Introdução
O presente estudo analisou o sofrimento psíquico manifesto no trabalho cotidiano de uma classe profissional que ganhou destaque em nosso país nos últimos anos: as guardas municipais. Trata-se de uma atividade profissional criada no Brasil para prestar serviços de apoio à segurança de bens, patrimônios e locais públicos dos municípios de médio e grande porte. Adotando como perspectiva teórica a Psicologia Social em sua interface com a Psicodinâmica do Trabalho, foram abordadas as dificuldades, adversidades e os desafios encontrados por esses trabalhadores no cotidiano de suas atividades. Assim, o objetivo do estudo consistiu em analisar as transformações decorrentes do desenvolvimento tecnológico dos dispositivos de segurança pública e seus efeitos para a saúde mental de trabalhadores desse ramo. Tal análise tomou em consideração o contexto de violência urbana que está em evidência no país, conforme demonstram as notícias divulgadas nos meios de comunicação (BBC Brasil, 2018; Barros, 2018). O denominado Atlas da Violência, publicado em 2018, também registra tal índice:
. . . em 2016, o Brasil alcançou a marca histórica de 62.517 homicídios, segundo informações do Ministério da Saúde (MS). Isso equivale a uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, que corresponde a 30 vezes a taxa da Europa. Apenas nos últimos dez anos, 553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Brasil (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2018, p. 3).
Além desses dados, o referido Atlas evidencia que as maiores taxas de homicídio afligem a camada mais pobre da população, especialmente homens jovens e moradores da periferia. Abordando a violência urbana e a exclusão socioeconômica instaladas em contexto brasileiro, Souza (2017) afirma que a desigualdade e a exclusão social estiveram no berço do nosso país, exercendo efeitos nos modos de vida que se desdobram para os dias atuais. Ademais, os dados revelam que a violência não se restringe às capitais ou aos grandes centros urbanos, podendo ser constatada também na zona rural e nas cidades do interior. Nesse contexto, providências de segurança com estratégias repressivas e ostensivas são tomadas pelo Estado no intuito de conter a violência, sendo a constituição de Guardas Municipais uma delas. A expectativa em relação a essa instituição, desde sua fundação e regulamentação, foi de que ela atuasse em ações integradas às outras instituições de segurança pública, como a polícia militar. Nesse sentido, suas atribuições extrapolam a realização da segurança de bens, serviços e instalações municipais, conforme constava em suas prescrições iniciais.
Pode-se dizer que as profissões ligadas à segurança pública, tal como os trabalhadores da Guarda Municipal, contam, por um lado, com o reconhecimento e a valorização social da comunidade que demanda sua intervenção de modo mais frequente; mas, por outro lado, padecem de uma crise de confiança social, ensejada pela impossibilidade de responder de forma efetiva aos idealizados apelos contemporâneos por mais segurança. Diante disso, esta pesquisa questionou os efeitos produzidos na saúde mental dos profissionais que atuam no campo da Guarda Municipal. Afinal, quem são esses trabalhadores e o que os leva a atuar nesse campo profissional? Como tais profissionais lidam com as dificuldades e os riscos inerentes a essa profissão? Estudos realizados junto a essa categoria de trabalhadores evidenciam as dificuldades encontradas em sua atuação cotidiana, bem como os efeitos de sofrimento psíquico gerados no trabalho (Souza, 2017; Futino & Delduque, 2020).
O presente estudo justifica-se, então, por colocar em análise o sofrimento vivenciado por esses profissionais. Para tanto, foi dividido em dois momentos. Primeiro, foi realizada uma contextualização histórica e teórica sobre o problema da violência e as condições de trabalho daqueles que com ela lidam direta e profissionalmente. Nesse momento, apoiado no referencial da Psicodinâmica do Trabalho, foi argumentado que essa atividade implica uma série de conquistas e adversidades que são vividas pelos trabalhadores em seus cotidianos laborais, os quais podem gerar tanto prazer quanto adoecimento. Em seguida, apresentou-se a trajetória metodológica da coleta de dados, descrevendo os norteadores da parte empírica da pesquisa. Na sequência, foram expostos os achados da pesquisa e sua discussão analítica, valendo-se de fragmentos das entrevistas realizadas com guardas municipais que atuam em uma cidade de médio porte localizada no interior do estado do Paraná, BR. Ao dar voz aos profissionais, abriu-se a oportunidade de mobilizar afetos, experiências e relatos, o que favoreceu o ato de repensar criticamente a organização da atividade exercida, os modos de atuação, bem como seus alcances e suas limitações. O diferencial desta presente pesquisa, portanto, consistiu em demonstrar que o sofrimento psíquico inviabiliza uma atuação mais criativa, fato que pode se desdobrar em falhas profissionais graves e frustrações diversas que se convertem em fontes de adoecimentos e afastamentos do trabalho.
Ao final da pesquisa, constatou-se que as manifestações de sofrimento e adoecimento, apesar de frequentes, ainda não são suficientes para desencadear, junto aos gestores, uma análise crítica acerca dessa atividade profissional, o que mostra a fragilidade no trato com esses trabalhadores em nosso país.
Trabalho Imaterial e Saúde Mental: Apresentando um Campo Teórico de Análise
A alta frequência com que o tema da violência urbana é divulgado nos meios de comunicação em geral se reflete no apelo da população por mais segurança. Entretanto, os maiores beneficiários da divulgação acerca do assunto não são os cidadãos e menos ainda as instituições de segurança. O que se percebe é uma instrumentalização dessa sensação de medo generalizada para investir na disseminação e comercialização de dispositivos de segurança, como as câmeras de monitoramento, os aplicativos de celulares que indicam a localização exata do usuário, os serviços de alarmes monitorados e as agências de vigilância privada. Isso movimenta um nicho mercadológico de sucesso, sendo considerado hoje um dos ramos de investimento mais promissor no país (Dino, 2017; Feletti, 2014). Também, o serviço público ligado à segurança populacional que é oferecido pelos Estados responde aos índices de violência adotando a presença ostensiva de profissionais, veículos, dispositivos e armas para atender à demanda socialmente compartilhada por mais segurança.
Cabe indagar, assim, em que medida os profissionais ligados à segurança pública estão preparados e encontram respaldo institucional para manter a organização de suas atividades e as condições de trabalho adequadas, a fim de operacionalizar tais serviços. No Brasil, os profissionais da carreira militar passam por um amplo e longo processo de formação que os habilita a realizar a segurança pública nos espaços urbano e rural. Já os guardas municipais, apesar de terem seu trabalho regulamentado e prescrito a partir dos requisitos formalizados pela Lei nº 13.022/2014, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), recebem uma formação mais veloz e não possuem um plano de carreira tão completo e amplo. Entretanto, a partir de 2014, os guardas municipais passaram a ser cobrados por práticas que se aproximam às da polícia militar, sendo, portanto, responsabilizados por atitudes de proteção, prevenção e até de uso progressivo da força e das armas como estratégias de garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. Para tanto, é demandado que atuem de forma integrada com outras instituições públicas de polícia e defesa social, a fim de manter a segurança nos municípios.
Dentre as atribuições das Guardas Municipais nos municípios brasileiros, que estão relatadas no seu estatuto (Lei nº 13.022/2014), destacam-se: zelar pelos bens, equipamentos e prédios públicos do município; atuar preventiva e permanentemente na proteção da população que utiliza as entidades municipais; proteger patrimônio ecológico; auxiliar nas ações de defesa civil; atuar na fiscalização, no controle e na orientação do trânsito; e articular-se em ações de políticas sociais. Em relação especificamente à Guarda Municipal aqui estudada, as atividades prescritas incluem a patrulha escolar; a ronda preventiva em praças e espaços públicos; e a intervenção em casos de violência doméstica. Tais atividades requerem manejo e interação interpessoal. Assim, as habilidades requeridas desses profissionais abarcam o processamento rápido de informações advindas de chamadas de rádio e repassadas pelos agentes responsáveis pelos serviços de telefonia e monitoramento de vídeos. Além disso, agentes são solicitados a prestar um atendimento contextualizado e adequar sua conduta diante da realidade a ser enfrentada, de forma a garantir a prevenção e redução de riscos.
Cabe considerar, mediante os estudos de Heloani e Silva (2006), o quanto o preparo, a disponibilidade relacional e a abertura para a interação com a população exigem habilidades subjetivas mais elaboradas para mediar conflitos, enfrentar situações de stress, receber e atender às expectativas tanto da população em geral quanto da equipe profissional. É nesse sentido que o trabalho de segurança pode ser caracterizado como imaterial (Hardt & Negri, 2004). Este tem por característica a atuação direta junto a pessoas e a situações que emergem ao acaso, demandando a tomada imediata de decisão sobre como atuar e se relacionar com o outro. Nas palavras dos autores: “definimos o trabalho envolvido nessa produção como trabalho imaterial - ou seja, trabalho que produz um bem imaterial, como serviço, produto cultural, conhecimento ou comunicação” (2001, p. 311). Nesse contexto, o trabalhador é solicitado a manter uma dedicação integral ao trabalho e disponibilizar suas energias físicas e psíquicas para a atividade. Ocorre que, para executar tarefas que requerem soluções precisas e imediatas, é necessário não apenas treinamento físico, mas também a disponibilidade afetiva para estar em contato com o público, o que, por vezes, pode abrir lacunas entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Este último, com seus impasses emergentes, desdobra-se em uma série de dificuldades para a realização das atividades laborais. Diz Dejours:
Cada incidente ou acidente leva à elaboração de uma nova prescrição ou de uma nova regulamentação. E esta última soma-se ao grande número de regras anteriores. Com o tempo, leis, regulamentações, normas, regras formam um corpo de tamanha complexidade que se tornam, inelutavelmente, de conciliação extremamente difícil entre si. Chega ao limite de tornar impossível a execução do trabalho, caso todo o conjunto de regras e normas venha a ser cumprido. Concebidas para organizar o trabalho, as prescrições da organização do trabalho levam, às vezes, à desorganização (Dejours, 2004, p. 63).
Somado a essas lacunas, Dejours ainda afirma que a “elaboração da organização do trabalho real implica, assim, o afastamento das prescrições para dar início à atividade de -‘interpretação’” (Dejours, 2004, p. 63), acionando o trabalhador a intervir de modo analítico em cada problema emergente. Para tanto, ele mobiliza sua capacidade de interpretação, por meio da qual “a organização real do trabalho” torna-se “um produto das relações sociais” (Dejours, 2004, p. 64). Quando há um distanciamento muito marcado entre trabalho prescrito e real, corre-se o risco de reduzir as atividades de segurança a um serviço técnico, cujos agentes são meramente treinados a agir mecanicamente (Souza, 2017).
Autores como Hardt e Negri (2004) e Pelbart (2000) anunciam que a sociedade está se organizando de forma cada vez mais fluida e inconstante. Os vínculos laborais normatizantes e disciplinares estão deixando, aos poucos, de ser referência, abrindo espaço para disseminação de estratégias de gestão, que exaltam a produtividade, o controle e a excelência, valendo-se de metas e exigências de produção cada vez maiores. Em parte, isso desperta o sujeito trabalhador para as sensações de potência e liberdade que, entretanto, são muito breves e servem apenas para atender a satisfações imediatas, assim como para aplacar as angústias diante da instabilidade laboral instalada. Pelbart (2000, p. 37) mostra que, nesse caso, a vida “torna-se inteiramente trabalho, numa subsunção assustadora” que pretende atender à expectativa idealizada da população. E, no caso específico dos profissionais aqui estudados, a expectativa que lhes é depositada envolve risco zero e segurança total. Mendes (2018, p. 27) assinala o quanto “o mundo do trabalho vem sendo dominado pelo discurso capitalista”. Tal discurso se caracteriza pela exaltação do modelo produtivo e de consumo, sendo reproduzido inclusive nas relações afetivas. Os efeitos deste modelo repercutem principalmente nas relações de trabalho, em que a busca de excelência e qualidade total gera consequências na saúde física e mental.
Para dar conta de atender às exigências crescentes do trabalho e se manter empregado, torna-se necessário acolher e elaborar a carga afetiva decorrente da atividade e de sua organização geral. Conforme assinala Dejours (2004), a tentativa de ajustar seu modo de ser às exigências da organização de trabalho pode revelar a fonte de mal-estar e sofrimento no trabalho. A Psicodinâmica do Trabalho caracteriza o sofrimento laboral atentando a suas manifestações sintomáticas, como a insatisfação e a falta de sentido no trabalho. Nas palavras de Dejours (2007), o sofrimento:
. . . provoca toda uma gama de sentimentos: surpresa, estupefação, decepção, irritação, contrariedade, ira, cólera, indo às raias da depressão. Depois, o sofrimento que se condensa na subjetividade transmuta-se em exigência psíquica. O sofrimento exige consolo, clama por alívio, precisa ser transformado, para ser superado. Em outros termos, de passivo no início, o sofrimento provocado pela relação com o real converte-se em “propensão” para o mundo em busca de solução (Dejours, 2007, p. 18).
Pode-se considerar, então, que o trabalho imaterial dos guardas municipais aciona, além dos procedimentos técnicos, dimensões subjetivas que envolvem a capacidade de relacionar-se consigo, com o outro e com situações que emergem ao acaso, abarcando riscos e (Hardt & Negri, 2004) e sofrimentos (Dejours, 2007).
No cotidiano laboral, os profissionais expressam desejos, crenças, temores e expectativas pessoais. Para Mansano (2020, p. 2), no contexto do chamado trabalho imaterial, “grande parte das atividades realizadas pelo profissional acontece à medida que ele atualiza sua história afetiva de encontros sociais, que foi sendo construída no decorrer da trajetória de sua vida, a qual ganha importância e passa a ser operacionalizada”. Assim, as soluções -encontradas e inventadas pelo trabalhador em seu cotidiano decorrem de saberes que foram assimilados em meio às experiências de vida e à história relacional, tal qual demonstra o estudo de Heloani e Silva (2006).
Enriquez (2000) também colabora com essa análise ressaltando que a organização do trabalho exige que os trabalhadores sejam estrategistas e empreguem todas as suas capacidades físicas e psíquicas para responder aos interesses da empresa. A condição para se manterem no trabalho é a dedicação integral, mesmo que isso acarrete prejuízos à sua saúde. Espera-se que o sujeito encene as mesmas habilidades do “guerreiro, esportista e herói, conquistando a si mesmo, aos outros, aos mercados industriais e financeiros, sendo o mestre de seu destino” (Enriquez, 2000, p. 23), características estas amplamente idealizadas. Nesse sentido, indaga-se: será mesmo que os agentes municipais de segurança poderiam controlar suas reações diante das demandas de risco iminente? Como já mencionado, Dejours (2004) afirma que, na relação entre o sujeito e sua atividade, existe “um intervalo irredutível entre a tarefa prescrita e a atividade real do trabalho” (p. 61). Isso significa que, mesmo seguindo à risca todas as prescrições definidas pela organização, é possível que surjam situações inesperadas que demandarão habilidades relacionais para a solução do problema. Ocorre que, conforme já exposto, para os profissionais de segurança, o trabalho real executado nas ruas está diretamente associado às expectativas idealizadas da população, que demanda uma segurança total, dilatando o intervalo entre a tarefa prescrita e as reais condições de trabalho.
Na perspectiva dejouriana, trabalhar implica encontrar o melhor modo de realizar a atividade, analisar por onde se devem iniciar as tarefas e quais objetivos priorizar. Nesse sentido, evidencia-se que, apesar do planejamento estratégico e das prescrições contratuais que contemplam o trabalho, há, entre o sujeito e a atividade a ser desempenhada, aspectos subjetivos que impactam essa realidade (Dejours, 1999). Tais aspectos deixam entrever que a experiência profissional é sempre relacional, portanto, sujeita à mutação, a limites e a frustrações. Entretanto, são poucas as instituições que consideram a relevância da relação entre o humano e o trabalho. Estudos realizados em áreas como administração e gestão de pessoas nem sempre consideram as dimensões subjetivas na interação entre o sujeito e a atividade desenvolvida e podem, ao contrário, priorizar o ajustamento do trabalhador a uma lógica meramente instrumental (Leite, 2019) e disciplinar (Foucault, 2005).
Considera-se, desse modo, que a prática e o conhecimento técnico não são suficientes para a execução das atividades ligadas à segurança. A eficácia técnica utilizada isoladamente impede a realização plena da atividade, pois engessa o sujeito no cumprimento de procedimentos e protocolos rígidos, impedindo que ele se envolva com o trabalho de forma mais criativa e potencializadora (Dejours, 2004). Nessa abordagem, seria possível extrair do trabalho um valor simbólico e o reconhecimento dos pares, da instituição e da população. Dejours chama atenção para os trabalhadores que se esforçam:
. . . por fazer o melhor, pondo nisso muita energia, paixão e investimento pessoal. É justo que essa contribuição seja reconhecida. Quando ela não é, quando passa despercebida em meio à indiferença geral ou é negada pelos outros, isso acarreta um sofrimento que é muito perigoso para a saúde mental (Dejours, 2007, p. 33-34).
Buscando compreender a psicodinâmica que se atualiza no trabalho imaterial dos guardas municipais, considerou-se relevante para esta pesquisa levantar e analisar histórias concretas de trabalhadores que relatem a vinculação que estabelecem com sua profissão, as fontes de sofrimento, bem como as estratégias defensivas para manter-se em atividade. Nos depoimentos apresentados na parte empírica da pesquisa, será possível notar que o “sofrimento só pode ser captado por meio das defesas, ao ponto que a psicodinâmica do trabalho se interessa finalmente mais pelas defesas do que pelo próprio sofrimento enquanto tal” (Dejours, 2004, p. 144). Acompanhar as falas dos participantes deixará entrever a idealização dessa atividade profissional por parte dos trabalhadores e da população, bem como quais e como são utilizadas as estratégias psíquicas para enfrentar o sofrimento e produzir sentidos para o trabalho realizado. Nessa direção, Dejours (2004) complementa: “As defesas permitem aos operários resistirem às consequências do medo, mas, simultaneamente, representam também um sistema relativamente coercitivo do coletivo sobre os seus membros, conduzindo mesmo à exclusão colegas de trabalho que resistem” (p. 145). Tais conflitos serão apresentados na sequência. Antes, porém, cabe fazer algumas considerações sobre a metodologia empregada para realizar a coleta e análise dos dados.
Trajetória Metodológica da Coleta e Análise dos Depoimentos
Nesse cenário de disseminação do medo e demanda crescente por mais segurança, o trabalho de guardas municipais aparece como uma prática relevante na cena social. Atentando-se a isso, a pesquisa foi organizada de modo qualitativo, visando analisar em profundidade as dimensões subjetivas do trabalhador em seu contexto social de atuação. Para tanto, foram considerados o momento histórico da institucionalização da guarda municipal, os vínculos afetivos, o reconhecimento da população em relação às atividades desse trabalhador e as estratégias defensivas para realizar as atividades profissionais. Partiu-se do princípio de que, diante das múltiplas interações entre os profissionais e desses com suas atividades, ocorrem impactos na subjetividade que podem interferir na organização social, política e laboral.
Os profissionais ligados à Guarda Municipal aqui estudada atuam em uma cidade de médio porte localizada no interior do estado do Paraná, sendo que a instituição foi criada no ano de 2010. Atualmente, conta com 350 trabalhadores efetivos, distribuídos em sete setores: Grupo Especial de Pronto Emprego (GEPE), Grupo Tático de Apoio em Motos (GTAM), Guarda Municipal Escolar Comunitária (GMEC), Guarda Municipal Urbana Comunitária (GMUC), Guarda Municipal Ambiental Comunitária (GMAC), Guarda Municipal Patrimonial (GMP) e Grupo de Comunicação e Monitoramento (GCOM). As equipes se revezam em dois grupos e cumprem sua carga horária organizada no formato de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso. Participaram das entrevistas cinco trabalhadores que responderam aos seguintes critérios: 1. Decisão de contribuir voluntariamente com o depoimento; 2. Estar vinculado à instituição há pelo menos cinco anos; 3. Acumular alguma experiência com o trabalho de patrulha. Antes de iniciar a coleta de dados, os participantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, registrado e aprovado na Plataforma Brasil.
Optou-se pela entrevista semidirigida como instrumento de coleta de dados, em função da disponibilidade da instituição em receber as pesquisadoras especificamente para fins deste estudo qualitativo, fato que, em alguma medida, limitou o uso das metodologias grupais mais comuns na Psicodinâmica do Trabalho. Diante desse acordo institucional, a coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas individuais semiestruturadas, cujos conteúdos foram organizados a partir do referencial teórico adotado e das informações previamente coletadas junto aos sites e gestores da instituição, sendo organizados da seguinte maneira: 1. A história de vinculação dos participantes com a instituição; 2. A organização do trabalho; 3. As estratégias de defesa utilizadas contra o sofrimento.
Os dados foram analisados a partir do referencial conceitual da Psicodinâmica do Trabalho, valendo-se da construção social do vínculo com a profissão, dos impactos subjetivos da atividade laboral na vida privada e da expressão do sofrimento psíquico. Buscando situar cada depoimento em sua realidade psicossocial, adotou-se como norteador a análise sociológica do discurso, que, de acordo como Godoi et al. (2014, p. 518), “enfatiza os fatos sociais em sua dimensão contextual e histórica”. Essa perspectiva de análise mantém-se atenta aos discursos como práticas concretas que cooperam para construir a realidade social vivida.
O Cotidiano de Trabalho: Analisando Depoimentos
Os resultados obtidos nesta pesquisa revelaram que as principais fontes de sofrimento reconhecidas por esses profissionais eram as precárias condições de trabalho e a desvalorização profissional. Esta última fazia-se presente tanto entre os trabalhadores da instituição e servidores municipais como na mídia e comunidade local, o que dificultava uma vinculação efetiva com o cargo. Apresentaremos, na sequência, os três eixos abordados nas entrevistas, de modo a circunscrever os principais resultados e análises.
Eixo 1: A História de Vinculação dos Participantes com a Instituição
Neste primeiro eixo, a temática abordada nas entrevistas foi a história de vinculação com a instituição e como os participantes enxergavam o contexto de segurança na cidade analisada. A maioria dos entrevistados ingressou na instituição com a expectativa de que esse emprego fosse lhes proporcionar melhores condições de vida e garantir a estabilidade do serviço público. Nenhum relato apresentou indícios de identificação prévia com o serviço ou mesmo com a instituição que tenha servido de estímulo para o investimento na conquista do cargo. Ao buscar o concurso público em um serviço municipal de segurança, os agentes relataram ter encontrado uma oportunidade de emprego estável, o que foi verificado no relato de Paulo:
Trabalhava na informalidade, até que surgiu a oportunidade do concurso e fui incentivado por um amigo a tentar uma vaga. Eu estava num momento na vida que fiquei desempregado, depois fui trabalhar como camelô. Como eu sofri muito antes de entrar. . . Eu valorizo muito isso aqui! (Paulo, participante).
Percebe-se que, para esse participante, o que importava era trabalhar para alcançar a estabilidade e segurança no emprego, para viver bem socialmente. O reconhecimento social é, para Dejours (2004), um aspecto favorecedor da saúde mental. Em suas palavras: “Quando o jogo do reconhecimento torna-se possível, o sofrimento ganha um sentido em relação à conquista da identidade, podendo ser convertido em prazer, modificado para o que viria a ser o centro de gravidade da saúde mental” (Dejours, 2004, p. 272). Assim, a conquista de um emprego estável fortalece os vínculos sociais de reconhecimento. É o que relatou Joana:
Eu trabalhei 8 anos no Japão. Aí, tipo assim, eu sou de uma família bem humilde, então, meus pais nunca me incentivaram, só falavam pra eu estudar. Mas eu pensava: “estudar tanto pra quê?”. Demorei mais de ano pra cair a ficha que eu tinha entrado, eu nem acreditava, pois foi meu primeiro concurso. Eu praticamente tinha fugido da escola, né? Pra mim, foi uma grande conquista (Joana, participante).
Pertencer a uma instituição, representante do poder público de segurança, pode trazer a sensação de emancipação e estabilidade. Tanto que, para Dejours (2004), poder apresentar-se como trabalhador pertencente a uma instituição fortalece uma “prática linguageira” que “desvenda um sentido comum que se torna a própria referência em relação à situação de trabalho” (p. 222). Mas, paradoxalmente, também pode levar à submissão ao controle hierárquico, atrelado à lógica da economia e do mercado, o que produz inseguranças diante dos riscos inerentes à profissão e pode ocasionar sofrimentos os mais diversos. Assim, quando questionado sobre a relação com a população da cidade, Fábio relata:
A cultura da nossa sociedade sempre olha pra gente de forma diferente e faz com que a gente tenha que tomar bastante cuidado. Tanto pela profissão como pelas outras pessoas . . . Infelizmente não conhecem a nossa profissão de fato e, muitas vezes, julgam sem nos conhecer. A gente vê a pressão que a sociedade faz, que a Guarda não deve andar armada . . . Uma parte da população faz esse tipo de julgamento de valor. Porque um comete algum deslize, isso influencia todos os demais, julgam que a gente é despreparado, enfim, não tem tolerância, principalmente com a Guarda Municipal (Fábio, participante).
De acordo com Souza e Minayo (2005), as instituições de segurança pública, como as polícias civis, militares e os guardas municipais, sofrem, desde a sua origem, discriminação e aversão pelos mais diversos motivos:
. . . os cidadãos das classes média e abastada reclamam da insegurança e da ineficiência, uma vez que esperariam mais rigor e vigilância dos policiais em função da ordem burguesa; a população pobre e moradora dos bairros periféricos sente-se discriminada e maltratada por eles; e os delinquentes os tratam como inimigo número um, buscando evadir-se de seu olhar ou mesmo confrontá-los, escudados exatamente na “má fama” que os acompanha (Souza & Minayo, 2005, p. 919).
Assim, as estratégias defensivas de ambivalência entre a atividade desenvolvida e o sofrimento decorrente das críticas recebidas da comunidade em relação ao trabalho de segurança são comuns nas instituições policiais e, em larga medida, dificultam a vinculação afetiva com a atividade.
Eixo 2: Organização do Trabalho
No eixo sobre a organização geral do trabalho, os entrevistados relataram uma percepção plural, na qual se fazem presentes situações de conquista e cooperação concomitante a sofrimentos e desgastes. Uma descrição presente em todas as entrevistas referiu-se ao uso de armas, aprovado pelo município em 2015, após a promulgação da Lei nº 13.022/2014. De acordo com os participantes, ela trouxe maior respeitabilidade e segurança ao cotidiano do trabalho. Os guardas enxergam o porte de armas como um benefício, principalmente nos casos de patrulhamento nas regiões mais violentas da cidade e nos distritos. Para muitos, o porte de armas foi uma grande conquista, embora sintam que aumentou sua responsabilidade, pois, conforme consta no seu estatuto, qualquer uso irregular pode resultar em processo de responsabilidade administrativa, disciplinar e criminal. A organização geral do trabalho, neste caso, ganha contornos coletivos de vinculação, uma vez que demanda a cooperação e confiança entre os pares, bem como a proteção institucional. Diz Dejours:
Cooperar para proteger-se e defender-se do sofrimento: daí surgirá a construção de estratégias coletivas de defesa. Cooperar para retomar a iniciativa da organização do trabalho e fazer com que evolua por meio de um processo de negociações coletivas. Negociações normais, na maioria das vezes; extraordinária, em decorrência de conflitos sociais. De toda sorte, entre o reconhecimento dos pares e a cooperação, de um lado; a negociação da organização real do trabalho, de outro, há um elo intermediário: a construção das regras de trabalho (Dejours, 2004, p. 225).
Ao ser questionada a respeito de como sentiu a mudança organizacional decorrente da transição para o uso de armas e a construção de novas regras laborais, Joana respondeu:
Eu acho que até ajuda o nosso trabalho e tal. Muitos já queriam esse poder. Então, agora todos os ônus cabem a nós, mas o bônus não. É sempre assim na prefeitura. Já tem alguns na prefeitura que querem que desarme a GM, só que os próprios guardas não querem, pois muitos guardas já não têm mais idade para ir pra PM. Então, querem ficar quietos aqui e com poder da polícia, ser operacional aqui (Joana, participante).
Por ser um objeto de polêmica, o temor de perder o porte de armas foi frequente nas entrevistas, dando margem à instalação de um sofrimento patogênico. O treinamento de conduta militar voltado para a segurança urbana que recebem anualmente serve, segundo o ponto de vista dos guardas, para direcionar e operacionalizar seu uso. Portanto, a arma é considerada um instrumento relevante que requer responsabilidade de manuseio. Seu uso é algo desejado e valorizado, conforme diz Frederico:
Trouxe mais responsabilidade, porque antes, se você estivesse na rua e te pagassem uma missão, era opção sua ir ou não ir, porque você não tinha meios para fazer aquilo. Quando você ia era com a cara e com a coragem, porque você não sabia o que ia encontrar (Frederico, participante).
Dejours explica que a organização do trabalho é sempre dinâmica e não pode ser imposta apenas de fora. Ela requer do trabalhador certas negociações, adaptações, interpretações de dada situação, segundo as aptidões específicas de cada um, “o que denota uma espécie de auto-regulação da divisão das tarefas pelo coletivo” (Dejours, 2004, p. 151). O uso de armas tem se configurado, assim, como um ponto de autorregulação do qual participam diferentes agentes.
Notam-se, nesse eixo, outras dificuldades relativas à organização do trabalho no cotidiano, como a falta de estrutura da instituição, a precariedade dos instrumentos de trabalho e a falta de confiança tanto entre os pares quanto por parte da população atendida. Em alguma medida, isso demonstra novamente o argumento de Enriquez (2000, p. 23) que coloca em xeque a imagem idealizada do trabalhador como “guerreiro, esportista e herói”. O participante Frederico relata:
Hoje, se você vai numa abordagem, você não sabe o que vai encontrar. Mas tem meio de se defender. E, naquela época, você não tinha. Era no braço, com sua cara e coragem. Então, às vezes falavam assim: ‘verifica antes, se dá pra ir ou não dá’. Hoje já não falam mais tanto assim . . . Tanto que às vezes acontece o que aconteceu, né, onde o erro maior é de quem está na rua, pois quem te paga está lá dentro de uma sala cheia de televisão e não tem a noção exata do que está acontecendo. Então, você que trabalha na rua tem que ter esse discernimento, tem que chegar no local, fazer uma varredura pra saber se dá ou não dá. Porque você não é herói. Se vê que não dá, passa um rádio e diz que precisa de apoio ou diz que não tem condições (Frederico, participante).
Tendo de dar conta de superar o ideal de segurança projetado pela população, os agentes da Guarda Municipal declararam que se sentiam confusos em relação às tarefas a serem cumpridas, sendo esta outra face da organização cotidiana do trabalho que abre espaço para manifestação do sofrimento patogênico. As diferenças em relação ao seu trabalho e o da polícia não pareciam bem estabelecidas, conforme relata Fábio:
. . . na verdade, os serviços se assemelham muito. Mas a competência é deferida pela lei. A PM deve fazer um policiamento mais ostensivo das vias públicas e em geral. Já a GM deve cuidar dos bens, serviços e instalações. Mas, na prática, as funções se assemelham muito, pois não tem como a gente estar na rua, no dia a dia, não tem como negar um socorro público, deixar de atender uma pessoa que está numa situação de vulnerabilidade. É muito difícil . . . Talvez, se separasse as funções, seria melhor, porque a GM acaba absorvendo uma competência que não seria dela e não tem estrutura suficiente para suportar. Esse é o problema. Aí, aos olhos dos outros, quando dá certo, beleza, ninguém elogia e nem critica. Mas quando algo dá errado, todo mundo critica. Acho que isso de certa forma é natural, né? (Fábio, participante).
Mansano (2020) chama atenção para o fato de que algumas profissões, como aquelas ligadas à área de segurança, requererem maior disponibilidade subjetiva para suportar experiências reais de trabalho, pelo fato de atenderem situações emergenciais e imprevisíveis. Entretanto, nem sempre esses aspectos imateriais do trabalho são reconhecidos e valorizados, conforme a fala de Maurício:
Na verdade, o nosso trabalho não é um serviço que é reconhecido. A maioria do pessoal não gosta, você acaba sendo sempre alvo . . . Gostam só quando você ajuda eles, caso contrário você é atacado. Existe certo repúdio do brasileiro contra quem trabalha nessa área . . . Quem gosta da gente não comenta, não fala nada. (Maurício, participante).
Além dessa avaliação negativa por parte da população, os profissionais se sentem expostos à mudança frequente de chefias que são definidas por cada prefeito eleito e que, portanto, são modificadas a cada quatro anos. Em alguma medida, isso dificulta o estabelecimento de laços de confiança entre os trabalhadores, destes com a hierarquia, bem como as possibilidades de negociação sobre as condições de trabalho. Dejours chama atenção para o fato de que o “reconhecimento esperado pelas pessoas que trabalham é um ingrediente essencial da saúde mental” (Dejours, 2007, p. 20). Sua ausência abre espaço para sofrimentos patológicos que se manifestam por frustrações, angústias e conflitos.
Os participantes relataram, então, as dificuldades relativas à progressão profissional na carreira. Não existe no estatuto da Guarda Municipal uma descrição de carreira, sendo a escolha dos cargos de supervisão e direção a única possibilidade de obter ascensão. Essa lacuna na organização também expõe os trabalhadores ao sofrimento, uma vez que os critérios não são amplamente conhecidos. De acordo com os relatos, os que ascenderam na carreira receberam uma indicação por compartilhar as mesmas ideias de quem está locado na alta hierarquia. Diz Fábio:
Se hoje você é supervisor e discutir com outro, amanhã já não está mais no cargo. Enfim, não tem uma lógica pra gente seguir, o que daria mais credibilidade para a instituição. E eu acho que isso é um ponto negativo pra gente, talvez em razão disso a gente fique de certa forma com descrédito lá fora (Fábio, participante).
Dejours (2007) assinala que as situações frustrantes e controversas, além de interferirem nos laços socioprofissionais, podem afetar a qualidade da atividade realizada e favorecer uso de estratégias defensivas diante de sensações como a descrita anteriormente por Maurício (participante), de sentir-se “atacado”.
Eixo 3: As Estratégias Defensivas Utilizadas Diante do Sofrimento
O último eixo abordado nas entrevistas evocou a sensação de insegurança institucional, as defesas psíquicas e seus desdobramentos em sofrimento. Diante dos depoimentos, pode-se considerar a expressão de sofrimentos que vêm acometendo os servidores, sejam eles decorrentes da falta de reconhecimento entre os pares, dos representantes políticos ou da sociedade. O reconhecimento, conforme considera Dejours (2007), contribui para constituição do sujeito e auxilia na construção de estratégias defensivas em favor da saúde. Alguns relatos de sofrimento podem ser compreendidos como falhas na estratégia de defesa individuais e coletivas, tal como a estratégia de virilidade, comum em atividades de segurança (Dejours, 2007). Nas palavras de Dejours:
Em troca de seu envolvimento e dos riscos que correm mobilizando toda a personalidade para a realização da tarefa, isto é, em troca de sua contribuição para a organização do trabalho, as pessoas que trabalham esperam uma retribuição. Esta pode tomar formas materiais: salários, gratificações etc., mas pode também assumir formas simbólicas. Convém notar que é a dimensão simbólica da retribuição que é aqui, de longe, a mais valiosa, e não a retribuição material. Essa retribuição simbólica reveste-se de uma forma específica no trabalho: o reconhecimento. (Dejours, 2007, p. 19-20).
A estratégia defensiva da virilidade coloca em evidência ações que remetem à representação social de coragem diante de riscos, adoecimento ou até perda da própria vida. Souza (2017) também constatou a virilidade em seu estudo sobre adoecimento de guardas municipais, ressaltando o quanto, ao serem expostos a situações arriscadas, eles desenvolvem condutas performáticas para encher de orgulho a equipe e despertar a sensação de bravura e rivalidade. Por outro lado, Frederico relata a importância de avaliar cada situação: “Quem trabalha na rua tem que ter esse discernimento, tem que chegar no local, fazer uma varredura pra saber se dá ou não dá, porque você não é herói. Se vê que não dá, passa um rádio e diz que precisa de apoio ou diz que não tem condições” (Frederico, participante, 2018). Para Dejours:
É por isso que os trabalhadores às vezes acrescentam ao risco do trabalho o risco das performances pessoais e de verdadeiros concursos de habilidade e bravura. Nestes testes rivalizam entre si, mas ao fazê-lo, tudo se passa como se fossem eles que criassem cada risco, e não mais o perigo que se abate sobre todos, independentemente de suas vontades. Criar uma situação ou agravá-la é de certo modo dominá-la. Este estratagema tem um valor simbólico que afirma a iniciativa e o domínio dos trabalhadores sobre o perigo, não o inverso (Dejours, 1999, p. 70).
Tal defesa deixa entrever a idealização presente nessa prática profissional e pode ser encontrada no comentário de Frederico: “tem pessoas que quando chegam se apaixonam pela missão e querem fazer tudo. Mas você não é tudo isso. A gente não precisa de heróis. Como é o caso dos dois parceiros presos porque quiseram dar uma de heróis” (Frederico, participante). Constata-se, assim, que as expressões de sofrimento no trabalho não são problemas individuais. São compartilhadas e produzidas no cotidiano das relações sociais e organizacionais que oscilam, no caso aqui estudado, entre a idealização do herói e a desqualificação do inábil.
Outro ponto levantado neste eixo é a constatação de que as demandas apresentadas pelos trabalhadores e que não são necessariamente atendidas pelos supervisores hierárquicos acarretam ressentimento e sofrimento diante do discurso da impossibilidade de melhorias. Isso leva ao descrédito e ao desânimo, bastante comuns no serviço público. Nas palavras de Frederico:
Não existe uma valorização. E, como nós somos uma secretaria nova, um bebê engatinhando, ninguém te conhece, ninguém liga para a GM . . . . A gente brinca que não temos casa, não temos uma identidade de GM, isso aqui [prédio onde é sediada a base operacional], não é nosso e toda vez que tem um prédio na prefeitura que está pra alguém ocupar, alguém vai e toma na frente. Então, somos o patinho feio (Frederico, participante, 2018).
Dejours alerta: “Se a dinâmica do reconhecimento está paralisada, o sofrimento não pode mais ser transformado em prazer, não pode mais encontrar sentido: só pode gerar acúmulos que levarão o indivíduo a uma dinâmica patogênica de descompensação psíquica e somática” (Dejours, 2004, p. 77). Tal descompensação tende a ser desconsiderada em meio à justificativa da falta de recursos financeiros. Com isso, a discussão efetiva acerca das melhorias nas condições de trabalho torna-se cada vez mais distante. Para agravar a situação, nem sempre os gestores chegam a identificar e analisar criticamente a organização do trabalho, uma vez que também entram em cena para eles as estratégias defensivas da virilidade, que, no caso desta instituição, são exploradas ao ponto de expor ao risco de morte e sofrimento laborais.
Considerações Finais
A presente pesquisa evidenciou que problemas de saúde física e mental afligem os trabalhadores desse ramo e não podem ser tratados apenas no âmbito individual. O sofrimento gerado nos trabalhadores da segurança pública municipal é intensificado quando eles se encontram submetidos à expectativa idealizada, advinda de parte da população, por uma segurança completa e com risco zero. Com isso, a população exige cada vez mais resultados eficientes à revelia das precárias condições de trabalho presentes no cotidiano desse segmento profissional. Chega-se, então, a algumas considerações sobre o trabalho dos agentes municipais de segurança, a saber: primeiro, a violência urbana é fruto da desigualdade social e da cultura de exploração oriundas de uma herança escravocrata que favorece sua expansão continuada. A expectativa por mais e mais segurança, expressa pela população e em larga medida alimentada pelos próprios profissionais, desconsidera tanto a especificidade de tarefas prescritas para o cargo quanto as condições precárias de trabalho desse segmento profissional. Abrem-se, deste modo, lacunas entre o trabalho prescrito e o real que são de difícil apreensão.
Em segundo lugar, cabe dizer que os maiores desafios presentes na segurança pública consistem em considerar os aspectos subjetivos agregados às tarefas a serem realizadas. Conforme argumentado neste estudo, os profissionais realizam um tipo de atividade que pode ser caracterizada como imaterial, pois exige disposições afetivas e pessoais para agir na solução de problemas, os quais são difíceis de serem apreendidos e solucionados apenas a partir de prescrições ou treinamentos técnicos. Esses aspectos, somados às dificuldades decorrentes da situação precária da organização e das condições de trabalho, podem favorecer a emergência de sofrimento e falhas no desempenho cotidiano das atividades.
Como terceiro ponto, constatou-se, nos depoimentos, que os servidores em situação de adoecimento não são bem acolhidos pela instituição, pelos colegas e pela comunidade. As medidas utilizadas pelos profissionais para contornar os adoecimentos instalados resumem-se à procura individual por assistência à saúde, como médicos e psicólogos da rede privada. Tais medidas ficam no âmbito das soluções individualizadas e são custeadas pelo próprio trabalhador, que é obrigado a encontrar, sozinho, meios de enfrentar os problemas gerados e vivenciados na instituição. Isso vem ao encontro do que foi discutido na parte teórica e caracterizado como crescimento do individualismo neste momento histórico.
Nesse sentido, torna-se relevante à Psicologia Social e para a Psicodinâmica do Trabalho dar continuidade aos estudos com esse segmento profissional e, no cotidiano de suas atividades, buscar alternativas de análise e intervenção que coloquem em evidência a percepção desses trabalhadores a respeito das suas reais condições de trabalho. Apesar de difícil, esse tipo de pesquisa e intervenção nas instituições serve para explicitar as situações de sofrimento e adoecimento que acometem os trabalhadores e que produzem efeitos diretos na comunidade. Tal análise possibilitaria uma revisão crítica e conjunta da discrepância existente entre o trabalho prescrito e o real, campo fértil para intervenção do profissional da Psicologia do Trabalho.