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Estudos Interdisciplinares em Psicologia
versión On-line ISSN 2236-6407
Est. Inter. Psicol. vol.5 no.2 Londrina 2014
Artigos
DOI: 10.5433/2236-6407.2014v5n2p2
Discurso universitário e função do estágio na clínica-escola: contribuições da psicanálise
University discourse and the function of supervised stage in clinic-school: contributions from psychoanalysis
Discurso de la universidad y función de la pasantía en la clínica escuela: contribuciones del psicoanálisis
Rosane Zétola Lustoza*; Nadja Nara Barbosa Pinheiro**
Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná - UFPR
Resumo
A transmissão da Psicanálise na universidade é questionável, pois existe uma tensão entre as normas que regulam o discurso universitário e o discurso analítico. Pretendese assinalar alguns limites e possibilidades do trabalho com a Psicanálise na universidade. Inicialmente, apresentam-se aqueles dois discursos com base na teoria lacaniana. A seguir investiga-se o modelo de avaliação como uma versão contemporânea do discurso universitário, no qual as questões da subjetividade são silenciadas em proveito da valorização da quantidade de saber. Por último, elege-se o estágio supervisionado como momento privilegiado para pensar a questão da transmissão da Psicanálise na universidade. Conclui-se que, apesar das dificuldades experimentadas no trabalho, a práxis na clínica-escola tem uma função positiva, pois requer do estagiário maior responsabilidade com sua prática.
Palavras-chave: psicanálise; universidade; estágio supervisionado.
Abstract
The transmission of Psychoanalysis at the university is questionable because there is a tension between the rules that governs the university discourse and analytic discourse. The article intends to point out some limits and possibilities of working with Psychoanalysis at the university. Initially features two discourses based on Lacanian theory. Following, it investigates the valuation model used in universities as a contemporary version of university discourse. In this model, the issues of subjectivity are silenced in favor of valuing quantity of knowledge. Finally, the article elects supervised stage as a privileged moment of the transmission of Psychoanalysis at the university. Despite the difficulties, we conclude that clinical experience acquired at clinical-school has a positive function because it requires that the intern be responsible for his/her practice.
Keywords: psychoanalysis; university; supervised stage.
Resumen
La transmisión del psicoanálisis en la universidad es cuestionable, ya que hay una tensión entre las normas que regulan el discurso universitario y el discurso analítico. Se pretende señalar algunos límites y posibilidades de trabajo con el Psicoanálisis en la Universidad. Inicialmente, se presentan aquellos dos discursos sobre la base de la teoría lacaniana. A continuación se estudia el modelo de evaluación como una versión contemporánea del discurso universitario, en el que las cuestiones de la subjetividad son silenciadas en favor de la valoración de la cantidad de conocimiento. Por último, se eligió las pasantías supervisadas desde la universidad como un momento privilegiado para reflexionar acerca de la transmisión del psicoanálisis en la universidad. Llegamos a la conclusión que, a pesar de las dificultades experimentadas en el trabajo, la praxis en la clínica de la universidad tiene un papel positivo ya que requiere del aprendiz más responsabilidad con lo que hace en su pasantía.
Palabras clave: psicoanálisis, universidad, pasantía supervisada.d.
Introdução
Este trabalho nasceu de uma reflexão sobre a experiência das próprias autoras como supervisoras em clínicas-escola de universidades públicas. A prática da Psicanálise no contexto de uma instituição pública possui especificidades que exigem pensar as possibilidades e limites do trabalho nesses contextos.
Aborda-se aqui inicialmente a dificuldade da transmissão da Psicanálise na universidade, já que os discursos psicanalítico e universitário são regidos por éticas diferentes, sujeitos a regras e finalidades distintas. Serão expostas algumas características que diferenciam os dois discursos, a fim de circunscrever pontos de tensão entre eles que acabam vindo à tona no espaço da instituição. Num segundo momento, pretende-se ressaltar também as possibilidades de transmissão na universidade, enfatizando o papel privilegiado exercido pelo estágio supervisionado. Este propicia ao estudante experimentar a insuficiência do conhecimento teórico aprendido, advertindo-o para a necessidade de buscar uma modificação de si, condição indispensável à prática psicanalítica.
O DISCURSO UNIVERSITÁRIO: CARACTERIZAÇÃO
A fim de caracterizar o discurso Universitário, partiremos de Lacan (1969/1992) e de sua proposição sobre o discurso do Mestre, já que este fornece a base para os outros três discursos: o Universitário, o da Histérica e o do Analista. O ponto de partida da teoria dos discursos é que um sujeito não tem sua existência garantida pela sua mera presença no mundo ou em virtude de suas propriedades empiricamente dadas. É preciso que sua identidade passe pelo crivo de uma autoridade qualquer para que o sujeito obtenha uma certificação quanto ao que ele é. O sujeito precisa ser batizado por uma instância simbólica que confira uma legitimação ao seu ser. O que o discurso do Mestre instala é uma cisão a partir da qual a presença de um sujeito em sua positividade imediata é cancelada e sua definição passa a depender da chancela de uma instância simbólica autenticadora.
Ressalte-se que a teoria lacaniana dos discursos se situa nas antípodas das teorias representacionalistas da linguagem. Segundo estas, um enunciado tem por função essencial a descrição de um estado de coisas, cuja verdade é suscetível de ser confirmada ou negada pela experiência. Nada mais antinômico à natureza do discurso do Mestre; seria possível nos servirmos neste ponto da teoria austiniana dos atos de fala e apreender a mestria, não como um enunciado constatativo, que representa como as coisas são; mas sim performativo, que faz com que as coisas venham a ser de certo modo. Quando se diz: "Você é minha mulher", tal declaração não é uma representação de um fato, mas ela faz com que certo fato venha a ser. A declaração emitida pelo Mestre tem valor fundacional, de instituir uma nova realidade, a qual não existia antes do ato de fala. "Enunciar uma frase declarativa não é sempre descrever uma realidade já dada, mas, em certos casos, é instaurar uma nova realidade" (Récanati, 1979, p. 100). Ou seja, no gesto do Mestre existe um caráter de antecipação, pelo qual algo apenas possível passa a valer como se já fizesse parte da realidade. O Mestre interpela o sujeito para que ele venha a ser algo que ainda não é, produzindo uma transformação no sujeito, o qual doravante se inscreverá no âmbito de um significante fundamental.
Quais razões fundam a autoridade do Mestre? Não há qualquer garantia de que os enunciados do mestre devam ser seguidos pelo sujeito, nenhum critério exterior que permita validar tais proposições e avaliar se há razões suficientes para aceitá-las. Por isso "qualquer enunciado de autoridade não tem ele outra garantia senão sua própria enunciação" (Lacan, 1960/1998, p. 827). Não existem meios de o Mestre proferir uma lei e ao mesmo tempo oferecer as credenciais da sua legitimidade. Zizek (2009) fornece um bom exemplo que mostra como o gesto inaugural do Mestre é uma decisão tomada no escuro, onde a escolha de uma direção de ação (S1) jamais encontra no saber que a justifica (S2) uma razão suficiente:
O que é um Significante-Mestre? Nas últimas páginas da sua monumental Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill reflete sobre o enigma da decisão política: depois de os especialistas (analistas econômicos e militares, psicólogos, meteorologistas...) apresentarem as suas múltiplas, muito elaboradas e complexas análises, alguém tem de assumir o simples, e por essa mesma razão extremamente difícil, ato de transpor essa intrincada multiplicidade de pontos de vista, segundo os quais para cada razão pró há duas razões contra e vice-versa, em um simples e decisivo Sim ou Não. (...) Este gesto decisivo que nunca poderá ser plenamente fundado sobre uma ordem de razões é o do Mestre (Zizek, 2009, p. 38).
Este exemplo põe a nu justo aquilo que normalmente fica oculto: tanto o mestre quanto seu súdito precisam se cegar para a insensatez de sua escolha ou para a falta de um fundamento que a caucione adequadamente. O discurso do Mestre só funciona bem na medida em que a sua falta ficar escondida sob a barra do recalque. Na medida em que um Mestre fala em última instância a partir de um desejo, é precisamente a sua posição de enunciação que precisa permanecer desconhecida a fim de seu enunciado funcionar eficazmente.
Já o discurso da Universidade pressupõe o gesto inicial do Mestre e repousa sobre ele. O saber ligado a um discurso qualquer (ex, psicanálise, behaviorismo, psicologia analítica) só pode se sustentar porque se autoriza em algum Mestre (Freud, Skinner, Jung). Só que a operação característica do discurso Universitário é ser enunciado sob um ponto de vista "neutro", desconhecendo sua dívida com o gesto inaugural do Mestre. Os saberes tornam-se equivalentes, homogêneos, sem que qualquer um possa se sobressair. Não importa, por exemplo, perguntar onde está a verdade; é exigido do estudante apenas repetir as lições mecanicamente, enfileirando as teses de cada autor de forma horizontal. Por sua vocação pluralista e democrática, o discurso Universitário funciona acolhendo as diferenças, mas o preço que se paga pela aceitação indiscriminada é o de rebater as diferenças num mesmo plano, onde todos os gatos são pardos e não importa mais a relação com a verdade desse saber.
Diferentemente das Escolas filosóficas gregas, nas quais o discípulo buscava nos ensinamentos dos grandes filósofos uma orientação quanto a como se conduzir na vida (Hadot, 2004), na escola moderna há a busca de saber tudo (Lacan, 1969/1992), de um acúmulo indiferenciado de saber. A antiga preocupação como uma orientação para a existência é substituída pelo afã de erudição. Busca-se a informação em vez da formação. Fomenta-se a acumulação de um volume de informações massificante, ou até mesmo o exercício hipertrofiado da inteligência; não há a preocupação com um saber que toque numa verdade subjetiva.
O saber universitário se dirige ao estudante, colocado aí na posição de tabula rasa, ou seja, de uma folha em branco sobre a qual se depositam impressões. Ao estudante colocado em condição passiva caberá assimilar e reproduzir o saber – motivo pelo qual Lacan o situa na posição de objeto. No entanto, há um excedente que o discurso Universitário confessa não poder dominar, e que aparece como uma questão endereçada ao Outro institucional pelo estudante: angustiado ao ser excluído como sujeito, ele elevará seu incômodo ao estatuto de uma pergunta – precisamente aquelas que a academia lhe ensinou a não fazer, como por exemplo: 'Quem tem razão, Freud ou Skinner? Professor, tudo isso que você ensina é muito interessante, mas queria saber uma coisa: o que você pensa disso? Gostaria de saber: como isso vai mudar a minha vida?’.
O DISCURSO DA AVALIAÇÃO NA UNIVERSIDADE
Hoje em dia, está em voga uma versão do discurso universitário que é o regime da avaliação. A atividade do conhecimento científico tem sido julgada muito menos em termos de sua contribuição qualitativa do que pela sua repercussão quantitativa. Há uma hipervalorização da quantidade - de artigos, de livros, de alunos, de provas, pouco importa - por meio do que se tenta tornar visível algo que de forma alguma o é: o valor de um trabalho intelectual. Tal regime afeta tanto o trabalho docente quanto o discente.
Em "Você quer mesmo ser avaliado?" (Miller & Milner, 2006), para os autores o paradigma contemporâneo da avaliação tem dois pressupostos:
1) a de que elementos distintos podem ter suas diferenças desprezadas e ser comparados, abolindo-se aquilo que os torna únicos e selecionando o que tem de comum. Trata-se de medir os objetos, tomando-os como termos homogêneos que pertencem à mesma série. Por exemplo, não importa muito a contribuição de um artigo para um campo de discussão, mas apenas a quantidade que se conseguiu publicar.
2) a de que toda demanda que chega à universidade deve ser acolhida, como, por exemplo, a ideia de que a universidade 'deve atender às exigências do mercado’, ou 'deve contribuir para o bem estar bio-psico-social’. Está em ação um paradigma da demanda/resposta à demanda, quando Lacan nos ensinou justamente que não há complementaridade entre uma e outra. Ou seja, a demanda pede algo, mas aquilo que ela pede não é jamais aquilo que poderia saciá-la. Para a Psicanálise, a falta que nos move não pode ser aplacada por nenhum objeto da realidade empírica. Acreditar demais na demanda nos torna reféns de um jogo que nunca se encerra, pois ao tentar atender àquilo que é pedido descobrimos que as solicitações prosseguirão infinitamente. No caso em exame, o regime da avaliação na universidade submete o sujeito a solicitações que se multiplicam em rede, de tal maneira que o que se faz fica geralmente aquém das exigências feitas pelo Outro. Portanto, não é o objeto da demanda o que está em questão.
Dentro do paradigma da avaliação na universidade, é notável que os meios se tornam mais importantes que os fins. O instrumento da avaliação torna-se mais importante do que aquilo que se pretende avaliar. Um exemplo tornará sensível este ponto: se o professor anuncia que no fim da aula haverá um teste para avaliar o que foi aprendido, os estudantes direcionarão toda a sua atividade para meta a ser cumprida: as perguntas visarão o conteúdo provável do exame, com desprezo por tudo o que for impertinente para o objetivo; toda e qualquer errância será economizada em proveito da maximização do tempo e da poupança de esforço inútil. Com isso consegue-se algum saber; mas a relação com o saber será do tipo instrumental, em que o valor de verdade importa pouco, apenas contando o valor de troca do saber (o quanto se pode ganhar com ele).
A avaliação padece ainda de um vício lógico de origem, já que ela pressupõe aquilo que deveria provar: o valor do critério adotado. É com este critério que ela passará a medir, só sancionando como bom aquilo que ela já prejulgava como desejável. Ou seja, a avaliação é um semblante de ciência, pois falta a ela o requisito mínimo que uma pesquisa científica deve atender: ela deveria poder ser corrigida pela autoridade da experiência – coisa que jamais acontece. Só são premiados na saída aqueles que a avaliação desde a entrada já reconhecia como bons.
OS LIMITES DO SABER UNIVERSITÁRIO: IMPORTÂNCIA DO ESTÁGIO NA CLÍNICA-ESCOLA
Recordemos que o sujeito no discurso Universitário desempenha o papel de um incômodo excesso que aquele discurso não consegue amestrar. Ora, este sujeito dividido, que não se reconhece nem encontra um lugar onde se alojar no vasto corpo de conhecimentos que a academia lhe propõe, será justamente o alvo visado pelo discurso analítico. O analista irá valorizar justamente aquilo que funciona como pedra no sapato que emperra o funcionamento da máquina burocrática universitária: o sujeito e suas impertinentes perguntas, todas elas incidindo justo sobre o ponto sobre o qual não há um saber que venha acudi-lo. Quem sou eu? Qual o propósito do saber? Qual a responsabilidade de cada um frente ao que se sabe e ao que não se sabe? Conforme a Psicanálise, essas perguntas endereçadas pelo sujeito não encontram no campo do Outro uma resposta adequada, o que põe a nu o ponto em que falta um saber no Outro. O Outro não é uma bateria de significantes completa, falta um significante que poderia dar ao sujeito uma orientação definitiva quanto ao seu desejo.
Apesar das limitações da universidade, ela é um dos espaços de discussão que tornam presente a Psicanálise na cultura. É evidente que não se trata para o professor de atuar em sala de aula como psicanalista; nem de pensar que uma aula poderá substituir um tratamento analítico; tampouco supor que sua função seja a de formar analistas. Apesar disso, a Psicanálise na universidade pode ter o importante papel de incluir a castração, a falha, a falta em qualquer debate, tentando fazer presente uma nova relação do homem com o resto incômodo que contraria seus Ideais. O desafio para o analista inserido na universidade é criar condições para que o ambiente massificado e asfixiante da instituição universitária possa permitir de vez em quando uma abertura para um outro discurso, em que a pergunta do sujeito não seja apressadamente calada e possa vir à tona em sua dignidade.
Não se trata de negar que o analista tenha na universidade um duplo vínculo conflitivo, ao discurso Universitário e ao discurso do Analista; mas sim de lembrar que o analista pode contribuir para fazer circularem os discursos na Universidade, sabendo que não há fórmulas prontas nem fáceis para se conseguir isso. A possibilidade de se transmitir algo da psicanálise na universidade está ligada à possibilidade de os analistas apontarem a existência de um saber que não se endereça à Verdade do Mestre, mas à verdade do sujeito.
Entrando no campo mais específico da formação em Psicologia, notemos que a insuficiência do saber teórico ministrado pela universidade é de certa forma reconhecida pela instituição, na medida em que ela dá oportunidade de complementar a formação mediante uma atividade prática, o estágio nas clínicas-escola.
O estágio encontra-se evidentemente inserido na lógica universitária: o estudante está subordinado à regulamentação que vigora nas disciplinas da graduação, o que significa que terá de cumprir uma frequência mínima de 75%, receberá uma nota por seu desempenho, etc. Essa condição, por si só, já parece colocar o estagiário no lugar de subserviência a princípios que não são os do discurso Analítico. Mas o estágio é também uma oportunidade rara para que essa lógica seja subvertida e um trabalho em outros moldes possa surgir. Trabalhando com a escuta de cada estagiário, um a um, a supervisão pode ser o espaço privilegiado da ética analítica: uma falha do estagiário não é algo a ser punido, mas escutado analiticamente – mesmo que seja para remeter o assunto à análise pessoal do aluno. É o espaço onde o erro, a falha e a falta podem ser recebidos sem o Ideal esmagador do discurso universitário.
O estágio clínico coloca o estudante em posição de falta, ao se deparar com a insuficiência e as limitações daquilo que aprendeu na graduação. Como lembram Tarré de Oliveira e Barros (2003), para muitos alunos o estágio acaba funcionando como o momento em que ele realmente decide procurar uma análise. Ele se torna um ponto de virada, onde o estudante decide levar mais a sério sua opção pela psicanálise, frequentando grupos de estudo ou entrando numa escola de psicanálise. Ou, pelo contrário, o estudante pode retificar essa primeira escolha, buscando outras áreas da clínica ou da psicologia. Isso "não deixa de ser visto como mais um dos efeitos analíticos da supervisão, evocando a responsabilidade do sujeito pela sua escolha" (p. 179).
Uma demanda comum dos estagiários é que o supervisor lhes forneça uma técnica, entendida aqui como um procedimento padrão que poderia remediar sua ausência de saber. O interessante é que, mesmo quando o supervisor orienta sobre qual intervenção a ser feita, o aluno só consegue agir dentro dos limites de sua condição subjetiva. Ele compreende o que é dito pelo supervisor somente até o ponto onde foi sua própria elaboração de saber; ele só poderá intervir no caso na medida em que for capaz de suportar as consequências do seu ato. Como é frequente ouvirmos dos estagiários: 'Sei que deveria ter dito isso, mas não tive coragem de fazer!’. É por isso que a psicanálise não é uma pura técnica, mas principalmente uma ética: não é possível ensinar um procedimento padrão ou protocolo a ser executado pelo aluno porque a sua subjetividade não pode ser anulada na condução do tratamento.
ATUAÇÃO NA CLÍNICA-ESCOLA: LIMITES E POSSIBILIDADES DO TRABALHO
Até que ponto é possível a prática da Psicanálise numa clínica-escola? A pergunta se coloca por tratar-se de um contexto de atuação que impõem algumas condições específicas que lançam indagações importantes para o trabalho clínico. Ressaltamos três características, entre outras possíveis, que encontramos geralmente numa clínica-escola: a questão sobre o pagamento pelos atendimentos; a impossibilidade de se exigir que o estudante faça uma análise pessoal; a determinação prévia de um prazo para o encerramento dos atendimentos. Façamos algumas ponderações sobre cada uma dessas características.
a) Em todas as clínicas-escolas a questão do pagamento pelos atendimentos se mostra presente. Em algumas instituições o atendimento é gratuito, em outros se solicita uma "colaboração simbólica" por parte dos pacientes. Acreditamos que, independentemente de trabalharmos com uma ou outra alternativa, o mais importante, em todos os casos, é o fato de termos um atravessamento institucional no acordo perpetrado entre aluno e paciente em relação ao pagamento, inserindo na relação clínica algumas conseqüências que podem se apresentar como poderosas resistências ao tratamento. Freud (1913/1986) nos asseverava que o dinheiro é uma força poderosa que atua contra as resistências ao trabalho: o pagamento materializa de forma clara uma perda, que seria simplista reduzir à perda de satisfação (sob forma do consumo de bens) do qual se precisa dispor para frequentar o divã. A leitura deve ser aqui mais ampla, ao fazer a correspondência entre esse ônus e a perda de vitalidade que toda neurose acarreta. O paciente experimenta em seu sintoma uma satisfação, mas uma satisfação que lhe é mortífera, pois, entre outras coisas, paralisa sua vida. O dinheiro dá expressão contábil ao custo que o adoecimento acarreta; ele é o equivalente quantitativo do excesso de satisfação presente em toda patologia. Entregar dinheiro ao Outro é livrar-se de certo excesso que custa caro manter. A ideia é que o dinheiro possa atuar como um acelerador da análise, para que o paciente se livre mais rápido da dieta que a neurose lhe impõe. Se o estagiário não pode cobrar, ou se o que ele cobra é regulado pela instituição, ele se vê privado de uma ferramenta técnica fundamental no trabalho contra a resistência. Há também a ideia de que o dinheiro atua como um regulador para o próprio analista: este não está ali para obter satisfação própria e usar seu paciente como um objeto de estudo ou de curiosidade, ou para aumentar seus conhecimentos sobre os conceitos psicanalíticos. Ele se faz pagar pelo serviço que oferece.
A ausência do dinheiro como regulador acarreta ainda outro risco: quando o analista não cobra, ambos – tanto o paciente quanto o analista- correm o risco de achar que se está ali por caridade, abnegação, em suma, por amor. Se o analista está ali por amor ao próximo, provavelmente temerá dizer aquilo que contraria os ideais do paciente e o poupará de certas intervenções, buscando com isso preservar sua condição de objeto de amor. Em contrapartida, o amor do analista gerará no paciente a demanda de se fazer amar.
Essa não é de forma alguma a meta do tratamento, pois sabemos que o amor é uma solução fracassada para curar a nossa falta-de-ser. Não sei quem eu sou, e quero ser amado para que o Outro me dê uma resposta à questão do meu ser, encobrindo com isso o inominável em mim mesmo. O sujeito ama narcisicamente para não querer saber de uma dimensão nele que prescinde da autorização do Outro, pela qual ele é responsável: o desejo e o gozo.
Contrário ao atendimento da demanda de amor, Freud (1915/2006) pregava a abstinência do analista. O intuito é preservar no analista a condição do querer saber, para assim fazer com que o paciente queira também saber de seu inconsciente. A abstinência se sustenta, assim, em uma posição ética e não no plano da moralidade social.
É comum também encontrar em alguns estagiários a ideia de que a ausência de pagamento pode autorizar uma diminuição de sua responsabilidade. O raciocínio segue a seguinte lógica: Já que sou um iniciante e sinto-me tão pouco à altura da minha tarefa, é um alívio que meu paciente não pague, pois assim não fico devendo nada a ele. O que está em questão aqui não é se esta percepção do estagiário sobre si mesmo é correta ou não; o que nos parece problemático é que o aluno se sinta aliviado da sua culpa pelo fato de o paciente não pagar. Lembremos que a culpa é um sinal de que o estagiário tem a dimensão da responsabilidade por seu ato. Nesse sentido, a análise não visa suprimir ou recalcar a culpa, mas fazer trabalhar a culpa para transformá-la em responsabilidade.
b) A impossibilidade de exigência de uma análise pessoal por parte dos estagiários como requisito para conduzirem um trabalho analiticamente orientado nos estágios às vezes é tomada como indicativo de sua impossibilidade. Se o estagiário não faz análise, sua escuta sobre as questões inconscientes de seus pacientes fica limitada pelos "pontos cegos" do próprio estagiário. Entendendo aqui "pontos cegos" como os conflitos inconscientes daquele que conduz o tratamento e que devem ser trabalhados em sua análise pessoal, de forma a ampliar os horizontes de sua escuta clínica. Em contrapartida, não trabalhar analiticamente suas questões inconscientes pode fazer com essas se apresentem, ao longo de um trabalho clínico, como pontos impossíveis de serem escutados e trabalhados em prol dos pacientes. Não é difícil, portanto, perceber porque a resistência mais importante à análise é a resistência do próprio analista: resistência que se exprime ao querer curar ferozmente, ao não fazer um trabalho com seu próprio inconsciente, ou até ao não querer perceber que o paciente não deseja fazer uma análise.
Apesar de essa dificuldade ser bastante acentuada na condução dos atendimentos, acreditamos que tal dificuldade não implica em uma impossibilidade. Em nossa experiência, verificamos que no próprio movimento do trabalho clínico os estagiários frequentemente se convencem da necessidade de se submeterem à análise. Outros podem também abandonar a psicanálise como fundamento de sua clínica, na medida em que as questões do inconsciente não fazem sentido para eles. Destacamos, novamente, o valor do estágio no sentido de implicar o aluno em uma escolha e responsabilizá-lo por um trabalho, posicionando-o em um lugar de sujeito de suas ações e decisões.
c) O contrato por tempo determinado reveste o atendimento de características peculiares. Como afirmam Pinheiro e Darriba (2010), a lógica que rege o estágio clínico na universidade é a de uma transição sem ruptura: ao final do estágio, o paciente seria encaminhado, seja para um outro aluno da turma seguinte, seja para o próprio estagiário recém-formado em seu consultório particular, como se não houvesse um corte na passagem de um a outro. Ora, qualquer que seja o encaminhamento ele representa, sim, uma ruptura, não só para o paciente, mas sobretudo para o recém-formado psicólogo, que deverá decidir se deseja sustentar uma análise com base na transferência que agora se dirige a ele, não mais à instituição. Tal passagem não se dá sem resto, colocando o sujeito na posição de uma falta que o saber teórico da universidade não pode remediar. Dessa forma, os autores concluem que o fato de haver um prazo para o encerramento dos atendimentos na clínica-escola deve ser considerado como um convite ao trabalho sobre o resto e a falta, e não um motivo para obliterá- los, com isso fechando a porta às possibilidades de uma análise.
Destacamos ainda outro complicador, ligado ao final do estágio. Freud (1913/1986) já salientava a importância do estabelecimento de um campo de confiança do paciente ao analista, para que aquele se entregue ao difícil exercício da livre associação. O que temos percebido é que, a partir do momento em que o estagiário anuncia a proximidade do encerramento, o paciente pode se sentir ameaçado de abandono, o que leva a uma obstaculização da associação livre. Uma difícil equação aqui se apresenta, que será algumas vezes intransponível, mas outras vezes não. E o próprio trabalho, ao longo de seu desenvolvimento, vai abrindo espaço para que a confiança se estabeleça no horizonte da possibilidade.
CONCLUSÃO
Ao mesmo tempo em que promove a multiplicação dos saberes, o Discurso Universitário suspende a decisão quanto ao valor de verdade daqueles. O estudante é considerado aqui como objeto, na medida em que lhe cabe apenas repetir e assimilar obedientemente as lições, sem se indagar sobre o sentido daquilo que lhes é ensinado. Por essa razão, as perguntas dos estudantes devem ser entendidas como sintoma da instituição universitária, pois sinalizam a subsistência de algo que se quis proscrever: o sujeito e a sua ausência de representação adequada no campo do saber do Outro.
O estágio na clínica-escola é o campo onde o saber ensinado oficialmente pelo grande Outro da instituição universitária revela sua impotência fundamental em lidar com os problemas da prática clínica. No momento do estágio, há uma singular junção entre, por um lado, um desamparo teórico, por outro, uma urgência que solicita a ação (já que o estudante precisa decidir que intervenção fará). A supervisão na clínica-escola pode ser o espaço privilegiado em que esse mal-estar sirva como impulsionador de uma nova posição. Primeiro, porque só ao encontrar a insuficiência do seu saber um analista pode se abrir àquilo que o caso pode ensinar. Segundo, porque, ao se deparar com os impasses da clínica, o estagiário pode se convencer da necessidade de fazer ele mesmo o percurso da análise. Por último, porque o contato com o supervisor pode levar o aluno ao encontro de outra forma de lidar com a falta, em que esta possa ser motivo de um bem-dizer.
Referências
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Recebido em: 28/07/2014
Revisado em: 05/10/2014
Aceito em: 11/11/2014
Endereço para correspondência
e-mail: rosanelustoza@yahoo.com.br, nadjanbp@hotmail.com