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Revista Polis e Psique
versión On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.6 no.3 Porto Alegre dic. 2016
ARTIGOS
Linha de cuidado em saúde mental do trabalhador: discussão para o SUS
Occupational mental health hotline: a discussion on the Brazilian Unified Health Care System (SUS)
Línea de cuidado en la salud mental del trabajador: un argumento para el SUS
Carla Garcia BottegaI e Alvaro Crespo MerloII
I Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
RESUMO
Este artigo discute a construção de uma linha de cuidado (LC)/escuta em saúde mental do trabalhador e da trabalhadora como expressão da Clínica do Trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS), com base na Psicodinâmica do Trabalho, e inserida na rede já existente. Entende-se que a LC deve estar na discussão da implantação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora conforme apontado nas diretrizes da Portaria nº 1.823/2012. A partir da escuta de 24 trabalhadores e trabalhadoras usuários de ambulatório de doenças do trabalho, em situação de sofrimento e adoecimento psíquico, emergiram possibilidades para pensar esta clínica. A demanda foi escutada como uma necessidade de cuidado a estes que sofrem em momento específico de sua vida, pois se entende que essa situação seja passageira, por ser relacionada ao trabalho e, por essa razão, possa ser superada com acompanhamento em atendimentos e encaminhamentos relacionados à saúde mental e trabalho.
Palavras-chave: Saúde Mental e Trabalho; Clínica do Trabalho; SUS; Linha de Cuidado.
ABSTRACT
This article discusses the effectuation of an occupational mental health hotline as part of the Occupational Health Clinic of the Brazilian Unified Healthcare System (SUS) based on a psychodynamic view of work within the already established system. It is understood that the hotline is to be a component under discussion within the implementation of the National Occupational Health Policy according to the guidelines of Ordinance No. 1,823/2012. From consideration of testimonials provided by 24 workers using the outpatient occupational health clinic on account of mental illness related to their work, possibilities arose to think the realization of this clinic. The demand was conceived as a necessary care service for workers afflicted by this transitory condition during specific times in their lives because it is work-related and can therefore be overcome with follow-up care and referrals to appropriate occupational mental health care ministrations.
Keywords: Mental Health and Work; Occupational Health Clinic; Brazilian Unified Healthcare System; Hotline.
RESUMEN
Este artículo aborda la construcción de una línea de cuidado (LC) / escucha em la salud mental del trabajador y de la trabajadora, la escucha y el trabajo como expresión de la Clínica del Trabajo en el Sistema Único de Saúde (SUS), basado en Psicodinámica del Trabajo, se inserta en el sistema de salud existente. Se entiende que la LC debe estar en el debate sobre la aplicación de la salud en el trabajo y la Política Nacional de Trabajo como una posibilidad de la atención como se indica en las directrices de la ordenanza nº 1823/2012. A partir de escuchar a 24 trabajadores / as usuarios en ambulatorio de enfermedades profesionales, en situación de sufrimiento y enfermedad mental, surgido posibilidades de pensar esta clínica. La demanda se escuchó como una necesidad de cuidar este sufrimiento de los trabajadores en este momento particular de su vida, porque se entiende que esta situación es temporal, relacionada con el trabajo y, por lo tanto, pueden ser superados con los cuidados de seguimiento y referencias relacionadas con la salud mental y trabajo.
Palabras-clave: Salud Mental y Trabajo; Clínica del Trabajo; SUS; Línea de Cuidado.
Introdução
Como construir propostas para uma clínica em saúde mental e trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS) na atualidade? Esta é a questão que problematizou a construção de pesquisa que deu origem a tese1 parcialmente apresentada neste artigo. Como consequência de todo este percurso, será apresentada a linha de cuidado/escuta em saúde mental do trabalhador e da trabalhadora, que com seus integrantes/ferramentas - a integralidade, o acolhimento e o vínculo na abordagem ao usuário-trabalhador, a construção do plano ou projeto terapêutico e a discussão com os profissionais da saúde -, indica uma dimensão do cuidado integral aos trabalhadores e trabalhadoras que pode ser construída como expressão da clínica do trabalho no SUS, numa composição entre usuário-trabalhador, profissional da saúde e serviços.
A Clínica do Trabalho, ou as “Clínicas do Trabalho”, têm como objeto comum a situação de trabalho, a situação do sujeito, o trabalho e o meio (Bendassolli & Soboll, 2011). São identificadas quatro clínicas do trabalho: a Clínica da Atividade, a Psicossociologia, a Ergologia e a Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2004), que serve de fundamento nesta discussão. “A pesquisa, para a psicodinâmica, está intrinsecamente relacionada à clínica do trabalho” (Mendes, 2007, p.65). A escuta e a fala nesta pesquisa-clínica (junção e grifo nosso) visa à expressão do que nem sempre está visível e explícito no processo de trabalho, no trabalhar. A escuta está atenta ao sofrido-vivido no trabalho e a elaboração que é feita pelos trabalhadores, principalmente de forma coletiva, para a superação e modificação de situações danosas provenientes da organização do trabalho.
Com o relato das histórias vividas no trabalho e de seu adoecimento, os trabalhadores e as trabalhadoras solicitavam escuta ao seu sofrimento e a possibilidade de atendimento por profissionais que pudessem compreender o que haviam sofrido ou estavam vivendo no momento (Bottega, 2014). Nesse sentido, pensar a clínica do trabalho no SUS mobiliza não apenas a elaboração do sofrimento/adoecimento dos trabalhadores, mas colabora no avanço da implantação do que está preconizado na Política Nacional de Saúde do Trabalhador e Trabalhadora (Brasil, 2012), o que significa lançar um olhar para a rede de saúde e os serviços que potencialmente podem realizar atendimento em saúde mental e trabalho, entendendo os processos de modulações, metamorfoses e transformações que tem ocorrido na organização do trabalho e, consequentemente, nas relações de trabalho desenvolvidas.
Do processo da pesquisa
O objetivo principal da pesquisa foi o de construir propostas para uma clínica em saúde mental e trabalho para os serviços do SUS e, para tanto foi organizado um roteiro de entrevista e utilizado o Self Reporting Questionnaire (SRQ-20)2, de forma complementar. Foram realizadas entrevistas com 24 trabalhadores e trabalhadoras atendidos no Ambulatório de Doenças do Trabalho do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (ADT/HCPA)3. Dos 24 participantes, quatro são homens. Apenas seis em relação ao total estavam trabalhando no momento, essas eram todas mulheres. Ao todo, 16 moram em Porto Alegre, e os demais na região Metropolitana, considerando as cidades de Alvorada, São Leopoldo, Gravataí, Viamão e Canoas, tendo sido encaminhados ao serviço pelos municípios de origem, localizados no estado do Rio Grande do Sul, como pode ser verificado na tabela 1 - Demonstrativo dos trabalhadores/trabalhadoras entrevistados (Apêndice A)
Em relação ao levantamento do SRQ-20, 21 entrevistados apresentaram um número de respostas positivas acima de sete (7). Apenas um entrevistado não marcou resposta positiva para as questões. Importante ressaltar, que 20 marcaram mais de dez respostas positivas, um resultado muito significativo, levando-se em consideração que cada resposta sim, é considerada 1 (um) ponto no valor total, sendo relacionado o valor final para 0 (nenhuma probabilidade) até 20 (extrema probabilidade) em relação à possibilidade de ocorrência de transtorno mental. O ponto de corte utilizado tem sido o de 7/8 respostas positivas (Gonçalves, Stein & Kapczinski, 2008).
O SRQ-20 foi entregue para ser respondido logo após a apresentação dos objetivos da pesquisa, esclarecimentos iniciais e assinatura do Termo de Consentimento. Seu uso, além de considerar a proposta do instrumento, serviu para que a entrevista tivesse início, na medida em que o/a trabalhador/a já começava a relatar sua história durante o preenchimento, ou falava que em determinado momento se sentia daquela forma ou não. O preenchimento foi um disparador para abordagem de algumas questões, como, por exemplo, sentir-se uma pessoa inútil e/ou ter pensado em acabar com a própria vida.
As entrevistas foram realizadas com duração média de uma hora e trinta minutos a duas horas. Os trabalhadores e trabalhadoras relataram situações de adoecimento estabelecidas com dores generalizadas, episódios depressivos, cansaço, vontade de não retornar ao trabalho, indicando que seu trabalho tem trazido sofrimento conforme também pôde ser verificado nas respostas dadas ao SRQ-20. Todos os relatos incluíram situações de violência psicológica, algumas de assédio moral e tentativas de suicídio, e em alguns destes casos com internações para tratamento mental.
A utilização da Clínica Psicodinâmica do Trabalho (Dejours & Bègue, 2010; Dejours, 2004) permitiu a compreensão da situação de sofrimento/adoecimento psíquico relacionado ao trabalho, destacando-se na maioria dos casos, a violência psicológica sofrida no ambiente laboral como desencadeante para o atual adoecimento. Apenas dez desses trabalhadores entrevistados são acompanhados por profissional de saúde mental, nem sempre com periodicidade, apenas um em serviço do SUS, mas vinte fazem uso de medicação psiquiátrica. Todos os participantes, já estiveram em Licença Saúde (LS) anteriormente por questões relacionadas ao trabalho, mesmo os que estavam em atividade no momento.
Linha de cuidado (LC)/escuta em saúde mental do trabalhador e da trabalhadora
Antes do término das entrevistas, alguns trabalhadores/as falaram e questionaram sobre a possibilidade de continuidade de um tipo de atendimento (como a pesquisa), ou de grupos como participam, por exemplo, em seus sindicatos. As falas a seguir, são estas considerações espontâneas e reflexivas que decorreram do processo do trabalho de pesquisa e trazem, no que diz respeito à realização dos grupos e à construção de novas possibilidades para esses trabalhadores, algo a ser discutido. Pois conforme afirma Dejours (1999), “Escutar o sofrimento dos trabalhadores é um comprometimento, quer se queira, quer não” (p. 166).
Não, eu acho que... gostaria que tivesse mais grupos, que vocês pudessem depois no futuro conseguir. Porque isso é muito bom pras pessoas. Ajuda muito. Muitas pessoas acaba acontecendo alguma coisa porque não tem esse recurso de procurar de ter uma escuta, não é?
Mas muito bom, eu acho assim, só da pessoa te ouvir, tu poder falar que tu tá passando assim, é muito bom que tu alivia. Tu consegue botar pra fora. Eu nem te conhecia, mas começou a falar e eu comecei a... né? Porque eu acho que a pessoa quanto mais fica preso com aquilo ali é pior. Daí tu não tem parece, porque o marido me compreende, mas tem horas que ele também tá cansado.
Assim, pro trabalhador é muito, é muito importante que se tenha... que esse trabalho se conclua, que ela seja visto com respeito, que se lida com o trabalhador humano e é como eu digo, muitas vezes somos responsáveis... direto, o trabalhador, o empregador, ele é responsável direto por muitas situações de suicídios que se vê aí, e essa parte nunca aparece, ela nunca aparece, quando uma pessoa chega a cometer um suicídio, é claro que agente sabe que tudo colabora... mas tem questões “X” e já tem situações que a gente tem de sabedoria, de que assim ó a desvalorização, muitas vezes tu é desvalorizado na sociedade, na família, tu te apega a quem?, ao trabalho, o que dizem?, o melhor remédio para o ser humano é o trabalho, edifica o homem, aí tu chega dentro do teu trabalho e tu também é desvalorizado, tu é tratado como um número e hoje em dia tem ocorrido muito isso, não quer tem quem queira.
A partir da escuta dos trabalhadores, realizada na pesquisa, foram emergindo possibilidades para pensar a Clínica do Trabalho no SUS. Essa demanda foi escutada como a necessidade de cuidado a este trabalhador que sofre neste momento específico de sua vida, e, por essa razão, possa superar tal situação com acompanhamento em atendimentos e encaminhamentos relacionados à saúde mental e trabalho.
Na Política Nacional de Saúde do Trabalhador e Trabalhadora, há uma articulação de diversas ações em saúde do trabalhador, mas a Política enquanto tal é ainda muito recente. Não existem serviços que atendam especificamente aos que estão em sofrimento e adoecimento psíquico pelo trabalho, a não ser em algumas ações desenvolvidas pelos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST).
A construção de uma LC pode ser então a expressão da Clínica do Trabalho no SUS e deve estar inserida na rede de saúde já existente, desde que sejam construídas possibilidades para essa inserção. Entende-se que a LC deve estar na discussão da implantação da Política Nacional como uma possibilidade de atendimento para os trabalhadores e trabalhadoras conforme apontado nas diretrizes da Portaria.
As LC estão presentes na legislação recente, em saúde do trabalhador, mas apenas em diretrizes amplas, sem desenvolvimento. Em outras políticas de saúde, como a de saúde mental, da mulher, da criança e do adolescente, por exemplo, já foram constituídas linhas de cuidado que tem sua efetividade (Ceccim & Ferla, 2006).
Entende-se que a demanda dos trabalhadores não é apenas por “atenção médica”, por mais que esta seja muito necessária, a necessidade dos que sofrem se mostra mais complexa. Os trabalhadores e trabalhadoras que participaram da pesquisa estão cansados, em alguns casos totalmente desesperançosos de serem atendidos e revitimizados na comprovação de que realmente estão doentes. Por seu sofrimento ser proveniente do trabalho, esperam uma retribuição, e mesmo que esta não seja o reconhecimento, pelo menos um atendimento digno neste momento de vulnerabilidade.
Apesar de a pesquisa trazer à tona a expressão de sofrimento e adoecimento, a proposta está na possibilidade de resgate do “trabalho como operador de saúde” (Silva & Ramminger, 2014) e da capacidade criativa e inventiva dos trabalhadores (Dejours, 2004), ou seja, o resgate da condução de suas vidas. A possibilidade então de uma LC com este viés coloca o trabalhador como um dos partícipes desse processo que precisa ser construído e leva em consideração as especificidades dos serviços, profissionais e usuários.
Propor a discussão de uma linha de cuidado/escuta em saúde mental do trabalhador e da trabalhadora envolve diversos aspectos, como, por exemplo, o que se entende por cuidado em saúde. Isso significa pensar o cuidado dentro de uma estrutura da organização do trabalho vigente na saúde, bem como quais são os principais componentes, ou melhor, os componentes iniciais para disparar esta discussão e fazer alguns apontamentos.
Entende-se que, para a construção da LC é imprescindível que seja abordada a escuta, como instrumento/ferramenta deste processo, bem como a clínica do trabalho no SUS.
A integralidade, o acolhimento e o vínculo na abordagem ao usuário-trabalhador, a construção do plano ou projeto terapêutico - que é singular para cada um dos sujeitos -, bem como, e por demais importantes, a discussão com os profissionais da saúde - que atendem ao usuário e que são co-construtores desta possibilidade de atendimento centrada no sujeito - são componentes essenciais para serem inseridos nesta construção. Todos estão interligados e são complementares entre si, além de outros, mas para esta discussão, serão apresentados separadamente para melhor compreensão e articulação posterior.
Portanto, antes de desenvolver uma proposta de linha de cuidado, é importante que se possa apresentar o entendimento sobre cuidado em saúde. De acordo com Pinheiro (2009):
‘Cuidado em saúde’ não é apenas um nível de atenção do sistema de saúde ou um procedimento técnico simplificado, mas uma ação integral que tem significados e sentidos voltados para compreensão de saúde como o ’direito de ser’. Pensar o direito de ser na saúde é ter ‘cuidado’ com as diferenças dos sujeitos – respeitando as relações de etnia, gênero e raça – que são portadores não somente de deficiências ou patologias, mas de necessidades específicas. Pensar o direito de ser é garantir acesso às outras práticas terapêuticas, permitindo ao usuário participar ativamente da decisão acerca da melhor tecnologia médica a ser por ele utilizada. (p.112-113).
Nesse sentido, cuidado em saúde pressupõe a participação do usuário em seu tratamento, na forma de atendimento, na decisão acerca do que será feito em relação à sua saúde. Para Merhy (2013a), o cuidado em saúde produz um espaço intercessor entre o trabalhador da saúde e o usuário, semelhante à “construção de um espaço comum” (p. 174-175). Um encontro entre o “agente produtor” e o “agente consumidor”, em que são colocadas em ato as intencionalidades, conhecimentos e representações, expressão de sentimentos e elaborações das necessidades em saúde. E completa: “No mundo do trabalho em saúde a principal finalidade que governa a construção dos atos produtivos é a produção do cuidado.” (Merhy, 2013a, p. 255).
O cuidado é então, fruto das interações entre usuários, trabalhadores da saúde e instituições. Estas relações, interações e encontros vão produzir tratamento com qualidade que tem como componentes o acolhimento, o vínculo e o acompanhamento. “‘Cuidado em saúde’ é o tratar, o respeitar, o acolher, o atender o ser humano em seu sofrimento – em grande medida fruto de sua fragilidade social -, mas com qualidade e resolutividade de seus problemas.” (Pinheiro, 2009, p. 113).
O cuidado, assim, engloba escuta, respeito ao sofrimento do usuário e sua história, pois o sujeito que busca atendimento pressupõe o encontro de cuidado e acolhimento à sua demanda (Pinheiro, 2009a; Merhy, 2007; 2013a). Diversa desta concepção, o cuidado aos trabalhadores que participaram da pesquisa em atendimentos de saúde públicos ou privados tem incluído, ou quase se restringido, à medicalização excessiva. O cuidado na sociedade atual não tem considerado os laços sociais e de solidariedade, levando a um adoecimento coletivo:O exercício da clínica, traduzido em atos de fala, escuta, e que o diagnóstico ganha a dimensão de cuidado, foi sendo ao longo do tempo, substituído pelo ato prescritivo, a relação sumária entre profissional e usuário. (Franco & Magalhães Júnior, 2007, p.127).
Os laços de solidariedade, confiança e respeito no trabalho tem sido substituídos em detrimento da gestão (Dejours & Bègue, 2010). Por essa razão, a estrutura do trabalho, seu sentido, a formatação do trabalho na atualidade e, consequentemente, as relações de trabalho estão em xeque. As pessoas trabalham juntas, mas assim como os objetos materiais, as relações também são passageiras, descartáveis. Não há, nos atuais modelos de gestão, o estímulo por relações mais permanentes e de suporte.
Entende-se aqui que o cuidado em saúde pressupõe uma ética do cuidado e a construção de redes (Franco, 2006). Tendo o usuário como centro da atenção, a partir de suas necessidades, o cuidado, segundo Franco (2006), vai ser sempre produzido em rede. Isto porque as redes se constituem internamente nos serviços de saúde, especialmente no “micro” dos processos de trabalho, criando uma multiplicidade que estabelecem conexões, principalmente comunicando-se, em inter-relação, na construção de novos processos no cotidiano. Mas se faz necessário pensar quais tipos de rede estão sendo constituídas, se como “reprodução da realidade”, produzindo e reproduzindo ultrapassados e antigos métodos de cuidado, ou redes singulares com conexões e fluxos contínuos, constituindo o novo a partir das necessidades dos usuários.
Muitas das dificuldades de novas propostas de atenção à saúde dizem respeito à forma de organização do trabalho nesta área, não diversa de outras, bem como da implicação do profissional de saúde em sua implantação. Assim, o cuidado em saúde e a construção de redes de atenção pressupõem uma modificação ou transformação das estruturas e relações presentes, assimilando novas informações e tecnologias, para o desenvolvimento de mudanças e superação de situações impostas pela realidade, como as transformações no trabalho nas últimas décadas, que se refletem nos serviços de saúde, nos profissionais e nos usuários-trabalhadores.
Para os autores (Franco & Merhy, 2013), estas relações podem ser de duas formas: sumárias e burocráticas, com a produção de procedimentos em atos prescritivos, ou estabelecidas na relação em processo, no cuidado à saúde. Descrevem três tipos de tecnologias em saúde que auxiliam na reflexão de sua incorporação nas práticas assistenciais: as leves, as leve-duras e as duras, como conhecimentos técnicos e/ou instrumentos.
As tecnologias leves têm um caráter relacional e são construídas entre sujeitos trabalhadores e usuários, individuais e coletivos, que nesta relação constroem o cuidado. Nestas estão presentes a construção do vínculo, do acolhimento e da responsabilidade em relação à produção de saúde, pois há nas práticas uma predominância das relações. Já as tecnologias duras, são as inscritas nos instrumentos, pois sua estrutura constrói certos produtos da saúde. Assim como as estruturas organizacionais, que podem ser denominadas de trabalho morto, na medida em que anteriormente passaram por uma produção humana, mas atualmente “são estruturas cristalizadas”, ou ainda como as máquinas, por exemplo (Merhy, 2007). E, as leve-duras, produzidas a partir do conhecimento técnico bem estruturado, num misto de tecnologia e saberes (Merhy, 2007).
Mesmo que os componentes tecnológicos do ato de cuidar coexistam no processo produtivo em saúde, a variação se dá nas possibilidades de combinação entre eles. Dessa forma, temos então, uma proposição de cuidado em saúde que pressupõe a articulação em redes, promotoras de saúde, ancoradas nas tecnologias leves e leve-duras, em atendimento às necessidades demandadas pelos usuários que buscam os serviços de saúde e esperam que nesse encontro profissional-usuário exista uma escuta e resolutividade.
Esses componentes e seus variantes são expressos na LC que surge como um novo modo de abordar e enfrentar as necessidades dos usuários. A ação das equipes e dos profissionais supera a lógica de consultas e encaminhamentos, ampliando assim sua ação como cuidado em saúde.
Como o usuário é o estruturante da LC, seu acesso pode se dar por diferentes formas ou serviços e recursos tecnológicos que necessite. Ao mesmo tempo, a atenção básica está no início da Linha, organizando o fluxo, sendo a responsável pelo cuidado e pela estruturação do projeto terapêutico. A Unidade Básica de Saúde (UBS) ou a Estratégia de Saúde da Família (ESF), assim, garantem o acesso aos demais níveis de assistência, mantendo o vínculo com a equipe inicial e a continuidade ao acesso, que pode ser desde uma visita domiciliar da equipe da ESF até uma internação hospitalar.
Verifica-se, nesta proposta, uma “quebra” no modo de intervenção vigente onde o usuário precisa se moldar ao que é oferecido e não o contrário. Na LC, as ações são construídas e pactuadas coletivamente a partir do acolhimento feito pelo profissional da saúde e sua responsabilização pelo que traz o usuário. Isto é possível na medida em que os processos de trabalho são repensados, no sentido de fazer uma escuta atenta e qualificada, além de encaminhamentos mais resolutivos, seguros e acompanhados pelo serviço e equipe.
Pensando ainda na construção da LC, Franco e Magalhães Júnior (2007) propõem que: “Trabalhamos com a imagem de uma linha de produção de cuidado, que parte da rede básica, ou de qualquer outro lugar de entrada no sistema, para os diversos níveis assistenciais” (p. 130).
Ceccim e Ferla (2006), por exemplo, propõem o diagrama de uma mandala para uma linha de cuidado orientada pela integralidade. O desenho da mandala - diverso da pirâmide, hierarquizada e vertical - representa rede, fluxos, movimento sem necessariamente um acesso específico de entrada ou saída. Os pontos são pontos de rede que articulam dispositivos dinâmicos e flexíveis para as necessidades em saúde.
Independente do desenho que possa ser organizado como balizador para a construção da linha de cuidado, segue-se Franco e Magalhães Júnior (2007), que apontam que: “Desenvolver as linhas de cuidado e colocá-las operando é uma inovação nas propostas assistenciais do SUS” (p. 131).
Com este pensamento, seguimos esta construção avançando agora com mais subsídios para a discussão, pensando nos componentes que integram esta Linha.
A Escuta e a Clínica do Trabalho no SUS
A Clínica do Trabalho pressupõe escuta ao vivido no trabalho. A Clínica do Trabalho segundo Bendassoli e Soboll (2011) de uma forma ampla, pode ser assim definida:
A ênfase da palavra clínica nesse caso é sobre a articulação do mundo psíquico com o mundo social. A clínica do trabalho aproxima-se de uma clínica social, cuja pauta de pesquisa e intervenção é a realidade vivenciada pelos sujeitos. Em não sendo uma clínica exclusivamente do sujeito intrapsíquico, incorpora, em seus questionamentos, a produção social do sofrimento no trabalho, bem como a produção de circunstâncias pelas quais o trabalho é reconstruído pela ação coletiva e individual. (p. 60).
A escuta ao trabalhador que sofre ou está em adoecimento é um processo relacional que deve ser construído com o usuário-trabalhador, pois sabe-se que aquele que busca atendimento em saúde vem por alguma razão, por algo que o incomoda e não permite viver a sua vida em plenitude. Esta aproximação, a partir da escuta ao mesmo tempo em que se resgata o sentido da clínica, coloca o sujeito no centro do processo de busca pela saúde, do resgate da vida.
Campos (1996/1997), ao falar de uma clínica com o sujeito, observa: “Sim uma clínica centrada nos Sujeitos, nas pessoas reais, em sua existência concreta, inclusive considerando-se a doença como parte destas existências” (p. 3-4). Nesse sentido, leva-se em conta a história desse sujeito, como pai, mãe, trabalhador, idoso, pois a clínica se torna pobre ao ignorar essas inter-relações desenvolvidas e necessárias, perdendo a capacidade de resolutividade.
Uma clínica centrada no sujeito pressupõe escuta ao demandado, a investigação e análise do porque se busca atendimento e não apenas o conhecimento dos sintomas apresentados. É necessário investimento na relação clínica e esse investimento precisa ser tanto do usuário quanto do profissional de saúde, assim como o serviço de saúde precisa se mostrar acolhedor ao atendimento. Aquele que busca atendimento está fragilizado em sua condição de “ser” e busca estabelecer minimamente um estado anterior ao da doença.
Essa clínica, então, resulta da problematização que busca superar o pensamento dicotômico entre individual e coletivo, e entre psicológico e social. E ultrapassa as questões apenas intrapsíquicas, na medida em que amplia o caráter individualizado para os acontecimentos de ordem coletiva, como se têm verificado nas situações de adoecimento no trabalho.
Os trabalhadores entrevistados na pesquisa relataram claramente o quanto a falta da escuta ou a sua presença faz diferença em suas vidas e em sua saúde. Nos serviços e atendimentos em que não tiveram escuta a seu sofrimento, se sentiram revitimizados e ainda mais vulneráveis do que já estavam, mas quando tiveram um encontro com um profissional da saúde que soube entender seu momento e acolher sua demanda, esta situação foi totalmente diferente, pois foram acolhidos.
Ao propor um roteiro de entrevista para investigação da saúde mental do trabalhador e o SRQ-20, como ferramentas, não se pretende que isso deva ser seguido como protocolo ou prescrição, mas que, possa servir como um balizador para aqueles profissionais que desconhecem uma forma de investigação neste campo. Independente de um roteiro, é importante que o trabalho seja considerado como parte da vida daquele que busca atendimento e que este também faz parte de sua identidade enquanto sujeito no mundo.
A escuta ao vivido no trabalho pressupõe que o profissional da saúde4 se permita escutar aquilo que o usuário-trabalhador quer apresentar, ou seja, a sua história. Muitas vezes, esta não tem uma linearidade ou a queixa é objetiva, já que nem sempre se tem a clareza do vivido, mas sabendo que, seguramente, a narrativa rompe a solidão e para isso acontecer o trabalhador precisa desejar sair do silêncio em que está colocado. Este desejo pode ser constituído na relação entre profissional e trabalhador, principalmente quando aquele que escuta não se coloca na posição de quem julga o que está sendo dito e nem tenta apenas individualizar a situação, pois a situação vivida no trabalho remete ao coletivo, e também à organização do trabalho (Dejours, 2004; Dejours & Bègue, 2010).
A narrativa remete à revivência do trauma e, como coloca Seligmann-Silva (2008) “Mais especificamente, o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa” (p. 69). Muitas vezes, o narrador perde a certeza da memória daquilo que relata, por desacreditar, ou então, não querer acreditar que o fato realmente tenha acontecido, na medida em que as estratégias defensivas vêm no sentido de buscar ressignificar o sofrimento e aliviar a dor, como lembranças encobridoras.
Há uma tentativa por parte do narrador de preenchimento do sentido para os fatos através do discurso, da narrativa. Como bem coloca Seligmann-Silva (2008), “A imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma” (p. 70). O mesmo autor coloca que o testemunho do trauma só se constitui se existir vontade de escutar, de também ter para si este testemunho que se escuta. O que coloca em questão a implicação do clínico no trabalho dessa escuta e o seu afetar-se por ela.
Ao mesmo tempo, nas situações limite, como as de tentativa de suicídio, temos o sentimento de culpa por ter sobrevivido. Tanto em relação à situação de violência que fez com que o usuário, trabalhador, narrador chegasse ao ato de desejar tirar sua própria vida, quanto o ato em si não ter alcançado seu objetivo, o de morte.
O exercício da clínica, da escuta ao trabalhador, tem mostrado que muitas vezes o responsável pela violência, o assediador, nas situações de trabalho, busca como que aniquilar a possibilidade do relato do “sobrevivente”. Não só se quer silenciar o trabalhador em seu espaço de trabalho como fazer isso em relação à sua vida (Barreto & Heloani, 2014; 2013). O que tem se visto nos relatos, narrativas, é que a intensidade dos atos tem aumentado e acontecido em períodos mais curtos de tempo. Também não se pode esquecer que estas situações ilustram e apresentam na atualidade uma falência ou esvaziamento dos coletivos de trabalho (Dejours, 2004).
A proposta de uma clínica do trabalho no SUS visa reconstruir a possibilidade de fala aos sujeitos que, por sua situação de sofrimento e adoecimento, estão em condição de silêncio e solidão. Resgatar o trabalho como fonte de construção de sujeitos, de transformação do sofrimento em prazer a partir do reconhecimento, são pressupostos desta clínica.
A relação entre clínico e usuário é um espaço de promoção de saúde, de aposta na capacidade inventiva do trabalhador que pode ressignificar sua inserção no espaço social (Silva & Ramminger, 2014; Dejours, 2004). “A escuta clínica funcionaria, então, como uma ação de reapropriação, criando ‘novas’ possibilidades aos trabalhadores em relação ao poder da ação no trabalho” (Bottega, 2014, p. 264). Nas entrevistas, os relatos dos trabalhadores demonstraram o quanto uma “nova narração” a outro fazem com o que o processo seja reconstruído e ressignificado a cada narrativa. Tanto que a individualização da situação e a culpa de terem feito algo errado, muitas vezes, foi sendo substituída por um acontecimento que se deu na relação com o trabalho e pela sua forma de organização. A culpa anterior vai se modificando e dando lugar ao entendimento do que ocorreu em um espaço e relação específicos.
Não menos importante é a inclusão da família no acompanhamento deste trabalhador. De acordo com as entrevistas, os trabalhadores e trabalhadores muitas vezes têm dificuldade de manter um bom relacionamento com a família durante o período de afastamento do trabalho e adoecimento. A família, ou aqueles que estão próximos, companheiro, companheira, pai, mãe, filhos e amigos nem sempre conseguem compreender o adoecimento já que este não é visível, o que é muito comum nas situações de adoecimento psíquico. Esta situação fica mais exacerbada quando é o trabalhador o responsável pelo sustento e/ou organização da dinâmica da família. Além da vulnerabilidade proveniente do adoecimento, a fragilidade é mais intensa por não conseguir auxiliar a família financeiramente no seu cotidiano. A família também precisa ser escutada e esclarecida a respeito do processo que ocorre, sendo participante do cuidado que se entende para além do serviço de saúde.
A partir dos apontamentos dos trabalhadores, pensa-se que esta clínica pode ser constituída em diversos espaços e modalidades. Inicialmente, para que o trabalhador possa ser recebido em sua singularidade e para que se possa a partir dessa relação de confiança, estabelecida no espaço clínico, traçar a construção de um projeto terapêutico (o que será complementado adiante), bem como, oferecer um aporte mais próximo ao sujeito que se encontra muitas vezes desestabilizado psiquicamente e necessitará de acompanhamento de mais de um profissional da equipe como psiquiatra e/ou psicólogo para a administração de medicação, por exemplo.
Vale ressaltar que, muitas vezes, o trabalhador que busca atendimento, mesmo que adoecido, ainda pode estar trabalhando. É importante que neste acolhimento inicial, o profissional da saúde possa verificar a necessidade de afastamento do ambiente de trabalho, com licença por um curto período, inclusive para avaliação mais pormenorizada da situação. Nesse sentido, a clínica do trabalho não é diversa de outra clínica em saúde mental, que busca evitar o agravamento da situação, como por exemplo, as tentativas de suicídio.
Ao mesmo tempo, pelo entendimento de que o trabalho é construído socialmente, coletivamente, entre os pares, sugerem-se também espaços coletivos de discussão, na modalidade de grupos para que o sujeito possa partilhar o vivido com outros e outras que tenham situações semelhantes. Os entrevistados que relataram participar de atendimentos individuais e/ou coletivos em seu local de trabalho, ou nos sindicatos de suas categorias, viram estas possibilidades como importantes espaços de superação. Inclusive suas reflexões foram no sentido de que a rede pública de saúde possa construir propostas semelhantes para outros trabalhadores que não têm encontrado atendimento. O destaque principal foi dado aos grupos, onde os trabalhadores constroem laços de confiança e cooperação que foram perdidos/desconstruídos em seu ambiente de trabalho.
Ao falar das modalidades de atendimento em clínica do trabalho, construída no espaço sindical, Perez (2014), apresenta:
Propõe-se acolher e escutar o sofrimento dos trabalhadores que necessitam de atendimento singularizado e ainda não conseguem participar dos grupos, buscando o fortalecimento da autoestima. A decisão sobre participar do grupo ou fazer acompanhamento psicológico semanal em espaço externo ao sindicato é discutida com o trabalhador atendido, quando é feita a indicação especialmente do grupo pelos benefícios proporcionados por esta metodologia de acompanhamento. Contudo, enfatiza-se que o trabalhador tem plena liberdade de escolha dentre as possibilidades oferecidas. (p. 184).
A modalidade de coletivos de discussão em grupos, como espaço para repensar a organização do trabalho, ou como espaço para outras construções coletivas, tem sido fonte de discussão e reflexão de autores como Dejours (2004), Dejours e Bègue (2010), Campos (2013; 2000), Passos (2013), entre outros. Estes autores apontam que os coletivos podem construir novas possibilidades de gestão dos espaços e de constituição de sujeitos, onde a discussão feita de forma democrática possa ser uma alternativa ao que se vive em locais de trabalho.
Todo o proposto baseia-se na escuta, uma tecnologia leve-relacional, no modelo de cuidar centrado no usuário: “É o que deveria ocorrer em processos de cuidado em que as histórias de vida do usuário são fundamentais e suas formas de compor os processos de cuidado também” (Merhy, 2013a, p. 256).
Conforme colocam Merhy e Franco (2013), não há cuidado em saúde sem integralidade. A integralidade, conforme preconizado na Lei nº 8.080/90 (Brasil, 1990), é um princípio da política de saúde brasileira “[...] que se destina a conjugar as ações direcionadas à materialização da saúde como direito e como serviço.” (Pinheiro, 2009, p. 255).
A integralidade, como modo do organizar as práticas de saúde, exige uma superação da fragmentação e divisão das atividades dos serviços de saúde, com certa horizontalização (Pinheiro, 2009a; Merhy e Franco, 2013). A integralidade é uma estratégia concreta de uma construção coletiva que busca, na prática, superar obstáculos e propor inovações nos serviços de saúde, repensando conceitos, noções e definições que embasam o SUS (Pinheiro, 2009a).
Se, de um lado, a forma de organização de nossa sociedade, baseada no capitalismo, tem favorecido inúmeros avanços nas relações de produção, sobretudo no que diz respeito à crescente sofisticação e progresso de tecnologias em diferentes campos, inclusive na saúde, o mesmo não se pode dizer das relações sociais. Estas revelam o sofrimento difuso e crescente de pessoas que são cotidianamente submetidas a padrões de profundas desigualdades, expressos pelo acirramento do individualismo, pelo estímulo à competitividade desenfreada e pela discriminação negativa, com desrespeito às questões de gênero, raça, etnia e idade.(p. 258).
Frente a estes processos, tem-se a garantia de direitos, o acesso à saúde para todos, e experiências inovadoras que buscam garantir a autonomia e participação no cuidado e na saúde que são desejados pelos sujeitos. Para que a integralidade seja concretizada, como direito, é importante que tenhamos suas três dimensões: “[...] a organização dos serviços, os conhecimentos e práticas de trabalhadores de saúde e as políticas governamentais com participação da população” (Pinheiro, 2009a, p. 259). Como exemplo do alcance da integralidade, temos o acolhimento, o vínculo e a responsabilização na gestão do cuidado.
Sobre o acolhimento para os trabalhadores na clínica do trabalho, Perez (2014) pondera que o acolhimento acontece sem a necessidade de um agendamento prévio. É feito em um primeiro momento a escuta do que é trazido pelo trabalhador que busca o serviço.
Ao falar dos atos tecnológicos formados no ato de cuidado, Merhy (2013a), diz que um elemento só se realiza no encontro com o outro, pois “[...] é um elemento que se evidencia pela ação na presença do outro no mundo do cuidado, no encontro, com a prática do acolhimento” (p. 255). O acolhimento é a relação humanizada, acolhedora, que pode ser estabelecida pelos trabalhadores e o serviço de uma forma geral para todos os usuários. A relação dos trabalhadores de saúde com os usuários estão sempre pautadas em relações de falas e escutas, onde se acolhe ou não aquilo que é demandado, mas que pressupõe um enfrentamento ao problema que se apresenta, sendo necessário o estabelecimento de alguma vinculação.
O vínculo ou a construção de laços é um fator de potencialidade para os percursos e caminhos possíveis para o usuário na construção de um projeto terapêutico singular. Para Malta e Merhy (2010), o itinerário do usuário pela LC pressupõe uma rede de serviços que suporte as ações necessárias para a composição de um projeto terapêutico que seja adequado e que conduzirá o processo de trabalho e o acesso aos recursos disponíveis.
O projeto terapêutico pressupõe, então, uma construção entre usuário e profissional, ou equipe de saúde, sobre propostas e/ou condutas de cunho terapêutico a serem trabalhadas em determinado momento, como um cuidado específico em saúde. O projeto deve se basear em uma avaliação diagnóstica e, a partir dela, conter ações com perspectivas de curto, médio e longo prazo. Preferencialmente, a situação do usuário e o seu projeto devem ser acompanhados pela equipe do serviço que pode necessitar de apoio matricial5. Um projeto deve estar sempre sujeito à reavaliação devido às situações de vida não serem estanques e estarem suscetíveis aos mais diversos acontecimentos (Brasil, 2008). É importante também, que além dos recursos de saúde disponíveis, dentro do sistema, levem-se em conta as redes de apoio sociais existentes na comunidade do usuário, além da participação ativa da família, conforme já apontado (Malta & Merhy, 2010).
A ‘linha de produção do cuidado’ não se encerra no momento em que é estabelecido o projeto terapêutico, ela deve continuar no acompanhamento deste usuário para garantir a integralidade do cuidado. Existem diversas etapas neste percurso (LC) que são microprocessos de trabalho específico, determinado pelos atos de cada produtor de serviços/profissional de saúde envolvido. (p. 601).
O projeto terapêutico se constitui também como uma possibilidade do profissional da saúde e equipe repensar suas práticas na medida em que se faz a partir de uma construção coletiva e que reorganizam os atendimentos, os serviços e a rede disponível para oferecimento. É um momento, ao mesmo tempo, de corresponsabilização e pactuação entre o profissional e usuário que se comprometem em buscar uma melhoria de saúde individual, mas com uma proposta coletiva.
Construção da LC com os profissionais da saúde
As questões de saúde e doença estão sempre presentes em nosso cotidiano, sejamos profissionais da saúde ou não. Mas a proximidade com o adoecimento alheio nos aproxima de uma realidade: de que também podemos adoecer. Estar próximo de usuários que adoecem em função do trabalho, traz aos profissionais da saúde a possibilidade de que podem adoecer por razões semelhantes. Por essa razão, entre outras tantas, falar sobre saúde do trabalhador na área da saúde não é uma tarefa fácil.
Para pensar esta LC, é necessário que o profissional da saúde inicialmente tenha o tema ou componente trabalho fazendo parte de seu cotidiano na prática da atenção em saúde. É preciso que os profissionais da saúde se vejam como trabalhadores que atendem outros trabalhadores e que, portanto, entendem o quanto o trabalho é importante na vida. O trabalho deve estar inserido na discussão do atendimento em saúde e não pode estar fora da dimensão de um componente promotor de saúde e doença.
Conforme se buscou construir ao longo deste texto, colocar a questão do trabalho em discussão e esta proposta na esfera dos serviços de saúde é de suma importância, principalmente porque a demanda por atendimentos tem batido à porta. E uma coisa é verdadeira, comprovada por estatísticas, pelas entrevistas e pela prática de profissionais nas mais variadas áreas da saúde: o trabalho faz sofrer/adoecer e este adoecimento tem aumentado nos últimos anos.
Por isso, a proposta de discutir com os profissionais que atendem na área pública e privada, mas principalmente nos serviços do SUS a respeito de qual o sentido do trabalho na atualidade, porque as pessoas adoecem pelo trabalho e o que podemos fazer quando nos deparamos com os trabalhadores que tem esta demanda específica. Uma das sugestões aqui apresentadas é o uso da cartilha produzida no Projeto “Proposta para construção de rotinas de atendimento em saúde mental e trabalho em pacientes atendidos na rede do Sistema Único de Saúde” (Merlo, Bottega & Perez 2014)6.
Nesta cartilha, foram organizados aspectos que podem ser disparadores desta discussão, já que por experiência nesta área sabe-se o quanto é difícil lidar com as questões relativas à saúde mental e mais especificamente as do trabalho. Muitas vezes, os profissionais da saúde sentem-se paralisados quando um trabalhador chora, relata violência, assédio, ou diz ter atentado contra sua própria vida. Então, a proposta é que esta discussão, assim como este sofrimento de quem atende, “entre na roda”, quebrando-se esta paralisia, e se apontando criativamente novas vias de atendimento como a proposta de LC.
Mas sabe-se que essa discussão não é suficiente. Apesar de ser um começo, e uma possível ferramenta para futuras mudanças, é necessário também que a organização dos processos de trabalho em saúde seja repensada e enfrentada para que opere centrada nas necessidades do usuário (Franco & Magalhães Júnior, 2007). Assim, para a integralidade do cuidado, a organização dos processos de trabalho deve ser revista desde a atenção básica ou outra porta de entrada, conforme desenho proposto anteriormente.
Por experiência, os profissionais e consumidores sabem que, quanto maior a composição das caixas de ferramentas utilizadas para a conformação do cuidado pelos trabalhadores de saúde, individualmente, ou em equipes, maior será a possibilidade de se compreender o problema de saúde enfrentado e maior capacidade de enfrentá-lo de modo adequado, tanto para o usuário do serviço quanto para a própria composição de processo de trabalho. (Merhy, 2007, p. 28)
Conforme aponta Merhy (2007), de acordo com os modelos de gestão adotados, os processos de trabalho nem sempre têm possibilitado a produção do cuidado num compromisso com a cura e com a promoção. Usuários e trabalhadores da saúde vivem duras experiências no cotidiano da saúde brasileira, pautado muitas vezes numa lógica de controle de custos das ações em saúde que impedem a criação de novas práticas ou alternativas.
Vê-se que fazer essa discussão aponta vários desdobramentos que pressupõem não apenas um olhar para o usuário-trabalhador, mas também e, em certa medida, repensar conjuntamente a organização do trabalho em saúde. Para isso é necessário o envolvimento de gestores, trabalhadores e usuários numa espécie de “pacto” de adesão a um projeto de mudança que envolve vontade política e, principalmente, os recursos de negociação, interlocução e predisposição para a construção do novo.
Considerações Finais
Coloca-se como possibilidade para composição no SUS, a construção de uma linha de cuidado/escuta em saúde mental do trabalhador e da trabalhadora que permita ações de cuidado entre os profissionais, usuários e serviços que priorizem o momento de vida do usuário e possam ser resolutivas visando à promoção de saúde. A escuta atenta, enquanto tecnologia leve, o acolhimento no serviço, e a possibilidade de cuidado integral ao sujeito em sofrimento podem garantir qualidade e resolutividade.
A organização do roteiro para as entrevistas e o uso conjunto do SRQ-20 possibilitaram o entendimento da história do trabalhador, sua relação com o trabalho e de sua saúde em intrínseca associação com o vivido no espaço laboral. Esta ferramenta pode se constituir como acessória para profissionais da saúde que necessitam fazer investigação diagnóstica da relação saúde mental e trabalho, além de trazer importantes questionamentos para construir uma proposta de acompanhamento terapêutico para o trabalhador ou trabalhadora que busca o serviço.
Mas, para isso, é necessário que os profissionais da saúde incluam na entrevista inicial dos usuários a questão do trabalho. Um simples questionamento, voltado para a atividade de trabalho realizada, pode abrir caminhos diversos daqueles em que fosse apenas investigada a sintomatologia manifesta. Por isso, na LC, são construídos e pactuados, com os envolvidos, movimentos para ações que sejam mais resolutivas acompanhadas com a responsabilização da equipe e serviço. Isso pode ser expresso em um projeto terapêutico que, coletivamente traçado, pode vir a ser dinâmico e flexível o suficiente às situações apresentadas.
A clínica, expressa na LC, é uma clínica de suporte e acompanhamento que pressupõe a criação de vínculo e confiança entre usuário e profissional da saúde. Essa clínica pode ser tanto em caráter individual, inicialmente, quanto de forma coletiva, na medida em que os grupos oferecem importante suporte para os participantes que reconhecem nos pares situações semelhantes às suas. O grupo resgata o caráter coletivo que não se encontra nos espaços de trabalho.
A discussão da Clínica do Trabalho no SUS pressupõe trazer a questão do trabalho para a roda. Tanto o trabalho que muitas vezes faz adoecer os trabalhadores que buscam os serviços de saúde, como o próprio trabalho em saúde. Utilizar-se de novas tecnologias e quebrar com estruturas já organizadas é necessário para desacomodar e repensar as práticas cotidianas.
Esta compreensão foi construída coletivamente em relações estabelecidas durante o estudo, e não somente neste período, com trabalhadores e trabalhadoras, profissionais de saúde e nos serviços do SUS. A pesquisa buscou, nas possibilidades aqui apresentadas, contribuir na construção e afirmação da política para a saúde do trabalhador, principalmente voltada para a rede de saúde pública.
Referências
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Data de submissão: 10/04/2016
Data de aceite: 30/09/2016
1 A Tese “Clínica do Trabalho no Sistema Único de Saúde: Linha de Cuidado em saúde mental do Trabalhador e da Trabalhadora” foi defendida em março de 2015, no Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
2 O SRQ-20 é um instrumento utilizado para rastreamento psiquiátrico, sendo indicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para uso de apoio diagnóstico principalmente nos serviços de atenção básica. Contêm na versão brasileira 20 questões, sendo que as respostas são tipo sim/não, podendo ser aplicado ou auto-respondido.
3 O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), conforme parecer nº 242.339, e pela Comissão de Ética em Pesquisa do mesmo Hospital. O financiamento foi próprio. Não há conflito de interesses.
4 Quando se fala em profissional de saúde, não significa necessariamente que apenas um profissional esteja envolvido, ao contrário, é importante o envolvimento de uma equipe do serviço.
5 Apoio matricial é uma nova lógica de produção do processo de trabalho onde um profissional atuando em determinado setor oferece apoio em sua especialidade para outros profissionais, equipes e setores. Inverte-se, assim, o esquema tradicional e fragmentado de saberes e fazeres já que ao mesmo tempo o profissional cria pertencimento à sua equipe,setor, mas também funciona como apoio, referência para outras equipes (Rede Humaniza SUS, 2014).
6 A Cartilha é um dos produtos do projeto aprovado em edital do Ministério da Saúde, mais especificamente a Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador (CGSAT) do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador
I Carla Garcia Bottega: Psicóloga, Professora adjunta em Saude coletiva na UERGS. E-mail: carlabott@terra.com.br
II Alvaro Crespo Merlo: Médico do Trabalho, Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: merlo@ufrgs.br
Tabela 1: Demonstrativo dos trabalhadores/trabalhadoras entrevistados
Sexo | Idade | Escolaridade | Atividade / Área de Trabalho | Ativo ou Licença | |
1. | F | 39 | Nível médio | Cartazista / Comércio | LS - INSS |
2. | F | 41 | Nível médio + técnico | Tec. Nutrição / Educação | LS |
3. | F | 48 | Nível médio | Aux. Serviços gerais / Saúde | Ativo |
4. | M | 27 | Nível médio incompleto | Segurança Patrimonial | LS - INSS |
5. | F | 58 | Superior Compl. | Recepcionista / Saúde | Ativo |
6. | F | 38 | Ensino Fund. | Costureira / Indústria | LS |
7. | F | 43 | Nível médio | Técnica enfermagem | LS |
8. | F | 36 | Nível médio | Atendente de nutrição | Ativo |
9. | F | 36 | Nível médio | Atendente de nutrição | LS |
10. | F | 34 | Superior incompleto | Assistente adm. / Saúde | LS |
11. | F | 43 | Superior compl. | Educadora social | LS - INSS |
12. | M | 42 | Nível médio | Técnico enfermagem | LS - INSS |
13. | F | 50 | Nível médio | Aux. Serviços gerais / Saúde | LS |
14. | F | 28 | Nível médio | Educadora assistente | Ativo |
15. | F | 40 | Nível médio | Instrumentadora cirúrgica | LS |
16. | M | 37 | Nível médio | Aux. Serviços gerais / Saúde | Demitido / em tramitação judicial |
17. | F | 34 | Nível médio | Costureira / Saúde | LS - INSS |
18. | M | 33 | Nível médio | Mecânico / Indústria | LS - INSS |
19. | F | 51 | Nível médio + técnico | Cozinheira / Indústria | LS - INSS |
20. | F | 51 | Nível médio | Assistente adm. / Indústria | LS - INSS |
21. | F | 45 | Superior incompleto | Pratico de laboratório | Ativo |
22. | F | 51 | Nível médio | Auxiliar de enfermagem | Ativo |
23. | F | 40 | Nível médio | Auxiliar de enfermagem | LS |
24. | F | 42 | Nível médio | Auxiliar de enfermagem | LS |
Fonte: Elaborado pela autora com base nas entrevistas realizadas (2015).