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Analytica: Revista de Psicanálise
versión On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.10 no.19 São João del Rei jul./dic. 2021
O apofatismo winnicottiano a respeito do self e suas implicações clínicas
Winnicott's Apophatic Approach toward the Self and its Clinical Implications
L'apophatisme winnicottien sur le self et ses implications cliniques
El apofatismo winnicottiano hacia el self y sus implicaciones clínicas
João Pedro JaveraI; Gilberto SafraII
IMestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorando pela mesma instituição. Exerce a Psicologia Clínica em consultório particular e como acompanhante terapêutico desde 2007. Integrante do laboratório Prosopon no IPUSP. E-mail: jpjavera@hotmail.com
IIProfessor titular no departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). Coordenador do Laboratório Prosopon, que tem como objetivo estabelecer um diálogo interdisciplinar entre a Clínica e a Filosofia contemporânea, privilegiando estudos que se debruçam sobre a questão da pessoalidade do ser humano e sua fragmentação a partir da modernidade. E-mail: iamsafra@yahoo.com
RESUMO
O self aparece na obra de Donald Winnicott (1896-1971) como um dos elementos centrais de sua Antropologia, e o respeito ao seu caráter inapreensível e paradoxal definirá uma postura ética e uma perspectiva clínica próprias. Segundo a leitura proposta neste artigo, o psicanalista inglês tratou o self humano apofaticamente, uma vez que assinala que jamais podemos conhecê-lo, a não ser de maneira indireta, ou ainda, por meio do brincar no "espaço potencial". O artigo se detém especificamente às reverberações que tal compreensão antropológica traz para o uso da ferramenta interpretativa no encontro clínico e para a epistemologia do campo psicanalítico.
Palavras-chave: Self. Psicanálise. Epistemologia. Winnicott. Apofatismo.
ABSTRACT
The concept of self notably appears in the works of Donald Winnicott (1896-1971) as a key element in his broad concept of man and his respect for its unfathomable and paradoxical character defines the very ethical stance and clinical approach that mark him out as distinctive in the tradition. This paper aims to offer a construal of how the English psychoanalyst treats the human self apophatically once he asserts that it can only be known from an indirect position, i.e., by playing in the "potential space"; focusing on the reverberations this understanding of the concept of man brings to the use of interpretation in the clinical encounter and to epistemology in the psychoanalytic field.
Keywords: Self. Psychoanalysis. Epistemology. Winnicott. Apophatism.
RÉSUMÉ
Le self apparaît dans l'œuvre de Donald Winnicott (1896-1971) comme l'un des éléments centraux de son anthropologie, et le respect de son caractère insaisissable et paradoxal définira sa propre posture éthique et sa propre perspective clinique. D'après la lecture proposée dans cet article, le psychanalyste anglais a traité le moi humain de manière apophatique, car il souligne qu'on ne peut jamais le connaître, sauf indirectement, ou même en jouant dans « l'espace potentiel ». L'article se concentre spécifiquement sur les réverbérations qu'une telle compréhension anthropologique apporte à l'utilisation de l'outil interprétatif dans la rencontre clinique et à l'épistémologie du champ psychanalytique.
Mots-clés: Self. Psychanalyse. Épistémologie. Winnicott. Apophatisme.
RESUMEN
El self aparece en la obra de Donald Winnicott (1896-1971) como uno de los elementos centrales de su antropología, y el respeto por su carácter inaprensible y paradójico definirá una postura ética y una perspectiva clínica propia. Según la lectura propuesta en este artículo, el psicoanalista inglés trató al self humano de manera apofática, pues señala que nunca podremos conocerlo, salvo indirectamente, o incluso jugando en el "espacio potencial". El artículo se centra específicamente en las reverberaciones que dicha comprensión antropológica aporta al uso de la herramienta interpretativa en el encuentro clínico y a la epistemología del campo psicoanalítico.
Palabras clave: Self. Psicoanálisis. Epistemología. Winnicott. Apofatismo.
Introdução
Desde seu nascimento, a Psicanálise vem se revelado dependente da palavra para efetivar sua proposta terapêutica. Freud fez da interpretação o método privilegiado para que seus pacientes viessem a ter acesso à dinâmica inconsciente que atuava na produção do sintoma neurótico. Pode-se reconhecer uma orientação iluminista no modo de clinicar e de produzir conhecimento da perspectiva freudiana, uma vez que o anseio de trazer luz ao terreno oculto e misterioso do subsolo humano, por meio da interpretação, é marca de sua personalidade analítica e da epistemologia a ela atrelada.
A pesquisa psicanalítica realizada nas décadas de 1950 e 1960 trouxe constatações contundentes acerca da etiologia do sofrimento psíquico, uma vez que passou a voltar sua atenção para a forma como a constituição subjetiva de pacientes esquizofrênicos, psicóticos e borderlines se dava. O interesse nessa modalidade de sofrimento, bem como seu acolhimento clínico, fez a Psicanálise ampliar sua compreensão sobre a formação das patologias humanas para além do campo das neuroses - o que implicou uma reformulação de sua psicologia e de sua técnica de trabalho.
Tendo, agora, de lidar com pacientes que não acessavam os recursos simbólicos sofisticados da palavra, muitos analistas recorreram a estratégias relacionais que pudessem estabelecer com aqueles uma comunicação não verbal ou indireta; o corpo e suas manifestações sutis passam a ser ferramenta de trabalho essencial dessa perspectiva. Assim, o setting analítico se tornará mais sensível ao campo da estética, à sutileza transmitida nos gestos, às distintas qualidades de silêncio e à plasticidade criativa presente na comunicação dos analisandos.
De uma Psicanálise que fora fundada na Biologia - e que apresentava o ser humano como homo natura -, o novo movimento que acontecia nesse campo científico apontava para as questões de dimensões existenciais, como aquelas que mais caracterizavam a dor de seus pacientes. A categoria do "ser" adentra na esfera das preocupações clínicas dos psicanalistas; e o drama humano deixa de estar pautado no conflito pulsional intrapsíquico para ser compreendido nos campos interrelacional e existencial: "quão genuíno eu sou em minhas ações e decisões cotidianas?"; "o quão próximo estou de mim mesmo?"; "qual sentido de minha vida?" - são as questões que os pacientes da psicanálise trarão para os consultórios, as quais passarão a instigar a atenção de muitos psicanalistas daquelas décadas.
Donald Winnicott é certamente um deles; e tal fato se evidencia na categoria antropológica a que vai se apegar - o self. Não mais o "sujeito do desejo" será o modelo de homem almejado, mas a constituição de um si mesmo autêntico é que será a tarefa-guia de sua proposta terapêutica. Ao longo de sua prática, o pediatra e psicanalista inglês reconhecerá que a sutileza característica do self humano demanda a existência de um ambiente extremamente empático e adaptativo para que possa emergir e amadurecer. Descobrirá, também, que a palavra nem sempre é o melhor recurso analítico para que a revelação desse centro identitário existencial se dê; encontrará, assim, no "brincar", uma atividade com maior potencial de comunicação daquilo que é mais essencial, isto é, a marca profundamente singular de uma pessoa. No brincar, o ser humano pode se comunicar silenciosamente, o que vai ao encontro das demandas do self central - elemento paradoxal que habita a interioridade humana, marcado por profunda reserva e privacidade.
Ao deslocar o fazer psicanalítico (até então assentado na interpretação) para a área transicional do brincar, Winnicott implementará mudanças radicais na epistemologia subjacente a esse campo. Este artigo se propõe a analisar algumas das causas e consequências dessas transformações. Por meio do que denominaremos de postura "apofática", encontramos uma via para fundamentar essas reformulações feitas por Winnicott no campo da ética e da técnica.
Loparic (1995) e Fulgêncio (2015) apostam que a influência existencialista na abordagem antropológica e psicológica winnicottiana seja um fator relevante para se considerar a mudança de paradigma que Winnicott teria efetuado na Psicanálise; não excluindo tal hipótese, nós adicionamos mais uma: a presença do apofatismo - ainda que implícita - no seu modo de compreender a interioridade do ser humano. A perspectiva apofática, que recebeu bastante atenção da teologia cristã, nos parece comunicar uma marca muito singular da clínica de Winnicott: seu respeito profundo pela transcendência humana.
A Antropologia Psicanalítica tradicional, pelo fato de ter sido desenvolvida em uma mentalidade muito identificada com o horizonte materialista, naturalista e determinista (frequente no meio científico em que Freud edificou seu pensamento), acabou por achatar ou negligenciar dimensões complexas da condição humana. Winnicott resgata o ser humano da imanência pura a que havia sido lançado e faz recuperar sua dignidade transcendente. Um novo sopro de respeito ao mistério humano faz, assim, arejar a Antropologia Psicanalítica.
Vejamos em que consiste a tradição apófática e por que decidimos nela incluir o nome de Winnicott.
A ética subjacente à postura apofática: por uma epistemologia aberta ao transcendente
A postura apofática pode ser encontrada em diversas tradições ou campos do conhecimento humano e épocas da Cultura. Ela se expressa como uma perspectiva investigativa do Real1 que não se contenta em apreender, de forma definitiva, seus entes de interesse por meio de constructos intelectuais. Sua epistemologia é realizada a partir de um profundo respeito à alteridade presente em cada participante do mundo, na tentativa de preservar sua liberdade e existência, para além da compreensão humana - eis aqui sua especificidade ética.
Entende-se, nessa perspectiva, que os seres escapam de nosso conhecimento, tanto por sua transcendência ontológica quanto pelo fato de a linguagem racional que temos à nossa disposição ser precária, fragmentada e sempre faltante. Enfim, tal postura é sustentada por uma deliberada atitude de cuidado em relação ao mistério do existente, e é por esse motivo que também foi denominada de "via negativa" do conhecimento, pois assentada na recusa do acesso à verdade por meio de formulações objetivas (Yannaras, 2005, pp. 59-60).
Desde a Filosofia pré-socrática temos notícia desse tipo de abordagem; Parmênides, em sua descrição do "Uno" (Enai, a unidade que sustenta o universo), defenderá radicalmente que tal princípio existencial "não tem limites ou formas, não está nem parado ou em movimento, não sendo parecido ou distinto de qualquer coisa, nem mesmo a si mesmo, e, finalmente, não tem parte no ser, não tem nome e não é objeto de conhecimento, percepção ou opinião (Bradshaw[ANPF1] , 2013, pp. 31-32, grifos e tradução nossos).
Pierre Hadot (2006, p. 27) também nos lembra do misterioso fragmento de Heráclito, "o obscuro": "A Natureza tende a se ocultar".2 Dentre as várias possíveis interpretações dessa afirmação, uma delas apontaria para a nossa dificuldade de des-cobrir ou tocar a natureza própria de cada coisa presente ao nosso redor. Haveria um certo pudor por parte do Ser, uma atitude de evitamento em ser capturado ou determinado por sua aparição (aprisionado pela imanência). A Physis encontraria, portanto, um modo particular de se manifestar no mundo, modo esse que seria sempre indireto, reservado, velado, a fim de preservar sua transcendência.
O grande segredo da natureza é, portanto, a própria natureza, ou seja, a razão ou força invisível, da qual o mundo visível é apenas manifestação. É essa natureza invisível que "adora se esconder" ou se oculta da visão humana. A natureza, portanto, tem um duplo aspecto: mostra-se aos nossos sentidos na rica variedade do espetáculo que nos é apresentado pelo mundo dos vivos e pelo universo e, ao mesmo tempo, esconde-se atrás das aparências em sua parte mais essencial, profunda e eficaz. (Hadot, 2006, p. 54).
Heráclito é considerado por muitos um "pensador originário", pelo fato de ter pensado o simples e o Ser, de uma maneira a garantir sua particularidade paradoxal, sem corrompê-lo, por meio de uma linguagem avessa à sua simplicidade e à sua complexidade. A abordagem desse filósofo em direção ao Ser é imbuída da intenção de "proteger" Sua transcendência, preservando-a da inclinação humana à sistematização racional, de nosso discurso inadequado e frequentemente injusto à condição mesma do Ser.3
Nas considerações que Heidegger (1998) faz sobre o pensamento de Heráclito, o Ser não aparece como mais uma "coisa" entre outras "coisas", mas é entendido como "Presença". Isso implica a compreensão de que o que "aparece" para nós são os existentes, e o que não aparece é a própria aparição, isto é, o Ser; ou ainda, o que se manifesta são os seres presentes (entes) e o que está escondido é a própria Presença que faz aparecer os existentes. Seguindo essa linha interpretativa, o antigo grego teria sustentado com sua enigmática afirmação de que "manter-se em reserva é característica fundamental do Ser", e que, mesmo em seu desvelamento (como Physis, Natureza), se manteria sempre velado.
Tal dinâmica específica fez Heidegger (1957/1991) concluir que o Ser se apresenta para nós de tal modo que, ao mesmo tempo em que se revela, nos subtrai sua essência. Sendo assim, essência - a presença sustentadora de cada ente que manifesta no mundo - se resguarda em si mesma, ao mesmo tempo em que se oferta como revelação: eis o paradoxo do Ser! Uma vez que o objeto de interesse da Filosofia pré-socrática é o Ser, e todo o seu discurso acontece como cuidado para com o Ser, podemos afirmar que ela se realiza na forma de uma "ontologia apofática".
Esse mesmo gesto de cuidado em preservar a transcendência de um ser criativo também aparecerá nas grandes tradições religiosas, em cada qual, de uma maneira particular. Um exemplo disso pode ser encontrado na passagem bíblica na qual Moisés, apercebendo-se da proximidade de Deus, pede para vivenciar esse encontro místico com seu interlocutor de maneira mais tangível: "Rogo-te que me mostres a tua glória", teriam sido suas palavras; ao que Deus lhe teria respondido, "Eu farei passar toda a minha bondade diante de ti, e te proclamarei o meu nome Jeová; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem me compadecer". Mas o Senhor é contundente em colocar a condição de seu aparecimento: "Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum pode ver a minha face e viver"; e disse mais: "Eis aqui um lugar junto a mim; aqui, sobre a penha, te porás. E quando a minha glória passar, eu te porei numa fenda da penha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja passado. Depois, quando eu tirar a mão, me verás pelas costas; porém a minha face não se verá" (Êxodo, 33:18-23, grifos nossos).
Essa cena traz algo muito próprio da temática do apofatismo teológico, pois trata da impossibilidade de o ser humano testemunhar a face de Deus, ou ainda aquilo que é mais íntimo de Si: ao homem, somente é permitido ver (conhecer) o Absoluto obliquamente.
Um grande complicador teórico para os teólogos cristãos foi justamente ter de fundamentar uma compreensão discursiva sobre a Encarnação de Deus, ou seja, sobre o fato de o Absoluto ter-Se feito presente no horizonte da imanência, em um corpo humano. Essa situação foi um escândalo para a tradição judaica e continua a ser para outras tradições religiosas que assumem a absoluta transcendência divina: como poderia o infinito caber no finito? Ao assumir um corpo e fazer parte do mundo (da matéria), Deus não perderia sua transcendência e seria determinado pelo seu aparecimento, por sua imanência? Não perderia, assim, seu estatuto ontológico de liberdade (em relação à criação) e de eterno transbordamento?
Diante dessas questões, teólogos como Basílio, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo (também conhecidos como Padres da Capadócia, séc. IV), Máximo, o Confessor (séc. VII), Gregório Palamas (séc. XIV), para dar alguns exemplos, desenvolveram uma compreensão acerca da realidade de Deus e de Seu contato com o mundo (sua revelação), em que perceberam a necessidade de discriminar a essência divina das energias divinas (ou operações, atividades). Basílio (330-379), um dos pioneiros de tal elaboração, teria escrito:
As atividades (eneregiai) [de Deus] são várias, a essência (ousia), é simples. Mas nós temos consciência de que apenas podemos conhecer Deus por suas atividades, não nos aventurando a aproximarmo-nos de sua essência. Suas atividades se fazem disponíveis para nós, enquanto que sua essência permanece inacessível. (Basílio apud Torrance, 2009, p. 54, tradução nossa).
Utilizando-se dessa distinção, tais teólogos permitiram que o paradoxo existencial da divindade permanecesse vivo e intacto: Deus revela-Se, ocultando-Se!
A teologia apofática que se desenvolve a partir da compreensão desses autores permite à essência de Deus (sua intimidade) ser apenas tema do Seu âmbito,4 pois absolutamente inacessível ao conhecimento ou experiência da criatura - ainda que suas energias (suas manifestações no mundo) possam ser material de conhecimento e de participação do homem em Sua realidade. Ware (1975, pp. 128-129) nos esclarece:
Essência [Ousia] significa Deus como ele é em si mesmo, as energias [energeiai] significam Deus em ação e autorrevelação. De acordo com a tradição apofática [cristã] ortodoxa, a essência divina permanece para sempre acima e além de toda participação e todo conhecimento de qualquer criatura [...] Mas as energias de Deus, que são o próprio Deus, preenchem o mundo inteiro, por meio da graça, da qual todos podem vir a fazer parte. Aquele Deus que é "essencialmente" incognoscível, é "existencialmente" ou "energeticamente" acessível.
As energias divinas seriam, portanto, a "essência em ação", e a única maneira de travarmos conhecimento com Deus; as primeiras não são compreendidas como "menos" (inferiores) que a essência, mas a maneira pela qual a última se manifesta no mundo: são Deus mesmo, mas Deus em sua revelação, em atividade no campo da criação - para seu outro.5
Segundo os apontamentos éticos que fundamentam a epistemologia do apofatismo teológico cristão, ao se elaborar um discurso sobre Deus (uma teologia), temos de estar conscientes de que estamos sempre expressando nosso entendimento sobre Deus, tal como ele se manifesta para nós, e jamais sobre o que ele é em Si mesmo. Toda teologia seria, assim, um discurso sobre o encontro do homem com as energias divinas, e não um sobre a essência. Essa perspectiva surge como um corte, uma intervenção no ímpeto especulativo e invasivo do intelecto humano em seu afã de querer dominar os objetos sobre os quais se inclina.
Os teólogos da Capadócia foram motivados a lançar esse paradigma (dogma) a fim de discriminar as distorções que emanaram em seu tempo, tal como aquela lançada por Aétius, que teria afirmado: "Eu conheço e compreendo Deus tão claramente, que não conheço a mim tão bem quanto O conheço"; ou ainda, pela perigosa distorção presente na proclamação de Eunomius: "Deus não conhece seu próprio ser mais do que nós o conhecemos" (Ware, 1975). Esses dois autores trataram Deus como mais um conceito filosófico, totalmente manipulável pelo intelecto humano.
O apofatismo nasce, então, como uma garantia metodológico-conceitual ofertada pelo cuidado criterioso de alguns amantes de Deus, a fim de que a teologia pudesse comunicar o divino por meio de certos contornos éticos e epistemológicos. Lossky (1976, p. 13) acrescenta:
O caminho negativo do conhecimento de Deus é um empreendimento ascendente da mente que elimina progressivamente todos os atributos positivos do objeto que deseja alcançar, a fim de culminar finalmente em uma espécie de apreensão pela suprema ignorância d'Aquele que não pode ser um objeto de conhecimento. Podemos dizer que é uma experiência intelectual de fracasso da mente quando confrontada com algo além do concebível. De fato, a consciência do fracasso da compreensão humana constitui um elemento comum a tudo o que podemos chamar de apofatismo.
O reconhecimento da falência do intelecto humano ("suprema ignorância") diante da transcendência do Absoluto, assinalada por Lossky, teria sido referido poeticamente por Basílio na forma do seguinte conselho: "Deixemos o inefável ser honrado com silêncio".
Ainda que extremamente respeitosa à inacessibilidade do Ser divino, é necessário ter claro que a teologia apofática não se apresenta como uma modalidade de agnosticismo (recusa do conhecimento); mas, ao contrário, tenciona ser um princípio criterioso para aproximar-se de seu objeto de investigação. Tal teologia se realiza por meio de uma postura de profunda humildade diante do desconhecido, ainda que guarde em si o anseio de um encontro verdadeiro com Aquele diante do qual se debruça.
O apofatismo, tal como expresso na teologia cristã, carrega em si, dessa forma, tanto um aspecto negativo quanto um positivo: marca claramente a transcendência e incompreensibilidade de Deus (por parte do Homem), ao mesmo tempo em que proclama a possibilidade de um encontro íntimo (pessoal) de uma participação do Homem no modo de existir de Deus (que é Amor, Jó 4:8), uma vez que o primeiro pode vir a relacionar-se com Suas energias ou atividades (sabedoria, luz, criatividade, poder, enfim, seu logos).
Tal campo relacional entre o homem e seu criador acontece por meio do que fora denominado, nessa perspectiva, de "graça". Será por meio dos "dons divinos" que o ser humano conhecerá Deus e apreenderá o significado de Suas energias - que serão compreendidas como ícones, imagens fiéis de Seu ser e mensageiras de sua transcendência. Fora desse campo relacional específico, as ditas energias não são percebidas como tais (como emanações pessoais de um ser criativo), mas apenas compreendidas como eventos arbitrários e sem sentido e, portanto, sem nenhum potencial de transformação da consciência de quem com elas se relaciona.
Assim como é possível reconhecermos um tratamento apofático na epistemologia subjacente à Filosofia antiga, bem como à teologia cristã, também o podemos encontrar em outros campos do conhecimento, como no caso da teoria psicanalítica. Chama-nos a atenção a maneira como Donald Winnicott (1965j, p. 170) abordou a parte mais interna (the core) do self humano, pois nos remete à postura apofática, até aqui apresentada.
Sugiro que normalmente há um núcleo da personalidade que corresponde ao eu verdadeiro da personalidade split; sugiro que este núcleo nunca se comunica com o mundo dos objetos percebidos, e que a pessoa percebe que não deve nunca se comunicar com, ou ser influenciado pela realidade externa [...] Embora as pessoas normais se comuniquem e apreciem se comunicar, o outro fato é igualmente verdadeiro, que cada indivíduo é isolado, permanentemente sem se comunicar, permanentemente desconhecido, na realidade nunca encontrado.
Winnicott postulará a existência de uma região na interioridade do ser humano de tal sacralidade e pureza (pois em estado de profundo silêncio e reclusão), que jamais pode ser acessada. A tentativa de algum elemento do mundo externo vir a ter acesso e forçar sua entrada nesse templo precioso de privacidade pessoal pode acarretar a maior experiência de violência: "Estupro, ser devorado por canibais, isso são bagatelas comparados com a violação do núcleo do self, alteração dos elementos centrais do self pela comunicação varando as defesas. Para mim isto seria um pecado contra o self" (Winnicott, 1965j, p. 170).
Ele também afirmará que o adoecimento psicótico pode ser compreendido como "uma organização defensiva cujo objetivo é proteger o verdadeiro self (Winnicott, 1955d, p. 384); ou ainda, que "o desenvolvimento do falso self é uma das organizações defensivas mais bem-sucedidas, destinada a proteger o núcleo do self verdadeiro (Winnicott, 1955d, p. 389). O custo dessa defesa psíquica é muito alto para o indivíduo, pois resulta no impedimento de ser espontâneo e criativo nas relações com o mundo externo, bem como no consequente senso de futilidade pelo qual o indivíduo é tomado, uma vez que, para esse autor, "tudo aquilo que provém do verdadeiro self é sentido como real [...] e tudo aquilo que acontece ao indivíduo enquanto reação à intrusão ambiental é sentido como irreal [e gera a sensação de futilidade]" (Winnicott, 1955d, p. 389).
A partir do momento em que formaliza tal compreensão sobre o self, o psicoterapeuta inglês passará a demonstrar um respeito pela interioridade humana de tal ordem, que mudará sua maneira de clinicar e de utilizar a interpretação na relação com seus pacientes. Ele virá a compreender que essa ferramenta, tão frequente e indiscriminadamente utilizada por seus pares, pode vir a acarretar uma exposição precipitada da privacidade dos selves daqueles que se dispõem a serem tratados pelo método psicanalítico, bem como criar, eventualmente, inúmeros impasses no processo terapêutico.
Se a interpretação não acontecer no "campo do brincar", ou seja, com a participação criativa do paciente, bem como em um momento maturacional favorável e por meio de uma relação de confiança bem estabelecida entre o par analítico, terá grandes chances de configurar um ato intrusivo e, assim, promover uma situação de submissão do paciente ao saber do analista. Winnicott (1965j, p. 170), inclusive, reconhecerá o incômodo e a desconfiança que a sociedade expressa em relação à teoria psicanalítica: "Podemos compreender a raiva que as pessoas têm da Psicanálise que penetrou um longo trecho personalidade humana adentro, e que provê uma ameaça ao ser humano em sua necessidade de ser secretamente isolado".
Ao compreender e acolher o self humano a partir de sua transcendência e privacidade fundamentais, Winnicott lança um desafio para a prática psicanalítica: será possível a um analista verdadeiramente se comunicar com seus pacientes? Terá ele condições de experimentar a singularidade de uma pessoa dentro do setting analítico e apresentá-la para o paciente em forma de conhecimento? Como ter acesso, então, às dores mais profundas e às potencialidades (à criatividade originária) de alguém, se o que é mais genuíno de si está absolutamente resguardado?
Com a contundente proposição "o gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação" (Winnicott, 1965m, p. 135), ele nos abre um caminho possível para tal acesso: se não podemos nos comunicar e conhecer diretamente o self verdadeiro (ou central), podemos fazê-lo de forma indireta, ou seja, por meio de sua aparição no jogo ou no brincar.
O brincar (playing) se estabelece quando duas ou mais pessoas adentram no espaço potencial, na lacuna que as separa e que pode (ou não, dependendo da maturidade alcançada pelos indivíduos) ser usada como ponte relacional. Tal campo - que não é subjetivo nem objetivo, mas uma sobreposição dessas duas dimensões - é oportunidade para que as pessoas se surpreendam com o que surge entre si e dentro de si. É por essa sua rica qualidade que Winnicott (1996b, p. 278) denominou o resultado da interação que acontece no brincar, de unexpected creative gesture.
O "gesto-aparição" é sempre criativo e surpreendente (revelação do inédito), pois que faz descobrir o oculto, o inominável, o incomunicável - o self! O brincar, dessa forma, é apresentado por Winnicott como campo fundamental de conhecimento e da comunicação - algo que afetará profundamente as bases epistemológicas que sustentavam o método psicanalítico tradicional, tão dependente da palavra e da interpretação.
A contribuição um tanto subversiva de Winnicott nos legou uma Antropologia acolhedora ao transcendente que habita o homem, bem como uma modalidade de realizar a Psicanálise em um horizonte mais pessoal e intimista. Olhemos para a especificidade desse campo de interação humana de grande complexidade - uma vez que sustenta o paradoxo da aparição-velada do self - para, em seguida, reconhecer as implicações que tal perspectiva clínica traz ao campo relacional, técnico e epistemológico da Psicanálise.
Brincar: campo privilegiado de encontro (pessoal) com a alteridade e de surgimento do self
No programa idealizado do desenvolvimento emocional primitivo concebido por Winnicott (1945d), haveria um momento em que a criança, após ter sido acolhida por seu ambiente (com ele já experimentado um estado de fusão), bem como vivido um processo integrativo que lhe permitiu se alojar em seu corpo, aspiraria se discriminar do outro e proclamar uma existência individual. Justamente por conta da formação de uma "membrana limitadora" entre ela e o ambiente, seria possível à criança, em determinado momento de seu percurso maturacional, vir a distinguir a existência de uma interioridade em contraposição a uma exterioridade (a si), o que implicaria a busca por relação com os objetos do mundo, que agora já seriam percebidos como "não-eu".6
Essa é uma passagem crítica na vida de um infante, pois, juntamente com a discriminação que faz entre si e o outro, surge a descoberta da separação. Winnicott (1971ª) nos dirá que se a criança não estabelecer com seu ambiente um forte senso de confiança, pode facilmente se apavorar diante desse "vácuo" potencial na relação.7 Por esse motivo, é tão importante que a criança descubra o mundo a partir de sua onipotência (criatividade pessoal), a fim de que venha a encontrar a realidade banhada pela ilusão. Se isso é possível, tal lacuna que se descortina não é sentida como ameaça de desencontro e isolamento (ou até mesmo de aniquilação de si), mas como contato e união potenciais. Na voz da criança, o sensível e empático analista supõe a seguinte conclusão a respeito do sucesso dessa condição: "Eu sei que não há nenhum contato direto entre a realidade externa e eu mesmo, há apenas uma ilusão de contato, um fenômeno intermediário que funciona muito bem para mim quando não estou muito cansado" (Winnicott, 1988, p. 135).
Quando, então, o processo maturacional infantil alcança seu potencial,8 a criança passa não somente a tolerar o espaço entre ela e o outro (a mãe, o mundo), quanto a aproveitar-se dele para explorar a diversidade que a circunda, marcando esse espaço com sua pessoalidade.
Um dos fenômenos que Winnicott percebeu ocorrer nos primeiros meses de vida da criança foi ela poder alcançar a experiência que ele denominou de "primeira posse" ("primeiro objeto de posse"), em que ela toma algum elemento do mundo externo e o investe com sua criatividade, trazendo-o para dentro de sua onipotência pessoal. Assim o fazendo, tal objeto adquire uma característica única, pois não é exatamente um produto de sua subjetividade, e tampouco um aspecto da realidade absolutamente outro. Eis a especificidade do "objeto transicional":
O objeto constitui um símbolo da união do bebê e da mãe (ou parte desta). Esse símbolo pode ser localizado. Encontra-se no lugar, no espaço e no tempo, onde e quando a mãe se acha em transição de (na mente do bebê) ser fundida ao bebê e, alternativamente, ser experimentada como um objeto a ser percebido, de preferência a concebido. O uso de um objeto simboliza a união de duas coisas agora separadas, bebê e mãe, no ponto, no tempo e no espaço, do início de seu estado de separação. (Winnicott, 1971ª/1975, p. 135).
Donald Winnicott (1971ª, p. 142) reclamará da polarização criada pela compreensão psicanalítica de sua época, que havia postulado apenas duas áreas de existência humana, o "dentro" e o "fora": "desejamos um terceiro conceito", ele nos dirá. O objeto transicional será justamente o habitante de uma "terceira área", "zona intermediária", ou "espaço potencial" - os vários nomes dados por esse autor para descrever esse campo sui generis de possibilidade de encontro entre as pessoas, tanto quanto de revelação de si mesmas. A riqueza desse espaço dado pela separação está no fato de que ele pode ser preenchido com o brincar e então permitir ao ser humano fazer uso do universo simbólico legado pela Cultura.9
No pensamento desse psicanalista, há uma passagem evidente, ou melhor, uma progressão direta entre o "uso do objeto" transicional por parte da criança, sua futura capacidade para brincar (sozinha e de forma compartilhada), e a entrada da pessoa no que ele denomina de "experiências culturais". O objeto transicional permite à criança estabelecer com a realidade uma relação pessoal, bem como aproveitar-se futuramente da riqueza simbólica construída pelos outros seres humanos; isso acontece porque o próprio objeto (que alcança esse estatuto complexo) ensina a criança a brincar e a transitar no campo dos símbolos.
Concluímos, assim, que ser bem apresentado a um objeto e poder fazer dele é uma oportunidade de encontro entre mundos (interno e externo), é ingresso da criança para a capacidade de brincar e, dessa forma, de estabelecer comunicação verdadeira com o outro - uma vez que "somente no brincar é possível a comunicação" (Winnicott, 1971ª/1975, p. 73). Além dessa "função" de enriquecimento pessoal, tal atividade permite ao indivíduo experimentar relaxamento na presença de uma outra pessoa: é somente nessa terceira área que há "um lugar de descanso para a pessoa engajada na perpétua tarefa humana de manter uma realidade interna e outra externa separadas, ainda que inter-relacionadas" (Winnicott, 1953c, p. 318).
Nosso autor em questão postulou um estado que ele denominou de "não integração", que é vivido pelo bebê quando ainda está imerso em seu ambiente em uma condição de unidade, e não tem consciência de si mesmo, uma vez que não há reconhecimento de tempo ou espaço. Esse estado, que apenas pode ser experienciado se houver confiabilidade bem estabelecida, é vivido pelo bebê como descanso; "esse é o mais rico tipo de experiência", Winnicott (1988) dirá, a respeito desse estado, uma vez que é "apenas aqui, nesse estado não integrado da personalidade, que o criativo, tal como o descrevemos, pode emergir [...] e, no conjunto, acaba por fazer o indivíduo ser, ser encontrado, e acaba por permitir que postule a existência do self" (Winnicott, 1971ª/1975, pp. 92-93).
Poder brincar é resgatar algo desse estado de não integração, o que faz o indivíduo vir a alcançar uma "realização de si relaxada" (relaxed self-realization) - condição única para que o self se revele. Apenas no relaxamento é que o gesto criativo pode aparecer e dar sinais do que é mais verdadeiro de uma pessoa, ou seja, sua singularidade. Dessa forma, o relaxamento que é vivido no brincar promove oportunidade de comunicação da autenticidade do self.
A Psicanálise, segundo a visão winnicottiana, é um dispositivo de encontro humano que foi desenvolvido como "forma altamente especializada de brincar", a fim de servir à "comunicação entre uma pessoa e aqueles que a cercam" (Winnicott, 1971ª/1975, p. 63). A vocação última da terapêutica psicanalítica seria, de acordo com a apropriação que Winnicott faz desse campo de atuação, possibilitar alguém impedido de brincar a eventualmente fazê-lo.
Winnicott levou a sério o brincar, justamente porque reconheceu nessa atividade um caminho em que o silêncio do self humano pudesse ter lugar e se expressar, em que a comunicação de sua interioridade pudesse se estabelecer com o mundo externo, sem trair sua própria reclusão e privacidade essenciais - enfim, campo de acolhimento do paradoxo humano. Por meio do brincar, ainda, a sacralidade do self é respeitada, já que possibilita a sábia e saudável negociação por meio da qual uma pessoa pode manter-se reservada, sem correr o riso de ficar insulada.10
Reformulações sobre a especificidade da natureza humana e a virada epistemológica no campo psicanalítico
O intelecto humano, tal como ferramenta epistemológica, ganhou força e centralidade ao longo dos séculos, tornando-se a via régia para o conhecimento do homem sobre si mesmo e sobre o universo que o circunda, muito devido às contribuições de pensadores como Aristóteles, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino - grandes influências para a mentalidade de todos aqueles que vieram a edificar o racionalismo moderno e iluminista subsequentes.
Yannaras reconhece na Filosofia Grega antiga o impulso inicial de um modo impessoal de o ser humano ocidental travar conhecimento com a realidade. Para esse autor, tanto a Teologia quanto a Ontologia formuladas por filósofos como Platão e Aristóteles deram margem para uma modalidade racionalista de apreensão da realidade. Yannaras (2006) analisa a concepção de Deus presente no pensamento de Aristóteles e nos ensina que ela se dá como busca racional por uma "Primeira Causa" universal que necessariamente deveria existir para justificar o movimento dos entes do mundo; tal Ser, não influenciado por nenhuma força externa a si, seria o responsável pelo primeiro impulso que colocaria o universo em ação (ainda que ele mesmo permanecesse eternamente imóvel). Também denominado de "Primeiro Motor", esse "ser supremo", fruto de uma hipótese teórica, era concebido como empiricamente inacessível, ainda que logicamente necessário para se compreender o surgimento do mundo e sua dinâmica.
Diferentemente da relação que o mundo judaico religioso teria estabelecido com Deus, que é pessoal e dada a partir de um contato direto entre homem e seu criador ("Deus de nossos pais", "Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó"), a Filosofia e a Ontologia aristotélicas teriam iniciado a cultura ocidental em uma busca impessoal e racional pelo Absoluto.
Em uma segunda etapa do desenvolvimento desse tipo de perspectiva (que, como se percebe, é ontológica, teológica, epistemológica e ética, a um só tempo), Agostinho trouxe grande contribuição em seu aprofundamento e evolução, ao afirmar que o ser humano é uma "miniatura da mente divina". Influenciado pelo essencialismo platônico, o bispo de Hipona compreenderia que a mente humana pode conhecer todas as coisas por meio do acesso que o intelecto (ratio) tem ao Mundo das Ideias - habitat das essências. De acordo com a perspectiva de sua Filosofia, todos os entes do mundo poderiam vir a ser comprovados, em sua validade existencial, a partir da coincidência de sua imagem sensória com a concepção intelectual de sua essência. Dessa forma, em vez de o caminho do conhecimento se dar por um "imediatismo experiencial da relação" (Yannaras, 2013), ele passa a ser legitimado pelo exercício racional de um único intelecto humano.
Por "imediatismo experiencial da relação", Yannaras (2006, p. 12, tradução nossa) tem em consideração o modo como a sociedade grega antiga concebia o acesso à verdade: "os gregos habitualmente identificavam 'o que é verdade' com 'aquilo no qual se participa', verificando teoria e prática no contato com realidade social e empírica". Esse "modo grego" de acesso à verdade, por intermédio da constatação e compartilhamento sociais, teria sido trocado pela crença de que um indivíduo apenas poderia alcançar a verdade última de qualquer elemento da realidade ao utilizar-se de um método correto de racionalidade. Assim, a convicção individual dada pelo intelecto se tornará o caminho privilegiado para o conhecimento.
Essa perspectiva epistemológica, que ganha maior fôlego com o movimento medieval conhecido como Escolástica, teria formado as bases para o modo de pensar e de se aproximar do real expresso na Modernidade; mais tarde, essa mesma metodologia epistemológica seria reafirmada pelo Positivismo europeu.
Uma hipertrofia do intelecto teria sido realizada ao longo dos séculos, o que inevitavelmente deixaria profundas marcas na maneira de como a ciência passou a articular seu pensamento investigativo. O processo de fabricação do conhecimento humano irá ganhando traços cada vez mais afirmativos, à medida que o mistério da existência entra em ocaso.
Freud é certamente herdeiro dessa tradição epistemológica, uma vez que, para assentar sua recém-criada Psicanálise, viu-se na necessidade de dialogar com os alicerces científicos de sua época e utilizar-se da mentalidade vigente para fundamentar suas descobertas, ou seja, para ganhar credibilidade social a fim de edificar sua proposta terapêutica.
Santos (1995, p. 10) nos alerta para o fato de que o modelo de racionalidade que preside a ciência moderna "constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais". Nesse longo período histórico conhecido como Modernidade, o rigor científico era aferido por medições: conhecer significava basicamente quantificar, dividir e classificar os objetos de interesse, para depois poder determinar relações sistemáticas entre eles. A natureza foi compreendida tão somente como extensão e movimento, sendo concebida como passiva, eterna e reversível - um mecanismo cujos elementos se podem desmontar e depois reordenar sob a forma de leis e, portanto, "desprovida de qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar os seus mistérios, desvendamento que não é contemplativo, mas antes activo, já que visa conhecer a natureza para a dominar e controlar" (Santos, 1995, p. 13).
Foi nesse tipo de horizonte científico que Freud realizou suas investigações psicológicas, sondou os entraves da alma humana e justificou a relevância de sua pesquisa clínico-teórica. O "Projeto de uma psicologia científica" (1895) é evidentemente fruto dessa mentalidade cientificista, já que sua finalidade teria sido a de estruturar uma Psicologia que concebesse os processos psíquicos como "estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis", procurando, assim, dar àqueles um caráter "concreto e inequívoco".
Esse tipo de abordagem usada para compreender a condição, ou a etiologia do sofrimento de seus pacientes, teria feito Binswanger (1936) afirmar que Freud aproximava-se do ser humano com a mesma objetividade, com a mesma devoção existencial ao objeto, quanto àquela usada para estudar, no laboratório de Brücke, a medulla do amnocoetespretomyzon. Ao interrogar-se sobre a concepção freudiana de homem à luz da antropologia, Ludwig Binswanger (1936, p. 223, tradução nossa) concluirá que o ser humano é apresentado naquela perspectiva como o homo natura, uma vez que "o processo dialético de redução que Freud utiliza como instrumento metodológico para a construção teórica de sua ideia do homem é, até em seus últimos detalhes, o das ciências naturais". O Homem teria sido apreendido, na perspectiva antropológica freudiana, apenas em sua pura imanência.
A perspectiva científica vigente na época de Freud (e adotada por ele) é um tanto desencantada, pois determinista e materialista; é destemida também, pois não se vê submetida à necessidade de zelar por um suposto mistério da existência - não mais acuada pela embaraçosa dimensão do transcendente, tem diante de si o caminho aberto para a dissecação de seus objetos de estudo.
Em tal embalo, não seria difícil para Freud criar e legitimar um dispositivo que vasculhasse os confins do ser humano a fim de trazer à superfície da consciência os conflitos invisíveis que fomentariam seus dramas cotidianos. É nessa linha de raciocínio que a interpretação psicanalítica servirá de ferramenta perfeita para sua terapêutica, permitindo que seus pacientes se tornem conscientes daquilo que, até então, lhes era inconsciente. Nesse terreno composto de desejos recalcados, estariam as raízes dos diversos males da alma humana, cuja única via de acesso a tais conteúdos seria sua verbalização em um ambiente especializado. Silva e Júnior (2017, p. 66) acrescentam:
Com suas [pacientes] histéricas, os fenômenos conversivos exibidos por meio de expressões de horror, dor ou prazer lhe davam pistas sobre qual caminho deveria seguir: partindo das comunicações verbais dos afetos, poder-se-ia chegar até suas representações no inconsciente. Ainda, sem dar a devida importância aos gestos e expressões de alguns pacientes, compreendendo a recusa em falar, de alguns deles, como pura censura ou resistência ao tratamento, no início dos primeiros casos clínicos, para Freud, não havia escolha: o inconsciente só podia ser dizível ou verbalizável, para daí ser analisado e interpretado. Qualquer outra forma de comunicação deveria ser posta de lado.
A Psicanálise se constituiu, portanto, como prática terapêutica que privilegia a palavra como meio de comunicação entre os dois personagens que dela participam; sendo o símbolo representante do inconsciente, a palavra deve ser dominada pela artimanha e perspicácia da interpretação analítica: da correta interpretação nenhum desejo oculto escapará!
Melanie Klein, grande referência da formação psicanalítica de Winnicott, foi uma das analistas que mais radicalizou o uso da ferramenta interpretativa, chegando até mesmo a saturar o encontro analítico com a palavra-elucidação. Convicta, juntamente com Freud, de que os conteúdos que ganham consciência perdem sua força patogênica,11 ela apelaria para o uso da interpretação da dinâmica inconsciente de seus pacientes, a fim de baixar o nível de suas ansiedades, diminuir a repressão e a inibição superegoica de seus psiquismos, bem como favorecer a capacidade sublimatória destes. O uso radical e precoce da interpretação presente na abordagem kleiniana se justificava pela concepção de que o inconsciente humano é algo dado, nato, e não apenas fruto do recalque (movimento posterior à sua constituição).
Winnicott levará alguns anos para se discriminar do horizonte teórico e do modo de manejar o processo analítico kleinianos; talvez somente após a morte daquela que havia sido sua supervisora por anos, a marca pessoal de sua contribuição pôde aparecer mais francamente ou sem estar revestida de tantas estratégias diplomáticas. Em determinado momento de seu percurso, compreenderá que o uso excessivo e precipitado da interpretação poderia induzir os pacientes a uma dinâmica de submissão à subjetividade e às convicções teóricas de seus analistas, o que não apenas inibiria, mas violentaria o processo criativo dos primeiros.
Muitas manifestações de resistência, que podem surgir no processo analítico, deveriam ser compreendidas pelos psicanalistas como decorrentes de suas próprias abordagens técnicas de caráter intrusivo. Winnicott concluirá que, quando a interpretação não acontece em uma área de encontro criativo entre o profissional e seu paciente, a resistência será um fenômeno recorrente. Assim, a interpretação que acontece "quando o paciente não tem capacidade para brincar, simplesmente não é útil, ou causa confusão. Quando existe um brincar mútuo, então a interpretação, segundo os princípios psicanalíticos aceitos, pode levar adiante o trabalho terapêutico" (Winnicott, 1975, pp. 75-76). Esse tipo de constatação o teria levado a confessar-se para seu público, quando já em sua maturidade clínica: "Só recentemente me tornei capaz de esperar; e esperar, ainda, pela evolução natural da transferência que surge da confiança crescente do paciente na técnica e no cenário psicanalítico, e evitar romper esse processo natural, pela produção de interpretações" (Winnicott, 1971ª/1975, p. 121). Essa mudança no uso da técnica teria advindo da percepção do médico inglês de que a psicoterapia alcançava sua potencialidade e razão de ser quando se fazia dispositivo de encontro interpessoal para permitir que o paciente se apropriasse de seu processo criativo pessoal.
Não mais a Psicanálise seria compreendida como recurso terapêutico para transformar conteúdos inconscientes em conscientes, mas como oportunidade para seus pacientes de apropriação de sua criatividade originária e singular.
Psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz. É um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto. Essa é a forma pela qual me apraz pensar em meu trabalho, tendo em mente que, se o fizer suficientemente bem, o paciente descobrirá seu próprio eu (self) e será capaz de existir e sentir-se real. Sentir-se real é mais do que existir; é descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se aos objetos como si mesmo e ter um self para o qual retirar-se, para relaxamento [...] Mesmo quando nossos pacientes não se curam, ficam-nos agradecidos porque pudemos vê-los tal como são e isso nos concede uma profunda satisfação. (Winnicott, 1971ª/1975, pp. 137-138).
Concluímos, assim, que o modo parcimonioso e prudente de fazer uso da palavra e a preocupação em adotar uma abordagem técnica não intrusiva de Winnicott têm seus fundamentos em uma Antropologia que aqui denominamos de apofática, já que extremamente respeitosa ao ser criativo e sagrado que habita o centro do ser humano. Somente por assumir que o self humano é pura transcendência, tal mudança no campo da ética, da técnica e da epistemologia puderam acontecer. Ao deixar de ser compreendido como uma entidade determinada pelas forças da natureza, o homem winnicottiano recupera sua sacralidade e demandará da clínica um tratamento de acordo com sua marca transcendente: "No centro de cada pessoa há um elemento não comunicável, e isto é sagrado e merece muito ser preservado" (Winnicott, 1963, p. 170).
Considerações finais
Procuramos apontar, como eixo fundamental que sustenta as inovações que Winnicott trouxe para o campo psicanalítico, sua Antropologia assentada no respeito à transcendência do self. Trazendo a contribuição desse autor para a tradição apofática (que podemos encontrar mais explicitamente nas áreas da Filosofia e da Teologia), tentamos reconhecer o caráter "negativo"12 de seu pensamento, em como o quanto este afetou sua maneira de clinicar.
A fidelidade que Winnicott demonstrou ter em relação à sacralidade do self humano orientou sua Psicanálise a se dar no campo do brincar - ponto de encontro entre pessoas que se dispõem a conhecerem-se mutualmente, no qual o paradoxo entre exposição e reserva é continuamente sustentado.
O uso do brincar relativizou a centralidade dada à palavra falada que a Psicanálise tradicional tanto venerava, fazendo com que a dupla analítica derrubasse o muro de formalidades que as separava. Nessa nova perspectiva terapêutica apresentada por Winnicott, as categorias de sujeito e objeto borraram-se e cederam a vez para o encontro criativo entre dois selves dispostos a se reconhecerem em suas singularidades. O analista, aqui, coloca-se de maneira mais participativa e implicada no processo analítico de seus pacientes - ou seja, pessoal -, o que muda consideravelmente o eixo epistemológico nesse campo de atividade.
Reformulando a Antropologia (compreensão sobre a condição e a natureza humanas), Winnicott afetou o campo relacional, ético, técnico e epistemológico da Psicanálise em grandes proporções, o que nos permite alinhá-lo àquilo que Santos (1995) anunciou ser o "paradigma emergente da ciência". Nesse modelo revisto, um caminho de conhecimento compreensivo e íntimo passa a ser formulado - conhecimento que não nos separe, mas, antes, nos uma pessoalmente ao que estudamos: "a incerteza do conhecimento que a ciência moderna sempre viu como limitação técnica destinada a sucessivas superações transforma-se na chave do entendimento de um mundo que mais do que controlado tem de ser contemplado (Santos, 1995, p. 53).
O projeto de "uma ciência prudente para uma vida decente"13 é, certamente, encontrado no horizonte clínico que Winnicott nos deixou, já que toda a sua Psicanálise se ancora no respeito radical ao desconhecido que habita o humano.
Outro ponto destacado neste trabalho foi explicitar a intrincada relação entre os elementos antropológicos, éticos, técnicos e epistemológicos presentes em uma perspectiva clínica, a fim de que tal evidência possa vir a ser convite para que os participantes de comunidade psicanalítica possam exercitar esse tipo de compreensão e alcançar maior coerência interna em sua prática, bem como na produção de suas teorias.
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1 Preferimos o uso da palavra "Real" à "realidade", uma vez que a primeira sustenta em maior nível à alteridade presente naquilo que denominamos realidade, enquanto a última tornou-se, como conceito filosófico, resultado da subjetividade do indivíduo humano e, portanto, um produto objetificado.
2 No original, Φύσις κρυπτεσθαι φιλεί (Physis kryptesthai philei).
3 É curioso pensar que o formato dos seus escritos, disponíveis atualmente para nós, seja o de "fragmentos". O fragmento faz jus à imprecisão, à fragilidade das afirmações que o filósofo teria feito sobre suas descobertas; o tempo teria lapidado o conhecimento de Heráclito e o deixado ainda mais coerente à sua proposta apofática de conhecimento do Ser: na rachadura da palavra, o mistério é preservado!
4 Para as Pessoas que constituem a Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo).
5 No cristianismo, compreende-se que Deus e o homem são separados por um abismo ontológico e que, portanto, o homem é uma alteridade para seu criador, um outro radical.
6 Winnicott postulará três tempos fundamentais do amadurecimento infantil precoce: (i) integração (possibilidade que advém da atividade de holding, ou sustentação, realizada pelo ambiente), (ii) personalização (que se dá por meio do handling, ou manejo), e (iii) realização, que permite à criança reconhecer tempo e espaço e outras propriedades da realidade compartilhada. Nesse terceiro momento, ela já teria formado em si um ego capaz de lidar com os objetos do mundo e por meio de uma relação pessoal e criativa, trocar experiências com eles e se enriquecer; nesse momento, não se corre mais o risco de o objeto ser vivido como uma intrusão, mas pode ser usado para o amadurecimento.
7 "O brincar implica confiança e pertence ao espaço potencial existente entre (o que era a princípio) bebê e figura materna, com o bebê num estado de dependência quase absoluta e a função adaptativa da figura materna tida como certa pelo bebê" (Winnicott, 1971a, p. 78).
8 Na perspectiva winnicottiana, o processo maturacional é um potencial de desenvolvimento humano herdado, conferido pela própria natureza; o sucesso de sua realização depende de algumas condições genéticas e biológicas básicas e da facilitação do ambiente externo, como cuidado adaptativo.
9 "Utilizando a palavra 'cultura', estou pensando na tradição herdada. Estou pensando em algo que pertence ao fundo comum da humanidade, para o qual indivíduos e grupos podem contribuir, e do qual todos nós podemos fruir, se tivermos um lugar para guardar o que encontramos" (Winnicott, 1971a/1975, pp. 137-138).
10 No original, Winnicott diz: "to be isolated without having to be insulated" (1965j, p. 187).
11 "Chamamos de Psicanálise o processo pelo qual trazemos o material mental recalcado para a consciência do paciente" (Freud, 1919/1996, p. 173).
12 Que tolera o vão do não saber, e não se precipita em tamponá-lo com elucubrações mentais - que irão inevitavelmente corromper e violar a sacralidade dos objetos que se busca conhecer.
13 Título de um dos livros organizados por Santos (2006).