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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

 ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.2 Juiz de fora dez. 2014

 

ARTIGOS

 

Lacan leitor de Klein: da clínica kleiniana com Dick à teorização lacaniana

 

Lacan, a reader of Klein: from the reading of the Kleinian clinical approach with "Dick" to the lacanian theorization

 

 

Angela Maria Resende Vorcaro; Marcela Rêda Guimarães1

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

Neste artigo pretendemos resgatar o caso Dick para apontar as implicações da clínica kleiniana apoiados em recortes de seminários de Lacan sobre o caso em questão. Utilizamos o artigo A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do Ego (1930/1996) de Melanie Klein como base para a discussão além de algumas passagens dos Seminários 1 (1953-4/1986),3 (1955-6/1988), 6 (1958-9/2013) e 11 (1964/2008) de Lacan, com o objetivo de apreender as aproximações e as divergências desses psicanalistas. Resgatamos a teoria que Klein utiliza para situar a condição psíquica da criança e os recortes clínicos do caso. Por fim, retomamos a leitura de Lacan relativa ao caso, para discutir sobre as diferentes concepções de linguagem presentes nos autores.

Palavras-chave: Psicopatologia da criança, Klein, Lacan


ABSTRACT

The present article intends to revisit the Dick case, in order to point out some implications of the Kleinian clinical approach based on excerpts from Lacan's seminars that relate to same. We use Klein's article, "The importance of symbol-formation in the development of the ego" (1930/1996), as an outset for the discussion, as well as some passages from Lacan's Seminars 1 (1953-4/1986), 3 (1955-6/1988), 6 (1958-9/2013) and 11, aiming to grasp both the approximations and divergences between these psychoanalysts. We recover the theory used by Klein to situate the child's mental condition and also the clinical newspaper clippings of the case. Finally, we retake Lacan's reading of the aforementioned case with the purpose of discussing the different conceptions of language present in both authors.

Keywords: Child psychopathology, Klein, Lacan


 

 

Introdução

Pretendemos, neste artigo, discutir as implicações da clínica de Melanie Klein no atendimento do menino Dick, a partir de diferentes observações de Lacan. Tomaremos como base, o artigo A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do Ego, (1930/1996) de Melanie Klein, e os apontamentos lacanianos nos Seminários 1 (1953-4/1986), 3 (1955-6/1988), 6 (1958-9/2013) e 11 (1964/2008), ressaltando a aproximações e afastamentos entre as duas perspectivas. Resgataremos a teoria que lhe serve de base para situar a condição psíquica da criança e os recortes clínicos do caso. Em seguida, retomaremos a leitura de Lacan relativa ao caso, para sustentar a discussão sobre as diferentes concepções de linguagem presentes nos psicanalistas.

 

1. Os instrumentos conceituais usados por Klein na leitura de Dick

A teoria de Klein (1930/1996) é tributária da articulação entre a concepção de identificação de Ferenczi, segundo a qual esta é precursora do simbolismo e surge quando a criança tentar reencontrar em todos os objetos seus próprios órgãos e funções, e a noção de equação simbólica de Ernest Jones, em que o princípio do prazer torna possível a equação entre coisas completamente diferentes por uma semelhança de prazer ou interesse. Reapresentaremos, nesse item, as bases em que ela sustenta o caso.

Segundo Klein (1930/1996), a primeira etapa do desenvolvimento mental é efeito do predomínio do sadismo, ativado em cada uma das fontes de prazer libidinoso. É o desejo sádico-oral de devorar o seio da mãe (ou a mãe) que dá início ao ponto culminante do sadismo, que desaparecerá, posteriormente, com o advento do primeiro estágio anal. O alvo predominante do sadismo é o corpo da mãe: destruí-la com todas as armas de que pode dispor. A criança supõe, no corpo da mãe, substâncias comestíveis às quais equipara o pênis do pai (já que, na fantasia infantil, durante o coito, o pai ou seu pênis é incorporado à mãe), excrementos e crianças. Seus ataques sádicos que mordem, rasgam, cortam e despedaçam os pais, despertam ansiedade; por isso ela teme ser castigada. Acresce-se a tal temor a angústia interiorizada pela introjeção sádico-oral dos objetos. Ao sadismo oral e muscular somam-se o sadismo uretral e anal. Assim, os excrementos tornam-se armas perigosas: urinar equivale a cortar, apunhalar, queimar e afogar; a matéria fecal representa armas de fogo, projéteis e, posteriormente, é equiparada a venenos.

O excesso de sadismo desperta angústia, movimentando mecanismos primitivos do ego. Emerge, assim, a primeira defesa, relativa às duas fontes de perigo: o próprio sadismo e o objeto atacado. Tal defesa, de caráter violento, difere do posterior recalque: ela implica expulsão. O sadismo é perigoso porque, enquanto se defende destruindo o objeto para liberar ansiedade, aponta para o próprio ego, já que o objeto atacado pode retaliar. Assim, a tarefa do ego de dominar a angústia foge de seu alcance.

O interesse libidinal da criança conjuga-se à angústia, que põe em funcionamento o mecanismo da identificação. É o que torna a primeira realidade da criança tão fantástica: a criança deseja destruir os órgãos que ela equipara a objetos os quais, devido a essa equiparação, convertem-se em objetos de ansiedade. Como todos os objetos causam ansiedade, todos são equivalentes (excrementos, órgãos, objetos, coisas animadas e inanimadas). Assim, a criança se vê impelida a fazer novas equações que constituem a base do seu interesse nos novos objetos e no simbolismo. Nessa perspectiva, sadismo e impulso epistemofílico são simultâneos. Afinal, o objeto de ambos é o corpo materno com seus conteúdos fantasiados. São as fantasias sádicas dirigidas ao corpo materno que constituem a relação básica e primeira com a realidade. Assim, o simbolismo fundamenta a fantasia e a sublimação, uma vez que a equação simbólica permite que coisas, atividades e interesses convertam-se em temas de fantasias libidinais. É sobre o simbolismo que se constrói a relação do sujeito com a realidade. Do êxito com que o sujeito atravessa essa fase depende sua possibilidade de alcançar um mundo externo que corresponda à realidade.

Só a partir dessa realidade irreal, com a evolução do ego, é que se estabelece uma relação verdadeira com a realidade. Assim sendo, Klein (1930/1996) conclui que uma quantidade suficiente de ansiedade2 é base necessária para a formação de símbolos e fantasias. O desenvolvimento do ego e a relação com a realidade dependem, portanto, do grau de capacidade do ego para tolerar a pressão inicial da ansiedade.

 

2. Síntese do caso clínico relatado por Klein

2.1. História prévia ao tratamento

Aos quatro anos, a criança tinha vocabulário e desenvolvimento intelectual inferior a dois anos. Sem adaptação à realidade nem interação emocional, era indiferente à presença da baba ou da mãe, raramente manifestava ansiedade. Sem interesses, não brincava.

Dick apenas articulava sons ininteligíveis e repetia certos ruídos. Usava incorretamente seu vocabulário e era incapaz de se fazer entender. Demonstrando atitude negativa, fazia o contrário do que se pedia. Alterava palavras que a mãe ensinava, embora pudesse falá-las; se as repetia corretamente, era de modo mecânico e incessante. Na oposição ou obediência, não se percebia afeto ou compreensão.

Insensível à dor, ao se machucar, não demonstrava interesse em ser consolado. A "falta de jeito físico" impedia que segurasse facas ou tesouras, apesar de manejar normalmente a colher ao comer.

Quase morreu de inanição, porque não pegava o peito e foi alimentado artificialmente. Posteriormente recusava-se a mastigar, sendo preciso obrigá-lo a comer. Sofreu transtornos digestivos, prolapso anal e hemorroidas. Andou no tempo normal.

Era tratado com muitos cuidados, mas sem um verdadeiro amor. Sua mãe percebera que ele não era normal e isso deve ter afetado sua atitude com ele. Aos dois anos, outra ama e a avó foram muito carinhosas. Aprendeu a controlar as funções excretórias e demonstrava certo grau de brio. Aos quatro anos, manifestou receptividade a censuras (a ama o censurou por masturbar-se e isso deu origem a temores e sentimentos de culpa). Interessou-se em aprender mecanicamente palavras novas. Mesmo assim, não estabelecia contato emocional.

2.2. As sessões do tratamento analítico de Dick:

1ª sessão: Não manifesta emoção ao se afastar da ama; corre de um lado para o outro sem propósito e em volta da analista; movimentos falhos de coordenação, expressão fixa, ausente e de desinteresse. Apresenta grande angústia latente, pega e larga objetos sem brincar e refugia-se no canto da sala.

Klein mostra os brinquedos; Dick os olha sem interesse. Klein toma um trem grande, coloca-o junto a um menor e denomina-os: "trem do papai; trem de Dick". Dick pega o trem menor, roda-o até a janela e diz: "estação". Klein explica: "A estação é a mamãe, Dick está entrando na mamãe".

Dick larga o trem, corre até o espaço formado pelas portas externas e internas do aposento, fecha-se e diz: "escuro", e corre. Repete isso várias vezes. Klein explica: "É escuro dentro da mamãe. O Dick está dentro da mamãe escura".

Dick pega novamente o trem, mas corre para o espaço entre as portas, enquanto Klein diz que ele "está entrando na mamãe escura". Dick interroga: "babá? babá?", ao que ela responde: "a babá já vem".

2ª sessão: Dick corre direto do consultório para o hall de entrada escuro, coloca ali o trem Dick, insistindo em ficar ali com o trem. Pergunta repetidamente: "a babá vem?".

3ª sessão: Dick além de correr para o hall entre as portas, também se enfiou detrás da cômoda. Tomado de ansiedade, chama Klein pela primeira vez. Pergunta insistentemente pela babá. Começa a interessar-se pelas palavras reconfortantes, repetindo-as: "a babá já vem".

Pela primeira vez, observa os brinquedos com interesse, evidenciando uma tendência agressiva. Mostra uma carroça de carvão e diz: "cortar". Klein lhe dá uma tesoura. Dick procura arranhar os pedaços de madeira preta que representavam o carvão, mas não consegue segurar a tesoura; olha para Klein rapidamente. Klein responde a esse olhar, cortando os pedaços de madeira na carroça. Dick atira a carroça danificada e seu conteúdo, na gaveta e diz: "foi embora". Klein diz: "Isso significa que está tirando fezes do corpo de sua mãe. Dick corre para o hall de entrada e arranha um pouco as portas com as unhas, expressando que identificava o espaço entre as portas com a carroça e ambos com o corpo da mãe, que estava atacando. Regressou correndo e introduziu-se no armário. Ao final, Dick acolhe a babá prazerosamente.

4ª sessão: Dick chora quando a babá se retira e logo se acalma. Evitou o espaço entre as portas, o armário e o canto, mas se interessou pelos brinquedos, examinando-os. Empurra para o lado a carroça danificada que destroçara e seu conteúdo, cobrindo-os com outros brinquedos. Klein explica: "a carroça danificada representa sua mãe". A carroça e os pedaços de carvão soltos são levados por Dick ao espaço entre as portas.

Progressão da análise: Segundo Klein, ao atirar coisas, Dick expressava a expulsão do objeto danificado e do seu próprio sadismo, que era projetado no mundo exterior.

A bacia d'água simbolizava o corpo da sua mãe e Dick tinha muito medo de se molhar com água. Em sua fantasia, as matérias fecais, a urina e o pênis eram objetos com os quais podia atacar o corpo da mãe, representando, portanto, um perigo para si mesmo. Tais fantasias aumentavam seu temor do conteúdo do corpo da mãe, especialmente do pênis do seu pai, que ele imaginava estar dentro do útero dela. Durante a análise, esse pênis fantasiado foi identificado sob formas muito diversas, bem como um sentimento de agressividade cada vez maior contra ele, predominando desejos de comê-lo e destruí-lo. Por exemplo: Dick levou à boca um homenzinho e, rangendo os dentes, disse: "tea daddy", que significava "eat Daddy" ("comer papai").

A introjeção do pênis do pai estava associada a dois temores: temor do pênis como superego primitivo e agressivo e temor de ser punido pela mãe assim roubada, isto é, o medo do objeto externo e do objeto introjetado. Esse ponto evidenciou a fase genital precoce, pois tais representações foram seguidas pela ansiedade e remorso, pena e compensação. Por esse motivo, Dick tornava a depositar sobre o colo de Klein ou em suas mãos os homenzinhos, depois os guardava.

A atuação de reações provenientes do plano genital era o resultado do desenvolvimento prematuro do ego, todavia, só conseguia inibir o desenvolvimento ulterior do ego. Essa identificação inicial com o objeto não podia ser relacionada com a realidade. Por exemplo: Dick viu sobre o colo da psicanalista algumas aparas de madeira de lápis e disse: "pobre Sra. Klein". Em ocasião semelhante, disse, no mesmo tom de voz: "pobre cortina".

Lado a lado com sua incapacidade de tolerar angústia, essa prematura empatia tornou-se fator decisivo no afastamento de todo impulso destrutivo. Dick se isolou da realidade e imobilizou sua vida de fantasia, refugiando-se nas fantasias do corpo escuro e vazio da mãe. Assim, desviava sua atenção dos objetos do mundo externo que representavam o conteúdo do corpo de sua mãe. Por serem perigosos e agressivos, ele tinha que se desfazer do próprio pênis e de seus excrementos (ou negá-los).

2.3. O diagnóstico de Dick: um caso de inibição incomum no desenvolvimento do ego

Apesar de descartar a possibilidade de uma psiconeurose, contra o diagnóstico de demência precoce havia o fato de a principal característica ser a inibição do desenvolvimento da criança e não a regressão. Sem querer se comprometer com um diagnóstico, Klein faz algumas observações sobre a psicose na infância: ela é mais prevalente do que se imagina, há muitas dificuldades em diagnosticá-la, ela é confundida com o comportamento infantil. Entretanto, a psicanalista considera que a presença de traços psicóticos é mais comum do que a própria psicose que, sob circunstâncias desfavoráveis pode levar à patologia em estágio posterior. No caso de Dick mesmo que se possa situá-lo como uma esquizofrenia, desde que se amplie esse conceito, tratava-se de uma inibição do desenvolvimento e não uma regressão após um desenvolvimento inicial.

A excepcional inibição em seu desenvolvimento devia-se ao fracasso de suas etapas iniciais. O ego era totalmente incapaz de suportar ansiedade. A zona genital entrara em ação muito cedo, produzindo uma prematura e exagerada identificação ao objeto atacado, contribuindo para uma defesa igualmente prematura contra o sadismo. O ego parou de desenvolver a vida de fantasia e de estabelecer relação com a realidade. A formação de símbolos foi imobilizada.

As primeiras tentativas de formação de símbolos deixaram uma marca: um interesse isolado que não servia de base a novas sublimações, na medida em que apenas interessava-se pelos trens e estações ferroviárias, maçanetas de portas e portas, pelo movimento de abrir e fechar as portas. Tais interesses tinham uma única fonte: relacionavam-se à penetração do pênis no corpo materno. Portas e fechaduras representavam orifícios de entrada e saída do corpo materno e as maçanetas representavam o pênis do pai e o seu.

A imobilização da formação de símbolos relacionava-se ao temor do castigo quando penetrasse o corpo da mãe e à defesa contra os próprios impulsos destrutivos.

Dick era incapaz de agressão e a base disso foi indicada por sua recusa em mastigar alimentos. Aos quatro anos, era desajeitado, não manejava objetos (tesouras, facas e ferramentas). As defesas contra os impulsos sádicos dirigidos ao corpo da mãe (relativas às suas fantasias de coito) tiveram por consequência a cessação das fantasias e a parada na formação de símbolos. Seu desenvolvimento foi perturbado porque não podia viver, em fantasias, a relação sádica contra o corpo da mãe.

2.4. O método clínico

Segundo M. Klein (1930/1996), o obstáculo fundamental para estabelecer contato com Dick foi que nenhuma relação afetiva ou simbólica com os objetos estava colorida com fantasias, sendo impossível considerar esses atos como representações simbólicas. Mas foi possível chegar ao inconsciente de Dick através dos rudimentos da vida de fantasia e de formações simbólicas que apresentava. O resultado foi a diminuição da ansiedade latente, de modo que certa quantidade de ansiedade pôde manifestar-se.

A elaboração da referida angústia começava pelo estabelecimento de uma relação simbólica com as coisas e objetos, ao mesmo tempo em que seus impulsos epistemofílicos e agressivos se movimentavam. O progresso era seguido da liberação de novas quantidades de angústia e o levava a afastar-se das coisas com as quais já tinha relações afetivas e que, por isso, haviam se convertido em objetos de angústia. Ao afastar-se deles, dirigia-se para novos objetos, e esses se convertiam no alvo de seus impulsos agressivos e epistemofílicos.

Na medida do aumento de seus interesses, seu vocabulário se enriquecia, pois começava a demonstrar curiosidade pelas coisas em si e por seus nomes. As palavras eram agora aplicadas corretamente. Apareceu, assim, a relação de objeto que fazia falta. Sua atitude com a mãe, a ama e o pai tornou-se afetuosa e normal: deseja a presença, ressente-se quando eles não lhe dão atenção ou quando o deixam sozinho. Existe uma relação muito mais firme com os objetos. O desejo de ser compreendido está quase totalmente em atividade. Empenha-se em enriquecer seu vocabulário. Depois de seis meses de tratamento, seu prognóstico é favorável.

Klein (1930/1996) afirma que, em geral, não interpreta dados antes de eles se expressarem através de várias representações. Nesse caso em que não havia capacidade de expressão por meio de representações, foi necessário fazer interpretações na base do próprio conhecimento geral, já que as representações de Dick eram relativamente vagas. Por esse meio, o acesso a seu inconsciente foi atingido, podendo mobilizar a ansiedade e outros afetos. As representações tornaram-se mais completas e assim Klein afirma ter conseguido bases sólidas para a análise, passando paulatinamente à técnica usual.

Klein (1930/1996) também considera ter conseguido tornar manifesta a ansiedade, atenuando a que existia de modo latente. Depois, resolveu-a por meio da interpretação e ainda elaborou-a melhor, distribuindo-a sobre novas coisas e interesses, mitigando-a de tal modo que se tornou tolerável para o ego. Enfim, Klein (1930/1996) conclui que foi possível desenvolver tanto o ego quanto a libido, simplesmente pela análise dos conflitos inconscientes e sem que fosse necessário impor ao ego nenhuma influência educacional.

 

3. Apontamentos lacanianos sobre o caso

Vale notar outra possibilidade de leitura das manifestações de Dick, a partir das colocações de Jacques Lacan a respeito das intervenções de Melanie Klein na clínica com Dick. A teorização de Melanie Klein é de grande importância para Lacan, por estar fundada numa prática clínica. Apesar de não ter se ocupado da clínica com crianças, Lacan recorreu aos trabalhos daquela psicanalista em suas próprias elaborações. Vale lembrar que ele sustentava, sistematicamente, uma leitura crítica, apoiada na discussão da capacidade operatória de argumentos de seus contemporâneos.

Jacques Lacan (1953-54/1986) comenta as interpretações de Melanie Klein nos seguintes termos:

Melanie Klein enfia o simbolismo, com a maior brutalidade, no pequeno Dick! Ela começa jogando imediatamente em cima dele as interpretações maiores. Ela o joga numa verbalização brutal do mito edípico, quase tão revoltante para nós quanto para qualquer leitor. (...) Mas é certo que depois dessa intervenção alguma coisa se produz. Tudo está aí (p.83-84).

Esse comentário é fundamental para nos deslocarmos do problema a respeito do que se falou, e nos determos no fato de ela ter lhe falado. Ela ousa falar com ele, como diz Lacan (195354/1986): "Dick está lá como se ela não existisse, mas ela dá nomes ao que, para esse sujeito, só era, até então, realidade pura e simples" (p. 84).

Lacan (1953-54/1986) problematiza a função da fala como capaz de constituir a realidade a partir da articulação do simbólico ao imaginário:

Qual é a função da interpretação kleiniana, que se apresenta com um caráter de intrusão, de coisa posta sobre o sujeito? (...) ora, não será na medida em que, digamos, Melanie Klein fala, que algo se passa? (...) Todo o problema a partir de então é o da junção do simbólico e do imaginário na constituição do real (p. 86).

Para Lacan (1953-54/1986), essa equação simbólica da qual fala Melanie Klein nada mais é do que um jogo imaginário, próprio da relação em espelho. O grande problema de Dick é que o real e o imaginário são equivalentes: "essa criança é, até certo nível, mestre da linguagem, mas ela não fala. É um sujeito que está aí e que literalmente não responde. (...) A fala não chegou a ele. A linguagem não envolveu seu sistema imaginário" (p. 102 - grifos nossos).

A resposta de Dick à nomeação de Melanie Klein - "estação" - é o momento em que se esboça a junção da linguagem com o imaginário do sujeito. Para Lacan (1953-54/1986), Melanie Klein simbolizou uma relação efetiva de um ser, nomeado, com um outro. Assim, Dick pode verbalizar um primeiro apelo, falado. Este é o efeito da intervenção de Melanie Klein - ela produziu a possibilidade do apelo. E, no campo da fala, o apelo localiza o semelhante, intima-o a uma resposta e produz a possibilidade de recusa. É a partir dele que se estabelecem relações de dependência com o outro.

Utilizando as categorias de real (nesse momento da teorização lacaniana, referido à realidade efetivamente experimentada), simbólico e imaginário, Lacan (1953-54/1986) demonstra com o caso de Dick como é possível que um sujeito não esteja no real, mesmo dispondo dos elementos da linguagem e tendo a possibilidade de fazer deslocamentos imaginários. Por que não está? Nas palavras do psicanalista: "unicamente porque as coisas não vieram numa certa ordem. A figura no seu conjunto está perturbada. Não há meio de dar a esse conjunto o menor desenvolvimento. O olho do espelho esteve mau posicionado" (p. 105).

A partir da leitura de Lacan, destacamos, abaixo, em três tempos, o que se passou na posição de Dick:

O primeiro tempo refere-se à primeira sessão: diante da suposição de Klein de que ali havia um menino que poderia escutá-la, ao dirigir-lhe a palavra (trem do papai; trem de Dick), inicialmente Dick responde com a palavra "estação", ou seja, parece mostrar que notara alguém que lhe falara ali. Mas, diante da insistência dessa presença, Dick sai de cena, se subtrai ao encontro com o Outro. Parece não haver anteparo entre ele e o outro e, por isso mesmo, ele equivale ao objeto que só pode ausentar-se, diante dessa presença.

No segundo tempo, referente à segunda sessão (mas repetido ainda na terceira), pode-se notar uma diferença que não é contingencial. No mesmo lugar em que ele se escondeu na primeira sessão, ele coloca o trem que Klein nomeara com seu nome (Dick) e apela para a presença do outro que está ausente ("A babá já vem?"). Essa dimensão do apelo implica algo que não está e que pode estar, o par presença/ausência.

No Seminário 3, Lacan (1955-6/1988) afirma que "a realidade é marcada de saída pela aniquilação simbólica" (p.171), logo, todas as experiências humanas estariam marcadas pelo significante, não existiria uma condição de pura experiência. Já nos primeiros momentos de vida, o ser humano se encontra em um ritmo de sono, de tensão e apaziguamento, que permite com que, em algum momento, ele se despregue do dia:

O ser humano não está, como tudo nos leva a pensar que o animal está, simplesmente imerso em um fenômeno de alternância do dia e da noite. O ser humano põe o dia como tal, e com isso o dia vem à presença do dia - contra um fundo que não é um fundo de noite concreta, mas a ausência possível de dia, onde a noite se aloja, e inversamente aliás (Lacan, 1956/1988, p.172).

Dia e noite marcariam essa aniquilação simbólica, já seriam significantizados. Antes mesmo de a criança falar, ela já estaria imersa na ordem simbólica. Ao distinguir noite e dia, a criança percebe a presença do dia, não como simples fenômeno, "o dia enquanto dia implica a conotação simbólica, a alternância fundamental do vocal conotando presença e ausência, sobre a qual Freud faz girar toda a sua noção do além do princípio do prazer" (Lacan, 1956/1988, p.172-3). Na mesma perspectiva, no Seminário 6 (1958-9/2013), ao desdobrar seu grafo do desejo, Lacan esclarece ainda que:

[a mãe] é também aquela que dá a marca da articulação significante, e não somente na medida em que ela fala à criança... Todos os tipos de jogos da mãe, os jogos por exemplo de ocultação que tão rapidamente desencadeiam na criança o sorriso, até mesmo o rir, são propriamente falando, já uma ação simbólica no decurso do qual o que lhe é revelado, é justamente a função do símbolo como revelador. Ela lhe revela nesses jogos de ocultação, de fazer desaparecer alguma coisa ou no fazer reaparecer, o fazer desaparecer seu próprio rosto e fazê-lo reaparecer, ou a esconder a figura da criança ou a descobri-la: ela lhe revela a função reveladora. É já de uma função de segundo grau que se trata. É no interior disso que se fazem as primeiras identificações, ao que se chama, nesse caso, a mãe. (p.43, tradução nossa)

Qualificando Dick como uma criança "singularmente inibida" que está em impasse no campo do não demandável, Lacan (2013/1958-9, p.526) afirma que é a partir do momento que Klein fala com o garoto que ele consegue formular uma demanda ("a babá já vem?"). Imediatamente após essa cristalização da demanda, a criança vai estabelecer contato com seus objetos dos quais estava separada, fato considerado por Klein como decisivo.

No terceiro tempo, no final da terceira sessão, chama a atenção esse movimento de Dick de fazer desaparecerem da cena os pedacinhos de carvão cortados, comentando em seguida: "Lá se foi!". Nesse movimento, Dick inclui Melanie Klein, na medida em que pede que o carvão seja cortado. Novamente algo sai de cena, só que desta vez não ele, mas, sim, os objetos. No entanto, em seguida, Melanie Klein faz uma nova interpretação (está tirando as fezes do corpo da mãe), que provoca uma nova subtração de Dick da cena (corre entre as portas, arranha-as e se esconde no armário).

Atribuindo a Dick a condição de caso notório de Melanie Klein, Lacan (2013/1958-9) afirma que a criança "era muito bem introduzida como tal a essa relação do desejo com o significante" (p.510). Entretanto, no plano imaginário (gestual e comunicativo), o outro estava completamente suspenso. Para Lacan, esse caso demonstra que seguramente esta criança que não falava era muito acessível e sensível às intervenções faladas de Melanie Klein.

As únicas estruturas do mundo que são para ela acessíveis, sensíveis, manifestas, manifestantes desde os primeiros momentos com Melanie Klein, são estruturas que portam em si mesmas todos os caracteres da relação com a cadeia significante. Melanie Klein os designa para nós, é a pequena cadeia do trem, isto é, de algo que é constituído de um certo número de elementos enganchados uns aos outros; é uma porta que se abre ou se fecha - por assim dizer ... que é a forma mais simples da alternância sim ou não que condiciona o significante como tal, uma porta deve estar aberta ou fechada (p.510-511, itálicos do autor, tradução nossa).

A intervenção de Klein obtém da criança uma reação considerada, por Lacan (2013/1958-9), extraordinária, quase exemplar: "é ir situar-se (e está no texto) entre duas portas, entre a porta interior dos gabinetes e a porta exterior, num espaço escuro" (p.511). Recorrendo provavelmente ao espaço transicional definido por Winnicott (1975) Lacan, sem citá-lo, se surpreende com o fato de Melanie Klein, que tão bem viu os elementos da estrutura como os da introjeção e da expulsão, não ter considerado "o alcance desta zona que não é nem o exterior, nem o interior, articulada e construída, tão reduzida neste sujeito, mas o que se pode chamar..., a zona de terra de ninguém [no man's land],... onde ficou em pane o desejo do pequeno sujeito" (p.511).

O autor considera ser nesse ponto que intervém o eu (moi). Já suficientemente forte para organizar as resistências do sujeito (as construções neuróticas), para subsistir como desejo, abrigado do desejo do Outro. Essa organização implica a interposição de uma distância do Outro em que o sujeito se constitui seja como fóbico, histérico ou obsessivo.

Lacan localiza ainda a relação da criança com a tesoura, cujo manejo do corte permitirá "destacar um pequeno pedaço de carvão de alguma coisa que também não é mais sem significação, já que é um elemento de cadeia do trem com o qual se consegue fazer com que ele brinque. Nomeadamente, um tender." (p.527, tradução nossa). Vale lembrar que o termo tender refere-se ao vagão auxiliar da locomotiva a vapor em que se armazena o combustível e a água necessários ao abastecimento. O termo significa também terno, carinhoso e uma oferta para atender uma demanda evitando punição (Robert, 1991; Webster's, 1953).

 

4. Reler Melanie Klein com Jacques Lacan

É surpreendente o esforço de Melanie Klein para elaborar uma teoria sobre o funcionamento simbólico do sujeito, nos anos 30.

Com Lacan, é possível sustentar outra hipótese, enriquecendo a abordagem kleiniana: a de que o sistema que regula o funcionamento pulsional é o sistema da linguagem e, portanto, relativo à ordem de uma economia, e não de uma energia natural. Esse percurso, que implica um comércio sexual entre agente cuidador e neonato, não se faz sem o recurso ao estudo dos sistemas de troca - não de energias, mas de valores; não em homeostase, mas em diferença. Autores como Saussure, Lévi-Strauss e Marx se encontram nas bases desse novo pensamento, permitindo a Lacan fazer avançar a teoria psicanalítica como uma rede de conceitos próprios, a partir da releitura confrontativa com outros campos conceituais.

Nessa medida, cabe esclarecer que não se trata de negar a existência de um organismo vivo concreto na constituição de um sujeito (mesmo que ele possa existir apenas imaginariamente para um outro, como a gravidez histérica ou a função de um filho morto evidenciam), mas de discernir a maneira pela qual esse organismo sofre a ordem da linguagem, passando a funcionar sob o imperativo do registro simbólico (que a hipocondria, como sabemos a partir de Freud (2004/1914), demonstra perfeitamente).

Numa analogia entre a libido do corpo e a energia numa usina hidroelétrica, Lacan (195657/1995, p. 44-49) elucida essa questão do corpo atravessado pela linguagem. A despeito da queda de água estar presente na natureza, só a construção de uma usina permitirá a produção de energia. Comparando o termo freudiano Es (id, isso) com uma cachoeira, o psicanalista situa que o Es é aquilo que no sujeito é susceptível de tornar-se Eu, tal como a cachoeira é susceptível de produzir energia. Ele ressalta, entretanto, que isso depende de haver a intermediação da mensagem do Outro, tal como a necessária construção da usina para produzir energia. Portanto, para advir um sujeito, é necessário que o sistema psíquico seja imerso no sistema simbólico.

4.1. A extensão simbólica em Lacan

Para que possamos nos aproximar da dimensão aberta por Lacan, vale relembrar rapidamente alguns princípios que estão nas bases da perspectiva kleiniana: a identificação, precursora do simbolismo, que surge de a criança tentar reencontrar em todos os objetos seus próprios órgãos e funções; e a equação simbólica, em que a semelhança de prazer ou interesse equipara coisas completamente diferentes. Remontando a equação simbólica a Freud (1917/1991), lemos que: "estes elementos amiúde são tratados no inconsciente como se fossem equivalentes entre si e pudessem substituir sem reparo uns pelos outros" (p. 118).

Diferentemente de Klein, mas também orientado pela interrogação de como o simbólico implanta-se no corpo, Lacan (1955-6/1988) encontrará em Saussure e Jakobson as balizas essenciais para efetivamente operar o discernimento da função do simbólico no sujeito. Lacan (1955-6/1988) problematiza o que significa o símbolo em seu papel de significante e a função original e iniciadora, na vida humana, da existência do símbolo. Ele tece seus argumentos considerando a ordem primordial de significante, a sintaxe. Afinal, o discursivo não se reduz à significação, mas é alinhamento de significantes.

A dimensão de similaridade no uso significativo da linguagem impressiona tanto que domina a apreensão do jogo do simbolismo, mascarando a existência da dimensão sintática (no entanto, qualquer frase perderia todo sentido se baralhássemos as palavras em sua ordem). Portanto, o que se exprime na metáfora supõe a similaridade, mas esta é manifestada unicamente pela posição de um termo na frase. Lacan (19556/1988) visa superar o equívoco da concepção de simbolismo em psicanálise, que negligencia a organização, ou seja, a contiguidade, o alinhamento, a coordenação sintática dos elementos da linguagem. Tal equívoco limitou a uma única dimensão a investigação psicanalítica que se restringiu ao significado.

Os argumentos de Lacan (1955-6/1988) enunciam uma crítica a Melanie Klein (e a Jones), quando eles insistem em dizer que a investigação analítica concerniu ao estudo da identificação e do simbolismo, mas situou apenas a similaridade metafórica das palavras isoladamente, negligenciando a articulação e a contiguidade, que esboçam o inicial e o estruturante na noção de causalidade. Por isso, coube-lhe distinguir a forma retórica que se opõe à metáfora: a metonímia. Esta concerne à substituição de alguma coisa que se trata de nomear: nomeia-se uma coisa por outra que é o seu continente, ou a parte, ou o que está em conexão com ela. A oposição da metáfora e da metonímia é fundamental, pois o que Freud (1972/1900) chama de condensação é o que se chama em retórica a metáfora, o que ele chama de deslocamento é a metonímia. Por isso, a existência lexical estruturada do conjunto do aparelho significante é determinante para os fenômenos presentes na neurose: a articulação de significantes é o instrumento com o qual se exprime o significado desaparecido. Mais ainda, na psicose, estes jogos de significantes ocupam o sujeito inteiramente. É a partir da relação do sujeito com o significante e com o outro (nos diferentes estágios da alteridade imaginária e simbólica), que poderemos articular essa intrusão, esta progressiva ocupação psicológica do significante que se chama psicose (Lacan, 1955-6/1988).

Lacan (1955-6/1988) esclarece que a oposição do significante e do significado não é um mero substituto da oposição da ideia (ou do pensamento) e da palavra. A metáfora tem vida constante nas transferências de significado, sempre numa relação dialética. Não se trata da noção de expressão, em que aquilo a que se refere é expresso pela palavra, considerada como etiqueta. A metáfora é surpreendente e problemática: a linguagem tem seu ponto máximo de eficácia quando ela consegue dizer alguma coisa dizendo outra. A noção ingênua gostaria que houvesse superposição, decalque da ordem das coisas à ordem das palavras. Um primeiro passo para ultrapassar esse limite foi dado pelos linguistas, ao dizerem que o significado nunca atinge seu fim senão por intermédio de um outro significado, remetendo a uma outra significação. Mas, salienta Lacan (1955-6/1988), é preciso dar um segundo passo, perceber que, sem a estruturação do significante, nenhuma transferência de sentido seria possível. Enfim, o princípio e a virtude metafórica não é a transposição da significação, uma nomeação indireta (que seria apenas metonímica). A virtude metafórica é que um termo é posto em posição outra na proposição.

Esse fenômeno de significantes, que aparece no plano gramatical como característico do vínculo posicional, encontra-se em todos os níveis para instaurar a coexistência sincrônica dos termos. A locução verbal é sua forma mais elevada. A palavra está num nível mais baixo. Se a independência da palavra se manifesta sob certos ângulos, ela não pode ser considerada como unidade da linguagem, embora constitua forma elementar privilegiada. Em uum nível ainda inferior, temos as oposições ou pares fonemáticos, que caracterizam o último elemento radical de distinção entre uma língua e outra. Em cada língua há oposições que outra língua não reconhece. Essa ligação de oposição é essencial à função da linguagem. Ela deve ser distinguida do vínculo de similaridade, implicado no funcionamento da linguagem, ligado à possibilidade indefinida da função de substituição, a qual só é concebível no fundamento da relação posicional.

A metáfora surge porque comporta um sentido, mas, antes de mais nada, a metáfora é sustentada por uma articulação posicional. O importante não é que a similaridade seja sustentada pelo significado, mas que a transferência do significado é possível devido à própria estrutura da linguagem.

Para Lacan (1955-6/1988), a ordem da dita aquisição da linguagem, pela criança, não é a que se permitiria definir por meio de um elemento inicial do estoque verbal. A diversidade com que a linguagem incide num sujeito é incomensurável, não se a pega por uma extremidade qualquer, mas, para que ela nasça, na fala de um sujeito, ela só pode ser tomada em seu conjunto. Para isso, é preciso que ela comece a ser tomada pela ponta do significante.

Só tendo por base a articulação metonímica da coordenação significante como dominante, as transferências de significado podem se produzir.

No que diz respeito às psicoses, é necessário, para Lacan, a partir dessas distinções entre metáfora e metonímia, interrogar a questão da repercussão na função da linguagem de toda perturbação da relação com o outro. É apenas com a promoção da função do significante, que permite a emergência dessa subestrutura sempre escondida - a metonímia -, que se pode investigar os distúrbios funcionais da linguagem na neurose e na psicose.

Vale lembrar que a diferença mais contundente entre Lacan e Klein relaciona-se à consideração de um referente exterior à linguagem, que estabeleceria correspondência biunívoca entre seus termos e as coisas do mundo.

Lacan (1953-54/1986,) diz que a criança, até certo nível é mestre da linguagem, apesar de não falar; enquanto Klein (1930/1996) relata que a mãe de Dick testemunha que ele não tinha vontade de falar, fazendo o oposto daquilo que se esperava dele:

Por exemplo, quando ela conseguia fazer com que o menino repetisse depois dela algumas palavras diferentes, ele muitas vezes as alterava completamente, apesar de pronunciá-las perfeitamente em outras ocasiões. Outras vezes, ele pronunciava as palavras corretamente, mas continuava a repeti-las sem parar, mecanicamente, até todos a sua volta simplesmente não aguentarem mais (p.253-4).

Se esse modo de desafiar difere daquele da criança neurótica, como atesta Klein (1930/1996), vale considerar que havia nele certo trabalho com a linguagem, na medida em que se servia de elementos da linguagem para mobilizar o semelhante, mesmo que tal trabalho não desembocasse numa argumentação típica.

4.2. Klein com Lacan

Se Melanie Klein pode apreender as equações que fazem equivalência entre os termos e as equações de reciprocidade entre sujeito e objeto, apontando a precocidade com que o sujeito transita no campo simbólico, tal apreensão limita-se, no entanto, ao que Saussure nos ensinou a chamar de signo. Escapa a Klein que a articulação entre termos, entre significantes, entre unidades do discurso só acontece numa sintaxe que indica tal correlação e que esta é transmitida na linguagem. É essa sintaxe que ela implanta em Dick, permitindo assim seu funcionamento no campo da linguagem. Como diz Lacan, ela lhe fala.

O problema teórico daí decorrente é que Melanie Klein toma tal sintaxe como verdade, de modo que qualquer manifestação da criança pode ser lida, por ela, como representação de seus próprios mitos, ou o que Freud (1905/2006) nos ensinou a chamar de Teoria Sexual Infantil, que persiste na sintaxe do discurso de qualquer sujeito. No que se refere a muitos casos de crianças em constituição, sob efeito de graves psicopatologias, talvez isso não traga impedimentos clínicos, como a prática clínica de Melanie Klein demonstrou. Talvez porque, independentemente da consistência de sentido de suas articulações metafóricas, ao supor como previamente dada uma lógica articuladora do discurso lúdico/motor de uma criança, Klein supõe ali um sujeito, antecipando um que ainda não há, o que é condição fundamental para ali haver um.

Um organismo só se torna ser falante ao ser dito de outro lugar (Lacan, 1970). Klein nos oferece um exemplo da linguagem maternante, ou seja, aquela com a qual o agente materno transmite a língua, antes do recalque secundário, porque restrita ao que ata mãe e filho, deixando-o exposto à onipotência materna.

Interessa, ainda, notar que, grosso modo, o que ela chama corpo materno (incluindo-se aí o próprio corpo da criança, já que é a mãe que o domina) que a criança quer (e teme) penetrar e destruir sadicamente em suas fantasias de coito, bem poderia ser dito corpo simbólico ou, mais precisamente, campo da linguagem. Afinal, submetido necessariamente à linguagem, e tendo que aparelhar-se com ela sem que esta jamais se ofereça plena, não é de se estranhar que o infans entre em angústia, não porque tema seu sadismo ou o objeto de tal sadismo, mas porque, antes deste, falta a sua mãe e a ele mesmo o significante que permitiria seu emparelhamento (Lacan, 1992/1969-70).

Ao dizer que a angústia é o primeiro afeto, Lacan se aproxima de Klein. Só que, para ele, a angústia não é uma consequência, mas a causa do afeto, no corpo, dessa hiância que nos faz seres falantes sem reciprocidades - e é nesse sentido que Lacan (1962-3/2005) afirma que a angústia pode ao mesmo tempo não ter objeto e mesmo assim não ser sem objeto.

Por isso, podemos pensar que a teoria de Klein faz da pulsão um mito do movimento circular e recíproco, sem o seu terceiro tempo verbal reflexivo, relativo ao fazer-se, como explicitou Lacan em seu Seminário 11, de 1964.

Nessa perspectiva de Klein, a criança encontraria, por fim, uma realidade plena, com base nessas equivalências especularizadas entre os objetos.

Para Melanie Klein (1930/1996), a individualização é uma condição de separação inata que precede o próprio ego e que causaria, através do símbolo, ou melhor, dos signos, a alienação à realidade.

Por isso, não há incomensurabilidade entre mundo externo e mundo interno, que encontrariam sua correspondência ideal, desde que os signos filtrem a quantidade de angústia a ser liberada. Nessa perspectiva, o símbolo seria uma espécie de dosímetro que permite ao infans regular sua energia, de modo que essa energia possa produzir outros símbolos. Essa ideia não é de todo estranha à concepção de linguagem que se pode depreender da perspectiva lacaniana, na medida em que a discretização da língua na fala modaliza, dirige e organiza a relação do sujeito com o campo simbólico, recrutando a interceptação do fluxo de ar e o engaste da articulação muscular que permite todo o funcionamento pulsional da fala.

Klein (1930/1996) não apreendeu que aquilo que ela chamava de "paupérrimo vocabulário" (p. 253) articulou uma sintaxe, fizeram-se elementos de ligação - pontes verbais, como diz Freud (1901/1991) -, porque articulou um texto, constituiu um discurso. Ela considerou apenas os elementos pontuais em sua correspondência termo-a-termo numa relação de equiparação.

Para nos restringir ao caso Dick, evitamos nos estender sobre muitos outros aspectos da perspectiva de Jacques Lacan, exteriores ao período em que ele comenta o caso Dick. Afinal, quase toda sua obra será votada ao esforço de reelaborar o tema do funcionamento da linguagem no sujeito, explicitando como o sujeito se produz na relação de representação entre um significante e outro significante, no empenho de balizar aquilo que escande a cadeia significante da fala em gestos, atos, ritmos diversos interrompidos, escrevendo o que escapa ao simbólico e que insiste - e só é apreensível por meio dele - ou seja, o real, lalangue e o gozo. Para isso, o psicanalista retomará, várias vezes, a noção de valor inscrito na cadeia significante da fala por via da metáfora e da metonímia, ou seja, o valor produzido na fala e na língua, sejam eles estabelecidos, desviantes, imprevistos ou antecipáveis na cadeia significante. Mas, além disso, ele retomará da antropologia de Mauss e Lévi-Strauss o valor de Dom e, da economia política de Marx, o valor de troca e o valor de uso, que permitem apontar as singularidades da elaboração da sintaxe no discurso de um sujeito, por meio da constelação constritiva de letras que lhe permitem uma direção e muitos sentidos.

 

5. Considerações finais

Ao reapresentar um caso clínico de M. Klein bem como os comentários sobre ele elaborados por J. Lacan, consideramos a incidência do impacto da prática clínica na psicanálise. Assim transpusemos o relato de uma prática justificada por seus alicerces teóricos para, em seguida, expôla a outra possibilidade de leitura.

Assim, o esforço desse artigo é o de recuperar a importância do caso clinico em psicanálise na medida em que este é o lócus privilegiado para fazer trabalhar elementos teóricos que partem das elaborações de Freud e podem ser privilegiados segundo pontos de vista distintos, conforme vimos em Klein e Lacan. Repetimos aqui o gesto lacaniano de privilegiar a clínica para interrogar a teoria, o que, por sua vez, justifica o movimento freudiano. Afinal, foi ao tomar a manifestação do paciente como passível de conter outras significações além daquela estabelecida por uma medicina de sua época, que Freud a considerou como um enigma a ser investigado.

Da mesma forma, consideramos que a leitura empreendida por Lacan, contando com argumentos de outras fontes teóricas, deu maior visibilidade a uma técnica originada por Klein e reconstruiu a concepção de simbolismo ampliando seu alcance teórico e clínico.

 

Referências

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Recebido em: 07/05/14
Aceito em: 10/06/14

 

 

1 Contato: marcelareda@gmail.com
2 Os termos ansiedade e angústia são utilizados no texto (ou na tradução) sem distinção conceitual. Foram mantidos, aqui, nas posições em que aparecem no artigo.