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Revista EPOS

versión On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.1 no.1 Rio de Janeiro ene. 2010

 

ARTIGOS

 

Barra (para) bacana: a criminalização da pobreza na gestão da segurança pública carioca

 

 

Anderson Moraes de Castro; Silva e Verônica dos Anjos

Discentes do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ) e Pesquisadores Associados ao Laboratório de Análise da Violência (LAV/UERJ)

 

 


RESUMO

Objetivamos analisar os discursos e as práticas governamentais que legitimam as operações policiais de limpeza do espaço urbano carioca. Limpeza esta que se desenha tal como nas reformas proposta por Pereira Passos, a partir da higienização do espaço público – sustentado pela introjeção do Biopoder. Defendemos que as operações que se espelham na "tolerância zero" (Zona Sul Legal, Copabacana, Ipabacana, Barrabacana etc.) criminalizam a pobreza e atualizam o mito das classes perigosas, em um claro recrudescimento do poder punitivo estatal. Por fim, problematizamos a falsa relação de causalidade existente entre os vendedores amblantes, travestis e prostitutas com a criminalidade e o comércio de entorpecentes.

Palavras-chave: Estado Penal, Criminalização da Pobreza, Tolerância Zero.


ABSTRACT

We aim at analyzing the speeches and government practices which legitimate the police clean - up operation in the carioca urban space. This Clean - up means which reflects the designs proposed by the Pereira Passos City administration which advocated the hygienics of public areas - supported on the Biopower introjection. Otherwise, we advocate the concept by which these operations are rooted in the so - called "zero tolerance" (Zona Sul Legal, Copabacana, Ipabacana, Barrabacana, etc.), altogether, they criminalize poverty and update the myth of dangerous classes as well as stress the state enforcement power. Finally, we question the false causal relation beneath street vendors, transvesties and prostitutes, criminality and drug dealers.

Keywords: Penal State, Poverty Criminalization, Zero Tolerance.


 

 

Introdução

Este ano, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) está completando dezoito anos, ou seja, atingiu a maioridade. Todavia, em vez de termos motivos para festejar a data, nos causa espécie constatarmos que o referido diploma legal continua sendo desrespeitado. No estado do Rio de Janeiro, ente federativo onde as taxas de assassinatos de crianças e jovens têm se mantido acima da média nacional,1 essa questão é ainda mais delicada, haja vista que, desde o seu desenho teórico, as políticas de segurança pública destinadas à juventude, além de desconsiderar as garantias e os direitos inalienáveis dos jovens, também não contemplam o desenvolvimento de suas potencialidades individuais.

Neste artigo, pretendemos abordar a inovação conservadora do "bota-abaixo" contemporâneo, ou seja, refletiremos sobre o processo de higienização da orla carioca via remoção dos indivíduos classificados pelo poder público como representantes das dangerous classes, tais como: prostitutas, travestis, jovens em situação de rua e vendedores ambulantes informais.

Enfatizaremos, como estudo de caso, as ações que são desenvolvidas na região da Barra da Tijuca a partir da implementação da operação Barrabacana. Essa faxina social é coordenada pela Subsecretaria Estadual de Governo que, seguindo a nomenclatura utilizada previamente na zona sul do Rio, tem batizado tais operações apondo o sufixo "bacana" ao nome do bairro faxinado – Copabacana, Ipabacana e Barrabacana. Seria este trocadilho apenas um ato falho do gestor estatal? Achamos que não, razão pela qual tentaremos demonstrar que as propostas "bacanas" – ou seria para os bacanas? –, constitutivas do discurso oficial das políticas de segurança pública fluminense, representam, em verdade, aspectos do processo de recrudescimento da criminalização da pobreza e dos indivíduos socialmente excluídos, sendo uma inegável atualização do mito das classes perigosas.

Defendemos que a hipertrofia do poder estatal – o "estado penal" wacquaniano – legitimaria as ações excludentes e de criminalização da pobreza, características dos programas "bacanas" e seus similares. Por fim, na conclusão do artigo, apontaremos as razões discursivas pela quais as políticas públicas que se fundamentam na guetificação do outro são prioritariamente implementadas nas áreas nobres do município do Rio de Janeiro.

 

1. Da zona sul legal a Barrabacana: o rodo da intolerância

Na primeira semana de julho de 2008, os editoriais dos principais jornais fluminenses traziam em seu cerne declarações de apoio ao início do Barrabacana que, assim como as suas coirmãs, Copabacana e Ipabacana, visava, supostamente, reprimir os motoristas que dirigissem embriagados, combater a prostituição infantil e reprimir o comércio ambulante nas vias públicas do bairro, ou, como descreveu o coordenador do programa:

Os sinais de trânsito se transformaram em um verdadeiro "mercado persa" onde tudo é vendido. Também vamos combater a prostituição infantil e juvenil que acontece, principalmente, na orla da Barra da Tijuca. Outro ponto será evitar acidentes por conta do uso de bebidas alcoólicas.2

Como nos adverte Batista,3  ao abordar a temática do filicídio, no Brasil atual o apoio e a legitimação que as elites e a imprensa conferem à manutenção de mecanismos de controle e disciplinamento sobre a população empobrecida são similares ao suporte que esses mesmos segmentos forneciam à ordem escravocrata (Batista, 2007 p. 39). Destaque-se que Bocayuva (2007, p. 27) também já discorreu alhures sobre o papel que a mídia e a imprensa nacional tiveram na construção dos discursos que clamam por justiça denunciando a suposta falta de leis e reivindicando o endurecimento punitivo.

Estas ponderações se tornam ainda mais relevantes quando constatamos que um projeto similar ao Barrabacana fora, no governo anterior, alvo de avaliações institucionais que questionavam sua legitimidade e legalidade. Referimo-nos ao programa "Zona Sul Legal",4 que, na gestão Rosinha Garotinho, defendia o recolhimento compulsivo de crianças e adultos em situação de rua. O programa foi duramente criticado em audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos e de Assuntos da Criança, Adolescente e Idoso da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, e, ainda, pelo juiz titular da 1ª Vara da Infância e Juventude.5 Naquele contexto, restou provada a ineficiência das operações de recolhimento compulsivo ao se constatar que dentre o universo de 119 jovens "recolhidos" nas cinco primeiras incursões do "Zona Sul Legal", 107 abandonaram os abrigos para os quais haviam sido encaminhados e migraram, temporariamente, para bairros não incluídos nos operações de recolhimento.6 Ora, outra não é a constatação a que chegamos após os primeiros meses de implantação dos projetos "bacanas", uma vez que, embora a população de rua tenha diminuído em Copacabana – primeiro bairro a sofrer intervenção do "choque de ordem" estatal –, ela aumentou exponencialmente em Botafogo, Flamengo, Catete e Glória.7 Segundo Marcelo Garcia, secretário municipal de assistência social, uma decorrência direta da limpeza social promovida pelo governo estadual é que tem aumentado a violência contra a população de rua:

As pessoas estão sendo retiradas da Barra e levadas para Jacarepaguá. Na zona sul, acontece o mesmo, com a migração da população de Copacabana para Botafogo. O clima entre os moradores desses bairros e as pessoas que são levadas para lá está tenso.8

Do mesmo modo, se na orla da Barra da Tijuca decresceu o quantitativo de prostitutas, travestis e crianças em situação de rua após o Barrabacana, processo inverso ocorreu nas praças públicas de Campo Grande, onde nas noites pode-se experimentar um "clima" diferenciado. A primeira conclusão lógica a que chegamos é que as políticas públicas sanitaristas desenvolvidas pelo atual governo, assim como na gestão antecessora, foram desenhadas apenas para banir os grupos marginalizados ou estigmatizados das áreas nobres da cidade, e, em seguida, depositá-los em locais onde escapem ao alcance do zoom digital da câmera importada. Afinal, o cenário de cartão postal da cidade maravilhosa não pode ser ofuscado por esses seres ostensivamente pobres, ameaçadores e sombrios. No roteiro de aventuras comercializado pelas agências de turismo do Rio, os turista são advertidos quanto ao exotismo e perigo dos sáfaros que habitam os morros da zona sul, razão pela qual lhes são apresentados os roteiros dos safáris que cruzam as favelas em jipes possantes e com guias especializados. Caso seja de interesse, o viajante pode ainda registrar seu passeio posando ao lado de domesticados homúnculos faveladus  – especialmente adestrados para a ocasião, assim como ocorre com os elefantes africanos.9 A pobreza encenada, além de encantar, não ameaça a integridade física do nobre viajante, já a miséria real espanta, assusta e representa perigo.

Cumpre salientar que as políticas segregadoras contemporâneas são semelhantes às práticas sanitaristas de outrora. Ou seja, não são propostas inovadoras, mas representam antes, isto sim, a revitalização dos discursos constitutivos do biopoder10 à brasileira. Afina, nos referidos discursos, a prostituição e as demais "doenças da sociedade" deveriam ser controladas pela polícia médica em prol da família burguesa (Birman, 2007 p. 19).

O espaço público no início do século XIX era ocupado por pessoas pobres, em geral vendedores ambulantes, capoeiras e escravos libertos. Havia sujeira e mal cheiro pelas vias públicas derivados de lixo e esgoto. De fato, as ruas configuravam-se em um espaço desagradável e de pouca beleza.

Nesse sentido, a administração pública local toma uma série de medidas com o objetivo de tornar a cidade um lugar adequado aos interesses econômicos de investidores internacionais que apostavam no potencial da cidade de grande capital. O projeto para a cidade previa seu embelezamento, mesmo à custa de violência e exclusão, conforme lemos nos livros de história sobre a nossa sociedade. A lógica estética fundamentada em interesses econômicos e políticos sobrepunha-se insensível aos resultados obtidos, segundo a edição de 2 de julho de 1907 do Correio da Manhã:11:

O êxodo não cessa. Diariamente passam carrocinhas carregando trastes desconjuntados, latas, vasilhas de barro, gaiolas, baús arcaicos, e vão pelas estradas dos subúrbios, param nas fraldas das montanhas. Os bosques alpestres e os das planícies abrem-se acolhedores e entre as árvores aboletam-se os expulsos, sentam-se nas pedras, nas grossas raízes, penduram os fardos aos ramos e, enquanto os homens, à pressa, vão levantando os ranchos, as mulheres instalam a cozinha a tempo.. .A montanha povoa-se. É a caridade da Terra... Assim vai a pobreza recuando para as eminências, abrigando-se nos cervos, repelida pela Grandeza, pelo fausto arrasador das casas humildes, pelo Progresso que não consente na permanência de um pardieiro no coração da cidade. A montanha abre o seu manto verde e acolhe os pobrezinhos como os santos no tempo suave dos eremitas.

A gestão municipal do prefeito Pereira Passos ficou conhecida então pelas ações de reforma que desenvolveu na área central da cidade motivada pela urgência do adequamento da realidade local e assim moradias e cortiços foram demolidos, ruas foram construídas para que o local ganhasse novas formas, e novos moradores. Suas ações lhe renderam o nome de prefeito "bota-abaixo".

Cabe ressaltar que a população indesejada se viu diante de um quadro avassalador, onde a forma mais viável de moradia foram os morros ao redor da área central da cidade, pois esta oferecia alguma possibilidade de trabalho.

Esse é um momento em que a retirada literal de grupos indesejáveis é justificada em nome da ordem e do crescimento urbano – o progresso! É evidente que essa concepção de limpeza social não é recente, bem como sua atestada falência também não o é.

Contudo, há uma outra segunda dimensão dos programas "bacanas" que nos intriga, qual seja: se essas intervenções visassem de fato combater a prostituição infantil e a criminalidade de rua – como foram oficialmente apresentadas –, por que motivos elas seriam implementadas na zona sul do Rio e na Barra da Tijuca?

Conforme demonstrou Musumeci et all, tais regiões não estão tradicionalmente entre as localidades onde se concentram os mais altos índices de  criminalidade violenta na região metropolitana do Rio de Janeiro (2006, p. 16). Pelo contrário, segundo os dados apresentados no referido estudo, a orla da zona sul carioca e a Barra sequer aparecem entre as primeiras colocadas no ranking de delitos registrados em delegacias policiais no município do Rio de Janeiro.

Exemplificando os fatos aos quais estamos nos referindo, reproduziremos abaixo os resultados referentes à distribuição espacial das vítimas de homicídios dolosos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro entre 2000 e 2005. Em seguida, a partir dos referidos dados, exibiremos a distribuição espacial da taxa média anual referente aos homicídios dolosos por cem mil habitantes na Região Metropolitana do Rio de Janeiro:

 

 

Como podemos inferir dos dados supracitados, até o presente momento, nenhum dos programas "bacanas" foi implementado em áreas onde a criminalidade violenta é, historicamente, recorrente. É possível que se questione a utilização de dados referentes à criminalidade violenta e não à prostituição infantil ou aos delitos praticados em vias públicas.

Neste caso, caberiam três observações sucintas: em primeiro lugar, no município do Rio de Janeiro, o estudo supracitado constatou que na zona norte e peste da cidade ocorrem: "87% dos autos de resistência, 85% dos homicídios dolosos, 84% dos roubos de veículos, 72% dos roubos em coletivo, 68% dos roubos a transeunte, 61% das lesões corporais dolosas e 59% dos roubos a residência" (Musumeci et all, 2006, p. 16). Em segundo lugar, tratando-se de políticas de segurança pública, sabemos que a redução dos delitos que constituem a denominada criminalidade violenta deve ser uma das preocupações primárias do gestor público, uma vez que tais crimes atingem o maior dos bens tutelados pelo Estado: o direito a vida.

No entanto, em vez de direcionar a máquina pública para a proteção da vida, a gestão cabralina optou por destinar sua força de trabalho à repressão dos comportamentos que, do ponto de vista da moral cristã, ou do corolário neoliberal, são desonrosos ou indicam o fracasso pessoal, tais como: a prostituição, o travestismo e a mendicância, mas que do ponto de vista jurídico não constituem nenhuma infração à legislação formal, numa clara adesão à proposta de endurecimento punitivo.

Por fim, não podemos deixar de mencionar que não é na zona sul carioca ou na Barra da Tijuca que a prostituição infantil tem feito suas maiores vítimas. Sabemos que nos subúrbios, fatores vinculados à degradação social, à falta de oportunidades e à exclusão social têm contribuído para que as jovens dessas localidades escambem à sujeição sexual por gêneros alimentícios, roupas, vales transporte ou refeição. Aliás, a CPI do Turismo Sexual da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 2007, no seu relatório final,13 apontou que os bairros da zona norte e oeste da cidade concentravam a maioria das denúncias relativas à prostituição infantil.

A CPI constatou ainda que, em Sepetiba, ocorriam os casos mais graves dentre os denunciados aos parlamentares da cidade do Rio, onde meninas, ainda crianças, se prostituíam por R$ 1,99 (um real e noventa e nove centavos). Tal como nas ofertas das lojas barateiras que vendem quinquilharias. O grau de abandono institucional e degradação humana encontrado em certas regiões do subúrbio fluminense14 é de tal ordem que o sexo de suas filhas é comercializado por valor equivalente ao dos produtos falsificados, objetos que, no senso comum, custam uma mixaria por serem de baixa qualidade. Será que o predador dos serviços sexuais infantis não pensa o mesmo das carcaças que consome?

Torna-se evidente que as regiões contempladas com as operações "bacanas" não estão entre aquelas que ostentam os maiores índices de criminalidade violenta na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. No entanto, segundo o relatório conclusivo da CPI que investigou a prostituição infantil na cidade, foi revelado que na localidade de Sepetiba as jovens estão mais vulneráveis à exploração sexual infantil.

Portanto, nem a zona sul carioca nem a Barra da Tijuca detêm a maior incidência de crimes de trânsito ou de exploração sexual infantil. O que poderia justificar a implantação dos referidos programas nessas localidades?  Esse é o ponto sobre o qual nos debruçaremos a fim de oferecer elementos para uma leitura consubstanciada deste fenômeno.

 

3. Detenções arbitrárias, apreensões ilegais e cadastramentos forçados: ritos sumários de combate à pobreza

Como mencionamos no início deste texto, em 1º de julho de 2008 o governo estadual deu início à operação Barrabacana que, segundo o discurso oficial, pretendia combater a prostituição infantil, o comércio ambulante de mercadorias em vias públicas e a condução de veículos automobilísticos por pessoas embriagadas. No item anterior, questionamos as justificativas oficiais para a execução do programa Barrabacana tendo em vista a baixa incidência dos delitos apontados nas regiões em que as operações estão ocorrendo.

Ressaltamos, agora, que após a entrada em vigor da lei seca nas estradas,15 a Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro (SESEG) instituiu a operação "Pressão Total"16 com o objetivo de reprimir o consumo de bebidas alcoólicas pelos motoristas. De modo que eliminou, por meio da criação da "pressão total", o último dos argumentos teóricos que justificavam a existência dos programas Bacanas.

Neste momento, apresentaremos o resultado oficial do primeiro dia de execução da operação Barrabacana segundo informativo oficial da Secretaria de Governo:17 foram apreendidas três cadeiras de praia, 20 caixas de morango, 50 sacos de bala, quatro caixas de doces, 200 empadas, 600 garrafinhas de refresco, 200 bandeiras, 600 unidades de doces diversos, 30 potes de cola plástica, 50 bolas de plástico e 80 sacos de biscoitos diversos. Além disso, duas crianças foram encaminhadas à DPCA e dois adultos à delegacia para averiguações, assim como um morador de rua foi acolhido. Um carro que, segundo os fiscais, servia como depósito de mercadorias foi rebocado para o depósito estadual.

Inexiste nas matérias divulgadas na imprensa – seja no portal do governo ou nos jornais O Globo, O Dia ou Jornal do Brasil – qualquer reflexão sobre as condutas dos agentes estatais encarregados do combate à desordem urbana. Mas, tendo em vista o resultado apresentado acima, estamos inclinados a inferir que as ações do poder público estavam mais direcionadas à repressão do trabalho informal do que à prostituição infantil.

Entretanto, como um dia de operação é muito pouco para tirarmos conclusões generalizantes sobre os objetivos da operação, vejamos, então, quais são os números relativos ao primeiro mês da Barrabacana:

Entre os dias 1º e 31 de julho, apreendeu mais de uma tonelada de alimentos: cerca de mil frutas, sete mil biscoitos e doces, 44 quilos de carnes e mais de 3,5 mil recipientes com bebidas. A operação também multou 433 veículos e removeu junto com o Detro 21, sendo oito deles por transporte ilegal de passageiros. Os agentes do governo recolheram 38 adultos e 80 crianças e adolescentes das ruas. Eles ainda apreenderam cerca de 240 relógios, 200 bijuteiras, 325 aparelhos eletrônicos e 324 peças de vestuário e abordaram 42 ambulantes.18

Curiosamente, a operação que visa combater a prostituição infantil e os crimes de trânsito não apresentou nenhum resultado referente a esses crimes. Ora, com base em tais resultados é possível depreendermos que o cerne da ação estatal foi a repressão e a criminalização dos trabalhadores informais que atuam nas vias públicas. Há algo aqui que não está claro para nós: o governo pretende diminuir a prostituição infantil e os crimes de trânsito com as apreensões de mercadorias dos vendedores ambulantes? Existe uma relação de causalidade existente entre uma coisa e outra? Ressalte-se que tais apreensões são questionáveis, para não dizer ilegais.

Elas são justificadas pelo poder público com dois argumentos distintos: a) Em virtude da ausência de nota fiscal que comprove a licitude da mercadoria vendida pelos ambulantes; b) Em função das interdições estabelecidas pelo Código Nacional de Trânsito ao comércio nas pistas de rolagens. Ocorre que, em ambos os casos, os argumentos que legitimam as ações repressivas carecem de sustentação jurídica.

No que se refere ao primeiro item, há uma clara inversão do princípio da presunção da inocência, afinal, o trabalhador informal é culpabilizado até prova em contrário, diferentemente do que prevê a legislação criminal brasileira. Ora, quem, entre nós, cariocas, transita com a nota fiscal dos produtos que transporta? Caso fôssemos inspecionados pela polícia com o mesmo rigor que são os trabalhadores informais, provavelmente teríamos roupas, calçados e acessórios apreendidos. Por outro lado, é preciso entender o drama social do ambulante que teve seus produtos confiscados, pois que tipo de mensagem o poder público está lhe enviando ao criminalizar sua atividade profissional?

Já no caso das apreensões justificadas pela simples proibição ao comércio de qualquer produto nas pistas de rolagens, a seletividade na aplicação da norma formal é ainda mais escandalosa. Qual a diferença conceitual entre o comércio de doces, frutas, refrigerantes e picolés nos sinais da Barra da Tijuca e o de jornais e passes eletrônicos na ponte Rio-Niterói ou nos demais pedágios do Rio de Janeiro? Nenhuma. Comércio é comércio, e a lei não distingue entre os produtos que são vendidos. Então, por que uns podem e outros não? Por que os jovens vendedores ambulantes dos sinais são alvos preferenciais da suspeição criminal dos agentes estatais? Para entendermos essa questão, precisamos ampliar o nosso campo de visão para além das fronteiras brasileiras.

 

4. Repressão ou investimento: sobre que ângulos as propostas para a juventude têm sido desenhadas nas américas?

Cumpre salientar que o processo de criminalização das condutas dos jovens oriundos de favelas e periferias não é uma prática exclusiva do governo do Rio de Janeiro. Muito menos reflete uma característica singular do Estado brasileiro, ainda que saibamos que a nossa sociedade vive a debochar nos sinais – por meio dos espetáculos que nos proporcionam os equilibristas da miséria - de seus mitos estruturantes. Em especial, daquele que festeja a nossa miscigenação racial.

Em um rápido giro pela vizinhança, podemos verificar que acontecimentos similares ocorrem nas demais regiões da América, seja no sul, no norte ou na região central. Na Guatemala, por exemplo, operações policiais focadas na repressão, denominadas de "Mano Dura" – a tolerância zero local – são a principal política pública reservada aos jovens oriundos dos subúrbios, sejam eles membros de gangues, envolvidos com o comércio de drogas,19 ou apenas miseráveis.

Lá, como aqui, o poder público constituído goza do apoio de expressiva parcela da população às suas práticas repressivas. Estes veem na hipertrofia do poder punitivo estatal contra as dangerous classes um meio legítimo de combate à insegurança pública. Aliás, segundo Barros (2007:05), o conceito de classes perigosas remonta ao contexto do capitalismo primitivo, sendo as juventudes segregadas um de seus elementos constitutivos.

Em toda América Central, com destaque para Guatemala, El Salvador e Honduras, abundam denúncias de maus tratos e vitimização de jovens em face dos abusos praticados pelos agentes aplicadores da lei ou grupos para-oficiais.20 Do mesmo modo, a situação na América do Norte não é muito diferente, pois, além do tradicional processo de guetificação da pobreza,21 os jovens norte-americanos têm que conviver com a indústria da pena. Aliás, como sabemos, a fúria capitalista dos sobrinhos do Tio Sam tem conseguido fazer do aprisionamento, desde a década de 1990, uma atividade economicamente rentável para os talentosos jovens de Wall Street, embora continue a ser um péssimo negócio para os rapazes – ou infratores – das regiões periféricas (Wacquant, 2001a, p. 54). Sejam integrantes ou não de maras ou gangues, esses jovens sabem que o aprisionamento – e até mesmo o desterro, no caso dos latinos – não é apenas uma possibilidade. Na América do Sul, os nossos vizinhos têm demonstrado a mesma falta de habilidade ao lidar com os grupos marginalizados. Talvez por isso, as políticas para juventude desses países não tenham priorizado a criação de canais de comunicação, mas sim optado pelo endurecimento penal.

Uma característica comum aos países americanos que criminalizam suas juventudes foi a adoção do modelo norte-americano de guerra ao tráfico de drogas. Hoje, embora nem mesmo os Estados Unidos defendam mais essa proposta – que apesar de lotar as prisões e ceifar inúmeras vidas, mostrou-se ineficiente para a redução das taxas de criminalidade –,, seguimos aprisionando nossos jovens. Por que isso ocorre?

 

V – CONCLUSÃO

Segundo Barros (2007: 3), a problemática do enfretamento à criminalidade urbana no Brasil tem se mostrado uma verdadeira política de extermínio dos jovens, que ela denominou de "o mal-estar das juventudes brasileiras segregradas". No referido texto, Barros nos convida a refletir sobre os efeitos perversos das políticas de segurança pública brasileira adotada nos últimos anos. O convite é endossado por Batista e Dumas22 ao enfatizarem os resultados que a aplicação das diretrizes internacionais da política criminal de drogas estadunidense teve sobre as camadas menos favorecidas dos países que a adotaram: a denominada criminalização da pobreza.

Em ambos os textos, é possível inferirmos que apesar do grande encarceramento e da guetificação dos integrantes das dangerous classes que se seguiu aos anos 1980 – marco inicial da vigência da ideologia beligerante de combate às drogas –, a diretriz repressiva norte-americana mostrou-se um fiasco. Este fracasso é tão retumbante que, diante da expansão crescente do comércio internacional de entorpecentes, os norte-americanos já admitem a ineficácia da atual política antidrogas.

No caso brasileiro, a meia volta norte-americana parece não ter surtido efeito algum. Seguimos implementando inovações-conservadoras como os programas Copabacana, Ipabacana e Barrabacana. Nestes, a doutrina excludente-punitiva é corroborada com preceitos higienistas que embasaram a constituição do biopoder à brasileira. Nele, categorias distintas como pobreza e criminalidade são imbricadas, resultando no Outro simbólico que alimenta a sensação de insegurança. Outro que ameaça, que provoca repulsa e que, por isso mesmo, é sempre representado como o "elemento suspeito".23

Os jovens moradores da periferia são hoje, indiscutivelmente, as maiores vítimas desse engodo institucional que, ao olhar a juventude pelo ângulo da criminalização, não consegue enxergar as potencialidades desses indivíduos. Lá, tudo é criminalizado: o grafite vira pixação, a musica é chamada de proibidão, o jogo é a contravenção e apertar um baseado pode resultar numa viagem de camburão ou em internação. Neste último caso, Sento-Sé (2004) apontou que os meninos oriundos "da rua" são tratados de modo diferenciado dos meninos "de família" pela justiça, uma vez que ela tende a reproduzir institucionalmente os estigmas socialmente construídos quanto ao potencial ameaçador dos moradores de rua.

Desta forma, para condutas idênticas, o destino dos "meninos em situação de rua" será a internação em instituição fechada e o dos "meninos com família", a liberdade assistida. Os primeiros devem ser punidos, os segundos, protegidos. O governo estadual não apenas defende tais medidas como, a partir dos programas bacanas, estendeu aos jovens trabalhadores informais o longo braço da lei – assim como já havia ocorrido com os ambulantes que atuam na rede ferroviária (Castro e Silva, 2007).

Curiosamente, os trabalhadores informais são obrigados a sair das ruas sem que nenhuma proposta de inclusão social ou desenvolvimento de talentos lhes seja oferecida. O pior é que, ao agir assim, os gestores governamentais ainda acreditem de fato que estejam contribuindo de modo positivo para a redução dos índices de criminalidade na cidade.

No princípio de agosto de 2008, já no terceiro mês de execução do programa Barrabacana, o responsável pelas intervenções estatais anunciou que seus subordinados iram fotografar os veículos de quem contratasse os serviços das prostitutas ou travestis na orla da Barra. A medida, além de apoiada pelo governo estadual, foi elogiada pela câmara comercial da Barra e pelos representantes do setor hoteleiro – embora tenha sido duramente criticada por juristas que a classificaram como abuso de autoridade.24 Enfim, após muita conversa, os verdadeiros objetivos das operações bacanas vinham a público: combater a atividade das prostitutas e travestis naquela região, pois, como definiu Rubens Medina, presidente da Riotur: "Não achamos sadio ter isso na praia e em pontos turísticos. Não queremos isso para o Rio."

Após três meses de execução do programa Barrabacana, as redes de exploração da prostituição infantil seguem abusando de nossas crianças, pois nem a região de Sepetiba nem a da Gardênia Azul foram visitadas pelos representantes do poder público constituído. Enquanto isso, as prostitutas, os travestis e os vendedores de sinais da Barra da Tijuca são submetidos ao constrangimento ilegal de se deixarem fotografar e cadastrar na delegacia local. Seus crimes: são brasileiros pobres.

 

Referências bibliográficas

Livros e revistas:

BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.         [ Links ]

_____. Difíceis ganhos fáceis – drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ICC, 1999.

BIRMAN, Joel. A biopolítica na brasilidade. In: BOCAYUVA, Helena. Sexualidade e gênero no imaginário brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007.         [ Links ]

BARROS, Maria Theresa da Costa. Juventudes, Capitalismos e Processos de Subjetivações. Rio de Janeiro: EBEP, 2007.         [ Links ]

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Sites

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O Dia (http://www.odia.terra.com.br/)
Folha de São Paulo (http://www.folha.uol.com.br/)
Barra Alerta (http://www.barralerta.org.br/)
Portal do Governo do Estado do Rio de Janeiro (http://www.governo.rj.gov.br/)

 

 

1 Segundo dados do CESEC/UCAM, apresentados na reportagem "No Rio, ECA faz 18 anos sem tanto a festejar", O Globo, seção Rio, 13/7/2008, p. 23.
2 O Dia on line. "Operação ‘BarraBacana’ vai combater comércio irregular e prostituição no bairro" . 28/5/2008, 17:45h.
3 Ver Batista, Vera Malaguti. "Filicídio: a questão criminal no Brasil contemporâneo". In: Freire, Silene de Moraes (Org.). Direitos Humanos: violência e pobreza na América Latina contemporânea. Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2007.  
4 O programa "Zona Sul Legal" foi implementado nas mesmas regiões em que hoje são desenvolvidos os projetos "bacanas" – salvo exceção para o bairro da Barra da Tijuca. 
5 Ver matéria de Gisela Álvares "Zona Sul Legal Recebe Críticas em Audiência", Jornal do Commercio, 9/9/2003.
6 Todavia, devemos frisar que o fracasso do programa "Zona Sul Legal" não se deve à suposta "natureza indomável" dos meninos abruptamente recolhidos, mas sim a inexistência de incentivos para que os jovens permaneçam institucionalizados. Afinal, os abrigos públicos do Rio de Janeiro são tradicionais depósitos de indigentes. Neles não há qualquer programa que vise desenvolver as potencialidades dos jovens acolhidos.    
7 O Globo, seção Rio, 17/8/2008, p. 34.
8 Declaração extraída da matéria "Morador de rua é espancado por jovens", O Globo, seção Rio, 23/8/2008, .p. 22.
9 Devo salientar que foi a leitura de Barros (2007) que despertou a nossa atenção para a comparação entre os  favelados e os africanos, em especial do seguinte trecho: "Cabral defende o aborto para reduzir crimes. Governador compara natalidade da Rocinha com o padrão na África e diz que isso é uma fábrica de produzir marginais."
10 Para mapear a construção teórica do conceito de biopoder em Foucault, ler Birman, Joel. "Arquivo da biopolítica". In: Loyola, Maria Andréa (Org.). Bioética, reprodução e gênero na sociedade contemporânea. Brasília: Letras Livre, 2005.
11 Ver o livro Favela, alegria e dor na cidade, para uma contextualização histórica e política do processo de exclusão social das camadas mais vulneráveis da sociedade brasileira.
12 MUSUMECI et all. Geografia da violência na Região Metropolitana do Rio de Janeiro – 2000-2005. Rio de Janeiro: CESEC, 2006. Boletim Segurança e Cidadania, ano 5, nº 11, out. 2006.
13 Conforme a matéria "CPI do Turismo Sexual Denuncia Prostituição Infantil a R$ 1,99", O Globo, seção Rio, 26/9/2007.
14  Desde o ano passado a Promotoria de Investigação Penal do Ministério Público do Rio de Janeiro vem apurando denúncias de que as meninas que moram na região da Gardênia Azul, em Jacarepaguá, têm sido exploradas sexualmente por integrantes dos grupos paramilitares que dominam a região. 
15 Lei 11.705, de 19/6/2008.
16 A operação "Pressão Total" teve início em 11/7/2008, portanto, dez dias após a implementação do Barrabacana.  As polícias Civil, Militar e Federal, o Corpo de Bombeiros e os fiscais do Departamento de Transportes Rodoviários (Detro) e do Departamento Estadual de Trânsito (Detran) participam das blitzes.
17 Conforme matéria "Balanço do primeiro dia da Operação Barrabacana", publicada em 01/7/2008, no site da Ascom. Disponível em http://www.governo.rj.gov.br/listaNoticias.asp
18 Dados extraídos da reportagem BarraBacana apreende mais de uma tonelada de alimentos em julho", JB Online, seção Rio, 1/8/2008. Disponível em http://jbonline.terra.com.br/
19 Segundo a matéria sobre a juventude na América Central, intitulada "Guatemala convoca Exército para combater gangues e tráfico de drogas", o presidente da Guatemala estava disposto, no início deste ano, a "mobilizar 11 mil soldados para combater as gangues e o tráfico de drogas".(disponível em www.comunidadesegura.org)  
20 Para saber mais, ler Dossiê Direitos Humanos na América Latina. Disponível em (http://www.comunidadesegura.org/?q=pt/node/34620)
21 Analisado por Löic Wacquant. 
22 Em especial o artigo: Batista, Vera M. e Dumas. Drogas nada de novo no front. Revista Ciência Hoje, v. 31, nº 181, 2002.
23 Ver Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro.
24 Segundo Célio Borja, em entrevista ao jornal O Globo, de 2/8/2008, o ato de fotografar os clientes das prostitutas não tinha embasamento legal: "Tentar afugentar não incorre em infração a lei. Mas fotografar os carros, identificar as pessoas que abordam as moças, já começa a entrar na intimidade dos fotografados. A conduta de quem contrata uma prostituta não é criminosa."

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