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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641Xversión On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

PRÊMIOS DO XXI CONGRESSO DE PSICANÁLISE

 

Bion e Tustin. Os fenômenos autísticos e o referencial de Bion: uma proposta de aproximação1

 

Bion and Tustin. The autistic phenomena and Bion’s reference system: a proposal for approach

 

Bion y Tustin. Los fenómenos autísticos y el referencial de Bion: una propuesta de aproximación

 

Célia Fix Korbivcher2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora verifica a possibilidade de incorporar ao referencial de Bion os fenômenos autísticos, tais como Tustin os descreve em pacientes neuróticos. Expande a discussão iniciada em trabalhos anteriores a respeito das “transformações autísticas”, com o intuito de verificar a coerência dessa proposta no conjunto da teoria das transformações. Para isso, examina a relação entre os fenômenos autísticos e os vínculos emocionais com os elementos beta, procurando também localizá-los na grade. Indaga sobre a qual das dimensões da mente pertenceriam os fenômenos autísticos, cuja incorporação ao referencial de Bion resulta numa ampliação, nesse referencial, do campo de fenômenos das áreas da neurose e da psicose para a área autística. Também discute a possível desorganização que essa ampliação pode provocar no sistema teórico utilizado por Bion em Transformações.

Palavras-chave: Referencial bioniano; Fenômenos autísticos; Vínculos emocionais; Elementos beta; Tropismos; Grade.


ABSTRACT

The author verifies the possibility of incorporating Bion’s reference system, the autistic phenomena for neurotic patients as described by Tustin. She expands the discussion which was initiated in previous papers in regard to “autistic transformations”, aiming to verify the coherence within the theory of transformations as a whole. For this reason, she examines the relationship between autistic phenomena and emotional bonding with beta elements and also tries to locate them in the grid. She questions about which of the mental dimensions would belong to autistic phenomena. The incorporation of autistic phenomena, according to Bion, results in an enlargement in this reference in the field of phenomena, from the neurosis and psychosis area to the autistic one. She develops a discussion regarding the possible disorganization that this enlargement can provoke in the theoretical system utilized by Bion in Transformations.

Keywords: Bion’s reference system; Autistic phenomena; Emotional bonds; Beta elements; Tropisms; Grid.


RESUMEN

La autora verifica la posibilidad de incorporar al referencial de Bion los fenómenos autísticos, tales como Tustin los describe en pacientes neuróticos. Expande la discusión iniciada en trabajos anteriores a respecto de la propuesta de las “transformaciones autísticas”, con el intuito de verificar su coherencia dentro de la totalidad de la teoría de las transformaciones. Para eso examina la relación entre los fenómenos autísticos y los vínculos emocionales con los elementos beta, y también trata de localizarlos en la tabla. Indaga sobre a cual de las dimensiones de la mente pertenecerían los fenómenos autísticos. La incorporación de los fenómenos autísticos al referencial de Bion resulta en una ampliación, en este referencial, del campo de fenómenos de las áreas de la neurosis y de la psicosis para el área autística. Desarrolla una discusión sobre la posible desorganización que esta ampliación puede provocar en el sistema teórico utilizado por Bion en Transformaciones.

Palabras clave: Referencial bioniano; Fenómenos autísticos; Enlaces emocionales; Elementos beta; Tropismos; Tabla.


 

 

Introdução

Partindo da prática clínica, tenho me interessado em investigar o modo pelo qual alguns pacientes especialmente sensíveis à experiência de separação corporal entre self e objeto se organizam psiquicamente. Penso que cada paciente irá se organizar dentro de um sistema defensivo próprio, conforme sua capacidade para tolerar dor mental.

Determinados indivíduos vivenciam a separação corporal de maneira tão dolorosa, que desenvolvem poderosas manobras protetoras, como forma de conservar a sensação de continuidade com o objeto e, assim, adquirir um estado coeso. Para Tustin, a maneira como o indivíduo lida com a consciência da separação corporal do objeto é o âmago da existência humana, e é essa experiência que determinará o desenvolvimento de toda a personalidade. Menciona que desde o nascimento há “flutuações de estados de consciência” da separação corporal do objeto, estados esses que são a base dos estados mentais no decorrer da vida (Tustin, 1986/1990, 1992).

Entendo que é nessa área que se delineia a singularidade da organização psíquica de cada indivíduo. Se pensarmos numa gradação desses modos de organização, encontraremos, num extremo, o pensar, o conhecer e áreas de simbolização; noutro, uma gama de possibilidades de funcionamento mental que oscila desde áreas de identificação projetiva e áreas de alucinose até áreas autísticas.

Dediquei-me, em trabalhos anteriores (Korbivcher, 1999, 2001, 2004), ao exame dos fenômenos autísticos em pacientes neuróticos, de acordo com Tustin (1986/1990, 1981/1992). Em “A teoria das transformações e os estados autísticos. Transformações autísticas: uma proposta” (Korbivcher, 2001), propus acrescentar à teoria das transformações um novo grupo de transformações, as “transformações autísticas”, nas quais prevalecem fenômenos autísticos. A seguir, em “A mente do analista e as transformações autísticas”, tentei delimitar a área autística, sugerindo que essa área constitui um universo à parte, organizado por leis específicas, diferentes das leis da neurose e da psicose.

O objetivo do presente trabalho é dar continuidade à proposta de aproximação da área dos fenômenos autísticos ao referencial de Bion. Examino mais profundamente a relação entre os fenômenos autísticos encontrados nas transformações autísticas e determinados conceitos utilizados por Bion. O intuito é integrar a área dominada pelas sensações no referencial de Bion e verificar a coerência da proposta de transformações autísticas na teoria das transformações como um todo. Para isso indago: como operariam os vínculos emocionais L, H, K e seu negativo na área autística, especialmente em -K? Qual a relação entre os fenômenos autísticos e os elementos beta e onde situá-los na grade? Em qual das dimensões da mente se situariam as transformações autísticas?

A proposta de incorporar o universo autístico ao referencial de Bion provoca nesse referencial uma desorganização, pois Bion, em suas teorias, explora predominantemente o desenvolvimento da mente e o campo das emoções, enquanto no universo autístico não há uma mente constituída nem registro de emoções.

Assim como Tustin, penso que, se afiarmos nossos instrumentos de observação, reconheceremos em nossa prática clínica manifestações de fenômenos autísticos em pacientes neuróticos mais freqüentemente do que supomos. Permanece a questão: como considerar esses fenômenos dentro do referencial de Bion?

Edgard Morin (1990/1992), ao expor suas idéias sobre pensamento complexo, define complexidade como “um complexus”, ou seja, um campo tecido de constituintes heterogêneos, inseparavelmente associados. Sugere ser necessário incluir em nosso campo de trabalho toda sorte de fenômenos que dele faz parte, inclusive aqueles que aparentemente acarretam confusão, desordem, ambigüidade e incerteza. Afirma que, se tais fenômenos forem excluídos, poderemos nos tornar cegos para elementos significativos e, com isso, não identificar o fenômeno prevalente.

A incorporação dos fenômenos autísticos ao referencial de Bion provavelmente produzirá um “universo complexo”, repleto de incongruências, inquietações e ambigüidades; entretanto, penso que essa incorporação é importante, por serem os fenômenos autísticos parte integrante do complexus,ou seja, do campo de fenômenos em que a mente se expressa.

 

Bion e Tustin

Bion se dedica ao estudo do desenvolvimento do pensar e de suas perturbações, ampliando suas idéias, a partir de Transformações (1965/1983), na direção do que denominou de O, “vir a ser”. Trata do desenvolvimento da mente, das emoções e dos vínculos que as unem. Parte dos elementos beta, elementos sensoriais que não sofreram transformação no nível psíquico pela ação da função alfa e examina os processos envolvidos na gênese do pensamento até etapas em que o pensamento abstrato opera. O aprender com a experiência emocional é o campo de trabalho na sessão e a teoria das transformações é o método de observação dos fenômenos dentro desse campo.

Frances Tustin analisou-se com Bion por catorze anos. Comenta que nessa análise tomou consciência de núcleos encapsulados que a protegiam de uma depressão profunda e de “terrores do buraco negro”. Afirma (Tustin, 1986/1990) que alguns pacientes apresentam núcleos autísticos impenetráveis que os tornam inacessíveis ao contato, apesar de operarem predominantemente com a parte neurótica da personalidade. Menciona que, se tais núcleos não forem abordados, poderá ocorrer certa paralisação do processo da análise. Tustin propõe que esses pacientes estariam operando com a “parte autística da personalidade”.

Diferentemente de Bion, Tustin se ocupa de áreas dominadas pelas sensações não mentalizadas e que não adquirem representação na mente. Nestas, o indivíduo recolhe-se no interior de uma “concha protetora”, permanecendo absorto em atividades auto-sensuais, bastando-se com elas, de modo a se proteger de estados de grande vulnerabilidade.

 

Transformações autísticas e vínculos emocionais

Bion abandona a idéia central que até então vinha sendo a principal abordagem da psicanálise, as relações de objeto, e se interessa pelos vínculos emocionais, os vínculos que conectam os objetos (Bienchedi, 1995/1997). Para Bion (1962a/1991), os vínculos emocionais permeiam qualquer relação, e é necessário discriminar suas diferentes qualidades. Esses vínculos representam os três tipos fundamentais de experiência emocional aos quais será aplicada a função alfa: L, H, e K e -L,-H, -K. Nesses últimos, há manifestações de ataque, por parte do self, expressas através do ódio dirigido aos vínculos que unem os objetos. Nesse sentido, a idéia central de Bion é a de que não são os objetos que são atacados, mas aquilo que os vincula (Bienchedi, 1995/1997).

Dessa perspectiva, pergunto: como os vínculos emocionais e os seus negativos operam na área autística? Se estivermos de acordo de que, no âmbito autístico, não há noção de objeto, como podemos pensar em vínculos positivos ou negativos unindo objetos? Faço a conjectura de que talvez estejamos numa área em que prevalece a ausência de vínculos, uma área de “não-vínculos”.

Os pacientes que operam em -K querem manter ativamente a ignorância e acreditam que há vantagem em evitar a consciência. Segundo Bion (1962a/1991, p. 128), tais pacientes têm “ódio a qualquer novo desenvolvimento na personalidade, como se o novo desenvolvimento fosse um rival a ser destruído”. A inveja, a voracidade, além da rivalidade e da violência das emoções, são, para Bion, os fatores principais que dificultam a atividade de conhecer.

Para Bion, os fenômenos -K implicam o funcionamento de uma mente capaz de cisão e de projeção e manifestação de emoções violentas. Desse modo podemos pensar que os fenômenos -K, conforme Bion os concebe, são fenômenos plenos de emoções e que a noção de objeto está presente.

 

Fenômenos autísticos e elementos beta

Green (1998/2001) menciona que tanto Bion como Freud suspeitaram haver, na mente, algo primitivo, não inteiramente explicado pelos primeiros estágios de relação objetal do desenvolvimento do bebê. Segundo Green, Bion considera os elementos beta – os elementos que não sofreram transformação no nível psíquico – como o que há de mais primitivo na mente.

Os fenômenos autísticos se encontram numa área bastante próxima aos elementos beta, mas suponho que haja diferença de qualidade. Elementos beta são elementos sensoriais que não sofreram transformação no nível psíquico pela função alfa e, portanto, “não são passíveis de serem utilizados para o pensamento” (Bion, 1962a/1991). São estímulos sensoriais não digeridos, que são descarregados, expelidos, com o intuito de livrar o aparelho mental do acúmulo de tensão. A mãe, com a sua capacidade de rêverie, acolhendo e contendo esses elementos beta em sua mente e com o exercício da função alfa, tentará transformá-los em elementos psíquicos, colocando-os disponíveis para o uso em pensamento. Quando isso não é possível, forma-se uma barreira de elementos beta, a tela beta. Onde deveria se constituir a barreira de contato, o que se observa é a sua destruição, devido à inversão da função alfa. Os elementos que constituem a barreira de contato se dispersam e se convertem em elementos beta, acrescidos de vestígios de ego e de superego – os objetos bizarros – que precisam ser evacuados ou projetados.

Os fenômenos autísticos, por sua vez, caracterizam-se pelo seu caráter estático, por pertencerem ao mundo do inanimado. Eles se caracterizam pela sua função protetora diante da dor frente à ameaça da não-existência psíquica. Através de atividades auto-sensuais, os fenômenos autísticos pretendem cobrir a ausência do objeto, evitando, assim, a consciência da separação corporal do mesmo. Estes não parecem adquirir representação na mente e, diferentemente dos objetos bizarros, não apresentam vestígios de vida psíquica. Podemos supor que, à semelhança dos elementos alfa e beta, os quais, quando agrupados, dão origem respectivamente à barreira de contato e à tela beta, os fenômenos autísticos agrupados dão origem a uma barreira protetora, a “barreira autística”. O indivíduo busca proteção através dessa barreira autística e, a partir de atividades auto-sensuais, gera ele próprio o objeto com características autísticas (Tustin, 1981/1984, 1986/1990). Diferentemente dos elementos beta, os fenômenos autísticos não têm função de descarga ou de alívio, mas de obter, através deles, proteção.

A função do analista, diante da barreira autística, é tentar penetrá-la, introduzindo-se como um elemento vivo, ativo, e se aproximar daquele mundo inanimado, conferindo vida psíquica àqueles estados autísticos. Para isso, seria preciso que essa barreira tivesse alguns pontos vulneráveis, de modo a permitir que a comunicação do analista atinja o paciente, para haver um trânsito entre estados autísticos e estados em que a mente opera permitindo ao paciente transitar por áreas mentais sem se sentir tão vulnerável e aterrorizado.

“Elemento beta” é um conceito usado por Bion que abrange uma ampla gama de fenômenos relativos a diferentes níveis de desenvolvimento mental. Tanto nas transformações em alucinose como nas transformações projetivas, prevalecem os elementos beta. Em outra oportunidade (Korbivcher, 1999, 2004), propus uma “gradação de elementos beta”, ou uma grade de elementos beta, de modo a facilitar o reconhecimento das diferentes nuanças dessas manifestações.

 

Fenômenos autísticos, tropismos e a grade

C. Mion (2003) cita Bion (1992/2000) a respeito de tropismos psíquicos representando a área em que a matriz da mente se constitui. Associa as reações do indivíduo diante da ausência de um objeto que resgate e transforme os tropismos em manifestações autísticas. O. Beltrame (2004, comunicação pessoal) relaciona os fenômenos autísticos com as noções de tropismos apresentadas por Bion em Cogitations. “Tropismo” significa (Dicionário Aurélio, 1999) “reação de afastamento ou de aproximação do organismo com relação à fonte de um estímulo”. Bion diz:

Os tropismos são a matriz a partir da qual brota toda a vida mental. Para a sua maturação ser possível, eles precisam ser resgatados do vazio e comunicados. Assim como a criança precisa de um seio ou equivalente, para sustentar a sua vida, é preciso que haja uma contrapartida mental, o seio primitivo, para que a vida mental seja mantida. O veículo de comunicação, que é o choro da criança, as sensações táteis e visuais, não está envolvido apenas na comunicação, mas também no controle do tropismo. Se tudo corre bem, a comunicação por identificação projetiva leva a depositar no seio tropismos que a criança não pode controlar nem modificar ou desenvolver, mas que podem ser controlados e desenvolvidos depois de terem sido modificados pelo objeto. Se isso entra em colapso, o veículo de comunicação, o contato com a realidade, os vínculos [...] passam a ser partículas comunicativas, que acompanham os tropismos involucrados, e são rejeitados tanto pela psique quanto pelo objeto (Bion, 1992/2000, p. 47).

Bion, a meu ver, está dizendo que há uma área de fenômenos primordiais anterior aos elementos beta, a área dos tropismos, em que há apenas o movimento de “aproximação e de afastamento do organismo com relação à fonte de um estímulo”. Essa área constitui uma matriz a partir da qual brota a vida mental e a personalidade será organizada. Há um estado expectante por um objeto que irá modificar o tropismo. Pergunto-me se esse estado expectante corresponderia à idéia de pré-concepção de um seio, porém num estágio de desenvolvimento biológico, anterior ao surgimento de vida psíquica.

O indivíduo que opera com tropismos fica na dependência de encontrar, no objeto, a possibilidade de este ser modificado. Sabemos que as plantas precisam de luz para se desenvolver. O que se observa é que suas folhas se movimentam, se voltam naturalmente na direção da luz. Quando não encontram luz, elas muitas vezes não se desenvolvem, podendo até mesmo morrer. Pergunto-me se poderíamos fazer uma analogia entre estados autísticos e as plantas que não encontram luz.

Penso que a afirmação de Bion (1992/2000) segundo a qual, se o indivíduo não puder encontrar um seio no qual projetar os tropismos, o resultado será “um desastre que assume a forma de perda de contato com a realidade, apatia ou mania”, estaria ligada ao que Tustin (1981/1984, 1992) denomina “nascimento psicológico prematuro”. Essa é uma situação em que a criança especialmente sensível é impelida a se separar precocemente do objeto desenvolvendo uma pseudo-independência e na qual, através de manobras autísticas, se protege da ameaça de não-existência psíquica. Poderíamos supor que “a apatia”, “a perda de contato com a realidade” às quais Bion se refere, seriam manifestações de um estado em que uma barreira autística foi desenvolvida, pelo fato de o indivíduo não encontrar um objeto no qual projetar os tropismos?

Nesse ponto, pergunto: onde situar, na grade (Bion, 1963/1991), a área autística? A teoria das transformações e a grade são instrumentos para examinar o funcionamento da mente. Como incluir nelas fenômenos em que a dimensão do psíquico não está acessível ou até mesmo inexiste? Como incluir a área dominada por sensações, uma área não-mental?

Embora esta proposta possa parecer paradoxal, sugiro introduzir na grade uma linha anterior à linha A (elementos beta) – a linha A0 –, na qual se situariam os tropismos e os fenômenos autísticos. Os tropismos buscam encontrar um objeto capaz de modificá-los e de torná-los elementos psíquicos. Se isso ocorrer, eles se tornariam elementos beta, (linha A); caso contrário, teríamos os “elementos autísticos”, como proponho denominá-los. Com a inclusão dos tropismos na grade, está sendo introduzida a área autística, uma área na fronteira dos primórdios do mental e do não-mental.

Dando continuidade, os elementos autísticos estariam representados no eixo vertical da grade, em A01, hipótese definitória, e em nenhuma outra coluna, e os tropismos em A01 e A02.

 

Transformações autísticas: um trânsito entre existir e não-existir

I. Barros (2004, comunicação pessoal) comenta que o estado de não-existência do paciente envolto em núcleos autísticos estimula o analista a anular na sessão a sua própria existência. Acrescenta que a dificuldade do analista diante desses pacientes seria a de poder permanecer frente à não-existência do paciente. Segundo Barros, “o que se requer do analista é que ele possa suportar a sua própria condição de não-existência”.

Tustin (1992), em “To be or not to be”, menciona que os fenômenos autísticos estão intimamente ligados à falta de consciência de existência mental. A consciência de “existir” ocorre apenas no nível corporal. Diz que crianças autistas se sentem ameaçadas de não “continuar existindo”. Em situações de terror corporal agudo, o sentido psíquico de existir pode ser preservado pela sensação de se separar do corpo físico. A sensação de estar fora do próprio corpo parece ser uma reação de pânico diante da consciência assustadora da separação corporal da mãe. De acordo com Tustin, a perda do sentido de existência é muito pior que do que a ameaça de morte. Na morte há um sentimento de que o corpo permanece. Na perda do sentido de existir não fica nada. Diz ainda que a ameaça de aniquilamento é a pior de todas, pois significa a extinção do sentido psíquico de existir.

Entendo, assim, que os fenômenos autísticos estariam relacionados à dimensão da mente ligada ao trânsito entre existir e não-existir.

Bion (1970/1974) trata de fenômenos de não-existência. Diferencia “não-coisa” (no-thing) de “nada” (nothing) (p. 24). Afirma que “a emoção sentida pela ‘não-coisa’ é indistinguível de ‘nada’. A emoção é substituída por uma não-emoção. Não-existência passa imediatamente a ser um objeto imensamente hostil, cheio de inveja assassina voltada contra existência, onde quer que ela seja encontrada” (p. 19-20).

Em Cogitations (1992/2000), Bion também aborda esse tema. Afirma que a criança, quando tem ódio, raiva, tem desejos de que o objeto morra e, por conseqüência, o objeto passa a ser não-existente. Ele diz que as características desses objetos são diferentes das características dos objetos vivos, reais e existentes. Para Bion, a criança submetida à dor mental fica rodeada de objetos mortos, destruídos pelo seu ódio. O fato de a pessoa não poder tolerar dor mental leva a que os objetos se tornem não-existentes.

Penso que Bion, ao definir as características dos fenômenos encontrados na esfera da não-existência, estaria considerando que esses fenômenos são plenos de manifestações de emoções. Observa-se, nesses fenômenos, uma gama de sentimentos com qualidades negativas, como sentimentos de ódio ligados aos objetos não-existentes. Já as características dos fenômenos autísticos são de natureza diversa; as emoções, se é que existem, não são perceptíveis, e também não há indicação da noção de objeto a ser atacado. Há um estado encapsulado, no qual o indivíduo permanece absorto em manobras auto-sensuais.

“Existir” e “não-existir”, como vemos, se diferenciam de “conhecer” e “não-conhecer”. Permanece, entretanto, a indagação: a consciência de “existir” e “não-existir” precederia “conhecer” e “não-conhecer”, ou o impulso para o conhecimento e seu oposto exigiria que houvesse antes, minimamente constituída, a consciência da existência de um sujeito?

Com a proposta de incorporação das transformações autísticas à teoria das transformações, é introduzida uma área nova de fenômenos dominada pelas sensações, em que a sua representação na mente, se é que existe, está inacessível. A hipótese levantada é de que a dimensão da mente à qual pertencem esses fenômenos liga-se à esfera de “existir” e “não-existir”. Afasto, assim, a idéia de que os fenômenos autísticos estejam relacionados com a área do não-conhecer (-K).

É necessário destacar, entreanto, que, ao considerar transformações autísticas, estamos lidando com configurações mentais com características autísticas e não com o autismo patológico. Da mesma maneira que Bion destaca o fenômeno da alucinose, constituindo as transformações em alucinose, e diferencia alucinose de alucinação, na proposta de transformações autísticas o fenômeno autístico nelas contido é diferente do autismo patológico (Korbivcher, 2001).

A proposta de aproximar os fenômenos autísticos ao referencial bioniano envolve, como vemos, grande complexidade. Essa aproximação implica ampliar a área de fenômenos para uma área não mentalizada, a área dominada pelas sensações, constituindo-se, desse modo, um sistema complexo, certamente com imprecisões e incongruências. Como diz Morin (1990/1992), há que “tolerar a presença do não-científico no científico”, o que não significa “anular o científico, mas, ao contrário, permitir que ele se exprima”.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Célia Fix Korbivcher
Rua João Moura, 647/34 – Pinheiros
05454-000 – São Paulo – SP
E-mail: celiafix@sbpsp.org.br

Recebido em 26.11.2006
Aceito em 8.5.2007

 

 

1 Artigo “Tema livre” do XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise, Porto Alegre 2007, Prêmio Durval Marcondes para Analistas Didatas. Esta é uma versão reduzida do trabalho original; a íntegra encontra-se à disposição na biblioteca da SBPSP.
2 Membro efetivo, analista didata e analista de crianças da SBPSP.

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