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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versión On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.12 no.1 Londrina ene./abr. 2021

https://doi.org/10.5433/2236-6407.2021v12n1p95 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O trabalho reestruturado na agroindústria canavieira: impactos à saúde dos trabalhadores rurais

 

Restructured work in the sugarcane agribusiness: impacts on the health of rural workers

 

Trabajo reestructurado en la agroindustria de la caña de azúcar: impactos en la salud de los trabajadores rurales

 

 

Cassiano Ricardo Rumin; Vera Lucia Navarro

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP)

 

 


RESUMO

O trabalho rural na canavicultura brasileira é marcado pela penosidade, espoliação e a disparidade de direitos. O objetivo deste estudo foi discutir como o trabalho reestruturado na canavicultura ocasionou impactos à saúde dos trabalhadores rurais canavieiros. A metodologia envolveu a análise de dados secundários do site da Previdência Social sobre as condições gerais de saúde, a morbidade e mortalidade ocupacional dos trabalhadores rurais canavieiros. Conclui-se que a equiparação de direitos entre trabalhadores rurais e urbanos abrangeu os valores das aposentadorias e a restrição da informalidade, sem, no entanto, ocasionar melhorias no padrão geral de saúde dos trabalhadores rurais canavieiros, já que a combinação do trabalho de intensidade elevada, com extensas jornadas e de remuneração flexível, contribuiu para a precocidade da degradação da saúde.

Palavras-chave: trabalhadores rurais;agroindústria;saúde do trabalhador; envelhecimento; aposentadoria.


ABSTRACT

Rural work in the Brazilian sugarcane sector is marked by hardship, exploitation and imbalanced rights. The objective of this study was to discuss how the restructured work in sugarcane had impacts on the health of sugarcane workers. The methodology involved the analysis of secondary data were obtained from the Social Security website, on the general health conditions, occupational morbidity and mortality of sugarcane workers. It is concluded that the equalization of rights between rural and urban workers covered the amounts of pensions and the restriction of informality, without, however, causing improvements in the general health standard of rural sugarcane workers, as the combination of high-intensity work, long hours and flexible pay contributed to the early deterioration of health.

Keywords: rural workers; agroindustry; occupational health; aging; retirement.


RESUMEN

El trabajo rural en la cana de azúcar brasilena está marcado por dificultades, despojos y disparidades de derechos. El objetivo de este estudio fue discutir cómo el trabajo reestructurado en la cana de azúcar tuvo un impacto en la salud de los trabajadores rurales de la cana de azúcar. La metodologia incluyó el análisis de datos secundarios del sitio web de la Seguridad Social sobre las condiciones generales de salud, la morbilidad y mortalidad ocupacional de los trabajadores rurales de la cana de azúcar. Se concluye que la igualación de derechos entre los trabajadores rurales y urbanos cubrió los valores de las pensiones y la restricción de la informalidad, sin embargo, sin causar mejoras en el estándar general de salud de los trabajadores rurales de la cana de azúcar, ya que la combinación de trabajo de alta intensidad, con largas horas y remuneraciones flexibles, contribuyó al deterioro temprano de la salud.

Palabras clave: trabajadores rurales;agroindustria;salud ocupacional; envejecimiento; jubilación.


 

 

INTRODUÇÃO

A produção canavieira no Brasil teve em sua origem a utilização de trabalho escravo para disseminar o modelo de monocultura exportadora de açúcar. A catequização dos indígenas pelos jesuítas, como destacado por Gohn (2003), contribuiu para que os indígenas fossem empregados como mão-de-obra nos canaviais. Por outro lado, a resistência dos indígenas à escravidão exercida pelo colonizador levava a ataques as propriedades agrícolas com o intuito de libertar os escravizados e havia tentativas recorrentes de fugas, pois, para o colonizado: "esse mundo encolhido, semeado de interdições, só pode ser questionado pela violência aberta" (Fanon, 2005, p. 53). Talvez por isso, a resistência dos indígenas à escravidão pode ter contribuído para a decisão de escravizar outros povos para mover a monocultura canavieira no Brasil. A escravidão como categoria jurídica de exploração do trabalho permitida no Brasil subjugava qualquer indivíduo, independente da origem do escravizado, bastando apenas que fosse possível estabelecer o controle coercitivo nas atividades desempenhadas. Dessa forma, poderia ser estabelecido o controle coercitivo onde houvesse atividades intensivas em esforços e que o desempenho pudesse ser avaliado de forma quantitativa (Versiani & Vergolino, 2003). Por outro lado, os autores afirmam que nas atividades como a fabricação do açúcar, a recuperação de fragmentos de ouro ou diamante ao meio ao cascalho das minas, atividades artesanais, trato do gado ou mesmo as atividades domésticas, exigiam-se habilidades que não possibilitavam o controle exclusivamente pelos recursos coercitivos, sendo: "mais eficiente, nesse caso, angariar a cooperação desse agente com recompensas, antes que por coerção" (Versiani & Vergolino, 2003, p. 357). Integram-se às atividades que demandariam formas de controle não coercitivo, o trabalho nas lavouras para alimentação dos escravos e seus proprietários. Nesse caso, eram estabelecidos períodos destinados ao roçado ou ainda: "que o escravo tivesse uma atividade remunerada em dias de folga; o compartilhamento da receita auferida, no caso dos escravos 'de ganho'; a promessa de alforria - tudo isso são exemplos de incentivos positivos, de que há abundante evidência histórica" (Versiani, 2007, p. 171). A articulação das leis divinas ao contexto escravagista criava porosidades para se estabelecer ao menos o dia de descanso, em razão de representar um preceito religioso (Viotti, 2019). No entanto:

"Até mesmo a compra da alforria pelo cativo podia ser lida como concessão senhorial - desde a doação do tempo e das condições para formar o pecúlio e a concessão do reconhecimento daquela propriedade até a concordância com a alforria mediante indenização" (Castro, 1997, p. 354).

Destaca-se a perspectiva de concessão senhorial nos canaviais da Bahia mesmo nas situações de alforria, pois: "a título de concessão de um lote de terras, passou a lhes cobrar tributos pela condição de posseiros" (Castellucci Junior, 2010, p. 208). Estabelecida em 1888, a abolição da escravatura negra demandou a fixação dos trabalhadores livres às fazendas canavieiras pelo acordo de "cambão" que consistia no "fornecimento gratuito de um certo número de dias de trabalho por ano, no canavial, em retribuição à permissão para cultivar alguns produtos, como a mandioca, na roça de subsistência" (Silva, 2004, p.19). Os acordos daqueles que se tornaram moradores das plantações de cana ofereciam condições mais favoráveis de parceria, não impondo "a meação às lavouras de milho e feijão, não cobrava aluguel pelo transporte das canas e dos cereais, nem sequer pelo uso de instrumentos aratórios dos proprietários" (Castro, 1997, p. 381). Outros trabalhadores rurais livres eram obrigados a entregar parte da produção para os proprietários da terra, como é o caso dos parceiros, também conhecidos como meeiros (Silva, 2004). A autora também ressalta o uso da terra pelos arrendatários, mediante pagamento em dinheiro de uma proporção da produção agrícola. Nas formas diversificadas de produção e subsistência que experimentaram os trabalhadores rurais envolvidos com a canavicultura, verifica-se que "não só não tinham privilégios a defender como não tiveram aliados, em suas lutas, para impor condições ao desenvolvimento econômico que a este obrigassem a algum compromisso com os direitos sociais e com a dignidade humana" (Martins, 1993, p. 13).

Ainda na primeira metade do século XX, os trabalhadores urbanos obtiveram o respaldo da Consolidação das Leis do Trabalho (1943) para regulamentar as relações de trabalho e, especialmente, foi estabelecido o amparo na velhice com o advento da aposentadoria. No entanto, os trabalhadores rurais, e entre eles os canavieiros, foram excluídos desse marco de formalização do trabalho e estabelecimento de direitos. Apenas 20 anos mais tarde o Estatuto do Trabalhador Rural (1963) aproximou os direitos de trabalhadores rurais e urbanos, sem, contudo, prever direito a aposentadoria. Teixeira (2017) indica que mesmo quando foi regulamentada a aposentadoria de trabalhadores rurais (PRORURAL) no ano de 1971, esta se restringia a metade do salário mínimo enquanto a aposentadoria de trabalhadores urbanos correspondia à integralidade do salário mínimo.

Logo no início da ditatura militar de 1964 foi estabelecido o Estatuto da Terra que previa a escrituração de terras devolutas. Observou-se que este "projeto modernizador da agricultura se assentou no tripé: militarização da questão agrária, expropriação de camponeses e aumento da exploração dos trabalhadores" (Silva, 2004, p. 22). Em Pernambuco, logo após o estabelecimento da Consolidação das Leis do Trabalho, ocorrem as primeiras "ligas camponesas" (Palmeira, 2009) para o enfrentamento das ameaças advindas dos proprietários dos engenhos. A concomitância do estabelecimento do Estatuto do Trabalhador Rural e da chegada de Miguel Arraes ao governo de Pernambuco em 1963, obrigou os proprietários de Engenhos a cumprirem a "tabela de campo" (Palmeira, 2009) que regulamentava valores de remuneração para as respectivas atividades rurais realizadas. Ainda em 1963, cinco trabalhadores rurais canavieiros foram mortos na Usina Estreliana, ao reivindicarem o pagamento do 13° salário, que passou a ser previsto como direito no Estatuto do Trabalhador Rural (Porfírio, 2016). Após a obtenção judicial do direito ao 13° salário e férias remuneradas, um trabalhador rural canavieiro foi morto e outros dois foram gravemente feridos em 1972 (Montenegro, 2011). No estado de São Paulo, a produção canavieira servia ao mercado interno em sua necessidade de consumo de açúcar e de álcool carburante. Após a 2ª Guerra Mundial a produção canavieira passa a predominar no sudeste brasileiro (Szmrecsányi & Moreira, 1991). Os embargos comerciais impostos como retaliação à revolução cubana possibilitaram a entrada do açúcar brasileiro no mercado norte americano (Ramos, 2007), o que contribuiu para a expansão da produção canavieira paulista já fomentada por incentivos estatais desde ao menos 1933 com o Instituto do Açúcar e do Álcool e, a partir de 1965, com o Sistema Nacional de Crédito Rural. Houve ainda o estabelecimento do PROÁLCOOL em 1975, estimulando a produção de álcool para a frota de veículos (Thomaz Júnior, 2002).

Como em Pernambuco, os trabalhadores rurais nas atividades canavieiras paulistas estavam submetidos à precárias condições de vida e trabalho. Como o Estatuto do Trabalhador Rural parecia um movimento afirmativo de direitos dos trabalhadores rurais, logo foi contraposta uma medida para garantir a reprodução ampliada do capital: a regulamentação em janeiro de 1978 do trabalhador volante, que foi "duplamente negado, enquanto trabalhador permanente e enquanto possuidor de direitos" como destacou Silva (1999, p. 66). Ao volante restaria receber apenas pelo dia trabalhado, sendo desconsiderados, os direitos "ao salário mínimo, as férias anuais remuneradas, ao repouso semanal, ao aviso prévio e à indenização em caso de demissão" (Andrade, 1991, p. 57). A greve foi um instrumento de reivindicação empregado pelos trabalhadores mesmo com o militarismo vigente no Estado. A repressão policial aos trabalhadores rurais canavieiros ocasionou a morte de um trabalhador em Guariba (SP) em 1984 (Chiovetti, 2004). Na cidade de Leme (SP), um trabalhador e uma trabalhadora rural da canavicultura foram mortos a tiros pela repressão policial (Aroni, 2014). Os movimentos grevistas foram relevantes para a equiparação de direitos entre trabalhadores rurais e urbanos, chegando os rurais a alcançar a integralidade do salário mínimo na aposentadoria com a Constituição Federal de 1988 (Kreter & Bacha, 2006).

O alinhamento de interesses entre o Estado e as agroindústrias canavieiras sustentou um processo de trabalho pautado pela extensividade da jornada laboral, sua intensividade, exigências referentes à qualidade do trabalho realizado que influenciavam a remuneração e a determinação do salário pela produtividade, o que caracteriza o trabalho por peças. Em razão desse contexto de superexploração, os trabalhadores experimentaram prejuízos precoces à saúde e a ameaça à vida. Por isso as greves continuaram sendo o recurso reivindicatório empregado e novamente houve a morte de um trabalhador rural canavieiro em Goiana (PE) com um tiro na cabeça (Guibu, 1998). Outros 14 movimentos grevistas ocorreram em São Paulo e Paraná entre 2007 e 2013 e, mesmo não havendo registro de mortes, trabalhadores foram feridos por forças policias ou demitidos, além da prisão de líderes sindicais (Menezes & Cover, 2016). As mortes por exaustão no trabalho (Costa, 2017) também fomentaram a eclosão desses movimentos grevistas.

O questionamento dos modos aviltantes que caracterizam o trabalho rural nas agroindústrias canavieiras foi contraposto à implementação da mecanização da colheita e do plantio da cana-de-açúcar. Em reportagem sobre o modelo de produção reestruturado da Odebrecht Agroindustrial, afirma-se com eloquência logo no primeiro parágrafo da reportagem: "esqueça o facão, as queimadas e a marmita dos bóias-frias" (Sá, 2015, p. 01). O enunciado em uma revista de grande circulação nacional para esquecer facões, queimadas, marmitas e bóias-frias parece ser necessário em razão do processo de trabalho nas atividades rurais canavieiras se apresentar como uma ferida para as intenções enunciadas pela agroindústria canavieira brasileira: ecologicamente correta e socialmente responsável. Para silenciar as feridas da agroindústria canavieira é empregada a "denegação", conceituada como "um mecanismo de defesa social contra um ferimento narcísico, uma ameaça para a identidade de um grupo e dos seus membros por estigmatização; defesa que exige o apagamento simbólico do elemento perturbador e de sua marcação" (Jodelet, 2005, p. 97). Assim, denegar a espoliação, o sofrimento, a doença e a morte dos trabalhadores ilustra que:

"O consumo da força de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, realiza-se fora do mercado, fora da esfera da circulação. Por isso, juntamente com o dono do dinheiro e o possuidor da força de trabalho abandonaremos essa esfera ruidosa, onde tudo ocorre na superfície e à vista de todos, para acompanhá-los ao local reservado da produção, a cuja entrada está escrito: 'No admittance except on business'. Veremos aí como o capital produz e também como é produzido" (Marx, 2005, p. 196).

Em virtude dos determinantes expostos, objetiva-se discutir no presente artigo como o trabalho reestruturado na canavicultura ocasionou impactos à saúde dos trabalhadores rurais canavieiros. Frente ao esforço do capital para denegar o sofrimento de mulheres e homens que contribuíram para estabelecer a grandiosa agroindústria canavieira do Brasil, ressalta-se que:

"Manter viva a memória coletiva é uma maneira de impedir o vazio, de evitar a destruição das identidades. Não um passado embalsamado, servindo de referência a uma história que conserva privilégios de minorias, mas sim lembranças vivas, capazes de concorrerem na descoberta de sentidos sociais" (Bulhões, 1999, p. 90).

 

MÉTODO

Esta pesquisa envolveu inicialmente uma revisão bibliográfica sobre o trabalho rural na canavicultura. Enfatizou-se o controle coercitivo dos trabalhadores rurais canavieiros desde a colonização do Brasil e a resistência dos mesmos à espoliação, particularmente ao longo do século XX. A compilação deste conjunto de publicações demonstrou que, apesar do recorrente fomento do Estado aos objetivos da agroindústria canavieira, o processo de trabalho segue ocasionando a degradação precoce da saúde e propiciando precárias condições de vida ao trabalhador rural canavieiro. Este percurso foi necessário, por permitir "a reconstrução da história social dos grupos dos quais esse indivíduo faz parte" (Barros, 2001, p.04) e demonstrar que a determinação social de doenças (Laurrel, 1983) é consequência de processos de trabalho aviltantes, como se verifica na canavicultura brasileira.

Os dados apresentados são uma parcela da pesquisa de doutorado intitulada "Quando o trabalho se finda: condições de vida e saúde de trabalhadores canavieiros aposentados". A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, parecer n° 2570373 de 28 de Março de 2018.

PROCEDIMENTOS

A coleta de dados secundários foi realizada na Base de Dados Históricos de Acidentes do Trabalho (Ministério da Previdência Social, 2014; 2015a; Ministério da Economia, 2020) para o período entre 2009 e 2017 e no Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho da Previdência Social (Ministério da Previdência e Assistência Social, 2015b), considerando os dados nacionais entre 2009 e 2013. A análise de dados secundários disponibilizados pela Previdência Social possibilitou a observação da evolução de agravos à saúde na população trabalhadora formal e a discussão sobre os determinantes que influenciaram essa evolução, particularmente no contexto de redefinições do processo de trabalho que atinge os trabalhadores rurais canavieiros. Os auxílios doença previdenciários (B.31) possibilitam compreender a morbidade populacional do grupo estudado, em razão da atividade laboral que os mesmos realizam determinar o nível de acesso a serviços de saúde, alimentação, moradia, educação e lazer. Já os auxílios acidentes previdenciários (B.91) podem demonstrar como o processo de trabalho interatua sobre as condições gerais de saúde e ocasiona doenças e até mesmo a morte de trabalhadores. Considerando que o reconhecimento do nexo causal entre o adoecimento e o trabalho nem sempre se efetiva para as populações trabalhadoras mais vulneráveis, a observação dos indicadores de incapacidade permanente, assistência médica reabilitadora, letalidade e mortalidade ocupacional ilustra a violência a que são expostos no processo de trabalho rural canavieiro.

 

RESULTADOS

Os movimentos reivindicatórios que ocorreram ao longo de quatro décadas após a implantação do Proálcool (1975) buscaram a regulamentação do trabalho, a equiparação de direitos trabalhistas, de segurança ocupacional e de previdência social. As conquistas decorrentes dessas mobilizações foram gradativamente rechaçadas para que as agroindústrias canavieiras retomassem o padrão de superexploração que havia sofrido alguma desestabilização. Os trabalhadores migrantes foram contrapostos aos trabalhadores locais para conter ganhos reais nas negociações salariais (Guanais, 2014) e reduzir os custos de formalização com as formas precarizadas de contratação como as "fraudoperativas" (Rezende, 2011).

A mecanização da colheita e do plantio também foi empregada para pressionar salários e produziu, como efeito complementar, a intensificação destas duas atividades que são remuneradas por produtividade (Rumin, Navarro, & Perioto, 2008). A título de ilustração, o preço da tonelada de cana-de-açúcar colhida manualmente no estado de São Paulo, no ano de 2018, foi de R$9,85. Colher 100 quilos de qualquer coisa e receber R$0,98 delimita a desproporcionalidade entre os esforços exigidos e a remuneração (Instituto de Economia Agrícola, 2019).

A sobrecarga de trabalho (Vilela, Laat, Luz, & Takahashi, 2015), os reduzidos períodos de descanso para recuperação da saúde (Luz, Corrêa Filho, & Silva, 2012) e a exposição à sobrecarga térmica (Roscani, Bitencourt, & Maia, 2017) foram elementos investigados para explicar as mortes por excesso de trabalho (Costa, 2017) que se repetiram na primeira década do século XXI.

O aviltamento das formas de gestão do trabalho parece ter sido um importante recurso para proteger os capitais agroindustriais canavieiros das perdas ocasionadas pela expansão da colheita mecanizada. Na safra 2015/2016, a produtividade dos canaviais havia retroagido aos patamares produtivos da safra 2005/2006 (Companhia Nacional de Abastecimento, 2019), indicando ter sido necessário muitas adequações para equiparar a produtividade da canavicultura reestruturada aos parâmetros da colheita com o emprego da queimada. As queimadas, apesar de dinamizar a colheita manual ou mecanizada resultava em exposição dos trabalhadores rurais canavieiros aos hidrocarbonetos aromáticos e seus efeitos carcinogênicos (Magalhães, Bruns, & Vasconcellos, 2007).

O abandono progressivo do uso do fogo exigiu alterações nas atividades de tratos culturais e de preparação para a colheita que elevaram o consumo do glifosato como herbicida ou desfolhante (Meschede, Velini, & Carbonari, 2010) e o manganês como adubo foliar (Benett, 2011). Em caso de exposição ocupacional, o glifosato pode ocasionar parkinsonismo secundário (Walter, Robazzi, & Marzialle, 2003) e o manganês é responsável por alterações psicomotoras e neurológicas (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2015). As mudanças nas técnicas agrícolas de plantio, cultivo e colheita da cana-de-açúcar pode ter ampliado a carga de doenças que atinge os trabalhadores rurais canavieiros, particularmente, em virtude da "quimificação" do processo de trabalho nos canaviais, como denominou Thomaz Júnior (2017). Mesmo com a dificuldade de reconhecimento do nexo causal de um adoecimento com o trabalho (auxílio acidente previdenciário - B.91),o impacto da reestruturação produtiva pode ser observado na morbidade populacional dos trabalhadores rurais canavieiros, representada pelos auxílios doença previdenciários (B.31).

A observação dos registros de auxílios doença previdenciários (B.31) no período de 2009 e 2013 (Tabela 1) indica o crescimento de 20,83% dos casos de câncer (C00-D48); os transtornos mentais e comportamentais (F00-F99) foram elevados em 27,10%; houve o incremento de 36,36% das doenças dos olhos e anexos (H00-H59); as doenças do aparelho circulatório (I00-I99) foram elevadas regularmente ao longo do quadriénio 2009-2012, tendo sido reduzidas apenas em 2013; as doenças do aparelho digestivo (K00-K93) ampliaram-se 13,13%; as doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo foram incrementadas em 22,02% (M00-M99) e as lesões, envenenamentos e algumas outras causas de consequências externas (S00-T98) foram acrescidas em 4,78%.

Em tendência oposta, os auxílios acidente previdenciários (B.91) apresentaram-se em queda para todas as categorias agrupadas na Tabela 1. A situação ilustrada parece sugerir uma melhoria nas condições de trabalho num período de franca implementação da reestruturação produtiva na canavicultura: o quinquênio 20092013. Argumenta-se que, se a agricultura canavieira reestruturada houvesse contribuído para uma melhoria das condições de trabalho, tanto a morbidade populacional, representada pelos auxílios doença previdenciários (B.31),quanto à morbidade ocupacional, expressa pelos auxílios acidente previdenciários (B.91),apresentariam um movimento isonômico de queda das respectivas incidências. A tendência proporcionalmente inversa apresentada pelos indicadores analisados demonstra que houve a deterioração do quadro geral de saúde (morbidade populacional) e melhorias nos indicadores de morbidade ocupacional.

A queda na incidência dos registros de auxílios acidente previdenciários (B.91) pode decorrer da utilização da cobertura previdenciária após a demissão, tal como previsto pelo artigo 15 da lei n° 8213/91 (Presidência da República, 1991). Esse recurso ocasionaria a descaracterização do adoecimento em seu nexo causal com o trabalho, o que diminuiria a incidência da morbidade ocupacional, apesar de garantir alguma proteção securitária com o conceito de "qualidade de segurado" (Presidência da República, 1991) da previdência social. A utilização da proteção securitária prevista no artigo 15 da lei n° 8213/91 ocasiona a destituição dos seguintes direitos dos trabalhadores: a) perda da estabilidade de um ano após a alta previdenciária; b) prejuízo ao direito de obter a reabilitação profissional; c) ausência de contagem do tempo de serviço para a aposentadoria ao longo do período da licença saúde e d) não haveria depósitos do FGTS no período de recebimento do benefício previdenciário. Mesmo com os prejuízos listados, parece ter sido a alternativa encontrada pelos trabalhadores rurais canavieiros para garantir alguma renda enquanto buscam reestabelecer seu quadro geral de saúde.

A diminuta incidência de câncer ocupacional entre trabalhadores rurais canavieiros, mesmo havendo referencial científico sobre esta relação (Cezar-Vaz et al. 2015) pode ilustrar o efeito da utilização do auxílio doença previdenciário (B.31) após a interrupção do contrato de trabalho. As evidências científicas também sustentam a importância das ocorrências de agravos à saúde mental relacionados ao trabalho rural na canavicultura (Beck Filho, Amorim, & Maia, 2016; Costa, Santos, Silva, & Gurgel, 2017) mas, apesar disso, esses agravos encontram-se em queda.

Mesmo havendo produções científicas que fundamentam a ocorrência de ceratomicoses entre trabalhadores rurais canavieiros (Dalfré, Rodrigues, Donato, & Fiorini, 2007; Salera et al., 2002) e o agravamento desses quadros levando a necrose córnea e ao comprometimento do cristalino (Müller, Kara-José, & Castro, 2012), as doenças dos olhos e anexos (H00-H59) não tiveram nenhum registro de origem ocupacional em quatro anos do quinquênio avaliado. A queda da incidência das doenças do sistema circulatório (I00-I99) é contraditória em relação ao risco cardiovascular (Bitencourt, Ruas, & Maia, 2012) decorrente do estresse térmico que atinge os trabalhadores rurais canavieiros (Bodin et al., 2016).

As doenças do aparelho digestivo (K00-K93) estão relacionadas às temperaturas elevadas, as posturas forçadas, a fadiga crônica, ao trabalho muito pesado e a remuneração por produtividade conforme destacou Dias (2001). Como estas características são ainda mantidas no trabalho rural canavieiro, a descaracterização do nexo causal com o trabalho parece ser um fator plausível para justificar a tendência de queda na incidência.

A restrição de canaviais disponíveis para a colheita manual poderia ser um fator determinante para a forte redução da incidência das doenças osteomusculares e do tecido conjuntivo (M00-M99) entre trabalhadores rurais canavieiros. No entanto, como destacaram Messias, Andrade, Artero e Nóbrega (2017) a "atividade realizada por cortadores de cana-de-açúcar possui um forte potencial para causar danos à articulação dos ombros" (p. 01) mesmo quando realizada em menor frequência. Deve-se salientar também que outros esforços biomecânicos estão presentes nas atividades de plantio e cultivo da cana-de açúcar e se combinam para o estabelecimento, em trabalhadores rurais canavieiros, de quadros crônicos de dor (Messias & Okuno, 2012).

Entre as formas de adoecimento da categoria lesões, envenenamentos e outras causas de consequências externas (S00-T98) encontram-se os efeitos do calor e da luz (T67), a câimbra devida ao calor (T67.2), exaustão devida ao calor e perda hídrica (T67.3), exaustão devida ao calor e à perda de sal (T67.4) e a exaustão devida ao calor, sem especificações (T67.5). Claramente estas modalidades de adoecer estão relacionadas ao contexto de trabalho rural canavieiro e reconhecidas no estabelecimento de doenças renais (Dally et al., 2018).

Dessa forma, a utilização da "qualidade de segurado" (Brasil, 1991) para descaracterizar os agravos à saúde em seu nexo com o trabalho, que foi denominada por Rumin (2020) como "tolhimento institucional", determinou uma percepção equivocada de melhoria dos indicadores de morbidade ocupacional dos trabalhadores rurais canavieiros. O amparo previdenciário proporcionado pelo artigo 15 da lei 8213 (Presidência da República, 1991) encobriu as ocorrências de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais e foi eficaz para omitir os agravos à saúde dos trabalhadores rurais canavieiros e, consequentemente, gerar prejuízos à seguridade social em virtude de reduzir a alíquota do fator acidentário previdenciário (FAP) que é empregada para o cálculo do seguro acidentário do trabalho (SAT).

Em virtude do tolhimento institucional dificultar a observação dos efeitos da reestruturação produtiva na canavicultura sobre a saúde dos trabalhadores rurais é importante considerar outros indicadores de morbidade ocupacional para esclarecer se a "degradação sistêmica do trabalho no agrohidronegócio canavieiro" (Thomaz Júnior, 2017) se estabeleceu.

A partir das informações disponibilizadas pela previdência social (Tabela 2) é possível observar que até o ano de 2014 a incidência de incapacidade permanente apresentava-se em tendência de crescimento. Em 2015 os desdobramentos da lei n°13135/15 (Presidência da República, 2015) contribuíram para reduzir a incidência de incapacidade permanente. Essa lei redefiniu o conceito de "afastamento da deficiência" que passou a ser compreendido como remissão de um quadro clínico, mesmo que a capacidade produtiva do trabalhador não estivesse reestabelecida.

A lei n°13135/15 (Presidência da República, 2015) reduz o prolongamento indefinido dos auxílios previdenciários que, ano após ano se somavam aos novos casos e geravam uma tendência de crescimento aos registros de incapacidade permanente. Com o julgamento do "afastamento da deficiência" pelo perito previdenciário, o auxílio por incapacidade permanente pode ser encerrado, o que contribui para a queda na incidência deste indicador de morbidade profissional ao longo dos anos.

Como complemento à concepção de afastamento da deficiência, foi estabelecida a lei n°13457/17 (Presidência da República, 2017) que definiu a alta programada para os benefícios previdenciários. Com ela o "afastamento da deficiência" é determinado de acordo com parâmetros predefinidos de remissão sintomatológica, sem que a particularidade de cada caso seja considerada. Caso o trabalhador avalie que sua incapacidade laboral seja permanente, necessita de vias judiciais para alcançar esse reconhecimento. Considerando que não ocorreram redefinições tão impactantes ao trabalho rural na canavicultura no triênio 20152017, que justificassem a evolução observada, é plausível que a forte redução na incidência de incapacidade permanente tenha decorrido dos efeitos combinados das leis citadas que estabeleceram novas regras para a interrupção dos benefícios.

A afirmação de que não aconteceram melhorias no processo de trabalho rural na canavicultura que justificassem a forte queda na incidência de incapacidade permanente encontra respaldo na evolução das ocorrências que demandaram assistência médica reabilitadora. Entre 2009 e 2017 a incidência de assistência médica reabilitadora apresentou tendência de estabilidade, demonstrando que os elementos do processo de trabalho responsáveis pelos agravos à saúde dos trabalhadores rurais canavieiros não sofreram alterações expressivas que culminariam com a melhoria nos indicadores de morbidade ocupacional.

É possível afirmar que as leis apresentadas (Presidência da República, 2015; Presidência da República, 2017) ocasionaram efeitos "escamoteadores" (Silva, 1999) de direitos dos trabalhadores e estabeleceram um panorama falseado sobre uma possível redução da carga de doenças decorrentes do trabalho. Quanto ao panorama falseado, é oportuno observar que a letalidade ocupacional, ou seja, a razão entre o número de óbitos dos trabalhadores e a ocorrência de acidentes de trabalho, quase triplicou entre 2013 e 2016. De modo alarmante, a mortalidade ocupacional também seguiu uma proporção de crescimento semelhante à letalidade.

Para as taxas de letalidade e de mortalidade apresentadas na Tabela 2, o ano de 2017 deve ser considerado ainda com cautela, pois, a brusca redução dos indicadores deve decorrer do emprego recorrente do procedimento administrativo realizado junto ao Instituto Nacional de Seguro Social, denominado impugnação do nexo técnico epidemiológico (Oliveira & Cezne, 2010). A impugnação é um instrumento para evitar prejuízos financeiros que as mortes no trabalho trazem aos empregadores no momento do cálculo do seguro acidentário do trabalho (SAT).

Demonstra-se que, apesar da lei n° 13135/15 (Presidência da República, 2015) e da lei n°13457/17 (Presidência da República, 2017) descaracterizarem uma parcela importante dos agravos à saúde, a "degradação sistêmica do trabalho no agrohidronegócio canavieiro" (Thomaz Júnior, 2017) é uma realidade. Salienta-se que as normas legais que proporcionaram a descaracterização da incapacidade para o trabalho representam um retrocesso na garantia de direitos dos trabalhadores e são designadas por Rumin (2020) como "salubridade gerida".

 

DISCUSSÃO

Conforme a análise apresentada dos indicadores de morbidade populacional e de morbidade e mortalidade ocupacional, pode-se afirmar que os trabalhadores rurais canavieiros foram atingidos duramente pela reestruturação produtiva da agroindústria canavieira. A mecanização da colheita é uma ameaça à existência dos trabalhadores, já que, conforme avançou sobre os terrenos com relevo mais propício à agricultura mecanizada, deixou as áreas de menor produtividade e maiores exigências ergonômicas para a colheita manual. Reservou aos trabalhadores rurais canavieiros o corte sobre as curvas de nível, canaviais demasiadamente acamados ou mesmo em terrenos acidentados que dificultam a colheita mecanizada.

Apesar da combinação entre os esforços exigidos no processo de trabalho e a renda determinada por produtividade, exige-se do trabalhador uma inflexível observância à assiduidade no trabalho. Mesmo que o trabalhador perceba que seu aparato corporal esteja exigindo maior período de repouso, não é prudente acatar a essa necessidade, em razão da restrição da renda e, principalmente, da ameaça de desemprego. Com a mecanização da colheita e do plantio dos canaviais, os postos de trabalho sofreram uma redução de 38,67% entre 2009 e 2016. No início desse período havia 200.714 postos formais de trabalho rural na canavicultura. No fim do período restavam 123.112 vagas de trabalho ocupadas formalmente (Ministério da Economia, 2020).

Moreira, Oliveira, Muzi e Luiz (2015) demonstraram que os trabalhadores rurais são mais afetados por doenças crônicas degenerativas que os trabalhadores urbanos. A carga de doenças mais expressiva entre trabalhadores rurais pode decorrer da insuficiência do período de descanso diário e de descanso semanal remunerado, o que contribuiria para a precocidade de expressão da "vulnerabilidade ontológica" (Lhuilier, 2017). O conceito descrito por Lhuilier (2017) é compreendido como uma fragilização gradativa da saúde ao longo do ciclo vital e que se torna mais evidente e acentuada no envelhecimento. O trabalho rural apresentaria uma processualidade que aceleraria a vulnerabilidade ontológica e poderia, precocemente, causar prejuízos à autonomia dos trabalhadores e até mesmo levar prematuramente à incapacidade laboral.

Particularmente, no caso do trabalho rural canavieiro, a extensividade da jornada diária e semanal, a intensidade do trabalho remunerado por produtividade e os riscos ocupacionais, propiciariam a expressão antecipada da vulnerabilidade ontológica, chegando a reduzir a expectativa de vida desses trabalhadores. A penosidade do trabalho exigiria intervenções como a proposta por Facci, Marcatto e Santino (2012) introduzindo pausas suficientes para restringir o ritmo intenso de trabalho e a consequente degradação acelerada da saúde.

Em razão da temperatura ambiental elevada e do exacerbado ritmo de trabalho, as funções renais são bastante prejudicadas, sendo o principal motivo de ausência no trabalho identificada por Ceccatto, Carvalho Júnior, Cuissi e Ramos (2014) em uma análise do absenteísmo numa agroindústria canavieira. Os prejuízos as funções renais são graves determinantes de incapacidade laboral (Santos, Zanetta, Terra Filho, & Burdmann, 2015) e podem reduzir a expectativa de vida e a autonomia dos trabalhadores, em caso de afecções renais irreversíveis.

A história recente do uso da queimada como etapa preparatória para a atividade de colheita expunha os trabalhadores rurais canavieiros às propriedades nocivas da fuligem. A inalação desse material particulado afeta as funções pulmonares (Ferreira, Ramos, Trevisan, & Ramos, 2018) e compromete o funcionamento cardiovascular (Barbosa, Terra Filho, Albuquerque, & Santos, 2012). Mesmo não estando mais cotidianamente presente no processo de trabalho nos canaviais, o histórico de exposição ocupacional aos hidrocarbonetos policíclicos aromáticos oriundos da fuligem (Algranti, Buschinelli, & Capitani, 2010) aumenta a chance de desenvolvimento de neoplasias. A inalação de material particulado no ambiente de trabalho dos canaviais também pode limitar a capacidade laboral em decorrência das afecções ao parênquima pulmonar causadas pela Paracoccidioidomicose (Arantes, 2017). A exposição ocupacional a esse fungo também estaria associada ao agravamento de doenças osteomusculares (Mendonça, Peron Filho, & Schincariol, 2016) que, conforme demonstrado pela incidência de auxílios acidente previdenciários (B.91) analisados nesse estudo, são a principal causa de afastamento do trabalho nas atividades rurais canavieiras.

Em uma atividade laboral marcada pelos métodos escamoteadores de remuneração e exigências elevadas de produtividade e assiduidade, o envolvimento com o trabalho foi tensionado ao ponto dos trabalhadores rurais canavieiros terem chegado ao limite de suas potencialidades produtivas. O tensionamento dos dispositivos de vigilância durante o período de safra é um importante elemento para a elevação de sintomas psicológicos como a irritabilidade excessiva, pensamentos recorrentes e dúvidas quanto às próprias potencialidades (Priuli, Moraes, & Chiaravalotti, 2014). O sofrimento psíquico também foi identificado por Faker (2009), Duarte (2010) e Faria (2012) em trabalhadores rurais canavieiros do Mato Grosso do Sul, Goiás e Minas Gerais. Demonstrou-se que, apesar de haver alguma diversidade sociotécnica da gestão do trabalho, o tensionamento dos dispositivos de vigilância é um importante fator para a ocorrência de agravos à saúde mental para os trabalhadores rurais da canavicultura.

Carvalho Júnior, Ramos e Toledo (2012) destacaram os prejuízos à qualidade de vida como resultado do trabalho rural canavieiro. As modestas condições socioeconômicas que são alcançadas pelo trabalho rural na canavicultura (Maciel, Fonseca, Braga, & Corgozinho, 2011) limitam a utilização de serviços particulares de saúde, ficando assim, quase que exclusivamente dependentes dos serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde, que nem sempre correspondem em tempo e complexidade às necessidades para a reabilitação da saúde.

A severidade com que o processo de trabalho degrada a saúde e as dificuldades de acesso aos serviços médicos reabilitadores expulsa do contexto do trabalho regulamentado aqueles que por anos atuaram na canavicultura e possuem a maleabilidade corpórea limitada por algum adoecimento. A combinação do trabalho degradante com a limitação do acesso aos serviços de saúde também impossibilitaria que os trabalhadores rurais canavieiros alcançassem a ampliação da expectativa de vida que seria resultado da transição epidemiológica. A carga de doenças decorrente do processo de trabalho nas atividades rurais canavieiras determinaria condições gerais de saúde inferiores ao parâmetro da população brasileira, materializando o que foi descrito por Schramm, Oliveira, Leite e Campos (2004) como transição tardia.

Demonstrou-se nessa pesquisa que o desgaste mais acentuado ao quadro geral de saúde dos trabalhadores rurais justificaria o direito à aposentadoria especial, que prevê como requisitos para obtê-la, 180 meses de contribuição previdência e idade mínima de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres. Salienta-se que a aposentadoria é um meio de reapropriação da espoliação sofrida ao longo dos anos de trabalho. A aposentadoria proporcionaria algum respaldo às necessidades existenciais e, particularmente no contexto de desemprego, precariedade do trabalho e remuneração flexível, a aposentadoria se posicionaria como fonte de renda estável das famílias.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que os esforços para a equiparação de direitos entre trabalhadores rurais e urbanos abrangeram os valores das aposentadorias e a restrição da informalidade. A equiparação, no entanto, não representou melhorias no padrão geral de saúde dos trabalhadores rurais canavieiros, já que as formas aviltantes de remuneração e os efeitos deletérios à saúde que foram propiciados pela reestruturação produtiva mantiveram esses trabalhadores em um contexto de desigualdade e injustiça social. Já que para as entidades sindicais, governamentais e empresariais "as máquinas desfilam enquanto os corpos silenciam" (Silva, Bueno, & Melo, 2014), esta pesquisa contribui para romper a distorção comunicacional sobre uma possível melhoria das condições de trabalho, morbidade populacional e morbimortalidade ocupacional nas atividades rurais após a reestruturação produtiva da agroindústria canavieira.

Ao abordar os prejuízos ao quadro geral de saúde dos trabalhadores rurais a partir das informações previdenciárias ficam excluídos da análise os trabalhadores informais, o que representaria uma limitação deste estudo. Nas atividades rurais canavieiras uma parcela da produção é realizada pelos produtores independentes de cana-de-açúcar, sendo a informalidade bastante difundida neste modo de produção. Vale ressaltar que a expansão do território produtivo da cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal dificultaria as ações de vigilância sanitária em saúde do trabalhador e a fiscalização trabalhista. A informalidade, o trabalho análogo à escravo e o envolvimento de indígenas nas atividades rurais canavieiras são circunstâncias que necessitam ser abordadas em novos estudos, em virtude de não proporcionarem registros previdenciários e permanecerem encobertos pela precariedade do modo de exploração do trabalho.

Como indicado ao longo do estudo, a prática de tolhimento institucional que descaracteriza o nexo causal do agravo à saúde com o trabalho mereceria ter seu alcance compreendido na dimensão dos prejuízos financeiros à arrecadação previdenciária e também nos desdobramentos sobre a existência dos trabalhadores. A extensa jornada diária e semanal, a intensidade das atividades e as condições ambientais aversivas no trabalho rural canavieiro são particularmente preocupantes em virtude de contratarem prioritariamente trabalhadores jovens. Estariam submetidos a condições de trabalho que precocemente desabilitariam o aparato corporal para o trabalho e destituiriam a autonomia. A densa manobra da gestão pública e de empresários para ocultar a violência no trabalho, distorce os prejuízos à degradação da maleabilidade corporal dos trabalhadores e possibilita que o processo de trabalho aviltante seja mantido, direcionando os trabalhadores rurais canavieiros para a incapacidade permanente ou mesmo a morte.

 

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Recebido em: 05/01/2020
1ª revisão em: 25/09/2020
2ª revisão em: 17/11/2020
Aceito em: 03/05/2021

 

 

CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesses.
SOBRE OS AUTORES
Cassiano Ricardo Rumin é graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000) com mestrado em Ciências Médicas (2004) pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP). Doutor em Ciências (2020) pelo Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP/USP). Docente e supervisor de estágios profissionalizantes em Psicologia nas áreas de Saúde do Trabalhador, Psicologia Social e Psicologia da Saúde no Centro Universitário de Adamantina (UNIFAI).
E-mail: casrumin@alumni.usp.br
http://orcid.org/0000-0002-2351-8481
Vera Lucia Navarro é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (1984) com mestrado em Ciências Sociais e Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1991),doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1998) e Livre Docente em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Atualmente é professora Associada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP/USP), da Universidade de São Paulo e credenciada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP/USP.
E-mail: vnavarro@usp.br
https://orcid.org/0000-0003-4669-0011

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