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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo oct./dic. 2015

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Silvana Rea

Editora

 

 

Em 2013, o escritor mineiro Luiz Ruffato iniciou o seu discurso na abertura da Feira do Livro de Frankfurt com a seguinte pergunta: "O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo 'capitalismo selvagem' definitivamente não é uma metáfora?" Ou seja, em meio à crueza das desigualdades sociais e de vivências muitas vezes brutais, quais são as possibilidades de representação?

Ele concluiu reafirmando o papel transformador da literatura, ainda que suspeitando de sua própria ingenuidade:

Filho de uma lavadeira analfabeta e de um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro [...] tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade.

Ora, a literatura é lugar privilegiado da ficção, da metáfora, da representação e do uso das palavras para nomear o vivido, o pensar, o desejo. Neste sentido, é aparentada à psicanálise. Afinal, é trabalho do aparato psíquico transformar as pulsões em linguagem, em representação - esta, um conceito fundamental na teoria psicanalítica.

É o que nos encaminha ao tema do XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise: Ato/Sonho: a representação e seus limites. Tendo como pano de fundo a comemoração dos 100 anos de publicação dos artigos metapsicológicos, o congresso trouxe à discussão o modelo de vida psíquica que dá ênfase à contenção dos impulsos pelas possibilidades de representação das experiências na vida de cada um. Encontrar, a partir de dentro, um lugar possível, uma palavra possível.

Dos doze escritos freudianos, cinco foram publicados: "As pulsões e seus destinos", "A repressão", "O inconsciente", "Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos" e "Luto e melancolia". Trabalho de elaboração de um projeto de estruturação conceitual dos processos psíquicos, mas também da elaboração de um termo, citado pela primeira vez em carta a Fliess, de 1896: "Tenho-me ocupado continuamente com a psicologia - na verdade, com a metapsicologia" (Freud, I95o[i896]/i969b, p. 278).

Em março de 1898, Freud expõe ao amigo o seu desejo de, partindo do cerne do exercício da psicanálise, ir além. Sua insatisfação quanto à sustentação da ideia do ainda não publicado A interpretação dos sonhos (1900/1969e), de que sonhos são a realização de desejos inconscientes, leva-o a buscar a metafísica, ou seja, buscar algo que transcenda a observação do sensível e que fundamente conceitualmente. É aqui que propõe a Fliess o uso do nome metapsicologia "para a minha psicologia que vai além da consciência" (Freud, 1950[1898]/1969c, p. 369).

Este termo só conquista definição anos mais tarde, quando afirma, em "O inconsciente": "Proponho que, quando tivermos conseguido descrever um processo psíquico em seus aspectos dinâmico, topográfico e econômico, passemos a nos referir a isso como uma apresentação metapsicológica" (Freud, 1915/1969, p. 208).

Os textos metapsicológicos firmam o campo da psicanálise como o de um saber com especificidade própria, distanciando-se das vertentes psicológicas e biológicas da compreensão humana. Um lugar fora do âmbito da ciência, algo que apenas mais à frente, em 1933, Freud confessa à poetisa Hilda Doolittle, sua analisanda: "Minhas descobertas são a base para uma relevante filosofia" (Doolittle, 2012, p. 51).

Sim, porque a psicanálise não supõe uma observação nos moldes científicos; é uma observação que se sustenta em um aspecto ficcional - uma "ficção teórica" ou uma fantasia.

Por isso, em 1937, ao questionar a eficácia da "terapia analítica", e no esforço para pensar em como a força pulsional estabelece uma harmonia com o ego, Freud vai à literatura e cita Goethe: "Temos que chamar a Feiticeira em nosso auxílio, afinal de contas!" (Freud, 1937/1969a, p. 257). A metapsicologia feiticeira, mesmo chamada a auxiliar, mostra que o trabalho não é simples, pois "infelizmente aqui, como alhures, o que a Feiticeira nos revela não é muito claro nem muito minucioso" (p. 257). Mas o que Freud indica com firmeza é que "sem especulação e teorização metapsicológica - quase disse fantasiar - não daremos outro passo à frente" (p. 257).

Não podemos esquecer que 1915 também é o ano no qual Freud escreve "Reflexão para os tempos de guerra e morte" (1915/1969f) e o belíssimo "Sobre a transitoriedade" (1915/1969g), uma preparação para a guinada teórica do pós-guerra, quando introduz a dualidade pulsional. Portanto, a preocupação de Freud já se concentrava em como inibir os aspectos destruidores da pulsão de morte e controlar seus efeitos destrutivos.

Se pulsão e representação constituem-se em correlação, como a cultura (ou a civilização) pode mitigar a natureza interna e externa, ou como pode favorecer sua eclosão? Como podemos pensar, hoje, a questão do sonho, da representação e da propensão ao ato?

Convém, então, retomar o discurso de Luiz Ruffato, que propõe a literatura como possibilidade de contenção da barbárie, de desenvolvimento pessoal e social; que evoca a força presente nas representações, nos devaneios oníricos, na ficção, no "quase disse fantasiar", como afirma Freud.

Afinal, foi o que Freud fez na construção de sua "ficção teórica". E o fez porque pôde sonhar, talvez à maneira dos escritores e poetas, aqueles por quem nutria um profundo interesse. Foi o que o transformou em um "pesquisador-poeta", nas palavras de Pontalis e Mango (2013). E como aquele que se inseriu com a figura criadora do poeta no campo do saber científico, inaugurou uma nova maneira de conhecer o ser humano.

Assim encerramos nosso primeiro ano de editoria. E com alegria, comemorando o XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise com a contribuição de Daniel Delouya, Ignácio Alves Paim Filho, Sandra Lorenzon Schaffa e Celmy de A. A. Quilelli Corrêa, e a publicação dos trabalhos premiados.

Lembramos a todos que a divulgação de nosso projeto editorial para 2016 é um convite à participação, para que a revista possa de fato ser representativa da psicanálise brasileira. E que continuamos abertos para receber artigos não temáticos.

Um grande abraço!

 

Referencias

Doolittle, H. (2012). Por amor a Freud (P. Maia, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Freud, S. (1969a). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 239-288). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Freud, S. (1969b). Carta 46. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 207-226). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1950)1896]         [ Links ])

Freud, S. (1969c). Carta 84. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 369-370). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1950[1898]         [ Links ])

Freud, S. (1969d). O inconsciente. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 185-248). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (1969e). A interpretação do sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 4). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1969f). Reflexão para os tempos de guerra e morte. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 311-318). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (1969g). Sobre a transitoriedade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 345-350). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Ruffato, L. (2013). [Discurso na Feira do Livro de Frankfurt]. Recuperado em 8 dez. 2015, de cultura.estadao.com.br.         [ Links ]

Pontalis, J.-B. & Mango, E. G. (2013). Freud com os escritores (A. Telles, Trad.). São Paulo: Três Estrelas.         [ Links ]

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