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versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.17 no.3 Fortaleza sept./dic. 2017
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v17i3.6511
ESTUDO TEÓRICO
Devastação: entre mal-estar e sintoma, o sofrimento relacionado ao feminino irrepresentável
Devastation: amongst discomfort and symptom, a suffering refered to the unrepresentable female
El estrago: entre las nociones de malestar y sintoma, el sofrimento relacionado com el irrepresentable feminino
Ravage: parmi les notions de malaise et les symptômes, la souffrance liée au corps féminin non representable
Danuza Effegem de Souza (OrcID)I; Paulo Eduardo Viana Vidal (OrcID)II
IMestre em psicologia pela Universidade Federal Fluminense
IIDoutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, professor-associado do Departamento de Psicologia da UFF, na graduação e no programa de Pós-graduação stricto sensu Estudos da Subjetividade
RESUMO
Este artigo sobre a devastação feminina estuda a relação dessa forma de apresentação do sofrimento com as especificidades da construção da imagem corporal feminina que, estruturalmente, realiza-se sem o acesso a uma identificação definitiva para o seu sexo. O estudo se detém na problemática narcísica que surge em consequência da perda do amor e busca situar essa forma de sofrimento entre as noções de mal-estar e sintoma, delimitando suas especificidades.
Palavras-chave: Psicanálise; devastação; mal-estar; separação; sintoma.
ABSTRACT
This article about female devastation studies the link between this form of suffering and the particularities in image and body constitution of females, considering their structural lack of an ultimate sign for sexual identification. Here, devastation is read as an inversion in body image, possibly caused by the loss of a loved one. We try to gather its marks by tracing back both concepts of Discomfort and Symptom.
Keywords: Psychoanalysis; devastation; discomfort; separation; symptom.
RESUMEN
Este artículo sobre el estrago estudia una relación com la forma de presentación com el modelo de especificaciones de la construcción de la imagen corporal femenina que, estructuralmente, realiza-se sin acceso a una identificación definitiva para su sexo. El estudio se detiene em la problemática narcisica que surge em la consecuencia de la pérdida de amor y busca la forma de sofrimento entre las nociones de malestar y sintoma, delimitando sus especificidades.
Palabras-chave: Psicanálise; estrago; mal estar; separación; sintoma.
RÉSUMÉ
Cet article sur la dévastation feminine étudie la relation de cette forme de présentation de la souffrance avec les spécificités de la construction de l'image corporelle des femmes, laquelle, structurellement, ne proportione pas accès à une identification permanente pour leur sexe. Le document metl'accent sur les questions narcissiques qui se posent à la suite de la perte de l'amour et cherche à situer cette forme de souffrance parmi des notions de malaise et des symptômes, délimitant leurs spécificités.
Mots-clés: Psychanalyse; ravage; malaise; separation; symptôme.
Mal-estar
A clínica é o lugar em que o sofrimento humano em suas infinitas formas está em evidência. Face a face com o trágico da existência, as narrativas dos pacientes testemunham a declaração freudiana de que a vida é árdua demais, proporciona sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis (Freud, 1930/1996). À medida que nos inserimos nesse lugar de escuta da dor, percebemos que esse dispositivo aparece em meio a outras "medidas paliativas" (Freud, 1930/1996, p. 83), criadas para lidar com a desarmonia incontornável entre o bem do sujeito que fala e o que para ele se apresenta como realidade. A psicanálise, considerada por Wladimir Safatle (2015, p. 11) "a experiência clínica mais sensível à natureza narrativa do sofrimento", como uma referência teórica e antes de tudo uma práxis, acolhe esse sofrimento inexorável sob a influência do conceito freudiano de mal-estar, desenvolvido em um texto que influenciou largamente o pensamento filosófico e político desde sua publicação, em 1930.
O Mal-estar na civilização reúne o pensamento tardio de Sigmund Freud acerca do sofrimento humano. Desde suas fontes, até os recursos utilizados para administrá-lo, a obra analisa o sentimento de desprazer que, tal como um operador, é tomado como constitutivo e organizador, desempenhando funções essenciais, tanto no plano individual quanto social, e abarcando a dimensão humana imbricada no termo civilização. Primeiramente, Freud afirma que a civilização se organiza, e somente pode ter preservada sua ordem social, em torno de renúncias no plano do sujeito de alcançar a satisfação por completo. Tal perda implica numa limitação das possibilidades de realização e produz mal-estar, desarmonia resultante da introdução do princípio da realidade sobre o princípio do prazer.
As derivações do mal-estar não se restringem à organização social, porém elas participam também da organização psíquica do sujeito. Desde o início da vida, o mal-estar proveniente do descompasso na relação com o semelhante exerce um papel crucial na edificação do eu: o eu, como o envoltório que concede ao corpo unidade e forma integralizada, constitui-se na relação com o outro, numa operação em que o sujeito se subtrai do campo onde se permitiu alienar. Freud nos ensina que uma criança recém-nascida não distingue o seu ego do mundo externo como fonte de sensações que fluem sobre ela (Freud, 1930/1996). O curso do desenvolvimento proporciona gradativas experiências que incentivam o "desengajamento do ego" (Freud, 1930/1996, p. 75) de um mundo exterior, especialmente as sensações de desprazer das quais o sujeito, sob o domínio do principio do prazer, tentará se manter afastado.
Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de tal desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um puro ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um exterior, estranho e ameaçador (Freud, 1930/1996, p. 76).
Investigando a origem do mal-estar, Freud relaciona três fontes de onde o real nos atinge: a fragilidade de nossos corpos físicos, suscetíveis ao adoecimento e subordinados à morte; o mundo externo, que pode nos surpreender com suas forças destruidoras; e, por último, as relações com outros seres humanos. Freud (1930/1996) precisa que o sofrimento oriundo desta última fonte talvez seja mais duro para nós do que qualquer outro.
Devastação
Referida a essa terceira fonte, a devastação é também uma forma de sofrimento cuja intensidade e abrangência parece confirmar a superioridade das forças agressivas provenientes da natureza relacional do sujeito. Nossas leituras sugerem que tal intensidade guarda uma relação com a constituição das próprias fronteiras do ego, pois, nos momentos de conflito e separação do semelhante, a certeza do sentimento do eu, tomada como "a maior certeza do sujeito" (Freud, 1930/1996, p. 74), pode sofrer abalo. Sobre esta dificuldade, nos esclarece Freud que
As fronteiras desse primitivo ego em busca de prazer não podem fugir a uma retificação através da experiência. Entretanto, algumas das coisas difíceis de ser abandonadas, por proporcionarem prazer são, não ego, mas objeto, e certos sofrimentos que se procura extirpar mostram-se inseparáveis do ego, por causa de sua origem interna (Freud, 1930/1996, p. ٧٦).
A psicanálise, quando se enlaça à clínica, propõe uma intervenção sobre o problema do sofrimento humano, assim como as religiões, a ciência e a arte. Mesmo destacando-se das duas primeiras e aproximando-se da arte pelo investimento em soluções singulares e não universais, ela não escapa de engendrar tentativas de abordar o sofrimento na relação com outros saberes, colocando-se na série de "construções auxiliares" (Fontane citado por Freud, 1930/1996, p. 83) às quais Freud se referia.
Na clínica, a qual está em constante interação com outras áreas, observamos criações de múltiplos recursos para administrar o sofrimento, sejam eles químicos, da ordem do saber, sejam da ordem da verdade, recortam e nomeiam a apreensão mais geral do sofrimento humano em classificações muito mais específicas e fragmentares. Não obstante os diversos nomes, cada sujeito experiencia de forma singular seu próprio mal-estar, e esta dimensão do pathos, que escapa às apreensões e atribui ao sujeito o dever de dizer seu desconforto único, é o que à psicanálise é mais caro neste lugar de endereçamento em que a fala do paciente está no centro dinâmico da cura. Assim, o novo nunca cessa de aparecer na clínica, o que nos envia à seguinte afirmação:
Inúmeras considerações sociológicas referentes às variações da dor de viver, de uma época para outra, são pouco comparadas à relação estrutural que, por ser do Outro, o desejo mantém com o objeto que o causa (Lacan, 1965/2003, p. 204).
Os nomes atribuídos à dor de viver, ou mal-estar, nos enredam ao panorama social de uma época e, frequentemente, preexistem às práticas e antídotos que visam alcançar a cura, correção, ou na perspectiva do sujeito, a realização do seu projeto de felicidade (Freud, 1930/1996). Numa linha histórica, nos diz Dunker (2015, p. 187), "intérpretes do mal-estar" formalizam nossos afetos em significantes. Freud, um destes interpretes, não esteve alijado, como a psicanálise, deste trabalho de nomeação. A predominância do vocabulário psiquiátrico, herança do campo médico onde a psicanálise nasceu, produziu uma miríade diferenciada de formações e gradações patológicas, traçou dinâmicas para compreender os modos de relação e a lógica de respostas ao Outro, incorrendo inevitavelmente em cristalizações e estereótipos. O texto de 1929 é surpreendente por recuperar a dimensão primeira do desconforto humano, elementar e anterior às classificações produzidas, às quais o próprio Freud aderiu.
A partir dessa reflexão preliminar, quando estamos às voltas com certa nomeação do sofrimento, perguntamos: será a devastação mais um entre tantos nomes? Que forma de mal-estar esse significante alcança? Tomando sua imbricada relação com o feminino, do qual não há significante e revela-se "rebelde a deixar-se anotar pelo traço" (Amigo, 2007, p. 206), tal nomeação vem no lugar de uma suplência, ali onde um saber falta e um significante inexiste. A autora ensina que "nomear o real não é o mesmo que situá-lo" (Amigo, 2007, p. 212). Nomear é levar uma dimensão de dignidade ao oco, enodando-o ao real, simbólico e imaginário a partir de um esforço singular que requer certa invenção ao tentar esboçar um sentido que não seja todo e não se pretenda único.
Devastação e Sintoma
Por considerarmos privilegiada a noção de mal-estar cunhada por Freud, de onde, Lacan nos diz "procede toda a nossa experiência" (Lacan, 1974/2011, p. 29), buscamos essa referência como ponto de largada para, então, construirmos um caminho que nos leve a algum saber sobre um modo de sofrimento que guarda algumas especificidades e é chamado de devastação.
A devastação enquanto um modo de gozo vem sendo descrita e formulada numa referência negativa ao sintoma. Este, modo de gozo frequente na clínica, constitui um polo de articulações com outros saberes: pode ser interpretado, tratado, lapidado até que mostre sua melhor face (Miller, 1999). Noção cara à clínica, o sintoma não é um elemento parasita do sujeito que precisa ser extirpado, mas algo que ele constitui e, assim, passa a constituí-lo como um traço essencial, um recurso próprio, certa identidade, até chegar a uma verdade sobre o sujeito, estendendo essa noção até o sinthoma, no ensino avançado de Lacan. Embora esse conceito possa atrair muitas articulações e interpretações, ficaremos com Dunker, que nos oferece uma definição bastante precisa.
O sintoma é essa emergência da verdade no real, esse ponto de exceção, isso a que Nuno Ramos chamou de camada de poeira sobre as coisas e que impede que toquemos o real direta e indiretamente (Dunker, 2015, p.190).
Por meio dessa definição ensaiamos tocar, pelo contraste, aquilo em que a devastação consiste, o encontro com certa nudez, quando falta sobre o corpo alguma camada mediadora, uma veste que interdite o acesso ao real.
Sintoma e devastação são dois modos de gozo e aparecem dualizados no esquema milleriano que desenha certa repartição sexual. O sintoma está do lado masculino, junto à noção de unidade e identidade do ser, enquanto a devastação é o seu referente do lado de uma posição feminina com a diferença, sem identidade. Seguindo com essa distribuição, Miller diz que o mal-estar na cultura, distribuído de acordo com a polaridade sexual, é mais do homem, o macho, já que a mulher freudiana representa o polo selvagem, rebelde a essa civilização portadora de mal-estar (Miller, 1999). A devastação denuncia o fracasso da mascarada feminina como contenção e evidencia a "verdadeira mulher lacaniana" (Miller, 1999, p.26), a que se arrasta até o ilimitado, a extraviada. A referência ao não-todo, ao que não é bordejado pelo significante, fica assim cotejada.
No entanto, analisando as noções imbricadas no mal-estar freudiano e trabalhando de forma densa o Unbehagen, termo alemão tomado por Freud, Dunker (2015) nos apresenta nuances do mal-estar e nos alerta que, no texto de Freud, o que está em causa é, primeiramente, o conceito de mundo. A ideia de pertencimento, de "um vínculo indissolúvel" (Freud, 1930/1996, p. 74), parece ser um desdobramento do sentimento oceânico de Romain Rolland, criticado ou não reconhecido por Freud, e implicaria em uma forma de mal-estar nesse mundo, com as dificuldades de nele estar plenamente adaptado e feliz. O termo desconforto, uma das traduções possíveis tomando a sinonímia do termo mal-estar, "evoca a experiência de estar no espaço, de estar contido, abrigado e protegido e, ainda assim, perceber que há algo faltando" (Dunker, 2015, p. 196). Essa dor é o que usualmente traduzimos como a dor de viver, "peso existencial" (Dunker, 2015, p. 196), esse mal-estar específico como um sintoma ligado à experiência do mundo como vertigem. É sob esse aspecto que o sintoma - o qual, segundo Lacan (1974/2011, p.17), "vem do real" - pode corresponder ao mal-estar freudiano.
Outro olhar ainda sob o aspecto do sentimento do mundo como uma consistência nos remete à "ausência deste pertencimento, dessa suspensão no espaço, dessa queda impossível fora do mundo" (Dunker, 2015, p. 199). Tal interpretação nos faz atentar para a complexidade inerente à natureza do conceito, que teria dado origem à querela em torno da tradução, e nos interessa de maneira especial por estender a noção de mal-estar, desde uma sensação desagradável, ou um destino circunstancial, até o sentimento existencial de perda de lugar, a experiência real de estar fora. Dunker nos diz que "uma das formas mais agudas e persistentes do mal-estar é justamente o "não-estar" (Dunker, 2015, p. 198), o sentimento constante de "ir e vir, a desconexão com o pertencer" (Dunker, 2015, p. 198).
Unbehagen in der Kultur deveria ser entendido como mal-estar na civilização, desde que em mal-estar pudéssemos ler a impossibilidade de estar, a negação do estar, e não apenas a negação do bem estar (Dunker, 2015, p. 192).
Esta escansão feita por ele sobre os nomes contidos no mal-estar freudiano nos permite refinar um pouco mais a aproximação com o feminino e o conceito de devastação ao lado de Fuentes (2012), que traça um paralelo ao evocar esse caráter binário em torno do existir, que, em tantos idiomas, é consubstancial à ideia inerente ao verbo ser, relacionando-o ao problema da distribuição sexual desenhada por Miller e que também atravessa o seu estudo. Ela aponta que, ao lado da universal dor de existir, "há também a dor de inexistir como um dos impasses do feminino" (Fuentes, 2012, p. 41).
A devastação, conforme utilização do termo por Lacan (1973/2003), indica uma forma de gozo referido à mulher que não pode ser tomada como um sintoma. A propósito disso, Miller (1999) se surpreende que o termo, como simétrico em relação ao sintoma, não tenha ocorrido a Lacan, por identificar já em seu ensino uma construção lógica que caminhava para essa conclusão. O sintoma, nos diz Miller (1999, p. 27), "é um sofrimento sempre limitado, sempre localizado". A devastação, ao contrário, refere-se ao não-todo, no sentido do sem limites. A partir daí, Miller (1999) polariza o sintoma como modo de gozo ligado ao regime fálico, masculino e a devastação, ao não-todo fálico, feminino.
Contudo, acompanhando o esquema didático traçado por Miller, questionamos se sua idéia de simetria entre devastação e sintoma traz, necessariamente, o caráter de oposição entre as duas noções, relação de exclusão mútua com a qual não concordamos.
Ao tomar como solo as fórmulas da sexuação, percebemos que o não-todo do lado feminino funda uma relação especial que só apreendemos a partir da relação entre os dois lados, pois o não-todo não exclui o todo, mas indica os limites dele. Assim, entendemos que o sujeito feminino pode experimentar seu gozo sob a forma de sintoma, porque está submetido ao regime fálico, e pode ainda experimentá-lo como devastação, por não estar de todo submetido. A devastação se alinha àquilo que o falo e as demais referências identitárias - entre as quais, o sintoma - não contém, sem necessariamente aniquilar formações ancoradas no sentido.
Afirmamos a articulação entre a devastação e a terceira fonte de sofrimento que remete à emergência do real nas relações entre os seres. Ademais, ela abarca um ponto de interrogação latente na literatura psicanalítica desde Freud: o enigma da constituição feminina. Seu estudo explicita a importância constitutiva do laço com o outro - laço que condiciona a existência e sustentação do sujeito, e ainda de uma dose de invenção, sobretudo para o sujeito que constrói para si uma forma de acessar sua feminilidade buscando sempre, além do corpo, alguma subsistência significante, sempre precária em alguma medida. Além disso, a devastação expõe as consequências de estrago subjetivo em que a falta de tal subsistência deixa uma mulher quando sobre seu corpo incidem os efeitos da vacilação dos semblantes, necessários no trato íntimo com o real, especialmente quando tal vacilação decorre da inconsistência do desejo do outro ou ainda de seu caráter inconstante, não contínuo.
Nesse contexto em que a separação do objeto amado ganha tamanho destaque, enfatizamos a importância que tem a relação com a mãe (o primeiro Outro) para a trajetória subjetiva de uma mulher, de quem ela primeiro se separa e de quem ela nunca se separa, finalmente, por permanecer dela esperando essa "substância" (Lacan, 1973/2003, p. 475) que, frequentemente, ela substitui ou faz coincidir com a subsistência que ancora seu corpo e ser.
A separação, que levaria naturalmente uma menina a orientar para o pai, sua demanda por "substância" (Lacan, 1973/2003, p. 465), primeiro dirigida à mãe, fica sempre atrelada ao sentimento de ódio pela mãe por sua dupla castração: a falta do falo e de um significante que dê consistência ao ser mulher, revelando uma transmissão impossível da feminilidade e de uma identificação feminina propriamente dita. Essa demanda persistente, dirigida à mãe, denuncia ainda os limites da significação fálica e da função paterna no que diz respeito à sexualidade feminina, o que quer dizer que ela opera de forma não-toda. Portanto, se nos habituamos a pensar o pai como segundo em relação ao tempo da influência materna sobre a criança, Lacan (1973/2003) nos aponta o contraste, uma particularidade, no que diz respeito à mulher, pois a primeira influência não sucumbe totalmente à incidência da segunda. A relação primordial entre uma menina e sua mãe tem as características de uma relação passional que, de alguma maneira, resiste à separação estabelecida pela metáfora paterna, permanecendo a filha de algum modo capturada pela sedução materna.
O impossível nessa separação, que poderá ressoar nas separações e desenlaces ao longo de toda a vida, é o que a devastação, termo a que pretendemos dar um tratamento conceitual, evidencia. Enquanto o mal-estar freudiano, segundo Lacan, sinaliza o impossível na junção dos corpos, a não relação-sexual, a devastação traduz a dificuldade na separação entre eles, cujos efeitos recaem sobre a imagem do corpo próprio.
A Devastação e o Irrepresentável do Feminino no Corpo
Uma Canção Desnaturada
Chico Buarque
Por que cresceste, curuminha /Assim depressa, e estabanada/Saíste maquiada/Dentro do meu vestido/Se fosse permitido/Eu revertia o tempo/Para viver a tempo/De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha/Batendo com a moleira/Te emporcalhando inteira/E eu te negar meu colo/Recuperar as noites, curuminha/Que atravessei em claro/Ignorar teu choro/E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha/Cinquenta graus, tossir, bater o queixo/Vestir-te com desleixo/Tratar uma ama-seca/Quebrar tua boneca, curuminha/Raspar os teus cabelos/E ir te exibindo pelos/Botequins
Tornar azeite o leite/Do peito que mirraste/No chão que engatinhaste, salpicar/Mil cacos de vidro/Pelo cordão perdido/Te recolher pra sempre/À escuridão do ventre, curuminha/De onde não deverias/Nunca ter saído.
Uma mulher devastada - para esboçar uma descrição - tem a vida afetiva e os laços sociais de tal maneira empobrecidos que parece não estar remetida ao desejo do Outro, o que lhe confere um não lugar, um estado enlouquecido em que as referências tornam-se inacessíveis, como que perdida de casa, quando neste termo buscamos a acepção que Lacan produz ao afirmar: "o homem encontra sua casa num ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 58). Sua dificuldade de colocar o corpo e investir libido nas relações de objeto caracteriza um estado mortificante que sugere uma perda do corpo, ou uma recusa do corpo, decorrente de uma defesa contra a emergência do gozo feminino (Guimarães (2014). Tal com uma "infiltração" (Guimarães, 2014, p. 125), a devastação invade o campo de experimentação do gozo feminino de tal forma que o sujeito responde como se "tivesse perdido a si mesmo, perdido o eixo onde se diz 'Eu', perdido o controle de decidir ou mesmo de dizer qualquer coisa" (Guimarães, 2014, p. 122).
O termo devastação vem se tornando popular e um tanto abrangente na produção acadêmica atual, mesmo não aparecendo como um conceito formalizado, ou uma entrada nos dicionários de psicanálise1, que pudesse facilitar o acesso ao que ele designa e precisar sua relação com os conceitos ditos fundamentais. Na clínica, ele é geralmente evocado quando o analista está diante de um impasse a respeito do diagnóstico estrutural, frequentemente, com uma paciente que se enuncia a partir de uma posição feminina e resiste em renunciar ao gozo. Distante, ao mesmo tempo, das insígnias fálicas e de uma via feminina desejante, sofre os efeitos da identificação impossível para o seu sexo sem o falso respaldo que uma identificação fálica lhe ofereceria na posição histérica.
A palavra francesa "ravage", que vem sendo traduzida por devastação, aparece no ensino de Lacan fazendo referência ao sofrimento de uma mulher e relacionando-se ao seu desenvolvimento, conforme a descrição de Freud, em particular a relação original com a mãe no texto de 1973, O Aturdito.
Por esta razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit) contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância do que do pai - o que não combina com ser ele segundo, nessa devastação (Lacan, 1973/2003, p. 465).
No contexto da citação, o termo vem qualificar a relação mãe e filha, apontando para a peculiaridade do desenvolvimento de uma menina, mais complexo do que o do menino, e dissimétrico em relação a este, cuja lógica se explica pelo Complexo de Édipo. Em concordância com Freud, Soler (2005, p.17) afirma que "o Édipo produz o homem, não produz a mulher", recuperando que o próprio Freud reconheceu diante do feminino os limites de sua teoria.
Laurent (2012) estuda detalhadamente o escrito em que Lacan isola o arrebatamento, uma das traduções do ravage, que também se traduz por devastação. Ele afirma que Lacan faz do arrebatamento da alma, da psique, não um símbolo, mas uma operação lógica, subjetiva, que vai articular os tempos de junção do sujeito e de seu corpo.
Contrariamente à situação do estádio do espelho, Lacan constrói no Arrebatamento um verdadeiro nó lógico, no qual, em um duplo movimento, o arrebatamento é a expulsão do sujeito de seu corpo, ao mesmo tempo em que assiste a essa expulsão é, ele mesmo, contaminado (Laurent, 2012, p. 152).
A canção de Chico Buarque de Holanda ensaia uma reversão gradativa no tempo, reversão que desfaz a mulher adulta e maquiada, despindo esse corpo dos véus, e da beleza, levando-o das formas de mulher às de menina outra vez. Depois, ao lugar de objeto do outro a ser maltratado e abandonado em seu desamparo primário, até o ventre da mãe, onde inexiste a possibilidade de autonomia e o domínio do outro sobre o pequeno corpo é absoluto. A voz feminina que se levanta nessa poesia traz a crueldade do enunciado materno sobre o corpo da filha - esta, mulher feita, é pelo discurso materno desfeita em seu corpo. Esses versos ilustram a desmontagem de uma imagem integralizada que se forma na relação com o outro, assim como a sua montagem, no tempo do narcisismo. A mulher devastada, como a Curuminha2 a quem a poesia é endereçada, como uma praga, estaria afetada no corpo por um dizer, ou pela ausência de uma afirmação, que a faria minguar, retornar a um estado indiferenciado do Outro, sem existência singular reconhecida. Algo se passa como se sua imagem fosse roubada ou subtraída para dar a outra mulher a forma feminina que detém todos os olhares, como acontece com LolV. Stein, personagem de Marguerite Duras, que oferta uma cena que cativa e ancora uma representação para narrativas femininas que localizam a perda do amor como uma perda maior que recai sobre o corpo. Neste caso, observamos que a literatura forneceu um molde para o psicanalista escrever uma fórmula mais generalizada, como explicita Fuentes.
A figura do arrebatamento em Lol elucida uma relação que as mulheres estabelecem com o real do corpo, que não se esgota na identificação com a imagem própria dada pelo traço unário (Fuentes, 2012, p. 279).
A regressão à infância, ao colo, ao ventre que a canção nos apresenta, parece ser o desejado desfecho de um duelo fantasmático entre duas damas, como se não existisse possibilidade de coexistência de seus corpos. No entanto, a canção, extraída da peça Gota d'água é uma injúria proferida à filha por uma mulher não menos devastada. Joana, personagem louca e desnorteada com o abandono de Jasão é quem não suporta ver a filha mulher feita que, ao sair, leva o seu vestido. Mais do que o vestido da mãe, é também seu corpo, o suporte do desejo abandonado, que tendo Joana perdido, supõe tê-lo tido roubado por outra mulher: em alguma medida as pragas lançadas à outra confessam seu próprio estado, seu sofrimento. De uma personagem à outra podemos vislumbrar nuances desse sofrimento que atinge de modo tão profundo a consistência imaginária.
Delimitamos o olhar para a devastação como sofrimento, que decorre do encontro com esse ponto de impossível representação do feminino no corpo que, primeiramente, leva o sujeito feminino a buscar no Outro a referência, instante em que o amor se presta à construção do laço. Inversamente, a perda do amor deixará desvelada a porção irrepresentável, desconectada do significante, que pode converter-se num sofrimento extenso e profundo, o qual abrange a vida psíquica e resiste a elaborações e deslocamentos, numa espécie de loucura feminina. O que fica indicado nessa contingência é que, ao perder o lugar que o amor lhe concede no desejo de um outro, uma mulher perde também algo de si. Interrogamos com Lacan o que se passa na relação amorosa a partir dos efeitos devastadores que o desfazer desse laço evidencia.
O que acontece com o amor, ou seja, com essa imagem de si de que o outro reveste você e que a veste, e que quando desta é desinvestida a deixa? O quer dizer disso, quando nesta noite, Lol totalmente entregue à sua paixão dos dezenove anos, sua investidura; sua nudez ficou por cima, a lhe dar seu brilho (Lacan, 1965/2003, p. 201).
Numa separação, o indizível real que aparece no não do outro inunda uma mulher, trazendo para a primeira cena sua "vacuidade" (Lacan, 1965/2003), ameaça-a de inexistir por perder a membrana do amor. Para descrever a experiência de deixar de ser perante outros, Lacan cita as palavras de Lol, "Nua, nua sob seus cabelos negros" (Duras citado por Lacan, 1965/2003, p. 202), para dizer que elas engendram a passagem da beleza à função de mancha intolerável pertinente ao objeto. "Essa função é incompatível com a manutenção da imagem narcísica em que os amantes se empenham em conter seu enamoramento" (Duras citado por Lacan, 1965/2003, p. 202).
O estilhaçamento da veste, a própria imagem narcísica desfeita, parece demolir a edificação do amor, retirando da Dama a beleza que a veste e sustenta destacada da mancha. Quando perde o olhar do amante, não sendo mais a dama contemplada por ele, ela simplesmente tem o "corpo substituído por sua indizível nudez" (Duras apud Lacan, 1965/2003, p. 201); como um espelho que só pode exibir a imagem na presença de um observador, a existência subjetiva de Lol ficava condicionada ao olhar do noivo.
Desse modo, a devastação nos remete ao enigmático campo do feminino, que sabemos ultrapassar o destino anatômico e nos lançar em um território pouco explorado. Sabemos tratar-se de uma contingência distinta da histeria, do ponto de vista da identificação. Embora tenha marcado o início das investigações psicanalíticas e mostrado-se muito próxima das mulheres, como confirmado pela etimologia do termo empregado (do grego hysteros = útero), a histeria não resume, sobremaneira, a dinâmica psíquica da feminilidade e, de modo algum, responde por um traço universal feminino.
Na verdade, a histeria também se manifesta como uma maneira de colocar a problemática da feminilidade que carece de uma identificação específica. Essa lacuna estrutural é o que permite os dois acidentes, duas formas de extravio da feminilidade em que consistem histeria e devastação. Pinto (2008) explica que o inconsciente é fálico e reconhece apenas o sexo fálico, ignorando, portanto, a diferença sexual. Seguindo Lacan em suas formulações sobre o tema em O Seminário, Livro 20
Esse campo, o da mulher, estaria em um mais além e indicaria a posição subjetiva daqueles que operam com o não representável, já que estariam não-totalmente submetidos à inscrição fálica (Pinto, 2008, p. 96).
Em consequência, toda mulher se encontra um pouco em falso no plano de sua identificação imaginária, e a saída histérica para essa impossibilidade de revestir todo o corpo é fazer-se "toda fálica" ou "toda homem", o que significa tomar a ostentação fálica e abordar a sexualidade à maneira do homem (André, 1987).
A posição feminina, distinta da histeria, é operar com essa identificação impossível e conseguir ainda usufruir da identificação fálica de forma não-toda. e, conforme enfatizamos, trata-se de um caminho singular. Laurent, definindo em termos lacanianos esta posição, afirma
O que Lacan toma como consumado é que a posição feminina é de ser o Outro sexo, o sexo Outro, aquele que não se define do Um, de ter o objeto, de ser portador do falo (Laurent, 2012, p. 102).
A duplicidade que se exige na posição feminina é contornar o obstáculo histérico quando surge alguma identificação imaginária ao falo, que faz do sujeito idêntico ao homem, suportando, porém, ser por ele falicisada, porque é ele quem sustenta a fantasia, sem aderir toda a esta identificação imaginária (Laurent, 2012).
Tomando como referência que, para a psicanálise, não há uma unidade conceitual sobre o que seja A Mulher, asserção que se sustenta pela falta de um significante que, no psiquismo, pudesse dar consistência ao seu ser, e também pela obscuridade em que permaneceram as questões referentes ao desenvolvimento psíquico de uma mulher e seu posicionamento em relação à feminilidade, enfatizamos a especificidade intrínseca ao feminino que consiste na permanência inexorável de uma porção não recoberta pelo falo, como expressam as fórmulas da sexuação (Seminário 20) e sua incidência sobre a inesgotável construção do corpo feminino. O não-todo, elemento chave para a leitura das fórmulas da sexuação, fruto da obra madura de Lacan, atualiza noções anteriormente esboçadas na obra de Freud, por exemplo com a metáfora do dark continente que, como nos ensina Fuentes (2012), é um dos nomes desse real enigmático que não cessou de se apresentar na clínica de Freud.
Com as fórmulas, Lacan dá ao feminino um lugar distinto do masculino, e marcado por uma falta que se traduz em uma porção do real que não se deixa civilizar pelo significante. Dessa diferença, ou seja, dessa subtração, resulta do lado feminino uma superioridade no campo do gozo, por ser o seu vínculo com o nó do desejo mais frouxo (Lacan, 1962-1963/2005). Apresentamos sua elaboração como aparecia no décimo seminário, quando a mulher é tomada como "mais verdadeira e mais real" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 201).
A mulher revela-se superior no campo do gozo, uma vez que seu vínculo com o nó do desejo é bem mais frouxo. A falta, o sinal menos com que é marcada a função fálica no homem, e que faz com que sua ligação com o objeto tenha que passar pela negativização do falo e pelo complexo de castração, o status do (-φ) no centro do desejo do homem, é isso que não constitui, para a mulher, um nó necessário (Lacan, 1962-1963/2005, p. 202).
Com isso, ele nos ajuda a apreender a ligação da mulher com uma indeterminação que remete a possibilidades infinitas no campo do desejo (Lacan, 1962-1963/2005) e, por esta mesma abertura, ao ilimitado campo do gozo feminino por estar mais exposta ao real. Esse trato íntimo das mulheres com o real estaria relacionado ao modo singular como elas se beneficiam simbioticamente dos chamados semblantes, assim como da lógica fálica, para escapar de um extravio de desejo de dimensões tão extensas quanto denota a devastação feminina.
Miller (1994) se refere a um "realismo especial das mulheres - seu lado pés na terra - aí onde os homens seriam poetas" (Miller, 1994, p. ٦٢) e, em seguida, sugere que as mulheres são "mais amigas do real" (Miller, 1994, p. 62) por não terem com a castração a mesma relação que os homens. Destacamos o trabalho a ser feito para que uma mulher possa tornar-se mesmo amiga do real, não se deixando arrebatar por ele em sua imagem própria e para tanto, tomando recursos que, à maneira do sintoma, possam fazer velada a relação com o deserto de representação, lugar onde os semblantes são necessários.
As interrogações sobre o gozo feminino que acompanham a formalização da sexuação, a partir do Seminário 20 de Lacan (1972-1973/2008), encontram correspondência com a aura enigmática que o feminino conservou para Freud, permeando de lacunas toda a sua teorização e permanecendo como um mistério não alcançado, nem mesmo pelo desvelamento do inconsciente que a psicanálise introduziu.
Reconhecendo na sexualidade feminina um limite em relação à palavra e à representação, podemos afirmar uma afinidade entre o feminino e a arte, que inclui a literatura, quando esta envolve a sublimação de um real e a criação de uma forma que se molda ali onde um vazio habitava.
Lacan (1959-1960/2008) evoca tal afinidade ao lembrar que, nos primórdios de sua história, a poesia inaugurou uma forma de amor que alterou definitivamente o modo de abordagem do feminino: o amor cortês. Este, que fez emergir a Dama, pode ser lido como um artifício que possibilitou uma espécie de sublimação, esvaziando o objeto feminino da substância real. A poesia trovadoresca inaugurou o gênero lírico na literatura, e fez surgir nas canções o canto de amor dirigido à dama, num tipo específico de poesia conhecido como cantigas de amor.
Lacan (1959-1960/2008) chama atenção para os efeitos culturais decisivos que tal poesia produziu pelo modo particular como instaurou a idealização do objeto feminino, representado pela Dama vestida pela beleza. Somente a partir dessa subversão introduzida pelas canções de amor é que se pode dizer que "não há possibilidade de cantar a Dama, em sua posição poética, sem o pressuposto de uma barreira que a cerque e isole" (Lacan, 1959-1960/2008, p.181).
É assim que localizamos a devastação em Lacan, como um perigo a essa barreira, ou uma ameaça que ronda o "continente escuro" da feminilidade, quando fracassa o acesso a essa forma feminina adquirida sempre numa contingência, e o real, transbordando qualquer forma de tratamento, e permanecendo alheio ao sentido, se apresenta como gozo que afeta o corpo.
A Inversão na Forma Imaginária do Corpo
Se fosse permitido, eu revertia o tempo
Como nos ensina Tendlarz (2002), as imagens femininas são construídas como efeito de discurso, e o simbólico modela os ideais com que as mulheres se identificam para responder ao enigma da sexualidade feminina e fazerem-se desejadas e amadas. Ao conquistar o olhar e o assentimento do Outro, o corpo é produzido "segundo uma operação que toca o olhar do sujeito" (Laurent, 2012, p. 156), numa reedição da operação que o estádio do espelho estabelece.
Descrevendo a topologia do corpo e do olhar no instante do arrebatamento, Laurent dialoga com Miller e situa o papel do vestido como suporte à contemplação (Miller, 2004). O vestido, que entrará no regime de trocas, evidentemente, mas como signo do que recobre o corpo, lhe dá forma, pode funcionar como "suporte do cálculo do lugar do sujeito" (Laurent, 2012, p. 156).
Assim, esse fazer-se um corpo tem uma face que se ancora na cultura, onde as mulheres procuram alguns elementos distintivos próprios e empreendem um esforço subjetivo incessante que acompanha o deslizamento desses recursos que nunca se esgota. Na verdade, existe uma dificuldade preliminar em formar uma imagem que depreenda um elemento comum ao conjunto das mulheres, com o qual cada uma pudesse se identificar e, assim, contar-se como elemento desse conjunto. O ideal de mulher que, segundo Tendlarz (2002), constitui-se em cada época e indica a imagem a ser alcançada para contornar a busca inquietante que se aloja em cada uma, varia, vacila, constitui uma espécie de engodo. Reconhecemos na leitura de Tendlarz (2002) que essa variação afeta diretamente as mulheres, as quais também confiam em algo que, com frequência, varia. É por causa dessa inconsistência que se pode dizer que a mulher é "o Outro Absoluto e ainda que ela é Outra para si mesma" (Lacan citado por Soler, 2005). Lugar de uma alteridade radical, Lacan sugere que "tudo pode ser imputado à mulher, já que na dialética falocêntrica, ela representa o Outro absoluto" (Lacan, 1962/1998, p. 741), asserção que facilmente pode ser capturada por uma ideação religiosa, o que parece ser uma leitura distorcida do que pretendia indicar Lacan, como sugere Guimarães (2014).
A noção de alteridade que se instaura na mulher replica a antiga questão colocada por Jones, "uma mulher nasce ou é feita?", que ganhou contornos novos, mas está contemplada no debate atual em torno dos semblantes, na psicanálise. Eternizado na fórmula de Simone de Beauvoir, o tornar-se mulher enquanto um esforço de construção abriga a mesma questão, e dela a psicanálise se serve para afirmar que não há natureza feminina: não se nasce mulher, torna-se mulher (Beauvoir, 1967). Somente a partir do esvaziamento de sentido prévio que essa máxima situa é possível sugerir que não haja outra coisa além de semblantes (Miller, 2004).
Muitos aspectos estão contidos nesse "tornar-se mulher" que pode se declinar de diferentes formas. Aqui, o abordamos a partir do corpo, tomando-o com estrutura bordada na relação com o Outro e cuja base orgânica é também uma superfície.
O corpo é esse campo topológico que Freud já contava em furos quando identificava o corpo, ele mesmo, como zona erógena. Pois bem, se o corpo é furo - zona erógena -, superfície e projeção de superfície, então estudar o corpo na referência à causa freudiana diz respeito ao litoral que se inscreve ali onde o que determina o sujeito no campo da linguagem topa com o indizível que jorra no gozo (Alberti, 2011, p. 13).
O corpo, segundo Lacan (1974/2011), deve ser compreendido como desenlaçado do real para ex-sistir a ele e fazer seu gozo de objetos. Ele afirma que o corpo se introduz na economia do gozo pela imagem, e que a relação do homem com o corpo é "o alcance que a imagem aí adquire" (Lacan, 1974/2011, p. 22). Essa imagem corporal precisa ser reiteradamente apropriada pelo psiquismo do sujeito, inclusive em sua dimensão sexual ao longo da vida, introjetando inclusive as transformações do crescimento e envelhecimento, entre outras intercorrências, quer inevitáveis ou eletivas. A experiência princeps, com seu valor de metáfora, será a matriz para as identificações secundárias subsequentes, que cumprem a função de normalização libidinal (Lacan, 1949/1998). O impasse que queremos destacar é que o corpo feminino, por estrutura, vacila mais facilmente em atingir uma Gestalt, por não encontrar possibilidade de ancoragem em uma identificação satisfatoriamente completa.
Para pensar a devastação como arrebatamento do corpo, tomamos uma concepção de corpo que encontra na teoria freudiana o respaldo para sua maleabilidade. Assim, absorvemos a questão sobre a pertinência da proposição que pensa a devastação como uma operação, a qual se opõe à operação da beleza e, portanto, desarticula os tempos de junção do sujeito e seu corpo (Miller, 2004).
O corpo próprio, como o sentimento do eu, mesmo que nos pareça autônomo e individualizado, é resultado de uma construção. Esta constituição, segundo Vieira (2015), é uma costura de aparências (semblantes) em torno de um furo. Como nos mostra Kosovski (2014, p. 67), "a despeito das fantasias de solidez e integridade, os contornos do eu são maleáveis e suscetíveis a instabilidades".
Ser essa aparência enganadora - apesar de que, pelo contrário, o ego seja continuado por dentro, sem qualquer delimitação, por uma entidade mental inconsciente que designamos como id, à qual o ego serve de fachada - configurou uma descoberta efetuada pela primeira vez através da pesquisa psicanalítica (Freud citado por Kosovski, 2014, p. 67).
A autora elenca "como testemunho de que as fronteiras do ego não são permanentes" (Freud citado por Kosovski, 2014, p.67), situações que revelam o quão flexíveis podem ser os contornos do corpo: desde quadros patológicos (como a megalomania, a hipocondria, quadros de despersonalização) até a diluição dos limites entre o eu e o objeto no auge do amor e as mudanças corporais abruptas da puberdade, que denunciam claudicações no plano das identificações que demandam análises singularizadas (Kosovski, 2014).
Observamos também com Kehl (2015) que, nos processos de luto ao longo da vida, o corpo se desorganiza ou se deserotiza ao não encontrar o objeto que orientava a busca da satisfação, o que nos desvia de pensar a forma corporal nos termos de uma homeostase e ainda reenvia a ideia de que essa forma permanece referida às contingências de enlaçamento.
A sustentação fálica do corpo também pode desabar, já que o sujeito, ao perder um ser de amor, perde também o valor fálico que lhe conferia o lugar ocupado junto ao desejo do outro (Kehl, 2015, p. 204).
Em seguida, a autora recorre a Lacan para descrever com precisão um luto cujos efeitos se traduzem de forma distinta da falta, da saudade e da perda, mas como abatimento do sujeito: "não é o luto do objeto (amado) perdido, mas do lugar de onde o sujeito cai ao perder aquele cuja falta ele supunha preencher" (Kehl, 2015, p. 204). Podemos dizer que, ao perder esse lugar, o sujeito perde uma consistência adquirida na relação com o outro. Flesher também nos fala dos efeitos da perda de uma consistência eleita que pode ser o amor do outro.
Quando a consistência falha, é possível ler os efeitos. No Real e no Imaginário não furados pelo Simbólico desencadeiam-se dolorosas passagens ao ato, estalidos de corpo, vacilações comovedoras da representação do mundo (Flesher, 2012, p. 57).
O amor é uma das vias possíveis de sustentação da feminilidade, e ele pode inclusive, gerar limites ao gozo desatado (Flesher, 2012). Segundo Ribeiro (2011), é no amor que uma mulher busca sua subsistência, e sem o amor do Outro não teme perder um objeto valioso, teme perder a si mesma, tragada pelo não ser. O alcance do amor se constata exatamente quando ele falta para uma mulher, o que carrega efeitos devastadores. É nesse sentido que entendemos a seguinte afirmação de Lacan:
Pode-se dizer que o homem é para uma mulher tudo o que quiserem, a saber, uma aflição pior que o sintoma... Trata-se mesmo de uma devastação (Lacan, 1975-1976/2007, p. 98).
Brousse (2000) entende que um homem devastação para uma mulher é aquele que reaviva o sem limite de gozo feminino não saturado pela função fálica: o recobrimento fálico, que uma mulher pode receber como dom de amor quando este lhe é entregue sob a forma de palavras, da falta a ser do outro, que pode ancorar sua identificação fálica, pode também fracassar desatando o gozo Outro que devasta o sujeito (Soler, 2005). Entregue ao gozo Outro, não fálico, núcleo da devastação, uma mulher aniquila-se no retorno a uma demanda infinita de amor a uma mulher, numa tentativa de tornar consistente o Outro sexo, o que equivale a querer fazer existir A Mulher (Fuentes, 2012). Junto a Soler (2005), observamos que o termo devastação designa os efeitos que o gozo do outro induz no sujeito, e que se desdobram e se dividem entre a abolição subjetiva e a absolutização correlativa do Outro.
O dano causado ao sistema simbólico que dá à devastação o caráter de uma experiência de despersonalização é desenvolvido por Laurent e Miller (Miller, 2004) em um seminário em parceria. O corpo que se inverte (referência a Lol V. Stein) é definido como uma superfície que não tem dentro nem fora e que, quando a costura de seu centro se inverte, todos os olhares se detém no vestido (Miller, 2004). Ele explica que, com esse acontecimento, Lol atravessou as relações que sustentam o olhar e a imagem que no estádio do espelho possibilitavam que o corpo funcionasse como continente do olhar e que, no instante do arrebatamento, inverte-se quando o corpo é abandonado por esse olhar. Para explicar essa operação de reversão, do tipo Möebius, os autores recorrem à figura topológica do cross-cap, a mesma que Lacan utilizara no Aturdito (1973/2003). As figuras explicam com o recurso à topologia a inversão de corpo que os autores defendem.
A topologia é uma geometria flexível, segundo Porge (2015), não baseada em resultados métricos ou quantitativos, mas nas propriedades qualitativas das relações, que identifica figuras em função das deformações contínuas que se fazem e se desfazem, como uma estrutura de envelope. Ele afirma que a geometria do cross-cap possibilita que o objeto 'a' entre em uma estrutura significante, racional, e oferece uma estrutura científica de estrutura visual do sujeito à semelhança do cógito, que seria para Lacan a origem do sujeito. Lacan (2003/1972) nos ensina que a topologia não foi feita para nos guiar na estrutura, por ser ela mesma "a estrutura - como retroação da ordem de cadeia em que consiste a linguagem" (Lacan, 2003/1972, p. 485), e afirma que nela se apreende um efeito de sujeito.
Este efeito de sujeito nos envia às reflexões do Seminário 7 (Lacan, 1959-1960/2008, em que Lacan apresenta a anamorfose como uma noção que possibilitou a criação do objeto feminino. A perplexidade na pergunta "o que acontece com o amor?" (Lacan, 1965/2003, p. 201) é o que nos aproxima da ideia de anamorfose que Lacan resgatou para ilustrar a operação de sublimação encontrada na poesia trovadoresca que cunhou o objeto feminino. O que acontece com a mulher devastada? Como pensar essa transformação, que não é outra coisa senão o avesso da criação da Dama, quando o objeto feminino tem desfeito seu envoltório e é o vazio indizível que aparece?
Pensando a função da sublimação, da qual a anamorfose é sinônimo, no trato com o real, visto que, para Lacan, "todas as formas criadas pelo homem são do registro da sublimação" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 158), nesse processo de criação em que o homem se faz médium entre o real e o significante, ele elege o amor cortês como um paradigma da sublimação. O amor cortês foi o que cercou de significantes algo da natureza do real para dar origem ao objeto feminino, "um objeto dito de anamorfose" (Lacan, 1959-1960/2008, p.164).
Assim, entre o feminino e o real pode estar a frágil linha do ultraje que a idealização, instaurada pela poesia medieval e apoiada na beleza, assim como o dom do amor, atuando como possíveis anteparos, permite manter preservada. Na devastação que absorve uma mulher que perde o nome que a ordena, esse limite é violado.
Portanto, a perda da moldura fálica que decorre de algum infortúnio, como a perda de um semblante, desmascara o núcleo de real que uma mulher sempre conserva na posição feminina. Isto se justifica pela impossibilidade estrutural de uma total sublimação, já que é próprio dela encontrar limites, deixar um resto. Como a sublimação que resulta no objeto feminino, elevando sua dignidade, não é toda, assim como não é toda a inscrição fálica de uma mulher, uma dama pode, por alguma infelicidade, perder o véu da fantasia que a sustenta e cair num gozo ilimitado.
O jogo do amor, representado por um ternário entre um homem e duas mulheres, a partir de Lol, que passa a ser uma figura de retórica, elucida a passagem epifânica da consistência corporal de uma mulher para outra, acompanhando o vetor do desejo do homem, uma fascinação. O que convém apresentar neste instante é que essa composição a três, que relaciona o sujeito feminino a um casal, é correlativa, ou melhor, é uma repetição da relação edípica. O fascínio pelo que existe e pelo que não existe entre esses dois, esse casal que exclui o terceiro da relação; o fascínio por toda a imagem deixa no lugar da mancha a menina, quando a outra mulher que detém o olhar do homem concentra, imaginariamente, o mistério da forma feminina.
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Endereço para correspondência:
Danuza Effegem de Souza
Email: danuzaeffegem@ig.com.br
Paulo Eduardo Viana Vidal
Email: paulovidal@iduff.br
Recebido em: 12/12/2016
Revisado em: 24/09/2017
Aceito em: 08/10/2017
1 Foram consultadas as seguintes fontes:
Kauffman, P. (1996). (Ed.) Dicionário Enciclopédico de Psicanálise - O legado de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
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