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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

 ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.2 no.2 Juiz de fora dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Vinicius de Moraes, parceiros e amigos: relações entre amizade e música1

 

Vinicius de Moraes, partners and friends: relationships between friendship and music

 

 

Christianny Maria Brambila2; Agnaldo Garcia

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil

 

 


RESUMO

O presente trabalho investigou as relações entre amizade e música nas composições de Vinicius de Moraes, partindo da perspectiva dialética de Robert Hinde sobre os relacionamentos interpessoais e do modelo proposto por Adams e Bliezsner para amizades adultas. O material de análise se constituiu das composições feitas com quatro parceiros: Tom Jobim, Carlos Lyra, Baden Powell e Toquinho. As letras foram submetidas à análise de conteúdo e comparadas entre si. Os resultados indicaram diferentes temas, com predominância de (a) amor romântico; (b) mulher; e (c) valores e estilos de vida. O trabalho discute relações entre amizade e música, contribuição da noção de amizades culturais e a relação entre amizades, movimentos culturais e cultura.

Palavras-chave: Relacionamento Interpessoal, Amizade, Música


ABSTRACT

This study investigated the relationship between music and musical partnership in the work of Vinicius de Moraes, based on the dialectical perspective of Robert Hinde on interpersonal relationships and the model proposed by Adams and Bliezsner regarding friendships among adults. The material for analysis were the lyrics of songs in partnership composed with Tom Jobim, Carlos Lyra, Baden Powell and Toquinho. These compositions were subject to analysis of content and the songs were compared for their content. The results indicated different themes in these songs, especially as (a) romantic love, (b) woman, and (c) values and lifestyles. The paper discusses the relationship between friendship and music, the contribution of the concept of cultural friendships and the relationship between friendships, cultural movements and culture.

Keywords: Interpersonal Relations, Friendship, Music


 

 

Apesar de muitos estudos sobre relacionamento concentrarem-se em díades como unidades isoladas de um contexto social mais amplo, os relacionamentos são influenciados pelos contextos sociais, econômicos e culturais (Allan, 1993). Porém, possíveis relações entre amizade e produção cultural são pouco investigadas, incluindo as relações entre amizade e música. Este estudo visa investigar a relação entre amizade e produção musical na história da música popular brasileira, adotando como objeto de pesquisa as amizades de Vinicius de Moraes com seus quatro parceiros principais.

 

Amizade e música

Amizades fazem parte do mundo da música clássica e popular. As amizades entre Debussy e Inghelbrecht (Trezise, 2007), Billroth e Brahms (Mieny, 2000), Elgar e Buck (Mitchell, 1991), entre outras, tornaram-se célebres. Contudo, há uma escassez de investigações sobre "amizades musicais". Dentre alguns estudos mais recentes da área, destacam-se pesquisas sobre a relação entre amizade e preferência musical (Bailey & Davidson, 2005; Hargreaves & North, 1999; Hays & Minichiello, 2005; Ilari, 2006; North & Hargreaves, 1999, 2007a, 2007b, 2007c; Rentfrow & Gosling, 2006; Rossler, 2004; Tarrant, Hargreaves & North, 2001; Tarrant, North & Hargreaves, 2000) e colaboração na composição e na execução musical (Barret 2006; Blank & Davidson, 2007; Boerner & Von Streit, 2007; Davidson & Good, 2002; Faulkner & Davidson, 2006; Ginsborg, Chaffin & Nicholson, 2006; John, 2006; MacDonald, Miell & Mitchell, 2002; Miell & MacDonald, 2000).

Diversos estudos indicam que as preferências musicais fornecem meios de discriminação e/ou inserção em grupos sociais e sugerem, indiretamente, associações entre o gosto musical e aspectos de vida dos participantes (North & Hargreaves, 2007a, 2007b, 2007c). As preferências musicais podem ter correlação com uma variedade de diferentes escolhas do estilo de vida, inclusive na escolha de parceiros (Ilari, 2006).

Outro grupo de estudos envolvendo relacionamento interpessoal e música aborda a colaboração na composição e na execução musical. As pesquisas nessa área dedicam-se à compreensão da influência da dinâmica interpessoal e de questões socioculturais na composição e execução musical. Exemplo é o estudo de MacDonald et al. (2002) que apresenta uma investigação sobre os efeitos da idade e da amizade no processo e no resultado de colaborações musicais das crianças, com ênfase para a qualidade das produções realizadas entre amigos. O estudo demonstra que quando crianças trabalham junto com amigos, elas produzem composições de melhor qualidade do que aquelas crianças que trabalharam com não amigos, corroborando os achados de um estudo anterior (Miell & MacDonald, 2000).

A maioria dos estudos atuais sobre amizade e composição musical se concentra na investigação desses fenômenos durante a infância. As possíveis relações entre amizade e composição musical na adolescência e idade adulta constituem um campo de pesquisa em aberto com muitas possibilidades de exploração.

A presente pesquisa tem como referencial teórico a obra de Hinde (1979, 1987, 1997) e de Adams e Blieszner (1994). Hinde, influenciado pela Etologia Clássica, enfatiza a descrição e a idéia de níveis de complexidade e integração (Garcia, 2005). Em seu mais importante trabalho sobre o assunto (Hinde, 1997), discutiu os temas centrais no campo dos relacionamentos entre adultos apontando o caminho para a integração de nosso conhecimento sobre relacionamento interpessoal. De acordo com Hinde (1987), diferentes níveis de complexidade no comportamento social incluem interações, relacionamentos e estrutura social. Estes três níveis afetam e são afetados pela estrutura sócio-cultural e estão em relação dialética com o ambiente. Assim, forças culturais afetariam a natureza dos indivíduos que, por sua vez, afetaria as forças culturais.

Hinde (1979) propôs que uma ciência do relacionamento deveria repousar sobre uma base descritiva. Parte de uma divisão dos relacionamentos por conteúdo (o que as pessoas fazem juntas) e as categorias subseqüentes são vistas como qualificando a classificação inicial, baseada no conteúdo. Esta categorização de dimensões (categorias de descrição em um nível intermediário de análise) de relacionamentos interpessoais, contudo, tem como meta final a compreensão de sua dinâmica.

O presente trabalho ainda se baseia em Adams e Blieszner (1994), que buscam um modelo integrador para o estudo da amizade entre adultos, incluindo aspectos internos ao relacionamento (como intimidade, compromisso, satisfação, entre outras) e aspectos externos (de contexto, como aspectos culturais, sociais, históricos, religiosos, entre outros). O arcabouço de Adams e Blieszner (1994) apresenta elementos semelhantes e consistentes aos propostos por Hinde (1997). Os processos interativos da amizade são aspectos dinâmicos e incluem processos cognitivos (pensamentos que cada membro tem sobre ele mesmo, o amigo e a amizade), afetivos (reações emocionais aos amigos e à amizade) e comportamentais (componentes de ação da amizade, incluindo a comunicação, auto-revelação, mostras de afeto e apoio, atividades e interesses compartilhados assim como traição, discussão e demais conflitos) que ocorrem quando as pessoas interagem. Finalmente, deve-se levar em conta o contexto estrutural e cultural das interações de amizade, incluindo suas mudanças no tempo. O esquema conceitual contempla traços estruturais e processuais internos e externos à díade (Adams & Blieszner, 1994).

O presente trabalho tem por objetivo analisar as principais parcerias/amizades musicais de Vinicius de Moraes com ênfase na produção conjunta dessas parcerias e como esta pode ajudar a compreender a amizade entre artistas. A pesquisa procura aprofundar o conhecimento sobre amizade e criação artística e compreender melhor a dinâmica social das amizades e parcerias e a produção cultural e artística.

O compositor Vinicius de Moraes: Breves notas biográficas

Vinicius de Moraes foi diplomata, dramaturgo, jornalista, poeta e compositor brasileiro de grande importância. As breves notas a seguir buscam pontuar os episódios mais importantes de Vinicius como compositor, aspecto de maior relevo para o presente artigo. Além de compositor, Vinicius também se tornou conhecido como intérprete de suas músicas, aspecto que não será discutido no presente artigo. Os breves dados biográficos sobre Vinicius são baseados em Castello (1994), Castello (2005b), Cohn e Campos (2007), Jost, Cohn e Campos (2008) e as referências à correspondência a Castro (2003) e Fundação Casa de Rui Barbosa (1999).

Vinicius de Moraes nasceu em 1913, no bairro da Gávea, Rio de Janeiro. Cresce em uma família com diferentes manifestações de arte, interessando-se pela música desde cedo. Em 1922, muda-se com sua família para a Ilha do Governador, onde passa grande parte de sua infância. Aos 13 anos, começa a compor com dois amigos, os irmãos Paulo e Haroldo Tapajoz. Em 1928, os três compõem "Loura ou morena" e "Canção da noite", que alcança grande sucesso popular.

Em 1930, entra para o curso de Direito, formando-se em 1933. No ano seguinte ingressa no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva. Em 1938, vai para a Inglaterra estudar língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford. No ano seguinte, casa-se com Beatriz Azevedo de Mello, conhecida por Tati. Sua primeira filha, Susana, nasce em 1940 e, em 1942, nasce seu filho Pedro. Nesse mesmo ano, faz uma viagem de 40 dias pelo Brasil com o escritor americano Waldo Frank e muda radicalmente sua visão política: passa a ser um homem de esquerda e a se denominar comunista.

Em 1943, ingressa na carreira diplomática. Em 1944, dirige o suplemento literário de "O Jornal". Em 1946, casa-se com Regina Pederneiras e, em 1951, com Lila Bôscoli. Pretendendo produzir um filme sobre a vida do escultor Aleijadinho, passa uma temporada em cidades mineiras, visitando, fotografando e filmando com os primos Humberto e José Francheschi.

Em 1953, nasce sua filha Georgiana. Nesse ano, compõe com Antônio Maria a canção "Quando tu passas por mim". A partir daí o envolvimento com a música se intensifica. Em 1954, a revista Anhembi publica sua peça "Orfeu da Conceição", premiada no concurso de teatro do IV Centenário do Estado de São Paulo. Começa a trabalhar para o produtor Sasha Gordine, no roteiro do filme "Orfeu Negro". Em 1956 passa uma temporada no Brasil em gozo de licença-prêmio. Paralelamente aos trabalhos da produção do filme "Orfeu Negro", encena sua peça "Orfeu da Conceição", no Teatro Municipal. Convida Antônio Carlos Jobim para fazer a música do espetáculo, iniciando com ele a parceria que, logo depois, com a inclusão do cantor e violonista João Gilberto, daria início ao movimento de renovação da música popular brasileira, chamado de "Bossa Nova". Retorna a Paris no fim de 1956, ano de nascimento de sua terceira filha, Luciana. Em 1957, casa-se com Maria Lúcia Proença. Em 1958, sai o LP "Canção do Amor Demais", com músicas suas em parceria com Antônio Carlos Jobim, cantadas por Elizete Cardoso. No disco, ouve-se, pela primeira vez, a batida da Bossa Nova, no violão de João Gilberto, que acompanha a cantora em algumas faixas, entre as quais o samba "Chega de Saudade", considerado o marco inicial do movimento. Em 1959, é lançado o LP "Por Toda Minha Vida", com canções em parceira com Jobim, interpretadas por Lenita Bruno. Nesse mesmo ano, o filme "Orfeu Negro" ganha a Palme d'Or no Festival de Cannes e o Oscar, em Hollywood, como melhor filme estrangeiro do ano.

Em 1961, começa a compor com Carlos Lyra e Pixinguinha. No ano seguinte, com Baden Powell, dando inicio à série de afro-sambas. Ainda em 1962, compõe com Carlos Lyra, as canções da comédia musicada "Pobre Menina Rica". Em agosto, faz seu primeiro show com Antônio Carlos Jobim e João Gilberto, na boate "Au Bon Gourmet", no Rio de Janeiro. Também faz show com Carlos Lyra, na mesma boate, para apresentar "Pobre Menina Rica" e onde é lançada a cantora Nara Leão. Nesse mesmo ano, compõe com Ari Barroso as últimas canções do grande compositor popular, entre as quais "Rancho das Namoradas". Grava, como cantor, seu disco com a atriz e cantora Odete Lara. Casa-se com Nelita de Abreu em 1963. Nesse ano, começa a compor com Edu Lobo e, em 1964, com Francis Hime. Faz show de grande sucesso com Dorival Caymmi, na boate Zum-Zum, onde lança o Quarteto em Cy. Do show é feito um LP. Colabora com crônicas sobre música popular para o "Diário Carioca". Em 1965, ganha o primeiro e o segundo lugares do I Festival de Música Popular de São Paulo, da TV Record, em canções de parceria com Edu Lobo e Baden Powell. De Paris, voa para Los Angeles a fim de encontrar-se com seu parceiro Antônio Carlos Jobim. Volta ao show com Caymmi, na boate Zum-Zum. Em 1969, é exonerado do Itamaraty. Casa-se com Cristina Gurjão.

Em 1970, inicia a parceria com Toquinho. No ano seguinte, muda-se para a Bahia após casamento com a baiana Gesse Gessy. Nasce Maria, sua quarta filha. Em 1972, viaja com Toquinho para a Itália onde gravam o LP "Per vivere un grande amore". Em 1975, excursionando pela Europa, grava com Toquinho dois discos. Em 1976, escreve as letras de "Deus lhe pague", em parceria com Edu Lobo. Casa-se com a argentina Marta Rodriguez. Em 1977, grava um disco em Paris com Toquinho e faz show com Tom, Toquinho e Miúcha, no Canecão. Em 1978, excursiona pela Europa com Toquinho. Casa-se com sua última mulher, Gilda de Queirós Mattoso. Morre na manhã de nove de julho de 1980, de edema pulmonar, em sua casa na Gávea, em companhia de Toquinho e de sua última mulher.

 

Metodologia

O material que serviu de base para a presente investigação são biografias do poeta (Castello, 1994, 2005b), 134 cartas trocadas com amigos de 1940 a 1970 (Castro, 2003), 53 crônicas musicais escritas por Vinicius (Jost et al., 2008), 13 entrevistas concedidas por ele (Cohn & Campos, 2007) e as letras de 184 músicas compostas com os principais parceiros: Tom Jobim (43), Carlos Lyra (23), Baden Powell (39) e Toquinho (75). As biografias, cartas, crônicas e entrevistas serviram de base histórica para considerar a relação com esses quatro parceiros como amizades de fato. A análise propriamente dita se concentrou nas letras das músicas em parceria, consideradas como um indicador de interesses compartilhados pelos parceiros e amigos. O conteúdo das letras foi analisado (por Análise de Conteúdo) e propostas categorias temáticas relativas a cada parceria. A temática presente em cada parceria é considerada como parte dos interesses compartilhados pelos autores, permitindo uma discussão destas amizades com base em sua produção musical conjunta. Apesar da consulta a informações biográficas e demais obras do autor, as letras de músicas populares formam a fonte específica de análise do presente artigo.

Foram considerados "parceiros" de Vinicius, os autores que constam em sua discografia como coautores. A co-autoria, no caso das músicas analisadas, refere-se à participação no desenvolvimento da letra, da melodia ou de sua integração, não sendo objetivo deste trabalho analisar o processo de composição e a parte desempenhada por cada parceiro, uma vez que o objeto de análise é um produto cultural. A partir de escritos biográficos e cartas, pode-se afirmar que os parceiros escolhidos também foram amigos de Vinicius.

Em relação ao procedimento de análise de proposição das categorias empregadas, o seguinte percurso foi seguido na análise dos dados: (a) primeiramente todas as letras foram lidas diversas vezes; (b) em seguida, foram elaborados pequenos resumos ou sinopses de cada letra, destacando os aspectos presentes e um possível tema dominante. No final, a todas as letras analisadas foi atribuído um tema central; (c) os diversos resumos foram comparados buscando-se semelhanças entre elas para a organização de classes ou categorias temáticas; (d) procurou-se checar se as classes ou categorias temáticas eram suficientes e adequadas para organizar o conjunto das letras.

No final do processo, nove categorias foram propostas para organizar as composições: (a) a categoria "amor romântico" inclui todas as letras que giram em torno do relacionamento amoroso entre um homem e uma mulher (por exemplo, "Eu sei que vou te amar", que trata da necessidade de amar e ter a pessoa amada, da exaltação e angústia, sofrimento e alegria de amar alguém); (b) a categoria "mulher" trata do elemento feminino independentemente de estar inserida em qualquer tipo de relacionamento, enaltecendo a mulher por sua beleza física e seu charme, entre outros atributos (por exemplo, "A Garota de Ipanema"); (c) a categoria "música e dança" refere-se a composições sobre manifestações culturais ligadas à musica ou à dança, como o Carnaval (por exemplo, "Frevo de Orfeu"); (d) a categoria "experiência humana" refere-se aos sentimentos ligados à vida do homem, como uma criatura universal, não relacionados diretamente a um relacionamento romântico. A dor e o sofrimento, a alegria ou felicidade, entre outros, caso não estejam relacionados a um relacionamento romântico, são incluídos neste item (por exemplo, "A Felicidade", que trata da espera pela felicidade, a esperança e a angústia, a alegria e a tristeza envolvida). Se a dor e o sofrimento ou a alegria e a felicidade estão associados a um relacionamento romântico, então a composição é incluída em "amor romântico"; (e) "Temas históricos" são raros e se referem a enaltecer eventos históricos (por exemplo, em "Brasília, Sinfonia da Alvorada"; (f) O item "Outros relacionamentos" trata de relacionamentos de amizade, entre pais e filhos, e outros, desde que não com um parceiro romântico (por exemplo, "Amigos meus", que fala da separação e do reencontro, das saudades e da esperança de reencontrar os amigos); (g) A categoria "valores e estilos de vida" representa um posicionamento do autor diante do sentido vida, em termos do que deve ser valorizado e como se deve viver, difundindo uma filosofia ou máximas de vida. Neste caso, a alegria e a tristeza, o simples e o profundo, o medo e o otimismo podem estar presentes, não como parte de um relacionamento romântico ou algo decorrente da experiência de todo homem, mas como parte do sentido da vida ou de um estilo de vida a seguir (por exemplo, "Sei lá... A vida tem sempre razão", que fala do sentido da vida, e dúvidas sobre existência, otimismo e confiança); (h) os "temas infantis" estão presentes em letras sobre a infância e para crianças; (i) os "temas sócio-culturais" tratam de questões sociais ou culturais de modo mais amplo (como em "Triste Sertão", que narra a vida dura, o sofrimento, a simplicidade e a resignação da vida no sertão).

Dada a extensão do material, procurou-se reduzir ao mínimo o uso de trechos de das 180 composições analisadas nos resultados, o que poderá ser mais explorado em análises futuras. A título de ilustração, o conteúdo de algumas composições de Vinicius de Moraes e Tom Jobim é indicado abaixo:

1) "Água de beber" - trata do medo de amar, pois o amor é um sentimento que traz desilusão. Ao mesmo tempo, o poeta sabe que viver sem amor não é viver. Relaciona amor ao perdão. O tema é o amor romântico, sem a indicação de um objeto específico. Aborda o medo de amar, sentimento abordado como desilusão: "Eu quis amar mas tive medo / E quis salvar meu coração / Mas o amor sabe um segredo / O medo pode matar o seu coração".

2) "Amor em paz" - narra uma conversa com a pessoa amada. O poeta diz que esse amor apareceu quando tudo já parecia perdido, tudo era tristeza e não havia mais esperanças. A pessoa amada trouxe paz e razão de viver. O tema é o amor romântico. Trata de um novo amor, trazendo paz, alegria e razão para a vida. "Foi então / Que da minha infinita tristeza / Aconteceu você / Encontrei em você a razão de viver / E de amar em paz / E não sofrer mais / Nunca mais / Porque o amor é a coisa mais triste / Quando se desfaz".

3) "Andam dizendo" - conta a história de um homem que sofre pela constatação do fim do sentimento pela mulher amada. Mas aos olhos das demais pessoas ele está em busca de um novo amor. O poeta tenta explicar à amada os motivos que o levam a sair pela noite. A canção tem como tema principal o amor romântico. Aborda o término do amor, o sofrimento e a constatação do fim necessário e esperado do amor. Essa percepção sinaliza para a necessidade da renovação constante desse sentimento: "Mas ninguém sabe, querida / O que é ter carinho / Que eu saio na noite / Mas fico sozinho / Mais perto da lua / Mais perto da dor / Perto da dor de saber / Que o meu céu não existe / Que tudo que nasce / Tem sempre um triste fim / Até meu carinho, até nosso amor".

 

Resultados

Vinicius teve quatro principais parceiros musicais, com os quais produziu o maior número de composições em parceria e se envolveu pessoalmente. Segundo Vinicius, seus parceiros "foram todos sujeitos maravilhosos. Sobretudo esses três: o Tom, o Carlinhos Lyra e o Baden. Nem falo do ponto e vista da música brasileira, mas do meu relacionamento com eles" (Cohn & Campos, 2007, p. 131). Depois disso, ainda encontra seu último grande parceiro - Toquinho - com quem desenvolve uma "amizade mesmo, onde a gente às vezes fala sério, às vezes tira pêlo um do outro, às vezes não diz nada, quando não há nada pra dizer" (Jost et al., 2008, p. 174).

Das parcerias analisadas, a com Tom Jobim é a primeira a ter início (1956), mantendo-se ao longo dos anos 50 e 60. As parcerias com Baden Powell (início em 1962) e com Carlos Lyra (início em 1961) têm início e se concentram nos anos 60, sobrepondo-se à parceria com Tom Jobim. A partir de 1970, e até sua morte em 1980, Toquinho se torna o parceiro principal de Vinicius. Análises futuras poderão investigar as mudanças ocorridas nas temáticas do autor em cada parceira ao longo do tempo.

Vinicius de Moraes e Tom Jobim

A parceria com Tom Jobim começou em 1956, quando Vinicius procurava um músico para fazer as canções da sua peça teatral "Orfeu da Conceição". Segundo Vinicius (na contracapa do disco com o mesmo nome) o contato resultou não "apenas uma parceria, mas uma amizade que hoje sinto de grande importância para nós ambos". A relação entre eles torna-se próxima e íntima. Segundo Castello (1994), "os dois juntos exercitam, nessas horas, uma 'amizade sem reservas', conforme o próprio Vinicius definiria mais tarde" (p. 187). Vinicius vive um momento de reflexão e desejo de mudança ao encontrar Tom Jobim. A parceria se funde com uma grande amizade, expressa em crônicas e cartas. Nestas, o tratamento é sempre muito próximo: Tomzinho querido, Maestrinho querido, Querido Vina. Foram peça fundamental na inauguração de um novo ritmo musical e um dos mais importantes movimentos da música popular brasileira: a Bossa Nova. A canção "Chega de Saudade", de 1958, é o marco inicial do movimento, por sua letra inusitada e simples e pela novidade do violão de João Gilberto.

As 44 músicas compostas pelos dois autores foram reunidas em cinco grupos temáticos: (a) o amor romântico, (b) a mulher; (c) a música; (d) a experiência humana (em um sentido mais amplo, como felicidade, separação e solidão), (e) temas históricos.

Com a finalidade de facilitar a comparação do conteúdo das composições das quatro parcerias, foram propostos alguns subtemas dentro do tema mais amplo do amor romântico. Estes não se excluem completamente, revelando certa interseção de diferentes aspectos de seu conteúdo. Os subtemas propostos, que sintetizam o conteúdo das letras das composições sobre amor romântico, foram: (a.1) necessidade de amar e ter a pessoa amada; (a.2) término ou perda do amor; (a.3) saudade ou ausência da pessoa amada; (a.4) dificuldades e a dialética do relacionamento; (a.5) retorno ou volta do amor; (a.6) a natureza positiva do relacionamento; e, (a.7) exaltação do parceiro.

Das composições dessa parceria, a maioria (31) aborda o amor romântico. Sentimentos aparentemente contraditórios são muito utilizados para falar de amor: "Olha que o amor, Luciana / É como a flor que não dura demais / Embriagador / Mas também traz muita dor, Luciana" ("Luciana", 1958). Vinicius e Tom fazem uma inversão do esperado, perturbam. Para falar de amor, os parceiros abordaram principalmente o término ou a perda do amor. As letras trazem sentimentos de dor e sofrimento, mas apontam contradições, marca das canções de Vinicius e também presentes nessa parceria. Apesar de prevalecer a dor e o sofrimento, duas canções apontam para a serenidade ("Pelos caminhos da vida", 1959) e a beleza do momento da separação ("É preciso dizer adeus", 1958). Apesar de não ser característica das letras de Vinicius e Tom, o humor está presente para tratar do assunto na letra da música "Mulher, sempre mulher" (1956).

A necessidade de amar e ter por perto a pessoa amada é a forma preferida pelos parceiros para falar de amor romântico. A contradição é o elemento preponderante. Os sentimentos vivenciados são de dependência, sofrimento, tristeza, angústia, mas também alegria, confiança, prazer e esperança. Várias letras são marcadas pela dialética entre tristeza e alegria, sofrimento e felicidade. Há referência à perda e término do amor, à necessidade de amar e à saudade, com predominância da tristeza.

Associadas ao tema do amor romântico estão as músicas sobre a mulher. Estas letras exaltam, de forma mais concreta, a mulher carioca com sua beleza, charme e sensualidade, características associadas à sua natureza como objeto do amor romântico e da paixão. A figura da mulher está estreitamente ligada à temática do amor romântico, visto que o amor cantado pelos parceiros é um sentimento que vem da mulher e é direcionado a ela. A mulher das composições de Vinicius e Tom Jobim ocupa lugar central na vida do homem, é cura para o amor, lugar de repouso e descanso, lugar onde o homem se encontra. Ela é cantada como destino, luz e paz, ao mesmo tempo que traz tormento e dor. Essa relação faz sentido, uma vez que o amor também é cantado dessa forma pelos parceiros. A mulher idealizada é fonte de alegria e tristeza para os homens, pois ela traz o amor, que carrega em si tal contradição.

Tom e Vinicius relacionam o amor com vários elementos, mas principalmente perdão, paz, dor/alegria e, por fim, mulher. Relacionam temas aparentemente contrários. Algumas composições referem-se à própria música, especialmente relacionadas ao samba e carnaval. Como nas canções sobre a mulher, as letras sobre música adquirem um tom mais regionalista e positivo, de certa exaltação ao Rio de Janeiro.

Algumas músicas abordam temas mais universais da experiência humana, como a solidão, a felicidade e a separação. Embora próximos da temática do amor romântico, parecem exprimir de forma mais ampla a experiência do homem diante da vida. Também são marcadas por seu caráter dialético. Raramente, a música tem como foco algo datado historicamente, como é o caso da "Sinfonia da Alvorada" (1960), feita em comemoração à construção e inauguração de Brasília, destacando o desbravamento e a esperança.

Vinicius de Moraes e Carlos Lyra

Em 1961, inicia a parceria com Carlos Lyra. Vinicius e Carlos Lyra passam uma longa temporada em Petrópolis compondo a comédia musicada "Pobre Menina Rica" (1962). Os laços se estreitam e Vinicius se refere a Carlos Lyra como "parceirinho cem por cento" na canção "Samba da Benção" (1963), composto com Baden Powell. Completa dizendo que Carlos Lyra "une a ação ao sentimento e ao pensamento". O termo "parceirinho" está sempre presente quando Vinicius se refere a Carlos Lyra. Em carta de 1966 (Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999, VMcp 378), Vinicius se despede do amigo usando esse tratamento: "Conte as novidades parceirinho. Ando com uma saudade brutal de você". Os assuntos das cartas trocadas giram em torno das composições em parceria, dos sucessos e dificuldades de Carlos Lyra no exterior, dos amores e romances e de notícias sobre amigos em comum, indicando proximidade e intimidade.

A produção em parceria com Carlos Lyra foi reunida em seis grupos temáticos: (a) o amor romântico, (b) a mulher (como objeto de atração e do amor romântico), (c) a experiência humana e valores (tratando de sentimentos e valores humanos mais amplos), (d) temas sociais (como o trabalho e a desigualdade social), (e) amizade e (f) música. Como em outras parcerias, o término ou perda do amor e a necessidade de amar e ter a pessoa amada estão presentes nestas letras, assim como certa dialética do amor e a natureza positiva desse sentimento em relacionamentos que se iniciam. O tema Mulher está intimamente relacionado com amor romântico, retratada como seu objeto, assim como relacionado à música, à dança, mas ainda assim destacando sua sensualidade e beleza e objeto de amor romântico.

Algumas letras se referem ao que foi denominado de experiência humana, por tratarem de sentimentos e valores de apelo universal, como a felicidade, a liberdade e a nostalgia. A peça "Pobre Menina Rica" parece uma crítica aos homens "cultos" que menosprezam a arte considerada "menor", ou seja, a arte popular brasileira. Vinicius já vinha na esteira dessa crítica e na exaltação do genuinamente brasileiro ao transpor o mito grego de Orfeu para o morro carioca, montando a peça "Orfeu da Conceição", o que aconteceu poucos anos antes da elaboração de "Pobre Menina Rica". Vinicius, que era diplomata e convivia com a alta roda social, fazia questão de valorizar a cultura brasileira e seu povo.

Na parceria entre Vinicius de Moraes e Carlos Lyra os temas sociais estão presentes. O nordestino, o mendigo, o estudante universitário, o trabalhador, a mulher socialmente discriminada são personagens muito cantados por esses parceiros. O tema Amizade aparece na canção "Cartão de Visita" (1962), que trata do perfil do amigo e das regras para ser amigo. Finalmente, o tema Música é representando pela música "Balanço do Tom" (s/d), uma homenagem à qualidade da música do maestro.

Vinicius de Moraes e Baden Powell

Com Baden Powell, começa a compor em 1962. Segundo Castello (2005a), "Baden e Vinicius viveram uma daquelas amizades viris meio raras hoje em dia (...). Vinicius nunca teve medo de dizer que, para ele, Baden era uma pergunta a ser domesticada, e não respondida" (p. 41). Vinicius e Baden Powell possuíam características pessoais muito diferentes. Baden Powell cresceu em um morro carioca, enquanto Vinicius de Moraes tinha formação acadêmica no exterior e seguia carreira diplomática. Porém, os parceiros "não estavam tão distantes quanto as aparências indicavam. (...) Traziam na bagagem a mesma galeria de ídolos: Dolores Duran, Antônio Maria, Noel Rosa, Pixinguinha" (Castello, 2005a, p. 42). Baden levou Vinicius ao mundo do samba de raízes africanas. Juntos produziram um novo ritmo: os afrosambas. Introduziram um elemento novo na Bossa Nova, a música de tradição negra, que acabou por se diferenciar desta, criando uma nova vertente. Entrou em cena o candomblé, com seus rituais e orixás, e a música de capoeira com seus jogos de agressão controlada.

As letras das 39 composições de Vinicius e Baden foram analisadas e alguns grupos temáticos foram propostos: (a) amor romântico, (b) mulher, (c) música e dança. O tema do amor romântico é dominante na composição conjunta de Vinicius e Baden. A dialética entre tristeza e alegria, entre aproximação e afastamento, vida e morte, sofrimento e felicidade, insegurança e incerteza, paixão e tranqüilidade em relação ao ser amado está presente, assim como elementos culturais afro-brasileiros.

A mulher como tema está muito próximo do tema do amor romântico, tratando-se de uma figura que desperta a paixão e a admiração por sua beleza, sensualidade, graça e charme. A mulher mais sensual e a mulher cheia de beleza, graça e charme também estão relacionadas ao amor mais passional e mais terno. A mulher também se liga à música por meio da dança. Há um regionalismo no elogio da mulher carioca e da baiana. Nas letras de Vinicius e Baden a ligação entre música e mulher aponta para a música como via de expressão da sensualidade da mulher, que ao dançar faz o homem se apaixonar.

As letras "Canto de pedra preta" (1966), "Queixa" (s/d), "Tempo feliz" (1965) e "Samba da benção" (1962) se referem ao mundo da música e da dança. Nestas composições, o ritmo contagiante da música está associado à necessidade da dança. O carnaval, de certa forma, une música, mulher e dança. Os parceiros expressam o samba como algo que envolve alegria e tristeza, amor e amizade. Doze composições empregam as palavras samba, canção ou valsa em seu título, de modo que o tema "música" está presente em muitos momentos dessa parceria. Outras canções não trazem nos títulos essas palavras, mas o tema música ao longo da letra, tal como "Tempo Feliz" (1965), na qual as canções alegravam e traziam paz aos corações. Observa-se grande importância do tema música e sua relação com demais temas: mulher, amor, amizade, samba e a capacidade do samba de fazer bem.

Uma composição se refere à amizade, voltada para a despedida, a morte e o sofrimento ("Bom dia, amigo", 1965). Outra aborda a tristeza, idealizando um encontro com a tristeza, onde se pode ver o humor e o otimismo ("Canção de enganar tristeza", s/d), podendo ser considerada como uma música que trata da experiência humana, do ponto de vista dos sentimentos, de uma forma mais universal. Finalmente, há uma composição de caráter regional que trata de um aspecto típico do Brasil e do povo brasileiro, revelando o amor pelo Brasil através da referência a um elemento típico de nossa cultura ("Samba do Café: Para fazer um bom café", 1965).

Do ponto de vista da forma, as letras são marcadas por repetições de palavras, frases e estrofes, possivelmente para acompanhar um ritmo mais afro-brasileiro, que seria uma característica da parceria de Vinícius e Baden. Há o uso constante de palavras de origem africana ou do candomblé: Xangô, Agodô, Ossanha, olô, saravá, berimbau, orixá, indicando uma aproximação da cultura afrobrasileira, especialmente presente na Bahia. O som é marcado pela batida da capoeira e tem clara influência dos sons africanos. O berimbau é muito utilizado. Como em outras parcerias, a dialética felicidade e tristeza, sofrimento e alegria, amor e desilusão está presente, assim como uma inversão do esperado, que é uma constância não somente nas letras de Vinicius, mas em sua poesia e em sua própria vida.

Vinicius de Moraes e Toquinho

A parceria com Antônio Pecci Filho, mais conhecido como Toquinho, começa em 1970, quando ele é convidado por Vinicius para uma temporada de shows na Argentina. "Ali solidificouse entre Toquinho e mim uma amizade que, considerada nossa diferença de idade, nada tem de paternal de minha parte, nem filial da parte dele" (Jost et al., 2008, p. 174). Encontram-se no melhor momento possível para cada um, quando as necessidades individuais demandam exatamente o que o outro poderia oferecer. "O Toquinho e eu engrenamos tão bem. Apareceu no momento certo. Quando mais eu precisava de um parceiro interessado em fazer apenas a música de comunicação sentimental" (Cohn & Campos, 2007, p. 131). A parceria inicia-se no clima positivo da vitória da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo e do sucesso dos shows em Buenos Aires, na Argentina. Além da composição musical, realizavam outras atividades típicas de amigos. Toquinho e Vinicius freqüentavam a casa um do outro, iam a bares e jantares, passeavam juntos pelas cidades onde realizavam os shows. Segundo Toquinho, a "criação musical vinha na esteira da nossa alegria, da nossa amizade, da nossa curtição com a própria música e com a vida" (http://www.toquinho.com.br).

As 75 composições de Vinicius e Toquinho foram organizadas em sete grupos temáticos: (a) amor romântico, (b) mulher, (c) valores e estilos de vida, (d) outros relacionamentos, como amizade,(e) temas infantis, (f) temas sócio-culturais, (g) música e dança, incluindo a temática religiosa.

O amor romântico é o principal tema em torno do qual Vinicius e Toquinho trabalham. A temática já estava presente nas composições com Tom Jobim, Carlos Lyra e Baden Powell adquirindo nuances diferenciadas na parceria com Toquinho. Para uma melhor organização da temática das composições em parceria com Toquinho e possibilitar a comparação com outras parcerias são propostos seis subtemas: (a.1) a natureza positiva do relacionamento, (a.2) a necessidade de amar e ter a pessoa amada, (a.3) dificuldades e a dialética do relacionamento, (a.4) retorno ou volta do amor, (a.5) saudade e ausência da pessoa amada, (a.6) término ou perda do amor.

O amor romântico é o tema dominante, tendo a dialética aproximação/afastamento como algo central. A aproximação se manifesta pela necessidade de amar e ter a pessoa amada, de exaltar o ser amado. Por outro lado, o afastamento está relacionado ao término, à saudade e ao retorno. Refere-se, freqüentemente, às fases iniciais e finais do relacionamento, momentos marcados por uma maior carga emocional. Em algumas canções de Vinicius e Toquinho, o amor romântico se relaciona ao amor dos deuses do candomblé, suas artimanhas e traições ("Meu pai Oxalá", 1973; "Maria vai com as outras", 1971; "O canto de Oxum", 1971). Apesar de certa flexibilidade, compor sobre fases de relacionamentos românticos parece descrever o perfil da díade Toquinho e Vinicius. Há dezenas de composições que se constroem em torno dessa temática. Um fator que parece permear este conjunto é a dialética entre alegria e tristeza, entre paixão e carinho, aproximação e afastamento.

Um grupo de composições de Vinicius e Toquinho avança para temas mais amplos, ainda que intimamente relacionados ao amor romântico. Este grupo foi denominado de "valores e estilos de vida". As composições da dupla não apenas retratam o amor entre o homem e a mulher, de forma mais terna ou mais passional, mas se posicionam diante do problema da vida, de como viver, dos valores. Como nas canções em torno do amor romântico, o amor e a paixão se tornam uma máxima de vida, uma forma de se viver intensamente, onde a alegria e a tristeza, a tranqüilidade e a intensidade se encontram e combinam. O cotidiano e o eterno, o simples e o profundo, a alegria e a tristeza, o medo e o otimismo, o local e o universal se confundem. Estes dois primeiros temas também se relacionam dialeticamente, de modo que a paixão está presente no amor romântico, mas também nas posições diante da vida. Estes interesses em comum seguem os amigos ao longo do tempo. Em parte, esta parceria é quase a expressão de uma visão da vida e do mundo, afirmando certos valores. A centralidade do amor e da paixão parece dar origem a uma coletânea de composições em torno de valores que poderiam ser denominados existenciais. Algumas particularidades podem ser apontadas. Essa mesma paixão e ciúme estão presentes entre os elementos culturais, regionais e religiosos que permeiam essas canções, como as referências às divindades do Candomblé.

Diretamente relacionado ao amor romântico estão algumas composições tendo a mulher como foco. Estas letras reafirmam a dialética entre alegria e sofrimento, o cômico e o trágico. Nessa parceria aparece a questão da idade da mulher: a menina nova que tenta seduzir o homem mais velho ("Aula de piano", 1980; "Essa menina", 1971; "Menina das duas tranças", 1972).

Algumas letras buscam respostas, trazem reflexões e questionamentos sobre o tema da morte, do fim das coisas ("Canto de Oxalufã", 1972; "Sei lá... A vida tem sempre razão", 1971; "Sem medo", 1974; "A terra prometida", 1971; "Testamento", 1971). A percepção da morte é sempre positiva, como experiência que vem afirmar a vida, que nos obriga a viver a vida em plenitude. Em "Sei lá..." Vinicius se ausenta de tentar dar respostas e parece apostar e confiar na vida, mesmo que ela esteja apontando para seu fim próximo. A letra de "Sem medo" (1974) fala de travessia, de superar obstáculos. A palavra "atravesse" é repetida constantemente e sempre relacionada a um obstáculo próprio da fase da vida: quando criança, o escuro; quando interessado por uma mulher e envolvido pelo amor, a vida; quando em fase de recomeço, a rua; e no término da vida, a morte. Até mesmo na canção infantil "Os bichinhos e o homem" (1980) o tema da morte aparece; morte vista como aquela que iguala os homens, independente do tipo de vida que ele tenha escolhido viver ou dos conhecimentos que tenha adquirido.

O "Canto de Oxalufã" (1972) valoriza um estilo de vida que privilegia o coração, o amor e a paixão. Durante a parceria com Toquinho, Vinicius já havia vivido com diferentes mulheres e faz o necessário para encontrar o amor, inclusive separar-se e se entregar a uma nova paixão, sempre com mulheres mais novas. Toquinho, por sua vez, vive a intensidade dos namoros e envolvimentos. A canção "Regra Três" (1972) é definida por Toquinho como um "puxão de orelha" de Vinicius no parceiro. Essa característica de ambos abre caminho e dá origem a canções que expressam o desejo de ambos de viverem intensamente, de saber que a vida tem que ser vivida de modo a valer a pena e que, no fim, todos se igualam pela morte.

Outro tema refere-se ao mundo da fantasia, onde os animais se destacam como personagens alegres e divertidos, assim como as plantas e mesmo alguns objetos inanimados. Há uma simplicidade e um tom alegre, condizente com os estilos de vida preconizados em outras letras, em que a simplicidade e a tranqüilidade, ao lado da alegria são apontados como valores de vida. Há uma aproximação com as crianças. Muitas canções falam de animais. As canções são em ritmo de músicas de circo, com coro infantil em quase todas.

Ainda trata de outros relacionamentos, especialmente a amizade. Nas amizades, há uma mescla de tristeza e alegria, mas também de uma forma de viver em que os amigos são parte da vida. Esta forma intensa de viver com os amigos também pode ser vista na biografia de Vinicius. Raramente trata do relacionamento entre pais e filhos, mas quando o faz, também entra na dialética da alegria e da dor. Nesse sentido, Toquinho está se preparando para o papel de pai, como indica a letra de "O filho que eu quero ter", enquanto Vinicius já se vê com filhos adultos.

Os parceiros produziram canções saudosistas em relação à vida de Vinicius, os shows, as noites, os amigos antigos, a rotina de bares da zona sul ("Amigos meus", 1080; "Caro Raul", 1980; "Carta que não foi mandada", 1974; "Carta ao Tom", 1974; "Chorando pra Pixinguinha", 1972). Raramente deixam uma perspectiva mais universal e tocam em temas mais concretos. São poucas as referências a temas sociais, como preconceito racial, controle social e a malandragem de um ponto de vista negativo. Algumas referências ao Brasil e aos brasileiros são dirigidas aos nordestinos, de forma mais dramática, e aos cariocas e brasileiros em geral, destacando seu caráter irreverente. Finalmente, há referências à própria música. Percebe-se também, embora sem predominância, a inserção de elementos afro-brasileiros.

A título de ilustração, a Tabela 1 apresenta as parcerias de Vinicius de Moraes, as temáticas envolvidas e o número de composições analisadas em cada categoria.

 

Discussão

As relações entre música e amizade na literatura têm sido abordadas de três perspectivas principais: (a) relatos históricos de amizades musicais (Trezise, 2007); (b) a preferência musical como fator para a formação e manutenção de amizades (Ilari, 2006; North & Hargreaves, 2007a, 2007b, 2007c; Rentfrow & Gosling, 2006); (c) a colaboração na composição e na execução musical (Barret & Gromko, 2007; Blank & Davidson, 2007; Boerner & Von Streit, 2007).

A presente pesquisa, em consonância com a literatura citada, também aborda amizades musicais. De forma diferenciada dos trabalhos citados, contudo, não se limita a uma única amizade entre dois músicos, mas analisa a amizade de um compositor com outros quatro músicos, permitindo assim, buscar os pontos em comum e as diferenças entre estas amizades. Neste sentido, não se limita a uma descrição histórica ou biográfica, mas procura analisar a produção conjunta dessas amizades, vistas como elementos descritores desses relacionamentos. Como apontado na literatura, os dados sugerem que a preferência musical seja um fator relevante para a formação e manutenção de amizades. Nos casos estudados, a música ganha uma importância ainda maior por se tratar do principal elemento de ligação entre Vinicius e seus parceiros.

As composições de Vinicius com os parceiros e amigos apresentam traços em comum, como a valorização do amor, da figura da mulher e alguns traços folclóricos. Por outro lado, cada parceria/amizade tem características próprias. O conteúdo das composições representa um interesse compartilhado na amizade, como o relacionamento romântico, presente nas quatro amizades. Cada parceria, contudo, aborda o tema de forma parcialmente diferenciada. Por exemplo, o que foi denominado de "experiência humana", presente nas composições de Vinicius e Tom toma outra dimensão nas composições de Vinicius e Toquinho, onde dá lugar a uma temática ainda mais ampla, envolvendo estilos de vida. A produção de Vinicius e Toquinho ainda se diferencia pelas canções infantis e pela afirmação da necessidade de viver intensamente, mas de forma simples, respeitando os desejos do coração e do amor. A parceria entre Vinicius e Baden tem mais elementos da cultura afro-brasileira. Com Carlos Lyra, há mais preocupação com temas sociais. Essas amizades e parcerias não se restringem a um tema único, mas apresentam diferentes temáticas, que ainda podem variar com o decorrer do tempo.

Historicamente, a amizade tem sido investigada tendo como referência o desenvolvimento (infância, adolescência, adultez e velhice) ou o gênero (amizades masculinas e femininas). A idéia de amizades culturais tem como fundamento produtos da cultura como elementos ou interesses compartilhados entre amigos. Fatores culturais estão presentes em todas as amizades. A noção de amizade cultural, contudo, refere-se a relações nas quais um produto cultural se destaca como interesse compartilhado e fundamento da amizade, entre diletantes ou artistas, músicos, literatos ou cientistas. Podem estar na base de movimentos culturais, com reflexos na produção cultural. Amizade e cultura incluem não apenas processos intersubjetivos, mas também produtos culturais.

Segundo Hinde (1997), o relacionamento interpessoal não se restringe a dimensões internas da relação entre díades. Além do grupo e da sociedade, Hinde acrescenta o ambiente físico e a estrutura sócio-cultural como relevantes para o estudo dos relacionamentos e a dialética entre esses níveis. Dois aspectos do esquema geral de Hinde são destacados nesta pesquisa: as relações entre relacionamento e grupo e estrutura sócio-cultural. Procura-se relacionar amizade e produção musical, como parte da herança cultural de um povo, como elementos em relação dialética. A produção musical serve de elo mediador com movimentos culturais, que reúne artistas com uma tradição cultural convergente, no caso, musical. Parcerias musicais e amizades revelam de forma mais clara como relações interpessoais e produção cultural se afetam mutuamente.

Quanto à amizade e o contexto sócio-cultural, cada amizade/parceria investigada reflete o ambiente sócio-cultural em torno de Vinicius. Assim, as quatro amizades investigadas refletem o grupo social e cultural do qual Vinicius participa, mas também são relacionamentos únicos. As amizades culturais em geral, e as amizades musicais em particular, não devem ser compreendidas apenas como laços entre duas pessoas que têm em algum aspecto da cultura, como a música, um importante interesse compartilhado. Essas amizades estão situadas e se relacionam dialeticamente com os grupos nos quais se desenvolvem, incluindo os movimentos culturais. Amizade e movimentos culturais, portanto são fenômenos que se afetam mutuamente. Relações de amizade estão imbricadas com parcerias culturais de forma dialética. Amizades estão na base dos movimentos culturais e a cultura serve de atração para a formação de amizades, gerando uma produção cultural específica.

Não se pode separar uma intensa e complexa rede de amizades e o movimento da Bossa Nova, tendo em Vinicius e Tom Jobim figuras de destaque pela produção musical e como pólos de atração social. Faltam estudos da importância das amizades nos movimentos culturais e a cultura como objeto em torno do qual surgem as amizades. A dialética entre relacionamento interpessoal e cultura ainda é pouco investigada, incluindo o papel das redes sociais para o avanço cultural. Amizades entre artistas e cientistas, entre outros, são fatos históricos que permeiam a evolução de movimentos culturais, com reflexos na produção e história culturais. O estudo das amizades culturais está na fronteira entre os estudos da história e da cultura e do relacionamento interpessoal.

 

Considerações finais

O processo de composição de cada composição ou de cada parceria, com a contribuição de cada parceiro poderia ser analisado através de uma futura investigação. Certamente Vinicius tem uma participação importante nas letras, e o mesmo pode ser dito de Tom Jobim. Como era o trabalho de Vinicius com seus parceiros - se ele elaborava primeiro a letra e depois a melodia, ou primeiro a melodia, ou as duas juntas, ou se havia interferência do parceiro na letra - certamente poderá ser abordado em outra investigação. A partir dos dados obtidos na presente pesquisa, pode-se sugerir uma investigação mais ampla de amizades culturais como uma forma de aprofundar o conhecimento das relações entre relacionamento interpessoal e cultura e suas relações dialéticas.

 

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Recebido em: 04/11/09
Aceito em: 22/12/09

 

 

1 Apoio: CAPES.
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