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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo jul./set. 2013

 

RESENHAS

 

Transferência e contratransferência

 

 

Luís Claudio Figueiredo

Psicanalista, Professor na Universidade de São Paulo (USP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Correspondência

 

 

Autora: Marion Minerbo
Editora: Casa do Psicólogo, Coleção Clínica Psicanalítica, São Paulo, 2012, 298p.
Resenhado por: Luís Claudio Figueiredo

 

Novos ares sobre velhos mares

Embora a psicanálise tenha começado, com Freud, sem que os processos de transferência e de contratransferência ocupassem um lugar tão central como hoje em dia (embora não lhe fossem ignorados), não resta dúvida de que desde a década de dez do século passado eles foram conquistando esta primazia. Ele próprio algumas vezes chamava a psicanálise de "a doutrina da resistência e da transferência", e afirmou com todas as letras que quem trabalhasse com base nestes conceitos poderia se apresentar como psicanalista, mesmo chegando a resultados diferentes dos seus.

E quanto à contratransferência, mesmo sem ter desenvolvido e elaborado o conceito, Freud não apenas o criou, como lançou as bases de todas as considerações que vieram a emergir na pena de inúmeros seguidores, mesmo que estes possam ter enveredado por outras direções. Ou seja, ver no campo transferencial- contratransferencial os mares - ora lisos, ora encapelados, ora extremamente revoltos e sujeitos a tsunamis - pelos quais passamos a vida a navegar está longe de ser uma novidade. Mas é para esses velhos mares, nunca muito bem conhecidos e jamais previsíveis e controlados, que o livro de Marion Minerbo traz alguns novos ares.

É um livro que assume de saída sua origem e sua vocação didática. Nasceu de seminários na SBPSP e destina-se a quem se dispõe a pensar e aprender sobre e na prática clínica da psicanálise. Isso inclui, naturalmente, desde os iniciantes em formação até os profissionais com muitos anos de prática: em nosso ramo, aliás, quanto maior nossa experiência, maior nosso desejo de aprender e nossa capacidade de compreensão e aprendizagem.

No entanto, o livro de Marion Minerbo não tem nada do "didatismo", vale dizer, da simplificação que muitas vezes caracteriza "obras de introdução". Seus quatro capítulos trazem, cada um a seu modo, traços de grande originalidade, seja quanto às formas de exposição, seja quanto aos conteúdos contemplados. Em relação a eles, salta à vista do leitor a grande presença de autores contemporâneos, ao lado e em diálogo com os "clássicos", deixando claro que se trata de uma psicanalista a par do que de mais interessante se produz em nossa área, e que não ignora e despreza as grandes tradições do pensamento teórico e clínico desde Freud.

O primeiro capítulo, por sinal, dá uma amostra deste modo de operar: sob o título de "Breve história comentada dos conceitos de transferência e contratransferência", no qual Marion Minerbo constrói uma história da evolução destes conceitos e de suas implicações para a clínica. Mas o faz de modo inusual: de 1895 até o período da virada da década de quarenta para a de cinquenta, os textos clássicos (muito de Freud, Ferenczi, Strachey, Melanie Klein, Racker, Winnicott)

são apresentados e comentados pela autora em diálogo contínuo com outros comentadores, alguns da época, outros contemporâneos nossos (como Neyraut, Donnet, Green, Roussillon, o lacaniano Guyomard etc). Não se trata de remexer em um baú de velharias para exibir erudição, mas de revitalizar velhas e fundantes experiências e invenções conceituais a partir de toda a experiência clínica acumulada e repensada até nossos dias, transformada por Marion Minerbo em sua tese central:

Uma mesma ideia atravessa e norteia todos os capítulos desta obra: contratransferência e transferência são posições identificatórias solidárias e complementares, de modo que uma desenha e dá sentido à outra (p. 14).

Para finalizar esta "história comentada", melhor dizendo, esta história refletida e refratada, e continuamente enriquecida, alguns autores atuais que trabalham e pensam com estes conceitos (Ogden e Marie-France Dispaux) são trazidos às considerações do leitor mediante a apresentação de alguns casos clínicos. A forma de "contar a história" dos conceitos, adotada por Marion Minerbo, dá ao seu texto um "balanço", um jogo, que raramente se encontra em textos teóricos, tanto pela quantidade de ilustrações clínicas, quanto pelo constante diálogo entre clássicos e contemporâneos. Cremos que é a melhor didática que se poderia desejar na difícil transmissão da teoria e da clínica em psicanálise, produzindo no leitor movimentos de pensamento com "efeitos de supervisão".

E será disso que se começa a tratar no capítulo seguinte, "Seis situações clínicas comentadas". Na introdução aos casos relatados e comentados em situações de supervisão, há um pequeno item chamado "Pequenas notas necessárias". Acreditamos que seja nestas páginas que se expõe da forma mais sucinta e clara a concepção da autora sobre a clínica da psicanálise, navegando nos mares do campo transferencial e contratransferencial com todos os movimentos de suas marés, e seus efeitos dinâmicos na dupla formada por paciente e analista: ora exigem-se mergulhos do analista (e do paciente), ora que se deixem boiar, ora são as habilidades de surfista que lhes são exigidas. Metáforas extraídas do trabalho do ator de teatro (emprestadas a Eliana Pereira Leite) ajudam Marion Minerbo nesta linha de reflexão.

Tal complexa movimentação pode ser descrita e comentada com mais facilidade - mesmo que com alguma perda - quando o caso é levado a uma supervisão ou seminário clínico do que quando se trata de um caso próprio, durante o atendimento, o que leva a autora a uma digressão importante sobre as funções formativas da supervisão e do seminário clínico, principalmente quando se reconhece que tais atividades visam justamente uma compreensão dos mares, das correntes e arrecifes por que o psicanalista navega e com os quais se choca (e em que algumas vezes, naufraga ou se extravia, fica à deriva).

Logo em seguida (entre as páginas 166 e 178), encontramos o que nos parece a mais importante contribuição de Marion Minerbo neste livro, sua caracterização do objeto primário e de como ele "comparece" nas relações transferenciais e contratransferenciais: em função da predominância de objetos internos eróticos ou tanáticos não bem assimilados no psiquismo dos pais (onde funcionam como elementos beta), encontraremos a predominância, nas relações transferenciais, de núcleos neuróticos ou de núcleos psicóticos. Os seis casos apresentados oferecem ao leitor uma rica fenomenologia da problemática transferencial e dos impasses (e soluções) produzidos a partir de uma detalhada consideração das contratransferências a cada uma destas modalidades prevalentes de objetos internos recalcados ou clivados.

O capítulo seguinte, "Trabalhando transferência e contratransferência em supervisão", dá prosseguimento à mesma linha de pesquisa, mas adotando uma nova e criativa estratégia: uma mesma "história de supervisão", vale dizer, a experiência de narrar e escutar uma experiência de análise difícil em um momento crítico é contada, alternadamente, pela supervisora (mm) e por sua supervisanda (Milene), o que abre para o leitor um campo muito sugestivo de reflexões; aprendemos com Marion Minerbo e Milene à medida que elas aprendem uma com a outra. Vamos vendo como a mobilização dos conceitos até então propostos e elaborados permite as mudanças no campo transferencial-contratransferencial que dão ao processo novas perspectivas teóricas e práticas. Como diz a autora: "perceber esta dinâmica abriu a possibilidade para Milene sair da posição identificatória em que estava e pensar..." (p. 265, grifos nossos). Vamos vendo, passo a passo, como o campo do pensamento se institui, como horizontes clínicos se descortinam, como alterações importantes na dinâmica se tornam possíveis e como tudo isso tanto resulta como participa de um processo de integração entre as Teorias, a teoria do que se passava no campo e as estratégias clínicas de Milene. É o que ela nos diz já ao fim de seu testemunho:

Estou realmente vivenciando aquilo que chamam de tripé: a análise didática, a supervisão e os seminários teóricos. As coisas vão ganhando um sentido do qual me aproprio internamente. O que vejo na teoria, vai repercutindo de maneira viva, reflete-se na clínica e de repente me faz pensar em algo muito pessoal (p. 275).

Certamente, no tripé todas as pernas são importantes, mas cabe justamente à supervisão - desde que bem concebida e exercitada, o que parece ter acontecido neste caso - a função de propiciar e facilitar as mediações, os processos integrativos. Daí a função essencial no processo formativo das supervisões e seminários clínicos.

Finalizando o livro, temos o saboroso capítulo "Transferências cruzadas e complementares no cotidiano: corrupção, poder e loucura". Ao ampliar o raio de abrangência do conceito de campo transferencial e contratransferencial, para nele refletir a dinâmica social do que pode ser visto como "corrupção deslavada", a corrupção sem vergonha e até mesmo orgulhosa de si, a autora consegue alcançar dois objetivos: estende a capacidade compreensiva dos conceitos (sem perder com isso o gume que é necessário para que operem na clínica, seu berço e principal ponto de incidência, a que ela retorna ao longo do texto), e introduz na consideração dos processos e dinâmicas sociais um ângulo absolutamente novo: o das relações de complementaridade inconsciente entre os atores dos jogos sociais e políticos.

Percebendo o quanto certos "poderosos" que abundam na nossa política e nela praticam a "corrupção deslavada" (uma forma de desmesura enlouquecida) são produtos de um campo transferencial e contratransferencial que gera esta forma peculiar (e lucrativa) de loucura - a de exercer o poder, mesmo que outorgado pelo povo, sentindo-se acima do pacto social e não tendo satisfação a dar a ninguém, muito menos a seus eleitores -, vemo-nos de alguma forma, inconsciente para todos, incluídos no problema. Ou seja, trata-se de ver na corrupção um fenômeno intrinsecamente intersubjetivo: além da corrupção ativa e passiva (crimes) haveria uma corrupção vicariante, que inclui particularmente os mais "escandalizados".

É uma delícia vermos o grande Joaquim Barbosa "triunfando" sobre a máfia do pt, mas qual a nossa participação, e a do próprio Barbosa, nas obras completas publicadas de José Dirceu et al.? O que nossas fantasias arcaicas de onipotência, mais ou menos recalcadas ou clivadas, têm a ver com a onipotência atuada do sinistro e olímpico personagem? E que caso escuso mantivemos na moita (na moita para nós mesmos) com a Dona Rosemary do Lula, que apanhada em um flagra desmoralizante, nos encheu de alegria? Será que por vermos os dois sob os holofotes da imprensa sentimo-nos mais seguros na sombra? Perguntas incômodas como essas podem ser formuladas à luz deste último e interessantíssimo capítulo, em que as questões político-sociais são magistralmente entrelaçadas a pensamento clínico da psicanálise, tanto no que diz respeito às relações entre as crianças e seus objetos primários, quanto às relações entre pacientes e analistas. É a ocasião para a autora trabalhar com o conceito de "transferências cruzadas".

Enfim, um velho, mas decisivo, tema que pode reflorescer com os novos ventos que sobre ele este livro faz soprar. Uma peça importante para a formação de novos e velhos psicanalistas.

 

 

Correspondência:
Luis Claudio Figueiredo
Rua Alcides Pertiga, 65
05413-100 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3086-4016
lclaudio@netpoint.com.br

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