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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo ene./mar. 2020

 

EDITORIAL

 

Além do princípio do prazer

 

 

Marina MassiI; Leda Maria Codeço BaroneII

IEditora / marinamassieditora@rbp.org.br
IIEditora Associada / ledabarone@uol.com.br

 

 

Em 1920, Freud traz a público o livro Além do princípio do prazer, com novidades que, embora prenunciadas em textos anteriores, produzem mudanças em sua metapsicologia e também em sua clínica. O princípio do prazer, ponto central do funcionamento mental, cede espaço a outro princípio, a compulsão à repetição.

Se por meio do princípio do prazer Freud armou o arcabouço teórico capaz de explicar a formação dos sonhos, dos chistes, da organização dos sintomas e do estabelecimento da transferência, a descoberta ou a proposta de outro princípio desarranja, até certo ponto, essa estrutura, trazendo para a cena psicanalítica o traumático, a compulsão à repetição, a pulsão de morte como pulsão silenciosa a influenciar a teoria e a clínica.

Essas mudanças tiveram efeito nas propostas teóricas de seus discípulos, bem como no desenvolvimento da psicanálise ao longo do tempo, apesar das hesitações do texto freudiano.

Contribuições como as de Ferenczi - que tratou de forma expressiva do traumático e de mudanças na técnica psicanalítica - podem ser lidas a partir dessas considerações. Melanie Klein e seus seguidores tomaram a pulsão de morte como eixo fundamental para a teorização e a clínica.

Como pensar esse texto vigoroso de Freud, em nossos dias, após 100 anos de sua publicação? Qual é a sua importância? Como considerar a clínica do traumático, a transferência, os acontecimentos da realidade social após os 100 anos de Além do princípio do prazer? O que ele pode nos oferecer de subsídio para pensar a metapsicologia e a clínica diante dos desafios da atualidade? Como abordar os traumas de nossos dias?

Este número da RBP é dedicado à reflexão sobre esses temas. Os artigos aqui presentes contemplam da teoria à clínica.

Neste editorial, escolhemos por registrar a importância do texto freudiano na compreensão do que estamos vivendo, como brasileiros e psicanalistas, e enquanto uma revista científica comprometida com valores éticos e humanistas.

Cabe lembrar que a ideia de rever esse texto surgiu em nossas discussões editoriais antes mesmo da inusitada situação de uma pandemia se impor - portanto, antes do descaso ou da banalização do fato assumida pelo dirigente de nosso país, que insiste em negar ou diminuir o efeito dessa situação em nossa vida.

Exatamente a esse respeito nos parece muito oportuno pensar os desdobramentos do conceito de compulsão à repetição, tema central do texto freudiano, para lançar algumas considerações ao observado em nossos dias. Ali, Freud lembra que a compulsão à repetição tem um aspecto mortífero, além de servir a uma possível simbolização do trauma.

Diante do trauma experimentado por todos nós pela pandemia de covid-19 - que já provocou a morte de mais de 44 mil brasileiros até o momento da escrita deste editorial - e do absoluto descaso ou recusa do atual governo em propor à população brasileira uma condução responsável do problema, com perplexidade e profunda tristeza somos levados a nos indagar o motivo de tal violência. Que força é essa que repetidamente cega e desmente um acontecimento de tais proporções? O texto Além do princípio do prazer nos possibilita pensar no trauma psíquico, mas dá abertura para a concepção de trauma social.

Acreditamos que tamanha atrocidade, em vez de ser considerada um ato isolado, deveria ser analisada num contexto mais amplo, nas fronteiras do pensamento psicanalítico com outros saberes.

A análise feita por Fernando de Barros e Silva na revista Piauí nos parece um bom ponto de apoio para refletir sobre esse fenômeno. Segundo o autor, o país que lida com seus traumas por meio de negações e acomodações, sem nunca enfrentá-los de maneira direta, está fadado a conviver indefinidamente com seus sintomas. Aponta como trauma fundador do Brasil a escravidão, que, embora abolida em 1888, ainda não foi reparada, como podemos constatar nos "sintomas dessa omissão crônica, dessa nossa maneira de driblar as exigências da civilização e perpetuar no presente a herança colonial, [que] estão aí, à vista de todos, nos morros, nas periferias, nas prisões, dentro de nossas casas" (2020, p. 29).

Nesse contexto, o autor também lembra a forma como tratamos os abusos da ditadura militar implantada em nosso país em 1964. Os crimes de morte e tortura perpetrados pelos algozes não foram devidamente reconhecidos e muito menos punidos. O autor segue esse raciocínio para explicar a ascensão do atual presidente. Para ele, Bolsonaro não chegou onde chegou apesar de seu discurso e de seus atos truculentos, mas exatamente por causa deles. De alguma forma, ele repete e perpetua o traumático de nosso passado não elaborado.

Dessa maneira, Bolsonaro faz uma conexão histórica entre os dois traumas vividos por nós, o militar de 1964 e o jurídico-parlamentar de 2016, quando homenageia Brilhante Ustra - conhecido torturador durante o regime militar - no voto a favor do impeachment da presidente Dilma, proferindo a nefasta frase: "Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff". Nessa declaração, perversamente, ele nega a evidência da tortura, ao mesmo tempo que reafirma a violência.

Para finalizar, gostaríamos de lembrar que o projeto editorial desta gestão está em seu último ano. Contudo, já podemos observar que a revista tem contemplado temas de suma importância dentro da psicanálise e para nós, psicanalistas. Em 2019, abordamos os temas Ódio, Feminino, outras reflexões, Palavra e verdade, e Suicídio. Iniciamos 2020 com atraso, devido à pandemia, e será sobre esse tema que a RBP irá se debruçar no próximo número.

Desejamos que os leitores possam interagir com este número e desenvolver sua reflexão pessoal com base no estímulo que estamos lançando.

Boa leitura a todos!

 

Referências

Silva, F. B. (2020). Dentro do pesadelo: o governo Bolsonaro entra em sua fase mais calamitosa. Piauí, 164,26-31.         [ Links ]

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