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Revista EPOS

versión On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.1 no.1 Rio de Janeiro ene. 2010

 

ARTIGOS

 

"O silêncio dos inocentes" – abuso sexual intrafamiliar na infância

 

 

Stella Luiza Moura Aranha CarneiroI; Mara Aparecida Alves CabralII

IPsicanalista Ex-Membro Efetivo e Docente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, filiada à IPA, Membro Convidado da Sociedade Psicanalítica RIO–3. Doutora em Psiquiatria e Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Pós-Doutoranda no IMS–UERJ, sob orientação do Prof. Dr. Joel Birman
IILivre-Docente do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP

 

 


RESUMO

Desde o início do mundo, as crianças têm sido vítimas de toda a sorte de explorações, inclusive, e principalmente, de natureza sexual. No entanto, a sua denúncia tem tido pouco eco, abafada pelo complô do silêncio com que a sociedade, em geral, e os especialistas, em particular, têm procurado encobrir. Segundo Freud (1913), a rejeição pelo tema do incesto é, antes de tudo, produto da aversão que os seres humanos sentem pelos seus primitivos desejos incestuosos, hoje dominados pela repressão. Embora diferentes orientações teóricas possam ser ampliadas para o estudo do abuso sexual intrafamiliar na infância, alguns modelos necessitam incorporar uma perspectiva desenvolvimental. Neste trabalho, veremos, em síntese, algumas fase do desenvolvimento do indivíduo e as consequências do incesto. O abuso sexual da criança deve ser visto como uma questão dos direitos da criança, tanto como um problema de saúde e de saúde mental. A primeira atitude então deve ser a de quebrar a barreira do silêncio, de modo a tornar mais pessoas conscientes da existência deste fenômeno.

Palavras-chave: Abuso sexual intrafamiliar, Famílias conflituosas, Infância, Desenvolvimento psicossocial, Sociedade.


ABSTRACT

Since the beginning of the world, children have been victims of all kinds of exploitation, including mostly ones of sexual nature. Nevertheless its disclosure has had little echo, covered up by the silence with which the society, in general and the specialists in particular have treated the subject. According to Freud (1913), the rejection to the theme incest is a result of the aversion human beings feel to their primary incestual desires which are, nowadays, controlled by repression. Although different theoretical orientations might be widened in order to study the intrafamiliar sexual abuse in childhood, some models need to incorporate a developmental perspective. In this paper, we shall be seeing, in synthesis, some moments of the individual development and the consequences of incest. Sexual abuse in childhood must be seen as a matter of child’s rights as well as a health and a mental health problem. The first attitude then should be to brake the silence barrier, in order to do so people must become aware of the existence of this phenomenon.

Keywords: Intrafamiliar sexual abuse, Familial relations, Childhood, Psychosocial development, Society.


 

 

Introdução

Desde que o mundo é mundo, a criança tem sido vítima de toda a sorte de explorações, inclusive, e principalmente, de natureza sexual. No entanto, a sua denúncia tem tido pouco eco, abafada pelo complô do silêncio com que a sociedade, em geral, e os especialistas, em particular, têm procurado encobrir (Azevedo, 1988)

Segundo Freud (1913c), a rejeição pelo tema do incesto é, antes de tudo, produto da aversão que os seres humanos sentem pelos seus primitivos desejos incestuosos, hoje dominados pela repressão. Sabemos que, nos mitos, aos deuses é garantida a satisfação de todos os desejos a que as criaturas humanas têm de renunciar, tal como constatamos no caso do incesto. Na lenda, o desejo humano transforma-se em privilégio divino (Freud, 1932e). O que é representado como insultante a nossos mais sagrados sentimentos constituía costume universal, poderíamos chamá-lo de um uso tornado sagrado, entre as famílias dominantes do Antigo Egito e de outros povos primitivos (Freud, 1939f.

As descobertas da Psicanálise tornam a hipótese de uma aversão inata à relação sexual incestuosa totalmente insustentável. Demonstram, pelo contrário, que as mais precoces excitações sexuais dos seres humanos muito novos são invariavelmente de caráter incestuoso (Freud, 1913c). "A proibição de uma escolha incestuosa de objeto constitui, talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica do homem, em qualquer época, já experimentou" (Freud, 1930d).

Numa carta a Fliess, em 31 de maio de 1897, Freud escreve: "o incesto é antissocial e a civilização consiste na renúncia progressiva ao mesmo." A investigação psicanalítica mostra, no entanto, com que intensidade o indivíduo tem de lutar, nas fases de seu desenvolvimento, contra a tentação do incesto, e com que frequência a barreira é transgredida nas fantasias e, muitas vezes,  na realidade (Freud, 1915a).

A culpa decorrente da quebra de uma proibição tão enraizada e inerente ao ser humano, não pode deixar de estabelecer um papel marcante no mundo psíquico e, por consequência, em sua vida mental. "A criança psicologicamente é pai do adulto; os acontecimentos de seus primeiros anos de vida são de importância suprema em toda a sua vida posterior", afirmava Freud, no seu Esboço de Psicanálise (1940g).

Não podemos dizer que medida de atividade sexual na infância poderia ser descrita como normal, como não perniciosa, para o desenvolvimento posterior. A experiência permitiu-nos ainda comprovar que as influências externas da sedução podem provocar rompimentos prematuros da latência e até a supressão dela, comprovamos ainda que a atividade sexual prematura prejudica a educabilidade da criança (Freud, 1915a).

"A condição da eficácia patogênica de uma experiência é que ela precisa parecer intolerável ao ego e provocar um esforço defensivo" (Freud, 1906b). A essa defesa Freud remete a cisão psíquica. Não importam, portanto, as excitações sexuais que um indivíduo possa ter experimentado em sua infância mas, antes e acima de tudo, sua reação a tais vivências. Passemos, então, às questões ligadas às vivências do incesto pela criança.

 

O silêncio dos inocentes

O abuso sexual contra a criança é uma forma presente de violência doméstica, geralmente mantido em silêncio, mascarado pela revolta, pela conspiração dos sentimentos de impotência, passividade e submissão. Tem uma distribuição "democrática", ocorrendo em todos os níveis socioeconômicos (Santos, 1991). Nos últimos anos tem havido um aumento de consciência de que a frequência do incesto é mais alta do que se imaginava. Isso tem sido enfatizado pela literatura profissional, na prática clínica e nas agências de cuidados e proteção à infância, que têm numerosos casos relatados. Apesar disso, alguns profissionais ainda escutam os relatos de molestação sexual como fantasias.

Segundo Rosenfeld (1979), a linha de demarcação entre a fantasia e a realidade é geralmente obscura, pois a fantasia pode ser baseada em experiências reais familiares que foram deslocadas ou distorcidas. Embora pareça simples separar o que é incesto do que não é, a realidade das interações familiares confronta-nos com inúmeros dilemas.

Ferenczi, citado por Rosenfeld (1979), notou que muitas crianças pequenas que tinham de fato sido envolvidas sexualmente com adultos ficavam frequentemente confusas se o evento tinha realmente acontecido, uma confusão que foi atribuída a uma sobrecarga de sentimentos de desamparo acompanhados pela molestação. Tais confusões podem ser compreendidas não só em termos do desenvolvimento psicossexual e a repressão do que é traumático mas, também, em termos de fase do desenvolvimento cognitivo da criança.

Outra dificuldade na descrição e interpretação dos abusos sexuais em pesquisas é a falta de organização teórica e conceitual. O que é o incesto? A resposta para essa pergunta é bastante complexa e não existe uma concepção única a respeito. Segundo Cohen (1993), a palavra incesto deriva do latim incestus, que significa impuro, manchado, não casto, ou seja, in – não e cestus – puro.

Existem diversas interpretações quanto à definição do que seja um comportamento incestuoso, e o fato é que, devido à complexidade do tema, nenhuma delas se mostra totalmente satisfatória. No entanto, todas as interpretações têm em comum a repulsa ao ato incestuoso.

Forward e Buck (1989,) diferenciam a visão legal da visão psicológica. A definição legal trataria o incesto como a relação sexual entre indivíduos com um grau máximo de parentesco e que está proibida por algum código religioso ou civil. A abordagem psicológica deste fenômeno classificaria o incesto como qualquer contato abertamente sexual entre pessoas que tenham um grau de parentesco, por consangüunidade ou por afinidade, ou que acreditam tê-lo. Esta definição incluiria padrasto, madrasta, sogro, sogra, meio-irmão, avós e companheiros que morem junto com o pai ou a mãe, caso eles assumam a função de  pais.

O Centro Nacional para crianças abusadas e negligenciadas, com sede nos Estados Unidos, chama o incesto de abuso sexual intrafamiliar, o qual é perpetrado em uma criança por um membro do grupo familiar da criança e inclui não somente a relação sexual mas, também, qualquer ato que tenha por finalidade estimular a criança sexualmente ou usar a criança para a estimulação sexual do abusador ou de qualquer outra pessoa.

Visto que as diferentes definições enfocam diferentes ângulos, para definir o que é incesto, devemos nos questionar a partir de que vértice vamos avaliá-lo. Nosso trabalho tenta levantar alguns aspectos do desenvolvimento infantil, nesses casos.

A experiência do abuso sexual intrafamiliar assim como outras experiências traumáticas (como a guerra, campos de concentração etc.) chamam a atenção sobre o ajustamento cognitivo e afetivo do indivíduo. "O trauma, no sentido mais popular do termo, significa uma quebra de fé" (Winnicott, 1965a). Segundo Winnicott (1967b), "o trauma é um impacto provindo do meio ambiente e da reação do indivíduo a ele, que ocorre anteriormente ao desenvolvimento, por esse indivíduo, de mecanismos que tornem a experiência previsível". É aquilo contra o qual o indivíduo não possui uma defesa organizada, de maneira que um estado de confusão sobrevém seguido talvez de uma reorganização das defesas, estas de um tipo mais primitivo do que as que eram suficientemente boas antes da ocorrência do trauma (Winnicott, 1969c).

O trauma, portanto, varia de significado de acordo com o estágio de desenvolvimento emocional da criança. De início, o trauma implica um colapso na área de confiabilidade da criança em um meio ambiente. O resultado de tal colapso mostra-se no fracasso ou no relativo fracasso no estabelecimento da estrutura da personalidade e organização do ego (Winnicott, 1965a).

Para Cole e Putnam (1992), a maioria das vítimas de incesto se defronta com múltiplos aspectos desta experiência:

a) trauma físico e psicológico na forma de experiências sexuais atuais, incluindo violação do corpo;
b) extensos períodos de apreensão, culpa e medo nos contatos sexuais;
c) perda da confiança nas relações com pessoas emocionalmente significantes.

Observamos os efeitos de difusão e permanência do estresse no incesto nos mais importantes domínios do desenvolvimento da criança, especificamente em termos de desenvolvimento da autointegridade física e psicológica e no desenvolvimento de processos autorregulatórios, particularmente na regulação dos afetos e controle dos impulsos.

Schilder, citado por Arvanitakis (1993), conceituou imagem corporal ou esquema corporal para se referir a uma estrutura mental integrada da totalidade das experiências corporais, sensórias, motoras e afetivas. O desenvolvimento da representação do corpo é um processo dinâmico envolvendo desde o início os estágios psicossexuais. Está continuamente sujeito a reorganizações e elaborações sobre a ascendência de diferentes zonas erógenas e relações objetais associadas com elas.

Uma criança abusada sexualmente, recebendo diretamente sob o seu corpo o impacto do erotismo do agressor e os impulsos agressivos, deve ficar profundamente abalada pelo comportamento do agressor e por algumas das mudanças que ela pode perceber no corpo dele (pênis ereto, ejaculação etc.), em adição ao que ela experimenta no seu próprio corpo. A falta de controle e a inabilidade da criança para compreender claramente o que está acontecendo, frequentemente intensificado pelo comportamento de negação do agressor da sua contribuição nos eventos, levariam particularmente a uma dificuldade da criança não somente em manter algum nível de realidade, mas, também, em estabelecer uma clara diferenciação entre o seu corpo e o do seu abusador. Nas fantasias da criança, o corpo poderia tornar-se o local das mudanças aterrorizantes e misteriosas, estas gerando ansiedade. Segundo Arvanitakis (1993), tais representações persecutórias e prejudicadas do corpo podem levar a criança a múltiplas somatizações, ocasionalmente automutilações e tentativas de suicídio.

Os vários significados pelos quais a vítima de abuso sexual tenta descarregar, administrar ou defender-se contra a excessiva estimulação sobre o seu corpo e o efeito de tempestade que o acompanha, isto é, a dissociação e distanciamento, a autoestimulação e a automutilação, a repetição na fantasia e realidade – todos esses significados afetarão a representação corporal e, por conseguinte, a autorrepresentação.

Para Cole e Putnam (1992), o abuso sexual por um dos pais viola a crença básica da criança sobre segurança e verdade nas relações, causando distúrbios no julgamento e na habilidade de ter relações satisfatórias nas quais estejam envolvidos sentimentos de amor e proteção. De fato, o suporte social típico, nas famílias incestuosas, é a força do sofrimento.

O risco das vítimas de incesto que interfere no desenvolvimento normal não é estático. Diferenças individuais no ajustamento devem ser compreendidas em termos de processo de desenvolvimento. Cada transição de desenvolvimento proporciona à vítima oportunidade de reprocessar a experiência (Cole e Putnam, 1992).

Embora diferentes orientações teóricas possam ser ampliadas para o estudo do abuso sexual intrafamiliar na infância, alguns modelos necessitam incorporar uma perspectiva desenvolvimental. Por definição, o abuso na infância ocorre e em muitos casos persiste durante toda a infância. Assim, é necessário compreender a) como os efeitos do abuso sexual se manifestam em diferentes pontos do desenvolvimento; b) como os fatores do desenvolvimento influenciam específicos resultados; e c) como esse impacto na infância influencia o ajustamento mais tarde.

Vejamos, em síntese, alguns momentos do desenvolvimento e as consequências do incesto:

Primeira infância

As tarefas necessárias neste período para o desenvolvimento social e do ser são: a) a descoberta do mundo das pessoas e dos objetos; b) estabelecimento de relações sociais seguras na família; c) o estabelecimento de um sentido básico do ser; d) o desenvolvimento de uma consciência autônoma; e d) a aquisição de um sentido inicial de bom e mau.

O incesto nesta idade parece ocorrer com relativa baixa frequência comparado com outros grupos de idade. Crianças abusadas nesta etapa são incapazes de ter uma compreensão da impropriedade dos atos sexuais perpetrados contra elas, mas são afetadas pelos atos de trauma físicos, como a penetração de uma pessoa ou de um objeto. O mais importante é que o sentimento básico da criança de integridade física de um ser separado, confiança básica na resposta de amor e proteção dos pais e o sentimento de controle sobre os eventos está ameaçado.

Anos pré-escolares

Os anos pré-escolares são geralmente marcados pelas idades de dois a cinco anos ou pela entrada na escola, e eles marcam a transição da primeira infância para a segunda infância. Em termos de desenvolvimento pessoal e social, os desafios da criança são aprender a integrar seu sentimento de segurança de uma representação de si às restrições do mundo social.

Os pré-escolares são conscientes das regras básicas dos papéis sociais e se angustiam quando as regras são violadas. Os pré-escolares vitimados se refugiam na negação e na dissociação. A opção de se voltar para o outro adulto no sentido de buscar ajuda está limitada pela confusão sobre o que está acontecendo, sentimentos de culpa e vergonha e medo das consequências da descoberta. Alguns pais ameaçam ou aterrorizam suas crianças sobre a revelação. De fato, muitos casos de incesto na idade pré-escolar são reconhecidos através do conhecimento precoce da atividade sexual mais do que a autorrevelação. Além disso, o abuso sexual nessa idade compromete a continuidade da auto-organização e da autorregulação, que são os maiores desafios deste período.

Período escolar

O desenvolvimento pessoal e social é estabelecido em torno de um aumento da cognição e da competência social e do controle. Durante este período, a compreensão de si vai, gradualmente, incluindo a consciência do não alcançável, características psicológicas (pensamentos, sentimentos, motivações) e, mais profundamente, o sentido de comparação de si e dos outros. Por volta dos oito ou nove anos, a autocrítica e a consciência de sentimentos como vergonha e orgulho são mais evidentes. Durante este período, a criança também começa a desenvolver a habilidade de conceitualizar a si mesma como tendo qualidades positivas e negativas.

A média de idade em que o primeiro contato sexualizado entre pai e filha ocorre está entre os sete e nove anos. Na situação de abuso, a probabilidade de as vítimas aumentarem suas experiências sociais e estabelecerem um sentido de autocompetência no mundo social além da sua casa diminui. Intensa culpa, vergonha e confusão reduzem a probabilidade do sentimento de segurança suficiente para construir novas amizades e suporte social fora de casa. A impossibilidade de relatar realisticamente suas experiências emocionais e a falta de um modelo adequado de autocontrole flexível pelo menos em relação a um dos pais levam a criança a poder exibir um comportamento descontrolado ou variar entre a rigidez e o controle pobre. Embora a dissociação e a negação normalmente diminuam neste período, elas parecem permanecer elevadas nas crianças abusadas sexualmente. Estas circunstâncias interferem na integração de aspectos positivos e negativos do ser e numa avaliação realística de si mesma.

Adolescência

As mudanças físicas da puberdade envolvem ajustamentos psicológicos e sociais. assim como o indivíduo deve integrar a aquisição de características secundárias sexuais e alterações na forma de outros relatos ao adolescente de sua autodefinição e comportamento social. O desenvolvimento social durante este período é marcado pela transição das relações com o mesmo sexo e das relações com o sexo oposto. Claramente, a relação sexualizada com o pai representa uma experiência social altamente desviada, em um momento em que o adolescente está tentando absorver suas mudanças sexuais e explorar as relações com o sexo oposto.

A natureza do incesto sugere que esta integração não pode ser estabelecida. A confiança em atitudes relativamente imaturas de estratégias, as quais levam ao raciocínio, reflexão e planejamento, aumentam a probabilidade de agir impulsivamente quando frustradas, deprimidas ou ansiosas (tipicamente tendo condutas antissociais, como abuso de drogas, atuações sexuais, fugas e outros comportamentos autodestrutivos).

No que diz respeito ao abusador, vários são os disfarces do lobo mau (Veja, 1994). A criança vítima deste tipo de abuso precisaria ter pós- graduação em Psiquiatria, e nem assim, para adivinhar o que se passa na mente do lobo mau que a  agride sexualmente. Segundo Lencarelli (1996), o medo do lobo mau é um mito reativado em crianças e adolescentes que sofrem abuso sexual praticado por um adulto. O lobo é o símbolo da agressividade e da destruição. Uma de suas características mais conhecidas é o disfarce e a tentativa permanente de se mostrar familiar e inofensivo. A violência é o componente básico do imaginário do abusador. A sexualidade deste adulto é infantil e ele busca o prazer na fantasia de exercer o poder sobre a criança. Mais do que um distúrbio mental, o incesto configura uma relação de poder, que envolve raiva, ódio e rancor (Saffioti, 1994).

Essa forma de violência raramente deixa marcas visíveis, e a criança poucas vezes dela reclama, preferindo o silêncio. Essa atitude parece atingir a família, os amigos e, até mesmo, os profissionais de saúde. Considerado como um problema de saúde, o abuso sexual na infância é passível de prevenção. A primeira medida é quebrar a barreira do silêncio. As pessoas precisam se conscientizar de que este fenômeno existe.

 

Palavras finais

O abuso sexual na infância proporcionado na relação menor-família põe em cheque os tabus sociais relativos à vivência harmoniosa familiar, o respeito versus o amor materno e paterno e a crença de que o relacionamento entre os familiares e seus filhos ocorre assexuadamente. Traz ao público um sentimento constrangedor de que sexualmente se expõe criança e adulto à busca do prazer, mesmo que tal situação seja decorrente de um estado de família conflituosa ou de mente enferma. Uma mescla de tabu sociossexual que é quebrado de forma crônica, em que a criança, geralmente, é um agente de atenções ou bode expiatório de um relacionamento estremecido, ou, algumas vezes, esta mesma criança é "sedutora" o suficiente para "disputar" o sentimento materno ou paterno, disputa da qual ambos saem derrotados.

O abuso sexual da criança é um campo minado para todas as pessoas envolvidas, as que sofreram o abuso, as que abusaram e os profissionais envolvidos no tratamento e cuidados. É um problema genuinamente multidisciplinar. Segundo Furniss (1993), o abuso sexual requer um reexame dos procedimentos legais, coloca problemas de proteção à criança, promove e faz progredir aspectos de profissionalização no cuidado adotivo e desafia terapeutas de qualquer orientação e crença a reconsiderarem suas tarefas e técnicas de abordagem.

O abuso sexual da criança deve ser visto como uma questão dos direitos da criança, tanto como um problema de saúde e de saúde mental. O trauma do incesto pode acarretar uma ferida narcísica e uma regressão a modelos arcaicos de defesa. Como vimos, parecem faltar sistemas internalizados efetivos para a promoção e manutenção da autoestima e uma autorrepresentação estável.

Mas, o que é central no tratamento de crianças sobreviventes de abuso sexual? Podemos afirmar que é a crença na descoberta, integração e validação da mesma. A importância da descoberta e integração de memórias traumáticas, com seus afetos associados, assim como a validação do trauma do paciente são fundamentais. Tais atitudes poderão aumentar a tolerância, o controle dos impulsos, a organização de defesas, uma autoidentidade integrada e a capacidade para relações interpessoais mais sinceras.

Finalizando, gostaria de citar Freud, que deu um impulso enorme à compreensão dos aspectos sexuais na infância:

Embora a humanidade tenha efetuado avanços contínuos em seu controle sobre a natureza, podendo esperar efetuar outros ainda maiores, não é possível estabelecer com certeza que progressos semelhantes tenham sido feitos no trato dos assuntos humanos (Freud, 1927d).

 

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