade). A Redução de Danos pode ser considerada um paradigma, de acordo com Petuco (2011). Ela se apresenta como uma possibilidade clínica e política. Petuco (2011) coloca que, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Redução de Danos pode ser considerada uma ação política, já que nela está implícito o reconhecimento dos princípios do SUS e o esgarçamento desses princípios, no sentido em que inclui o atendimento de uma parcela populacional que não estaria incluída nos serviços de atenção, se fossem orientados por um viés diferente deste. As ações de redução de danos constituem um conjunto de medidas na política pública de saúde mental voltadas a minimizar os efeitos adversos do uso de drogas. O princípio fundamental que as orienta é o respeito à liberdade de escolha e autonomia do usuário, já que estudos e experiências dos serviços de saúde apontam que muitos usuários não conseguem ou não querem deixar de usar drogas e, mesmo assim, precisam ter os riscos decorrentes do seu uso minimizados (Queiroz, 2001).

A Redução de Danos, como prática clínica, atravessa as práticas dos profissionais inseridos no contexto da saúde pública, transversalizando ações de cuidado com intervenções que propiciem o estabelecimento de novas formas de relação com as substâncias psicoativas e que fortaleçam o protagonismo do usuário. Uma das vias de intervenção pela perspectiva da Redução de Danos é a aposta no encontro com o outro, mobilizando ações pautadas pela escuta ativa, com potencial para transformar tanto aquele que fala como também quem escuta. A intencionalidade de uma proposta terapêutica deve ser demarcada por uma negociação ética que reconheça a dimensão política dos modos de viver (Adamy & Neves, 2017).

Na maior parte das situações de acolhimento, a questão do uso de drogas foi abordada pela perspectiva de prevenção, já que se configuravam como experimentações, e não como uso abusivo e prejudicial. No que diz respeito à prevenção, a Redução de Danos compreende que o melhor caminho para lidar com a questão de uso de substâncias é o de não definir a abordagem do sujeito pelos comportamentos considerados adequados. A proposta é muito mais uma construção junto com o usuário, agenciando possibilidades de cuidado e de modos de vida que diminuam as vulnerabilidades. Aqui, salienta-se que ninguém é vulnerável - mas está vulnerável; ou seja, a vulnerabilidade é resultante da dinâmica da relação entre componentes individuais, sociais e programáticos (que dizem respeito às políticas públicas e institucionais) (Sodelli, 2011).

Dos adolescentes que foram acolhidos nesse período e que tinham como demanda a questão do uso de drogas, apenas dois deles tinham uma relação de uso abusivo com a substância. Os demais adolescentes tinham tido apenas uma relação de experimentação de drogas, não configurando um uso que necessitasse de uma abordagem terapêutica no âmbito do CAPS, apesar de terem sido acolhidos posteriormente ao acolhimento de seus pais. Nesses casos, a principal intervenção realizada foi de orientação e esclarecimento aos pais sobre a questão do uso de drogas no período da adolescência, com vistas à prevenção. Os pais foram orientados a acionar o CAPS novamente diante de problemas posteriores ao acolhimento ou se houvesse a constatação de uso recorrente de drogas por parte de seus filhos.

 

Outras Demandas em Saúde Mental do Adolescente: O Olhar da Clínica Ampliada

Sobre as demais demandas atendidas nos acolhimentos, salientamos como se dá a prática de cuidados no CAPS. A direção do trabalho em saúde mental é a clínica que reconhece a condição de sujeito e a aposta de que há um sujeito a ser reconhecido. A direção clínica afirma uma descontinuidade, se diferenciando da pedagogia e do assistencialismo. Para a verdade subjetiva que o sintoma do adolescente enuncia, é necessário o rompimento de abordagens que proponham a reeducação, tanto quanto a compreensão de que este possui um déficit comportamental, escolar ou social (Oliveira, 2007).

Muitos pais que acessaram o serviço no período abordado neste trabalho solicitaram a avaliação de seus filhos na perspectiva de obter um diagnóstico desse adolescente, mesmo em casos relativamente simples que não necessitavam de um acompanhamento continuado no CAPS. O ato de diagnosticar pressupõe uma certa regularidade na medida em que busca localizar, em uma determinada categoria nosológica, uma descrição da psicopatologia que acomete o sujeito. Para que se realize uma clínica adequada aos preceitos da política pública de saúde mental é preciso saber, além do que o sujeito apresenta como sintomas de um certo diagnóstico, o que ele apresenta em sua singularidade, inclusive como se expressam nele determinados sinais e sintomas que encontram regularidade dentro das classificações nosológicas. Com isso, ampliam-se as possibilidades de intervenções terapêuticas (Ministério da Saúde, 2008).

O momento do acolhimento dos pais de adolescentes que buscam atendimento em saúde mental é primordial para tensionar as crenças que estes têm acerca do diagnóstico e do atendimento, que, muitas vezes, são construídas a partir do senso comum e do uso que a mídia faz de determinados quadros, como a questão da hiperatividade e do uso de drogas. É no espaço do acolhimento coletivo que a equipe apresenta as possibilidades de cuidado que o CAPS oferece, e desconstrói certas crenças sobre a adolescência tidas como verdades para esses pais. Uma delas é de que, mesmo que se constate a necessidade de atendimento, não necessariamente esse atendimento estará atrelado a um diagnóstico, já que na adolescência muitos sintomas podem ser passageiros e até mesmo característicos e comuns a essa etapa da vida.

Jerusalinsky (2011) traz um importante questionamento acerca da questão do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), que vai ao encontro da compreensão que a equipe do CAPS tem sobre tal diagnóstico e, mais ainda, sobre a questão diagnóstica na adolescência, quando questiona como um determinado diagnóstico que já possui um remédio para sua "cura" pode ser abordado pela psiquiatria como uma epidemia. O autor sugere que o súbito aumento de casos desse transtorno está intimamente relacionado com a questão farmacêutica e que as atualizações dos manuais de diagnósticos psiquiátricos indicam o que é descartável e qual o limite do que é "encerrável" - sendo o cárcere químico, a maneira de encerrar a manifestação de sintomas de desajustamento. O autor coloca, ainda, a necessidade de afirmar uma psicopatologia que seja interpretativa, não nosográfica, pois depende muito mais do deciframento e da compreensão de que sintomas são representações e, não apenas, dados. Tal afirmação vai ao encontro do que se coloca como preceito ético da prática do acolhimento e do atendimento no CAPS: um trabalho de aproximação, de enlace, de escuta, de interpretação, pautado na produção de saúde, e não na categorização dos sujeitos.

Tal viés de prática realizada no espaço do acolhimento coletivo, descrito anteriormente, pode ser definido como Clínica Ampliada. A Clínica Ampliada pode ser compreendida como uma ferramenta que articula e inclui diferentes enfoques, disciplinas e áreas profissionais. Ela reconhece que, em determinadas situações, pode existir a necessidade de abordar um tema predominante, em detrimento de outros que coexistem na vida do sujeito, mas sem que isso signifique a negação de outros enfoques e possibilidades de ação (Ministério da Saúde, 2009). A Clínica Ampliada é produto de saberes e práticas de saúde contextualizadas socioculturalmente e instrumentalizadas pela técnica para dar respostas singulares às demandas de saúde, com nítido apelo à intersubjetividade das ações. Seu objetivo é construir vínculos com a comunidade, valorizando suas narrativas a partir de uma escuta implicada e de uma postura ética (Favoreto, 2008).

Ainda no bojo da problematização acerca das práticas de acolhimento e da Clínica Ampliada nos CAPS, Bezerra e Rinaldi (2009) propõem uma importante problematização no âmbito dos serviços de atenção psicossocial: qual o objetivo ou finalidade do tratamento? Como dar limite e não perpetuar a relação entre o usuário e a rede de atenção psicossocial? Os autores sugerem que tal reflexão possibilite que os serviços não se estabeleçam eternamente como "centros de convivência e ressocialização, nos quais a relação dos usuários com o serviço se estenderia infinitamente ou de modo difuso, reproduzindo ou repetindo as demais instituições da sociedade ou modos já existentes de laços intersubjetivos" (Bezerra & Rinaldi, p. 351).

Nesse sentido, os autores apontam que, a partir de uma clínica ativa, a rede de saúde mental opera como um tecido social que permita ao sujeito sua produção. E é na perspectiva da produção de sujeito que a equipe do CAPS em questão aposta na modalidade coletiva de acolhimento de pais de adolescentes, compreendendo que o encontro entre sujeitos com realidades semelhantes pode ser produtora de novos modos de vida, e, nesse caso, tal produção pode se dar tanto no âmbito do contexto dos adultos, como dos adolescentes.

O espaço do acolhimento coletivo no CAPS é orientado pela Clínica Ampliada na medida em que percebe cada situação trazida como singular e que, para responder às necessidades de saúde dos usuários, não utiliza apenas os recursos e conhecimentos da área da saúde, mas lança mão e possibilita o encontro entre múltiplas formas de olhar, conhecer e abordar as situações que permeiam a vida desses pais e seus filhos adolescentes. Nos encontros de acolhimento, a equipe tem a intenção de produzir encontros entre os usuários e seus modos de vida, e de fomentar a troca e a construção de novos recursos para lidar com as questões que são trazidas para o serviço.

Esse momento é de crucial importância, especialmente quando há a necessidade de que o adolescente compareça ao serviço, seja para uma escuta pontual ou para um atendimento continuado, já que os pais estão implicados nesse processo.

 

Considerações Finais

O acolhimento coletivo da demanda de adolescentes se mostra eficaz, pois a troca de experiências entre os pais tem se apresentado como uma potente ferramenta de reflexão para os encontros de acolhimento, assim como são instigadoras da produção de novos olhares e de novas estratégias para esses adultos compreenderem e abordarem seus filhos. O acolhimento não é feito somente por profissionais do âmbito da psicologia, mas também por assistente social, enfermeira, e todos da equipe que se sintam habilitados para assumir tal espaço de cuidado. O que consideramos importante é fazer a escuta do usuário, que, muitas vezes, necessita apenas de uma orientação, não configurando demanda para atendimento em CAPS. Além disso, o acolhimento aberto, desburocratizado, se afirma como a efetivação do princípio da universalidade do acesso aos serviços do SUS.

O acolhimento coletivo tem como perspectiva a Clínica Ampliada, pois ele não se constitui como um espaço de escuta clínica, na perspectiva do diagnóstico, mas sim, como um espaço de caráter comunitário, em que as experiências cotidianas são valorizadas como recursos para a produção de saúde no território. Assim, é desde o momento da chegada dos usuários ao CAPS, através do acolhimento, que a equipe se coloca numa posição horizontal, sem a pretensão de ofertar respostas padronizadas e modelos prontos de atendimento para as demandas em saúde mental na adolescência, evitando assim a patologização desta etapa de vida.

Cabe ainda ressaltar a necessidade de ampliação de pesquisas e construções teóricas acerca das práticas em Centros de Atenção Psicossocial, especialmente no que concerne ao acesso a esses serviços, já que a escuta inicial dos usuários na modalidade de acolhimento vem sendo enfatizada pelas publicações do Ministério da Saúde e deve ser implementado a fim de garantir o cuidado integral no território.

 

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Recebido: 09/10/2015
Última revisão: 06/04/2018
Aceite final: 06/04/2018

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