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Analytica: Revista de Psicanálise
versión On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.4 no.6 São João del Rei enero/jun. 2015
A natureza mortífera do rótulo nosológico e a criança diagnosticada
The nature deadly nosological labels and the child diagnosed
La nature mortelle de l'étiquette nosologique etl'enfant diagnostiqué
La naturaleza mortal de la etiqueta nosológica y el niño diagnosticado
Cleber Lizardo de Assis
Doutorando em Psicologia Unisersidad del Salvador-AR. Mestre em Psicologia-Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Docente da Faculdade de Educação e Cultura de Porto Velho - UNESC-RO kebelassis@yahoo.com.br
RESUMO
Desenvolve reflexões sobre a psicopatologia infantil, a partir da proposta freudiana da psicanálise, seu conceito de sexualidade e de criança, sobretudo ao apresentar o determinismo psíquico na fórmula da "criança pai do adulto". Defende-se uma abordagem da psicopatologia na clínica psicanalítica para além dos diagnósticos fechados e sistematizados pelos códigos psicopatológicos e amplamente divulgados no meio acadêmico e social tais como o DSM IV e CID 10; propõe a utilização do método clínico e introduz-se vinheta de caso clínico de uma criança diagnosticada e atendida em perspectiva da psicanálise winnicottiana, sobre o qual discute-se a idéia de resiliência psíquica e algumas possibilidades de abordagem profilática da criança na clínica e na educação.
Palavras-chave: Psicopatologia Infantil; Psicodiagnóstico; D. W. Winnicott.
ABSTRACT
Develop reflections on child psychopathology, based on the proposal of freudian psychoanalysis, the concept of sexuality and child, especially when presenting psychic determinism in terms of the "adult child's father." Advocates an approach in psychoanalytic psychopathology beyond the closed and systematic diagnostic codes psychopathology and widely disseminated in the academic and social such as DSM IV and ICD 10, defends the use of clinical method and introduce the sticker clinical case of a child diagnosed and treated in the perspective of Winnicott's psychoanalysis, about which discusses the idea of psychological resilience and some possibilities for prophylactic approach the child in the clinic and education.
Key words: Child psychopathology; Psychodiagnostic; D. W. Winnicott.
RÉSUMÉ
Développe une réflexion sur la psychopathologie de l'enfance, de la Psychanalyse, sa conception de la sexualité et de l'enfant proposition freudienne, en particulier lors de la présentation déterminisme psychique dans la formule «enfant parent du adulte". Défend une approche à la psychopathologie dans la clinique psychanalytique au-delà de la fermeture et systématisée par codes psychopathologiques et publié de nombreux ouvrages dans l'environnement scolaire et social tels que DSM IV et CIM 10 diagnostics; propose l'utilisation de la méthode clinique et introduit cas clinique vignette d'un enfant est diagnostiqué et traité en perspective de la Psychanalyse de D. W. Winnicott, sur lequel nous discutons de l'idée de résistance psychique et des possibilités d'approches prophylactiques aux enfants en clinique et à l'éducation .
Mots-clés: Psychopathologie des enfants; Psychodiagnostique; D. W. Winnicott.
RESUMEN
Desarrolla reflexiones sobre la psicopatología infantil del psicoanálisis freudiano, su concepto de la sexualidad infantil, especialmente en la presentación de determinismo psíquico en la fórmula del "padre de los hijos adultos". Aboga por un enfoque de la psicopatología en la clínica psicoanalítica más allá de los códigos de diagnóstico psicopatológicos cerrados y sistematizado, cón amplia difusión en el académico y social, tales como el DSM-IV y CID-10; se propone la utilización del método clínico e introduce viñeta de caso uno niño diagnosticado y tratado en la perspectiva de la Psicoanálisis de Winnicott, en el que se discute la idea de la resiliencia psiquica y algún posible enfoque profiláctico al niño en la clínica y la educación.
Palabras-clave: Psicopatologia Infantil; Psicodiagnóstico; D. W. Winnicott.
Freud: da recriação da criança à criação do infantil
Além de criador da Psicanálise, Sigmund Freud, poderia ser apontado como reinventor da noção de criança, pelo seu ineditismo para a sua época e que até hoje parece uma novidade assustadora. Assustadora porque sexual, inicialmente.
Seja a infância em termos cronológicos e relativos a uma fase do desenvolvimento do "pequeno adulto", sejam os modos de representar e de tratar social e culturalmente esse ser (Ariès, 1973), seja ao desvelar a natureza psicossexual do infantil que habita a própria infância e que extrapola a suposta adultez do próprio sujeito suposto-maior de idade. Em suma: na criança habita o infantil sexual, no adulto também.
O eixo dessa mudança de concepção da criança era a mutação revolucionária que Freud atribuira à sexualidade: de mera função reprodutora à sua utilização também como fonte de prazer e como elemento processual de desenvolvimento normal da espécie humana. Nesse sentido, podemos afirmar a presença da função sexual desde o princípio da vida e do nascimento, como da relação imbricada entre as funções de prazer e de reprodução. A criança, portanto, é sexual e mais ainda, "perversa polimorfa", isto é, possui formas variadas e particulares, polimorfas, de desfrutar sua sexualidade de forma prazerosa (Freud, 1905/1972).
O fato é que o pensamento sobre a criança, a sexualidade e o funcionamento do psiquismo humano pós-Freud sofreria alterações por completo e traria novos desafios para a compreensão e intervenção naquilo que se denominasse de "patológico" e sua relação a uma determinada "normalidade", reduzida a uma normatividade estatística.
Essa novidade psicanalítica seria o que poderíamos chamar de "determinismo do infantil psíquico", em que operaria a inversão elaborada por Freud (1905/1972), no volume VII dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade Infantil, sob a forma de sua expressão "a criança é o pai do adulto (...)". De outra forma: o psiquismo é infantil e determina de forma inconsciente, seja a criança e o próprio adulto.
Mais do que jogo de palavras, Freud estabelece que essa criança psíquica (e aqui falamos do infantil e não meramente cronológico-desenvolvimental) seria o fator determinante do funcionamento inconsciente do adulto: as psicopatologias e, portanto, as intervenções psicanalíticas deveriam ocorrer marcadamente junto a essa criança psíquica e sofrível que habitaria todos os pacientes.
Leclaire (1977) discorre sobre a necessidade de "matar essa criança", o que traduzimos por "matar o infantil" no nível simbólico, o infantil atrelado ao processo primário e crente em toda a sua maravilha, onipotência e sedução, o que seria o objetivo do trabalho psicanalítico. No entanto e, obviamente, para não cairmos na tentação simplista de acreditarmos que podemos concretizá-la (e por definitivo, matá-la), sabemos que o infantil é inevitável e habitará sempre o psiquismo, pulsando, seduzindo e demandando um trabalho psíquico. E é nesse sentido que o processo analítico, como da ordem do paradoxal
consiste em matar a criança maravilhosa (ou aterrorizante), que, de geração em geração, testemunha acerca dos sonhos e desejo dos pais; só a vida a esse preço, pela morte da imagem primeira, estranha, na qual se inscreve o nascimento de cada um. Morte irrealizável, mas necessária, pois não há vida possível, vida de desejo, de criação, se cessarmos de matar a "criança maravilhosa" que renasce sempre 1(LECLAIRE, 1977, p. 10).
Sem aventar uma discussão sobre o significado e as implicações teórico-clínicas do processo analítico, o que foge ao escopo deste trabalho, há algo nessa discussão sobre o 'psiquismo infantil' que pode trazer questões difíceis e cruciais para o analista: ele próprio, embora adulto e detentor de um 'suposto saber' adulto, é também "vítima" dos encantos de seu próprio infantil.
E como se não bastasse uma "clínica do infantil no adulto", tal questão nos remete à clínica da criança e seu infantil, epicentro de suas psicopatologias surgidas nas mais tenras idades; temos o desafio de uma clínica ao encontro dessa criança biológica e seu psiquismo em formação junto aos seus genitores/cuidadores, também portadores de seus próprios infantis psíquicos, gerando um circulo vicioso em que mais uma criança dará luz à "roda dos nascimentos" de seres maravilhosos e aterrorizantes, mas marcados cada qual pelo seu pathos singular e intransferível.
E ainda há um elemento que articulamos à baila, como a questão fosse de pouca monta, temos a problemática da psicoterapia com crianças que se depara com um elemento particular de nossa modernidade e seu furor "científico-classificatóide": os diagnósticos nosológicos.
A criança no tempo das classificações e dos diagnósticos paralisantes
Na linha desse desafio da clínica psicanalítica da criança cronológica, num tempo que desconsidera a noção psicanalítica do infantil postulada, suspeitamos que outro cuidado exigido ao analista seria o de atentar para o rótulo e a categoria da nosologia psicopatológica que envolve o paciente e seus pais. Nossa percepção é de que tais rótulos podem se constituir em uma tecnologia de paralisação, assim como de silenciamento do sujeito e seu psiquismo cifrado no sintoma manifesto, desafiando o terapeuta a uma eliminação do significante mortífero e a uma "parturização" de significantes emergentes no paciente que lhe favoreçam a vida e a saúde. Aqui, o analista assumiria um papel de parturiante de sujeitos desejantes, posto que o infantil onipontente, de que fala Leclaire, precisaria morrer.
Numa perspectiva de classificação e de enquadramento mais nosográficos que nosológicos, as psicopatologias ganharam, na atualidade dos códigos DSM-IV e V (Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Americana), além do CID-1O (Classificação Internacional de Doenças), uma tentativa de englobar os diversos quadros de sofrimento psíquico e facilitar um "norte" ou "chão" para a abordagem psicoterapêutica.
Nesse sentido, todo o campo psi, composto dos mais diversos profissionais, teorias e técnicas do terreno da saúde mental, utiliza desses códigos como norteadores-padrões para o diagnóstico e o prognóstico da doença mental. Tais classificações já conquistaram o senso comum, de forma que as nomenclaturas das patologias invadem os periódicos populares, as mídias e as instituições sociais, sobretudo, os discurso de educadores e pais.
O problema que apontamos ocorre quando tais classificações tornam-se rótulos e estigmas rígidos que, reduzindo o sujeito a um conceito, restringem suas diversas possibilidades simbólicas de fala e de receber atenção integral como pessoa; ou seja, o rótulo nosológico, emudecendo o sujeito em nome da medicalização do indivíduo (Lopes, 2009). Aqui, mata-se a subjetividade, mas não o infantil psíquico-desejante.
Ainda mais se tratando de uma criança e seus pais, esses diagnósticos fechados e vulgarmente repetidos se constituem em estigmas que se transformam numa cadeia de significantes em que o sujeito experimenta certo ganho secundário, sem, no entanto, permitir a esses próprios sujeitos uma fala-sobre-si, posto que o sofrimento produz movimentos subjetivos e, portanto, eliminam a possibilidade de operar processos de insight e de abertura a uma intervenção em profundidade.
Importante salientar que tais intervenções psicanalíticas com crianças no Brasil têm sido historicamente marcadas por demandas formuladas por queixumes da escola à medicina, em especial à psiquiatria (Abrão, 2009), locus que vem hegemonizado o saber sobre o pathos infantil e que, temo, esteja numa associação perversa com a indústria bélico-farmacológica para emudecer o sujeito desejante.
O Método Clínico e vinhetas de um caso atendido
Visando arejar um pouco nossa argumentação teórica, evocamos fragmentos de um caso clínico e defendemos como de suma importância a utilização do método clínico para a investigação e intervenção psicanalítica junto à criança e seus pais, numa espécie de clínica que denominamos de "resistência" à era classificatóide dos rótulos nosográficos.
Nesse sentido, segundo Berlink (2009), um dos usos do método clínico seria o de "descobrir maneiras de pôr em palavra o obscuro (...)", sobretudo, porque o elemento psíquico "é sempre singular e não pode ser regido por normas institucionalizadas (...)" (Berlink, 2009, p. 443, 444). O método clínico, nesse sentido proposto pela Psicopatologia Fundamental, ajudaria o analista a extrapolar o rótulo instituído e institucionalizado sobre os diversos tipos de sofrimento psíquico, superando uma possível morte do sujeito e de sua subjetividade.
Obviamente, o método clínico não nega os discursos das formulações sociais sobre determinado sofrimento, tampouco reduz suas descobertas do setting às generalizações nosológicas convencionadas.
O que precisamos nessa clínica é, a partir desse método, possibilitar uma escuta diferenciada ao sujeito, de forma que a palavra emirja do obscuro e que o singular do desejo se mova de um lugar que poderia ser destinado à paralização pelo rótulo psicopatológico. Essa foi nossa aposta.
Num caso clínico atendido, a criança de 8 anos chegou com diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade - TDAH, a partir de um encaminhamento da escola, que por sua vez recebeu diagnóstico psiquiátrico de uma Unidade de Saúde, corroborado pela adesão dos pais, num conluio de discursos fechados sob a nomenclatura psicopatológica.
Os pais reclamavam de problemas de rendimento escolar, dificuldade de leitura e escrita, de concentração em qualquer atividade, inclusive no brincar, além de muita agitação. Começamos a notar que tal diagnóstico, embora os pais estivessem angustiados, culpados e apreensivos, oferecia certo conforto para as questões familiares e fazia com que os mesmos colocassem toda sua atenção e atuação girando em torno de tal classificação, como se reduzindo o sujeito a isso.
Indagamos sobre o sentido de tais nomenclaturas e classificações para o sujeito. Como ele se situava/posicionava mediante essa rotulação? Quais ganhos existiam e qual preço a pagar por permanecer em tal lugar? O que se queria dizer com aquele leque sintomático, principalmente na teia de afetos, desejos e significações dos pais?
Destacamos haver uma justaposição de vários discursos pedagógicos e científico-patológicos, sendo que todos desconsideravam o discurso da própria criança em questão: da escola vinha um discurso de hiperatividade, validado por atestado médico-psiquiátrico, assim como por uma passagem anterior em clínica-escola de curso de psicologia, mas também pelos discursos moralizante-culpabilizador dos pais que se referiam às diversas 'coisas' formuladas com base nos discursos normativos.
Nesse sentido, adotamos como estratégia clínica de intervenção, desde o começo do atendimento, não nos prender ao rótulo, como se esse fosse maior que a criança. A aposta era escutar a partir da criança, o seu infantil em busca do movimento pulsional-desejante; daí buscamos nos abstrair ao máximo do poder paralisante da classificação nosológica, de forma a oferecermos um espaço de escuta isenta (de pais, escola, profissionais e de Códigos) desse sujeito singular que, mesmo criança, teria algo a ser dito sobre seu pathos. Um exercício de "abstração das classificações psicopatológicas" que exige do analista um movimento de não-cooptação pela nomenclatura e toda a sua carga diretiva de diagnóstico e prognóstico.
Ressalvamos que não descartamos a ampla pesquisa e tradição científica que vêm forjando um sem número de categorias acerca dos cuidados da saúde e do tratamento das diversas psicopatologias expressas nesses códigos; nosso desafio não se reduzia ao furor curandis irresponsável, mas buscava dialetizar uma intervenção situada entre a classificação ricamente codificada e a angústia produtiva no analista em busca de um savoir-faire singular a partir do sofrimento do paciente.
Em suma: para escutar a criança na clínica psicanalítica, urge que ela seja concebida para além de um mero ser em desenvolvimento biofisiológico, mas que o seu infantil psicossexual seja respeitado e, por isso, desejante e singular.
Nossa hipótese é que o sujeito demandava emergir para além do lugar pré-determinado dos discursos escolar-médico e familiar, mas qual o espaço fornecido para que seu verdadeiro self pudesse aparecer com sua voz singular e para além do discurso patológico estabelecido pelo Outro?
À guisa de aprofundamento teórico-clínico, alguns conceitos winnicottianos foram balizadores de nossa condução do caso: espaço potencial, dimensão da fantasia básica e espontânea que permite à criança transitar por vários mundos criados no decorrer de seu amadurecimento e que possibilita estabelecer suas relações objetais. Relacionado a esse espaço propõe o objeto transicional, esse outro presente-ausente suportador da possibilidade de agressão objetal, mas sem a sua destruição total/real e, principalmente, possibilitador de sua recriação. Como consequência dessa agressão criativa, discorre sobre a criatividade como um movimento espontâneo e saudável, fruto da maturação saudável produzida pela interação bebê e a 'mãe suficientemente boa'. Por ambiente facilitador, Winnicott designa o conjunto de cuidados que precisam ser oferecidos à criança, privilegiando o papel da mãe ou da pessoa que cuida. Falha ambiental/falha severa se refere à desestruturação ambiental, em termos maternais, que pode gerar um sentimento despedaçamento da criança, além de angústias intensas. Já por Mãe suficientemente boa, supõe-se aquela que desempenha bem sua função materna, isto é, se identifica com seu bebê, bem como fornece condições para que ele exista, se expresse e forme seu próprio self, mesmo sob gestos e movimentos agressivos.
Adotamos, nesse sentido, uma perspectiva winnicottiana, de forma a oferecer um ambiente estável em que a criança se sentisse acolhida e "suportada" (holding), conforme em D. Winnicott (1960/1983), para se manifestar e se desenvolver para além do rótulo carregado. Nesse sentido, o nosso "ambiente qualitativo bom" consistiu no fornecimento de um espaço-ambiente, o que incluiu o próprio analista como suporte que favorecesse a expressão do sujeito emudecido pelos discursos fatalistas; operar algo como uma mortificação do significante-rótulo nosográfico para o desejo legítimo da criança.
Importante salientar que, sem negar os processos internos, Winnicott (1960/1987; 1960/1986; 1963/1983) atribuía ao ambiente um fator decisivo na etiologia de doenças ou na promoção da saúde, mas sem reduzir esse processo ao nexo de tipo causal simplista e redutor do homem-produto-do-meio.
Winnicott se apropriou da psicanálise numa perspectiva maturacional do desenvolvimento humano, com destaque para os cuidados da criança na fase precoce, a sua segurança e as falhas no seu cuidado emocional, com ênfase na relação mãe/pessoa que cuida e o bebê, principalmente por ser uma fase decisiva para o amadurecimento do futuro adulto. No entanto, Winnicott não se esqueceu do aspecto infantil que move o psiquismo dos pais e da própria criança.
Nossa compreensão, à luz do caso, é que esses rótulos nosológicos são favorecedores de uma manutenção do falso self que, segundo Winnicott (1960/1983), mesmo sendo protetor do sujeito em alguma medida, pode se constituir em patologia, da ordem da estereotipia e da rigidez. Escutar uma criança apenas atrelada ao seu rótulo nosológico é silenciá-la em sua subjetividade, condená-la ao ostracismo clínico e favorecer o seu falso self.
Já um setting "qualitativamente bom" favoreceria um constituir de elementos verdadeiros e criativos na criança, mesmo sob a expressão de sintomas de hiperatividade, desatenção e certa impulsividade, expressões do seu infantil, cabendo ao analista a maternagem e contenção necessárias.
Também adotamos como tática uma postura esquiliana resgatada pela Psicopatologia Fundamental do aprender com o próprio pathos (grego, patei mathos), de forma a possibilitarmos uma escuta da criança a partir de seu sofrimento singular. Ou seja, o tipo de sofrimento manifestado sob a forma de sintomas precisa ser acolhido, de modo a produzir palavra.
Nossa intervenção clínica desenvolveu-se, portanto, nessa perspectiva de oferecer uma escuta da criança que favorece identificar seu pathos no meio dessa trama discursiva rígida dos códigos nosológicos, dos pais e de suas crianças psíquicas, de maneira a produzir um saber-fazer que possibilitasse à criança des-alienar desses lugares que se constituem numa "clausura e sofrimento".
O espaço terapêutico foi oferecido como locus para a criança se apresentar num todo como sujeito para além de sua patologia diagnosticada. O terapeuta torna-se uma "mãe suficientemente boa" para o paciente, isto é, torna-se facilitador do surgimento de um self a se desenvolver; não consiste em atender aos impulsos magalomaníacos do paciente, mas em reconhecer as demandas e desejos do psiquismo infantil, estimulando sua regressão de forma que "enlouqueça" e permita a emergência do verdadeiro self.
Utilizamos de técnicas ludoterapêuticas como desenho livre, da família e introduzimos com adaptação, o Teste dos Rabiscos formulado por Winnicott, que consiste num jogo de desenho conjunto entre terapeuta e paciente. Também utilizamos jogos e brinquedos disponíveis, numa perspectiva em que o brincar tomou perspectivas de 'sinal de saúde', facilitador da fala/expressão inconscientes, com função também diagnóstica e de intervenção. Esses desenhos se constituíram em instrumentos importantes para a intervenção, além de serem prazerosos para a criança: neles apareceram cenas do romance familiar, os desejos da criança em ter um pai que lhe 'segurasse' mais pelas mãos, a chegada de um irmão, as figuras significativas (pai, mãe, tia e o terapeuta atual).
O terapeuta ofereceu um suporte num setting lúdico que pode ter ajudado a fortalecer a experiência de holding diante da imagem de um pai que apareceu na dinâmica familiar como enfraquecida. Sobre a queixa da existência de uma escola pouco acolhedora, o setting constituiu-se um lugar de prazer e de suporte para atividades escolares, numa forma de ajudar no processo de adaptação ao princípio de realidade.
Fato emblemático foi a cena quase final de uma das últimas sessões, em que a avó da criança confidencia ao analista sobre outros sintomas que a criança apresentava na escola e em casa (tiques como piscação de olhos e mordeção de blusa), ao que ouvi surpreso por nunca ter presenciado tais sintomas durante o nosso tempo juntos. Refletimos, outrossim, sobre os diversos funcionamentos daquela criança conforme a sua vivência de prazer/desprazer, de presença/ausência diante de suportes in/suficientes, mas também em sua resposta às expectativas do desejo do outro: afinal que sujeito é esse que emergia na clínica onde os sintomas desapareciam? Haveria um desejo do analista e de forma cúmplice do paciente, conduzindo este a um funcionamento mais autêntico, em termos de seu infantil desejante?
Do círculo vicioso ao círculo virtuoso: resiliência e ações profiláticas na educação e na clínica da criança diagnosticada
Pudemos observar que os sintomas atrelados aos discursos dos pais (inquieto, agitado demais, sem concentração etc), da escola e de seus profissionais (mesmos comportamentos), da avó (mordeção de blusa e piscação dos olhos) e do posto médico com diagnóstico assinado por psiquiatra (TDAH) não se apresentavam, persistentemente, na criança durante sua permanência nos atendimentos.
O sentido do atendimento como um todo foi na linha de permitir a criança emergir como sujeito de seu desejo, para além do falso self , posicionando-se mediante seu próprio discurso e se desalienando dos discursos psicopatológicos do Outro, incluindo aqui os códigos nosológicos. O sentido de permitir à criança o direito ao seu infantil, mesmo que mediatizado pela palavra e o princípio da realidade, o que lhe conferia uma "certa morte" do seu infantil gozoso em termos leclairiano.
Já no caso desses pais, adotamos uma postura mais "psicopedagógica", em termos psicanalíticos, claro: a acolhida dos pais ocorre no sentido de versar sobre as questões da criança e no sentido de ajudar a elaborar a ansiedade familiar diante do psicodiagnóstico carregado, para então, avaliar conjuntamente a evolução do caso em diversos ambientes e como estava sendo o papel de cada elemento familiar no caso. Além disso, ajudar a esses pais a ouvir/relacionar com essa criança como portadora de seu próprio discurso e desejo, com todas as suas singularidades a que tem direito.
Ao final do tratamento, já nas últimas sessões, a própria criança chega mencionando as diversas mudanças na escola, os elogios recebidos da professora e de colegas, comunica sobre o hábito readquirido de leitura e escrita, as execuções das atividades escolares, além de destacar as mudanças significativas em relação ao pai. Os pais corroboram as informações e admiram as tamanhas mudanças ocorridas no/com o filho (e claro, neles próprios, primeiramente) e que não estão mais se culpabilizando pela doença do filho. A família, ao falar, fazendo circular o circuito pulsional paralisado pelo rótulo nosológico, em especial, num sentimento culpabilizador foi escuta em seu infantil psíquico, ressignificou seus papéis e funções, com repercussão direta na criança.
A nossa desconfiança do poder cooptador e silenciador do rótulo nosológico fora uma hipótese intuída e que viemos a confirmar, levando-nos a questionar ainda uma certa noção de "estrutura psicopatológica" tão difundida e aplicada ao psiquismo, em especial, à criança em desenvolvimento; no caso da criança diagnosticada, será de qual ordem e grau essa estruturação? Haveria algum estabelecimento de estágio até chegar a um estado mais rígido, irreversível e refratário a qualquer tratamento (no caso atendido, diagnosticado como TDHA)? Poderia ser esse transtorno uma consequência do próprio desarranjo pulsional familiar?
Pareceu-nos que a ideia de uma estrutura rígida aplicada ao psiquismo infantil somada a um psicodiagnóstico também inflexível, poderiam se constituir num ciclo vicioso que favoreceria a existência de um falso self e seu conjunto de sintomas enlaçando o paciente, sua família, escola e profissionais psi.
Romper esse círculo vicioso facilmente sedutor levou-nos a pensar em conceitos, como a resiliência do psiquismo infantil e as possíveis ações profiláticas como elementos a serem aplicados à clinica dessa criança diagnosticada, afinal, o psiquismo humano, sobretudo o da criança, não se reduziria a uma mera estrutura rígida e refratária, mas seria algo como uma "massa informe" e aberta a alterações significativas a partir do pais como sujeitos desejantes, mas desde que não mortificados pelo rótulo nosológico.
Embora desperte reações céticas de alguns setores psicanalíticos, é necessário investir contra essa noção de "estrutura", num caso de se cogitar uma prevenção ou ações profiláticas (grego. prophylaxis, "cautela", antecipação nos cuidados ministrados) diante das psicopatologias infantis. Do contrário, essa própria noção e qualquer conceito psicanalítico, poderiam se constituir numa outra rotulação que temos criticado.
Ressaltamos que, ao se pensar em ações profilático-ambientais com crianças, acima de tudo aquelas que envolvem tentativas de alterações que o tornem qualitativamente bom e que promovam a saúde, não desconsideramos algo do determinismo psíquico na sua relação com os sintomas; justamente, estamos dizendo da alteração ambiental em termos winnicottianos, referindo aos cuidados afetivo-emocionais dispensados à criança em seu estado de privação. Tampouco reduzimos e transformamos o setting psicanalítico num espaço de arranjos no formato estímulo-resposta comportamental.
O que supomos, no específico do psiquismo da criança, habitado pelo infantil, é a existência de um continuum psíquico-social, de forma que intervenções qualitativas no ambiente, principalmente relacional-afetivo, possam operar modificações no sentido da promoção da saúde. Esse suporte, além de ser privilegiado na psicanálise winnicottiana, parece ser decisivo em outras abordagens, tal como na psicologia cognitiva, em que o envolvimento materno-paterno pode favorecer o desenvolvimento acadêmico e outros comportamentos escolares. (Cia, Pamplin, & Del Prette, 2006; Cia, Pereira, Del Prette & Del Prette, 2006; Cia & Barham, 2009).
Numa perspectiva psicopedagógica, podemos problematizar também a queixa escolar e o discurso queixoso dos pais, relacionados ainda aos 'desajustes' de um sistema escolar que precisa ser repensado permanentemente, no sentido de fornecimento de suportes qualitativos às crianças; assim, estamos falando de co-responsabilidades pelo oferecimento desses ambientes seguros, estáveis e saudáveis ao desenvolvimento da criança e sem reduzi-la a um mero rótulo diagnóstico.
Considerações finais
Com essas pistas descobertas e vivenciadas no estudo do caso, descobrimos possibilidades de intervenção profilática, especialmente, junto às crianças e o psiquismo delas, de seus pais e de todos os profissionais envolvidos no cuidado, sejam analistas ou terapeutas.
Defendemos uma desconfiança e "escapada" do círculo vicioso, bem como fatalista das patologias e dos psicodiagnósticos rígidos, vislumbrando que, numa clínica da criança não se deve temer refletir sobre a possível reversibilidade de quadros patológicos através de intervenções profiláticas nessas configurações sintomáticas.
Talvez esteja, aqui, nossa brecha pra escapar rumo ao círculo virtuoso: deve-se "matar a criança" sim, mas o seu infantil falso self com seu estereótipo de criança falsa que se cristaliza/estrutura sob o rótulo psicodiagnóstico fechado; matar a criança ensimesmada nas classificações psicopatológicas catalogadas e, sobretudo, acolher, cuidar e oferecer suporte à criança-sujeito desejante que pode emergir do falso modo de funcionar sob a forma de transtornos, déficits e outros estigmas usuais; ajudá-la a falar de si, por si mesma, de seu desejo singular e a produzir um saber sobre seu sofrimento.
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Recebido/Received: 13.10.2014/10.13.2014
Aceito/Accepted: 10.08.2015/08.10.2015
1 Grifos nossos