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Analytica: Revista de Psicanálise

versión On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.5 no.8 São João del Rei jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Importância de Heidegger para o ensino de Lacan: possibilidades e limites da verdade como revelação

 

Importance of Heidegger to Lacan's teaching: possibilities and limits of truth as revelation

 

L'importance de Heidegger à l'enseignement de Lacan: possibilités et limites de la vérité que la révélation

 

Importancia de Heidegger a la enseñanza de Lacan: posibilidades y límites de la verdad como revelación

 

 

Mauricio José d'Escragnolle CardosoI; Rosane Zétola LustozaII

IDoutor em Science du Language - Université Paris X - Nanterre. Professor Adjunto de Psicologia da UFPR (Universidade Federal do Paraná). Praça Santos Andrade, 50, 2º andar, sala 215, Centro, Curitiba/PR. CEP: 80020-300. Tel.: (41) 3310 2625. E-mail: descragnolle@yahoo.fr
IIDoutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Adjunta de Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Praça Santos Andrade, 50, 2º andar, sala 215, Centro, Curitiba/PR. CEP: 80020-300. Tel.:(41) 3310 2625. E-mail: rosanelustoza@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho tematiza a importância da filosofia heideggeriana para o ensino de Lacan, investigando as possibilidades e limites dessa aproximação. Lacan encontra na crítica feita por Heidegger ao projeto da Ciência Moderna uma prova contra as leituras objetivistas da Psicanálise. Ele deriva do discurso heideggeriano um modo mais radical de pensar a verdade, que serviu de inspiração para a oposição fala vazia × fala plena em Psicanálise. Além disso, conclui-se que o modelo de leitura da Psicanálise orientado por Heidegger chegou a um esgotamento, pois compreendeu de forma limitada a dimensão econômica da obra de Freud.

Palavras-chave: Lacan; Heidegger; verdade; revelação.


ABSTRACT

This paper focuses on the importance of Heidegger's philosophy to Lacan's teaching, investigating possibilities and limits of such approach. Lacan finds in Heidegger's critique of modern science project a proof against objectivist readings of psychoanalysis. He derives from Heidegger's speech a more radical way of thinking the truth, which served as inspiration for the opposition empty speech versus full speech in Psychoanalysis. We conclude that the model of psychoanalytic interpretation guided by Heidegger came to an exhaustion, because it understood in a limited way the economic dimension of Freud's work.

Keywords: Lacan; Heidegger; truth; revelation.


RÉSUMÉ

Cet article étudie l'importance de la philosophie de Heidegger pour l'enseignement de Lacan, étudier les possibilités et les limites de cette approche. Lacan trouve la critique par Heidegger à la science moderne concevoir un test contre les lectures objectivistes de la psychanalyse. Il dérive du discours de Heidegger une façon plus radicale de penser la vérité, qui était l'inspiration pour le discours vide opposition × discours complet en psychanalyse. En outre, il en résulte que la lecture de la psychanalyse modèle orienté Heidegger atteint l'épuisement, au sens d'une manière limitée l'aspect économique de l'œuvre de Freud.

Mots-clés: Lacan; Heidegger; true; révélation.


RESUMEN

En este trabajo se analiza la importancia de Heidegger a la enseñanza de Lacan, haciendo una evaluación de las posibilidades y limitaciones de este enfoque. Lacan encuentra en la crítica de Heidegger de la ciencia moderna una prueba en contra de las lecturas objetivistas del psicoanálisis. Lacan deriva de Heidegger una manera más radical de pensar la verdad, lo que sirvió de inspiración para la oposición entre habla vacía y habla llena en la Psicoanálisis. Llegamos a la conclusión que la lectura del psicoanálisis basada en Heidegger llegó a un agotamiento, en la medida que limitaba la dimensión económica de la obra de Freud.

Palabras clave: Lacan; Heidegger; verdad; revelación.


 

 

1 Introdução

Jacques Lacan foi um crítico feroz do projeto de assimilação da Psicanálise ao programa das ciências experimentais e, de maneira geral, a todo projeto de objetivação da subjetividade. O correlato psicoterapêutico desse elogio psicológico da objetividade se manifestaria de maneira eminente no elogio do amadurecimento do sujeito em nome de uma suposta realidade passível de ser reconhecida nas formas socialmente estabelecidas de convívio e cooperação. Em outras palavras, uma vez se buscando a constituição da Psicanálise como uma espécie de Ciência do Sexual, sua práxis terapêutica implicava uma forma de moralização da tradicional noção epistêmica de adequação do pensamento à coisa (Adaequatio rei et intellectus): o amadurecimento do sujeito, meta terapêutica de uma psicanálise tornada científica, poderia ser considerado como o desenvolvimento de sua capacidade em adequar-se às exigências impostas pela realidade social na qual se acharia inserido. É nesse sentido que os argumentos de Lacan foram direcionados àquela que era a principal representante dessa corrente na época, a saber, a Psicologia do Ego. Esta se propunha permanecer fiel ao desígnio expressamente formulado por Freud em alguns de seus textos, o de considerar a Psicanálise como uma Ciência da Natureza. E, dessa maneira, a Psicologia do Ego pretendeu colocar-se à altura das exigências de rigor e objetividade do paradigma naturalista, assumindo como ponto de partida justamente a fragilidade epistemológica da Psicanálise, sobretudo quando comparada a disciplinas como a Física, a Química e a Biologia.

Assim, preocupada em garantir a cientificidade da Psicanálise, a Psicologia do Ego atacou o problema em três frentes (Lustoza, 2002):

a) reconhecendo as imperfeições da "jovem ciência" inventada por Freud, essa corrente dedicou-se a uma tarefa de organização do legado freudiano, tentando hierarquizar as teses psicanalíticas de acordo com seus diferentes graus de objetividade;

b) buscou-se uma reformulação dos conceitos freudianos, traduzindo-os em termos de definições operacionais. Uma definição operatória corresponde a um conjunto de passos ou procedimentos que, uma vez adotados, levariam à obtenção de um resultado determinado. Por isso mesmo, as operações poderiam ser repetidas por outros pesquisadores (Ullmo, 1967);

c) Declarou-se explicitamente a filiação da Psicanálise à Psicologia Geral. Como diz Hartmann (1968, p. 6), "A característica que distingue uma investigação psicanalítica não é o tema sobre que se debruça, mas a metodologia científica e a estrutura dos conceitos que usa. Todas as investigações psicológicas partilham alguns de seus objetivos com a psicanálise" (grifo meu). Tornou-se então necessário não só partilhar dos mesmos princípios doutrinais professados pelas outras Psicologias, mas também encontrar pontos de interseção entre os resultados efetivos de suas pesquisas. A unidade do campo da Psicologia torna-se uma pauta importante na agenda de questões que importam à Psicanálise.

Ao se inserir nesse debate, Lacan toma claramente partido contra a redução da Psicanálise às ciências experimentais, enfatizando as consequências devastadoras que a busca pela objetividade traria à clínica psicanalítica. Seu famoso lema do retorno a Freud se ampara fortemente no apelo à experiência psicanalítica como algo que se passa no plano da fala e da linguagem, não podendo seu objeto ser isolado no registro de um procedimento operatório, ligado à noção de experimento, reproduzível de maneira independente da subjetividade.

[A] objetivação abstrata de nossa experiência em princípios fictícios ou simulados do método experimental: aí encontramos o efeito de preconceitos cujo campo, antes de tudo, seria preciso que limpássemos, se quisermos cultivá-lo segundo sua estrutura autêntica. (...) Essa noção [de ciência verdadeira] se degradou, como se sabe, na inversão positivista que, colocando as ciências do homem no coroamento do edifício das ciências experimentais, na verdade as subordinou a estas. Esta noção provém de uma visão errônea da história da ciência, baseada no prestígio de um desenvolvimento especializado dos experimentos. (Lacan, 1953/1998, p. 285)

A passagem acima sumariza de forma primorosa a posição lacaniana:

a) a acusação de que o método experimental acarreta uma objetivação abstrata: embora se esforce por cumprir as exigências epistemológicas de rigor e precisão, a Psicologia do Ego acaba sacrificando a especificidade do seu objeto, ao se distanciar do que está em jogo na experiência analítica concreta, a saber, o sujeito. Lacan adverte que o importante é a posição do sujeito em relação àquilo que diz, e não a verificação da correção do seu dito. Do lado do analista, o importante é a posição da interpretação no contexto transferencial, e não a sua adequação àquilo que o paciente "realmente" quis dizer;

b) a denúncia de que a Psicologia do Ego deriva de uma concepção cientificista, conforme a qual a Ciência seria o único regime de produção de verdade legítimo, com exclusão de todos os outros. Conforme Lacan, a descoberta freudiana implicaria justamente uma nova forma de determinação do conteúdo de verdade das proposições, irredutível aos protocolos de validação da Ciência. A submissão da Psicanálise ao procedimento científico terminaria por deformar e tornar irreconhecível a verdade do inconsciente;

c) a crítica à visão positivista, conforme a qual as investigações sobre o Homem merecem estar situadas no cume da pirâmide das ciências, por incidirem sobre um objeto mais complexo do que todos os outros. Conforme o raciocínio lacaniano, o suposto privilégio aqui concedido ao Homem esconde um verdadeiro rebaixamento, uma vez que se o considera um animal, cuja diferença em relação aos outros seria apenas de grau.

Nesse cenário, a filosofia de Heidegger servirá de suporte à elaboração da crítica lacaniana à Psicologia do Ego. Conforme Heidegger, o horizonte filosófico do projeto da Ciência Moderna condiciona o ente a ser considerado pura e simplesmente como objeto de representação. Restringiríamos demais o alcance dessa crítica caso entendêssemos o Positivismo como seu alvo exclusivo. Mesmo que se concebesse o Positivismo como a realização mais acabada do projeto de objetividade, ele não é o seu único representante. A condenação incide, assim, não somente sobre o Positivismo como epistemologia específica, mas sobre algo muito mais amplo: os pressupostos que compõem o fundo metafísico da modernidade e que condicionam o ente a ser considerado exclusivamente sob a forma da objetividade.

Este trabalho pretende, assim, abordar a importância da filosofia heideggeriana para o ensino de Lacan, investigando as possibilidades e limites dessa aproximação. Conforme será demonstrado, Lacan encontrará na crítica perpetrada por Heidegger um aliado estratégico contra as leituras objetivistas da Psicanálise, que tendiam a negligenciar o legado mais importante deixado pelo mestre de Viena. Lacan extraiu do discurso heideggeriano não só um novo modo de pensar a verdade, mas também uma nova concepção de sujeito, que recebeu aportes das elaborações sobre o Ser.

Nosso artigo apresentará também algumas limitações que esse modelo freudo-heideggeriano de leitura acarretou para a Psicanálise, e que levaram Lacan a recorrer ao método estrutural.

Ressalte-se que a aproximação com Heidegger se fez de acordo com as exigências próprias ao discurso analítico, o que transforma o trabalho lacaniano numa apropriação que modifica o conceito de origem, impondo-lhe novo sentido.

 

2 Da palavra à verdade: a crítica ao objetivismo

Lacan buscará isolar, a partir de Heidegger, o tipo de associação entre a palavra e a verdade que seria necessária ao dispositivo analítico. A concepção heideggeriana da verdade visa exatamente a retirá-la do registro da exatidão, quando é entendida como correspondência entre a proposição e a realidade; ou mesmo do registro da coerência lógica, em que é entendida como a consistência interna de um conjunto de proposições. Em Heidegger, a verdade não é um predicado ou uma propriedade de um discurso. Caso a tomemos dessa forma, o que se opera é a exclusão daquele que fala em relação à própria palavra. Em Heidegger, o que se trata de evidenciar é precisamente uma dimensão mais fundamental da palavra, em que ela opera como fundação do Ser.

Conforme Heidegger, é legítimo empreender uma análise científica da linguagem, mas isso não deve nos tornar cegos ou insensíveis ao estatuto existencial que ela comporta em relação ao homem. A linguagem pode até ser objeto da Ciência, mas isso só se faz com a condição de ignorarmos o seu sentido mais radical. Como ele mesmo diz sobre a Linguística:

Essa maneira de abordar a palavra é exata; ela se ajusta exatamente a isso que um exame dos fenômenos linguísticos pode contatar em qualquer momento. É no círculo dessa correção que também movem-se então todas as questões que acompanham a descrição e a explicação dos fenômenos linguísticos. (Heidegger, 1976, p. 17)

O círculo em causa remete aos limites da análise objetiva da linguagem: embora possa ser valiosa e informativa, a abordagem científica não abandona a esfera limitada de seus pressupostos. Isso ocorre porque, do ponto de vista científico, tudo que é colocado como questão ou como solução deve responder às condições do método. Se por um lado o método possibilita a pesquisa da verdade, por outro também limita a sua legitimidade epistemológica, a qual permanece irremediavelmente atrelada a seu ponto de partida. Não se pode saltar ou transbordar o horizonte delimitado pelo método, daí a alusão ao seu caráter circular.

Os limites da pesquisa científica podem ser evidenciados uma vez que a contrastemos com uma forma mais radical de pesquisa. Conforme Heidegger, o homem é o único ente para quem o ato de interrogar e pesquisar é constitutivo de seu modo de ser: "olhar na direção de, escutar e conceber, escolher, aceder a, são todos comportamentos constitutivos do questionamento, ao mesmo tempo que modos de ser de um ente bem preciso, este ente que nós somos, os questionantes" (Heidegger, 1986, p. 31). O homem, enquanto Dasein, é o único ente para quem a questão do Ser lhe é própria. A investigação da questão do sentido do Ser a partir desse ente que é o Dasein é mais originária que as pesquisas objetivas realizadas em regiões específicas. O caráter fundamental da pesquisa sobre o sentido do Ser é chamado por Heidegger ontológico.

A cada vez que Heidegger visa o ser do Dasein (que é o homem e para o qual a palavra é o seu modo próprio de ser) ele designa não apenas a palavra, mas a "fala falante" (Heidegger, 1976, p. 15). O homem é em função e a partir, não da palavra como faculdade humana, mas da palavra como ato de falar, em seu valor existencial e ontológico. A palavra tem valor de fundar o Ser. Para Heidegger, é perfeitamente possível fazer a experiência dessa doação de sentido pela palavra. Tal experiência remete à realização subjetiva de que "a palavra é a casa do Ser" (p. 149). Apenas a palavra "confere o ser à coisa" (p. 148).

Importa sublinhar que, ali onde a palavra falta, a existência não vem à luz: "nenhuma coisa é, aí onde a palavra falha" (p. 147). Por isso, a experiência máxima do valor existencial da palavra emerge justamente aí onde, em face de uma interpelação vivida no registro mesmo do sentido, a palavra vem a faltar! Para o filósofo alemão, haveria algo no falar que permanece sempre inexprimível, silencioso, impossível de representar em sua substância. Isso que resta impossível de nomear não é alguma coisa exterior à palavra, mas o próprio ato de falar no que ele apresenta de performativo.

Ressalte-se como a palavra verdadeira para Heidegger não designa uma entidade positiva que existe previamente àquilo que a representa. A palavra em sua dimensão mais radical institui o Ser. Consentir ao poder de desvelamento da palavra conduz a adotar uma forma de resignação: tal resignação está ligada ao luto do realismo semântico-referencial.

A experiência da fala é em Heidegger uma experiência de poesia. Em última instância, toda palavra seria um dizer poético:

O que atinge o poeta? Não um simples conhecimento. Ele alcança a relação da palavra à coisa. Esta relação não é uma relação entre, de um lado, a coisa, e do outro, a palavra. A palavra ela mesma é a relação, que a cada vez traz consigo em si mesma e sustenta a coisa de uma tal maneira que ela "é" uma coisa. (Heidegger, 1976, p. 154)

Uma vez que linguagem e pensamento estão imbricados, Heidegger considera que a atividade do pensamento deve também ser redefinida. O pensamento, em sua conexão com a linguagem, é uma atividade cuja essência é da ordem da poesia, e não somente do cálculo racional:

Mas como estamos ainda tomados por um preconceito secular - o de crer que o pensamento é assunto da razão, isto é, de cálculo no sentido mais amplo -, basta escutarmos falar de uma vizinhança entre o pensamento e a poesia para desconfiarmos. (Heidegger, 1976, p. 157)

É fácil entender que Lacan encontra em Heidegger esse tipo de palavra que não é descritiva nem representativa. Seguindo Heidegger, Lacan frisa a vertente existencial da palavra poética, que será renomeada palavra plena. Já a palavra vazia está relacionada à dimensão descritiva, que visa alguma coisa que se inscreve num além da linguagem, como uma ordem natural situada em outro plano.

A oposição entre dois tipos de discurso (fala vazia × fala plena) se sobrepõe à construção por Lacan dos dois registros (imaginário e simbólico) que organizam a relação intersubjetiva. Temos aqui um acréscimo propriamente lacaniano à contribuição original de Heidegger.

O registro imaginário é aquele no qual se situa uma série de fatos psicológicos caracterizados pelo sentimento de evidência e naturalidade. É aí que acontece uma primeira forma de relação com o Si mesmo, que se exprime pela contemplação da própria imagem refletida no espelho. O Eu resulta da identificação com essa imagem, que é nada menos que a de um objeto localizado no espaço e no tempo, discreto e discriminável de outros objetos. A constituição da realidade ela mesma (enquanto composta de imagens) depende dessa alienação primordial na qual o sujeito se identifica a uma imagem reificada. O Eu é aqui entendido como um objeto entre outros, pessoas ou coisas.

Há no eixo imaginário uma espécie deformada de relação intersubjetiva: considero o outro um semelhante, a imagem duplicada dos meus próprios valores, numa compreensão que admite no máximo a diferença de grau: mais inteligente que eu, menos astuto, etc. Trata-se de uma falsa intersubjetividade, em que há "um muro de linguagem que se opõe à palavra" (Lacan, 1953/1998, p. 283): o muro impede o encontro com a verdadeira Alteridade, com um Outro que possa agir, pensar e sentir de forma destoante do que se espera dele.

A palavra no eixo imaginário tem um caráter instrumental: ela é um instrumento para comunicar pensamentos, os quais lhe caberia refletir com justeza. O pensamento, por sua vez, descreve uma realidade a qual ele não constitui. Aqui reside a "insuficiência da ideia da linguagem-signo" (1953/1998, p. 298): reduzir a palavra ao signo é entendê-la como suportada diretamente pelo referente, como se este existisse de forma prévia à linguagem.

Note-se aqui como Lacan estabelece uma vinculação original, até mesmo pouco intuitiva, entre o estádio do espelho - papel da imagem na formação do Eu - e uma espécie de palavra que, embora seja um símbolo, tem o mesmo valor que uma imagem, já que perdeu precisamente a característica mais potente do símbolo humano: o poder de decolar de uma base referencial qualquer. Por isso, negar o papel fundacional da palavra significa reduzi-la ao registro imaginário, com todas as características que uma imagem comporta: a fixidez; a imobilidade; a ocultação do processo de sua produção.

Nesse registro, estamos mergulhados no coração da ilusão objetivista e alienante da palavra, com a qual todo analista se depara no início de uma análise: "Eis aí a alienação mais profunda do sujeito da civilização científica e é ela que nós encontramos inicialmente quando o sujeito começa a nos falar de si próprio" (pp. 282-283).

Ocorre que nem a linguagem nem a palavra podem ser reduzidas à dimensão constatativa, pois existe outra dimensão da linguagem, que desempenha uma função constitutiva. Lacan encontrou em Heidegger essa distinção entre a palavra descritiva da representação e outro aspecto da palavra, caracterizado pelo seu valor existencial. A palavra poética heideggeriana será retomada em Lacan como palavra plena: existiria portanto uma "outra face da palavra que é revelação" (Lacan, 1953-54, p. 92).

 

3 Da Verdade ao Ser: o mandato simbólico

Uma vez esse trabalho acabado, torna-se possível compreender o segundo ciclo de questões levantadas por Lacan ao ler a obra freudiana a partir de Heidegger. Trata-se não só de criticar o objetivismo, mas de recuperar a dimensão da verdade na qual a psicanálise se assenta. Se na seção anterior discutiu-se a evolução da palavra à verdade por meio da crítica ao objetivismo, agora trata-se da evolução da verdade ao Ser por meio da ideia da verdade como revelação do Ser.

É no desdobramento da palavra plena que a questão do Ser se coloca ao sujeito. A palavra plena veicula não o reconhecimento do outro, mas o reconhecimento do Ser. A verdade da palavra plena é a do Ser que se desvela ao sujeito. Nesse momento de seu ensino, Lacan concebe a revelação do Ser que se realiza na palavra sob o modelo da assunção do mandato simbólico. Apesar da franca inspiração num tema heideggeriano, ressalte-se nesse ponto o quanto a apropriação feita por Lacan acaba por introduzir um raciocínio estranho ao filósofo alemão: a aproximação entre Ser e sujeito.

O tema do mandato simbólico já havia sido abordado antes mesmo dos anos 50, quando Lacan ressaltou a importância do pacto de reconhecimento, que deriva da interpretação kojeviana de Hegel. Tomemos como ponto de referência a dialética do Senhor e do Escravo. Hegel descreve a luta entre duas consciências que travam entre si uma disputa por reconhecimento. Ocorre que uma delas, ao se deparar com a perspectiva da própria morte como consequência da batalha, decide recuar. Doravante ela reconhecerá a soberania da outra e se submeterá a sua lei. Já o Senhor não reconhece ninguém e, privado da relação com a sua morte, ficará eternamente confrontado com essa ausência de limite e com a questão da sua própria mestria.

Para Lacan, o escravo está numa posição privilegiada por ser o único capaz de reconhecer a verdade sobre si: que o acesso ao seu ser só acontece pela via da mediação pelo Outro. Lacan enfatiza as falas fundadoras como Tu és minha mulher e Você é meu mestre por serem precisamente aquelas em que o sujeito institui o Outro como instância capaz de validar seu ser. Seria falso dizer Sou seu marido, pois só posso sê-lo com a condição do Outro homologar o valor do meu ser no retorno da mensagem.

Está claro que um sujeito que pretenda validar seu ser sem passar pela soberania do Outro fica condenado à falsa intersubjetividade. É característico do eixo imaginário uma certa inflação egoica, em que o sujeito presume-se liberto da mediação do Outro, da necessidade de se dirigir ao Outro para determinar a sua própia posição no simbólico.

Se a Psicanálise persegue como objetivo a suspensão da alienação imaginária, o efeito do que Lacan entende como revelação do Ser seria a separação, e não a ancoragem, no outro imaginário.

A revelação é o fundamento último disso que buscamos na experiência analítica. A resistência se produz no momento onde a palavra de revelação não se diz, [] onde o sujeito não é mais capaz de escapar daí sozinho. Ele se agarra ao outro porque aquilo que seria impulsionado à fala não acede a esta. A vinda interrompida da palavra, na medida em que algo a torna fundamentalmente impossível, eis aí o ponto-pivô onde, na análise, a palavra bascula inteiramente sobre sua primeira face e se reduz à sua função de relação ao outro. Se a palavra funciona então como mediação, é por não realizar-se como revelação. (Lacan, 1953-54, p. 81)

Como seria possível transpor essa noção tão heideggeriana de revelação do Ser para o campo da Psicanálise? Qual é esse ser que se revela ? Num texto de 1954, Lacan ensaia uma resposta:

Freud situa a Bejahung como o processo primário onde o julgamento atributivo encontra sua raiz, e essa nada mais é que a condição primordial para que do real algo venha a oferecer-se à revelação do ser, ou, para empregar a linguagem de Heidegger, seja deixado-ser. Ora, é bem a este ponto recuado que Freud nos leva, já que é somente depois que uma coisa qualquer poderá aí ser reencontrada como ente. (p. 4)

Para elucidar essa passagem, é preciso recorrer uma vez mais à filosofia heideggeriana. Conforme Heidegger, o Dasein é o estatuto ontológico desse ente que é o homem, na medida em que ele é o ente cujo modo de ser implica essencialmente a colocação da questão do sentido do Ser.

Esse ente tem como característica própria que ele somente precisa ser para que esse ser que é o seu lhe seja descoberto. A compreensão do ser é ela mesma uma determinação do ser do Dasein. O que distingue onticamente o Dasein é que ele é ontológico. (Heidegger, 1986, p. 36)

É na facticidade do mundo que o homem realiza o poder-ser infinito implicado em seu ser como devir. Apreender a verdade do seu ser como devir opõe-se à sua autoapreensão como coisa ou como algo representável.

Heidegger (1986) sublinha o que impede o Dasein de ser reduzido a uma coisa. O Dasein implica, em sua própria definição, um inacabamento que resiste à representação. Há sempre um poder-ser, uma possibilidade de ser, que é constituinte de sua própria abertura ao Ser. Há sempre um excedente não representável em relação a qualquer modo de ser específico que o homem venha a realizar. Permanece sempre um não-ainda-efetivado que impede a objetivação do Dasein.

Isso que excede a existência, ao mesmo tempo que impede o Dasein de se apreender como uma coisa entre outras, é o fim (término e finalidade) da existência: a morte. É pela morte que o Dasein realiza o poder-ser infinito implicado em seu ser enquanto devir. Na assunção de seu ser-para-a-morte, surge a verdade de seu ser enquanto devir.

Conforme Heidegger, não se deve subtrair a presença da morte do horizonte do ser do Dasein, sob pena de se perder o sentido da sua existência. A morte não é representável conceitualmente, mas participa fundamentalmente da compreensão hermenêutica do ser do Dasein.

Lacan se inspira nesse ponto para definir o objeto da psicanálise como aquilo, que do ponto de vista da representação, não é nada. Isso que não é nada é a forma negativa que coloca em relevo o caráter insuficiente do discurso predicativo relativo à existencialidade e seu sentido. O conceito de sujeito em Lacan designará aqui a insistência da questão do Ser do sujeito; questão que permanece para além de qualquer esforço de determinação objetiva. Ousemos aqui afirmar que já há uma apreensão lacaniana do sujeito como falta-a-ser, cujo correlato seria um desejo que é desejo de nada. O Ser que a Psicanálise se propõe a revelar seria o próprio desejo.

Esse desejo que se manifesta no sonho, desejo recalcado, é algo que se identifica ao registro no qual eu estou, bem delicadamente, tentando fazer com que vocês entrem: é o registro do ser que aguarda revelar-se. Na perspectiva dessa espera do ser, a significação do termo de desejo assume seu pleno valor em Freud. (Lacan, 1953-54, p. 449)

O ofício do psicanalista não se reduz a revelar um conteúdo recalcado que subjaz oculto, mas a tornar possível, por meio do desvelamento do recalcado, uma conversão existencial, graças a qual o sujeito realiza o que lhe há de mais próprio: a assunção da sua condição humana de desejante. Assim, a análise permite ao sujeito, sob a forma de um paradoxo, tornar-se aquilo que ele já era. Como diz Balmés (1999), frisando a influência de Heidegger sobre Lacan:

A análise assume a função de operar a conversão à palavra autêntica, revelando e realizando a dimensão do ser, a qual se assemelha muito à conversão, existencial e não especulativa, à existência autêntica em Ser e Tempo; conversão da preocupação exclusiva do ente intramundano à abertura ao ser. (p. 17)

Note-se que a análise torna possível essa conversão, mas para que ela seja efetiva, é preciso o franqueamento de um limite pelo sujeito, que é aqui o único responsável por tal passagem. Há um hiato entre a revelação do saber por meio da interpretação pelo analista e a realização do saber por meio da assunção do mandato simbólico pelo sujeito. Tal hiato testemunha que o espaço do sujeito não é aquele da causalidade natural.

O problema é que essa concepção do tratamento analítico implica que o analista ocupe a posição do Outro absoluto, ou seja, de um parceiro não especular do sujeito. O analista é o mestre da significação, que exerce o poder de garantir a totalização da história do sujeito. Será essa concepção justamente o que será abandonado ulteriormente por Lacan, a partir de meados dos anos cinquenta.

No entanto, nesse momento, de onde surgiria a resistência, segundo Lacan? A resistência adviria da libido narcísica, investida no eu imaginário, o qual faz obstáculo ao trabalho da simbolização. Aqui Lacan faz intervir uma inusitada referência biológica a fim de justificar o extremo apego que o homem devota à sua imagem: o Eu (moi), objeto de identificação precipitada da criança no estádio do espelho, é o correlato direto da prematuração biológica do organismo humano. A imagem dá ao sujeito uma antecipação de » "ser" e uma autonomia da qual ele carece em sua realidade empírica. Isso significa justificar a estase narcísica da libido em termos de uma falha orgânica.

Certamente, o recurso à biologia soa esdrúxulo dentro de um enquadre hermenêutico, porém se justifica, na medida em que Lacan necessita pensar um problema que de forma alguma punha-se para Heidegger: a força da resistência que o Eu narcísico opõe à verdade inconsciente. O dispositivo analítico visaria substituir a satisfação narcísica por uma satisfação semântica com a verdade, viabilizada pelo processo de historicização das lacunas de memória.

 

4 Limite teórico da interpretação heideggeriana da Psicanálise

A análise precedente nos permitiu rastrear a ascendência do pensamento de Heidegger sobre o ensino de Lacan. Heidegger forneceu argumentos para um retorno a Freud, servindo à construção de uma nova concepção de análise nos anos 1950. A partir do fim daquela década, tal modelo se enfraquece, dando lugar a uma orientação inteiramente ancorada no projeto estruturalista. Por que razão? É que as consequências teóricas do modelo levam a dois problemas interligados:

a) Dificuldade de pensar o que resiste à totalização.

Conforme expusemos, Lacan pensava o que fazia obstáculo à totalização do sentido como sendo de ordem libidinal. Libido era aqui entendida estritamente em termos do narcisismo imaginário, o qual se fundamentaria numa falha orgânica primeira.

Porém, essa solução lacaniana é do tipo que acarreta mais problemas, pois implica em aderir àquilo mesmo que ele criticava nos psicólogos do Ego. Se a vinculação patológica ao imaginário se fundamenta numa debilidade orgânica, isso significa que as fixações libidinais que fazem objeção ao desvelar da verdade foram posicionadas de forma externa ao simbólico. É fácil identificar que o demônio que havia sido expurgado foi reintroduzido sorrateiramente, sob a forma de uma renaturalização parcial do psiquismo.

Além disso, Lacan montou um problema teórico insolúvel, pois se a dimensão econômica se inscreve totalmente fora do simbólico, como seria possível tratar pelo discurso algo que se define por sua exclusão completa desse registro? Não haveria como pinçar com as garras da palavra uma matéria que seria inteiramente estranha a ela.

b) Impasses da adoção do conceito de Outro como Mestre da Verdade.

O Outro aparece nesse modelo como uma ordem simbólica consistente. Nesse sentido, o que poderia impor limites à possibilidade de totalização do sentido seria a resistência imaginária, cujo fundamento é orgânico.

Importa notar algo curioso : as noções de Outro absoluto e de prematuração orgânica não são verdadeiramente antagonistas, já que a integralização do sentido e da historicização só podem ser concebidas porque não existiria nada no interior da ordem simbólica capaz de impedi-las. Ou seja, nesse momento da elaboração lacaniana a fonte dos antagonismos é de ordem extralinguística.

Nessa concepção, o analista se erige em figura de mestre capaz de enunciar a verdade que deve advir à palavra. A análise deve ensinar uma nova sabedoria, característica da descoberta da função poética que dá origem ao Ser. O analista funcionaria aqui como fiador da conquista do saber. A orientação fenomonenológico-hermenêutica implica então como pressupostos: por um lado, um Outro absoluto (capaz de dizer a verdade da verdade); por outro, seu complemento, o fundamento extrassimbólico que faz objeção à emergência da verdade (a prematuração do nascimento).

O que falta aqui é a formulação do lugar do Outro como universalidade incoerente e contraditória em função de suas relações com o excesso libidinal. E é, nesse sentido, que somente o objeto a virá inscrever o ser do sujeito sob a forma de um termo simbólico que encarna um excedente interno à ordem simbólica, e não externo a ela.

Em síntese, o modelo freudo-heideggeriano impediu Lacan de pensar o laço entre uma falta-a-ser própria à divisão do sujeito e a dimensão econômica do aparelho psíquico. Será precisamente o recurso ao estruturalismo e, mais tardiamente, aos desenvolvimentos da lógica, que permitirão a Lacan conectar a falta-a-ser a uma incompletude própria à estrutura simbólica. Em outras palavras, o que permanece ainda não formulado nos anos 50 é o conceito de Outro barrado, a concepção de uma ordem simbólica que padece da falta de um significante em função de sua imbricação com a economia pulsional.

 

Referências

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Recebido/Received: 12.11.2014/11.12.2014
Primeira revisão em 03/08/2016
Aceito/Accepted: 05.08.2016/08.05.2016

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