Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.8 no.2 Juiz de fora dez. 2015
ARTIGOS
A experiência da Psicologia no NASF: capturas, embates e invenções1
The experience of Psychology in NASF: captures, clashes and inventions
Ana Carolina Perrella2
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil
RESUMO
O presente artigo busca compartilhar a experiência da autora como psicóloga de um Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), em um município de pequeno porte, no interior da Bahia. Buscou-se compreender a intervenção do psicólogo, naquele serviço, a partir de uma análise do processo de trabalho das equipes (NASF e Saúde da Família). Percebeu-se que diversos aspectos produziram interferências na atuação do psicólogo, provocando também efeitos nos modos de vida da população.
Palavras-chave: Saúde da Família, Núcleo de Apoio à Saúde da Família, Atuação do Psicólogo.
ABSTRACT
This article seeks to share the experience of the author as a NASF (Support Center for Family Health) psychologist in a small city, in Bahia. The author sought to understand the intervention of the psychologist in that service, from an analysis of team work (NASF and Family Health). It was noticed that several aspects produced interference in the psychologist's performance, also causing effects on the livelihoods of the population.
Keywords: Family Health, Support Center for Family Health, Role of the Psychologist.
Importa salientar que o NASF não possui uma estrutura física própria por ser um programa que atua complementando as atividades da Atenção Básica. Por isso, suas ações são desenvolvidas no espaço físico das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e também na área de abrangência das equipes Saúde da Família (SF). Pode-se afirmar, então, que o NASF não se constitui porta de entrada da Atenção Básica para os usuários, visto que é um apoio especializado às equipes SF, nem tampouco pode ser confundido com o serviço ambulatorial e hospitalar.
As ações do NASF são desenvolvidas por uma equipe multiprofissional, composta por profissionais de diferentes áreas ou especialidades, de maneira integrada e apoiando os integrantes da Estratégia Saúde da Família (ESF). Tal apoio se efetiva a partir do compartilhamento de práticas e saberes em saúde, buscando auxiliá-los na resolução de problemas clínicos e sanitários, ampliando assim, a abrangência de ações das UBS e a articulação destas últimas com outros pontos de atenção da rede.
O processo de trabalho do NASF deverá ser criado juntamente com as equipes de SF, priorizando as seguintes atividades: atendimento compartilhado (domiciliar ou individual), podendo ser realizado por um ou mais profissional do NASF e, no mínimo, um membro da equipe vinculada; intervenções específicas do NASF com usuários e/ou famílias encaminhadas pelos profissionais da ESF, como também com as próprias equipes desta última; ações comuns na área de cobertura da ESF, articuladas com as equipes SF e com outros setores públicos (Brasil, 2009, 2014).
Para a execução de suas diretrizes, o NASF se sustenta, principalmente, em três propostas articuladas de trabalho: o apoio matricial, a clínica ampliada e o projeto terapêutico singular. A primeira proposta consiste na integração do núcleo apoiador à equipe de referência, no caso, do NASF com a equipe de saúde da família, mediante o "compartilhamento de problemas, da troca de saberes e práticas entre os diversos profissionais e da articulação pactuada de intervenções" (Brasil, 2014, p. 13). Além de operar em uma relação horizontal, o apoio matricial perpassa as duas dimensões de trabalho citadas anteriormente, a assistencial e a técnico - pedagógica.
Para entender a segunda proposta é preciso colocar em relevo, primeiramente, a maneira como compreendemos a noção de clínica. Isto porque, ao nos referirmos a este conceito não pretendemos reduzilo à psicoterapia, pois esta é apenas uma modalidade de atuação clínica, específica dos psicólogos e/ou psiquiatras, dentre várias outras possibilidades. O que propomos aqui é uma abertura da clínica, sendo esta entendida como um exercício ético-político, independente do âmbito em que se realiza. Nessa direção, ela é ética no sentido de estar a serviço da vida em sua potência criadora e, isso inclui, um posicionamento crítico constante sobre o nosso fazer, entendendo este não como uma ação neutra, mas sim como uma atividade que produz efeitos nos modos de ser e estar no mundo e, por conseguinte, ela é também política.
Tal perspectiva é defendida e utilizada na saúde pública, porém, sendo designada como clínica ampliada. Esta proposta engloba alguns eixos fundamentais, entre os quais merecem destaque: a articulação entre os diferentes saberes e campos de atuação; a compreensão ampliada do processo saúde-doença; a construção compartilhada dos diagnósticos e terapêuticas; a modificação dos instrumentos de trabalho, privilegiando a criação de dispositivos de gestão que favoreçam a comunicação transversal na equipe e entres equipes. Trata-se, então, de um modo de operar que busca produzir deslocamentos no cuidado tradicional em saúde, rompendo assim com uma prática curativista, individualizada e verticalizada (Brasil, 2009).
A terceira proposta é o Projeto Terapêutico Singular (PTS), que consiste em um conjunto de ações terapêuticas articuladas, destinadas a um sujeito individual ou coletivo, construído a partir de uma discussão de equipe, podendo esta ser apoiada pela equipe NASF. Geralmente, tal procedimento é destinado a situações mais complexas, que necessitam de uma maior atenção das equipes (Brasil, 2014).
O PTS pode trazer algo novo para o processo de trabalho em saúde pelo fato de ser uma construção compartilhada entre os profissionais e o próprio usuário. Este é convidado a participar do processo, discutindo e negociando as ações e metas pactuadas pela equipe. Deste modo, o respeito à singularidade do sujeito, a corresponsabilidade dos profissionais, a construção de vínculos equipe e usuário, a participação deste último na construção do PTS são aspectos fundamentais nesse processo.
O processo de trabalho do NASF: capturas, embates e invenções
Conforme já dito no início do artigo, a inserção da psicóloga em uma equipe NASF 13, no sudoeste da Bahia, aconteceu em junho de 2013 e se estendeu até meados do ano seguinte. Neste período, tal equipe era composta por um coordenador, com formação em psicologia, cuja carga horária era de quarenta horas semanais, um nutricionista e um farmacêutico, ambos com carga horária semanal de quarenta horas, um assistente social com vinte horas semanais, e dois educadores físicos, os quais intercalavam seus horários de trabalho, totalizando a carga horária de quarenta horas semanais. Sobre esse aspecto, a portaria nº 3.124, preconiza que a soma das cargas horárias semanais dos profissionais da equipe NASF, modalidade 1, deve acumular no mínimo 200 (duzentas) horas semanais. Isso demonstra que durante algum tempo o grupo referido atuou sem atingir a carga horária mínima sugerida pelo documento mencionado. Importa mencionar que a composição dos NASF4 é definida pelos gestores municipais, variando de acordo com as necessidades do território (Brasil, 2008). No núcleo pesquisado, o gestor municipal da saúde optou pela escolha dos profissionais supracitados.
O NASF acompanhado está vinculado, até o presente momento, a oito equipes de saúde da família, sendo estas compostas por profissionais diversos, quais sejam, médico generalista, enfermeiro, auxiliar e/ou técnico de enfermagem, agentes comunitários de saúde (ACS). Essas equipes contam ainda com um cirurgião-dentista e um técnico em saúde bucal.
No que concerne à inserção do psicólogo, cabe ressaltar que a sua chegada era muito esperada por ambas as equipes de trabalho (NASF/SF), pois estas ficaram quase um ano sem a atuação daquele profissional em grande parte das suas intervenções. Isto porque, quando o NASF foi implantado no município o grupo contava com a presença de um psicólogo, mas logo após dois meses de funcionamento do serviço ele aceitou o convite do gestor da saúde em assumir a coordenação do programa, envolvendo-se apenas com as questões administrativas e burocráticas.
Com isso, havia uma demanda reprimida para o psicólogo e este ao se inserir no NASF encontrou bastante dificuldade, em especial, na organização do trabalho, visto que a prática do cuidado na atenção básica ainda é pautada por formas hegemônicas e tradicionais, fazendo prevalecer à lógica do consultismo no cotidiano da assistência em saúde. Percebemos que o desejo da maioria dos profissionais das equipes ESF era que o psicólogo estabelecesse uma agenda de horários para atender individualmente os usuários que apresentavam sofrimento psíquico. Vale enfatizar que a metodologia do NASF prioriza a realização de intervenções inter-disciplinares, sendo assim os atendimentos individuais e específicos, realizados apenas por um componente daquele programa, devem ocorrer somente em situações extremamente necessárias (Brasil, 2009).
Tal fato coloca em relevo o que muito se tem discutido no âmbito das políticas públicas, principalmente na saúde coletiva, que diz sobre a preponderância ainda hoje de uma prática clínica tradicional, de caráter individual privatista. Isso acarreta na inscrição de modos individualizados e despolitizados no cuidado em saúde, conforme Barros e Neves (2014). Contudo, estas últimas acrescentam que, a discussão sobre os modos de operar da psicologia não se encerra com a substituição do atendimento individual pelo atendimento grupal, uma vez que não se trata de sobrepor o social ao individual, e vice-versa, nem de pensar que existem aspectos meramente sociais e outros meramente psicológicos, ou ainda de conceber a clínica dissociada da política. O que as autoras citadas propõem é o rompimento não só dessas dicotomias, mas também das fronteiras entre os saberes, o que implica colocar em análise os modos de intervir tradicionalmente instituídos pelo psicólogo em seus campos de atuação.
Deste modo, compartilhamos com Benevides (2005, p. 24) ao dizer que o fazer do psicólogo é uma "ação política, ação sobre a polis, ação sobre os processos de constituição da cidade". Mas, como o psicólogo pode produzir uma clínica, na saúde pública, que se fundamenta em um exercício ético-político, conforme mencionado anteriormente? Como a nossa intenção aqui não é a de construir um manual de conduta àquele profissional, aproximamo-nos mais uma vez do pensamento de Benevides (2005) pelo fato de nos oferecer pistas sobre a relação entre a psicologia e o Sistema Único de Saúde (SUS). Para a autora, a contribuição da psicologia neste âmbito envolve a articulação de três princípios, a saber: inseparabilidade (processos de subjetivação são engendrados por aspectos sociais, midiáticos, históricos, econômicos, num plano coletivo, não havendo a supremacia de nenhum deles); autonomia e corresponsabilidade (ações comprometidas com as condições de vida da população atendida e implicadas na produção do protagonismo dos sujeitos envolvidos); transversalidade (intercessão da psicologia com os outros saberes, pois é na relação entre os diversos campos do conhecimento que a invenção acontece).
Embora tais princípios orientem a intervenção do psicólogo, Benevides (2005) salienta que eles precisam se materializar nas atividades cotidianas das equipes de saúde, caso contrário, perdem sua efetividade. Sobre as práticas de saúde, a autora indica algumas ações potentes, como a criação de redes e de dispositivos de cogestão, o investimento em projetos que aumentem o grau de protagonismo social e o índice de transversalidade, etc.
Seguindo a discussão sobre a inserção do psicólogo no NASF acompanhado, um outro ponto relevante a ser destacado refere-se à dificuldade dos profissionais, que compunham as equipes de apoio e de referência, em trabalhar de forma integrada e articulada, compartilhando saberes e práticas. Observamos que a separação entre as diversas áreas de conhecimento acompanha o dia a dia dos trabalhadores da saúde, comprometendo deste modo a proposta da clínica ampliada. A título de exemplo, podemos citar uma situação recorrente no cotidiano do serviço supracitado, qual seja, se algum usuário relatasse tristeza ou outro tipo de sofrimento, logo, ele deveria ser encaminhado para o psicólogo. Nesse cenário, a escuta daquela pessoa tornava-se algo exclusivo e propriedade deste especialista. Ainda que a escuta terapêutica seja um dos instrumentos de trabalho do psicólogo, ela não se limita a este instrumento, pois a nosso ver tal prática diz mais sobre uma postura ética diante do outro, seja qual for a formação do profissional envolvido nessa relação, do que uma habilidade restrita àquele.
Outra questão interessante observada logo após a entrada do psicólogo no NASF concerne à falta de entrosamento e articulação entre os profissionais daquele e das equipes SF. Ficou evidente que grande parte dos trabalhadores que compunham estas últimas encontrava-se, naquele momento, resistente e até desacreditada no fazer do NASF e isso refletia nitidamente no trabalho cotidiano das equipes. Para ilustrar esse aspecto, mencionaremos o desenrolar das reuniões periódicas de matriciamento, entre as equipes NASF e ESF, com o objetivo de problematizar, planejar e executar ações conjuntas, englobando discussões de casos e temas (Brasil, 2014). Nessas reuniões, notamos que muitas das equipes ESF não levavam casos para serem discutidos, além da ausência de muitos profissionais, especialmente a dos médicos e de alguns agentes comunitários de saúde, e da falta de integração e comunicação entre as equipes. Recorrentemente escutávamos dos ACS algumas falas que sinalizavam tal problemática, a saber: "o NASF não resolveu o 'caso' trazido para a discussão de equipe"; "Essas reuniões não servem para coisa alguma"; "o NASF não funciona".
Importa lembrar que um caso quando discutido em reunião de equipe NASF/ESF, envolvendo o cuidado de um usuário e/ou de uma família em questão, torna-se uma responsabilidade de todos os envolvidos no processo, não sendo então uma ação que compete exclusivamente ao NASF. Trabalhar com a construção do Projeto Terapêutico Singular (PTS) nos espaços coletivos de discussão é interessante nesse sentido, pois durante a sua elaboração são definidas as responsabilidades de cada um (usuário e equipe SF/ NASF), podendo haver então uma maior articulação entre as equipes vinculadas e entre estas e os próprios usuários.
Notamos, por conseguinte, que em nosso cotidiano de trabalho raros foram os momentos em que os profissionais do NASF lançaram mão de tal estratégia. Percebemos também, que neste grupo muito se falava sobre o PTS, mas a dificuldade de inseri-lo e de manejá-lo nas discussões em equipe (SF e NASF), sem burocratizar a condução dos casos, foi bem maior. Podemos afirmar que, somente após quase dois anos de existência do núcleo, a equipe começou a compreender de fato o significado e a relevância daquele instrumento na produção das ações em saúde, numa tentativa de produzir deslocamentos nos modos de trabalho das equipes.
Oliveira (2010) comenta sobre as armadilhas existentes, e um tanto perigosas, na realização do PTS. A primeira delas concerne no reconhecimento de uma situação problema. Ou seja, muitas vezes a equipe de saúde assume o lugar de detentora do saber científico e ao detectar e legitimar os problemas de saúde dita os modos de enfrentamento destes, a partir, exclusivamente, do seu olhar e do seu saber. Dessa forma, a equipe em um movimento unidirecional desconsidera os desejos e interesses do usuário envolvido, negando então a sua capacidade de interferir na sua relação com a vida e com a doença. Isso produz no usuário movimentos ora de resistência ora de submissão. Em outras palavras, o usuário ao não aderir o tratamento proposto pela equipe acaba sendo visto e rotulado por esta, muitas vezes, como resistente e descompromissado em relação ao seu processo terapêutico. Ou então, quando adere ao tratamento, sem participar da construção desse processo, acaba se tornando submisso, dificultando desta forma a produção de autonomia.
A segunda armadilha concerne na utilização do PTS mais com uma finalidade burocrática do que com a produção de novos contextos. Sobre esse ponto, Oliveira (2010) esclarece que os profissionais dos serviços de saúde, incentivados por políticas de produtividade, têm tornado suas práticas de planejamento, muitas vezes, burocráticas, endurecidas e pouco participativas. Sob esse prisma, temos o desenvolvimento de ações fragmentadas, imediatistas e isoladas, distante da realidade dos usuários, cuja ênfase recai no aspecto quantitativo do trabalho em detrimento do qualitativo, e por isso dificilmente contribua para a produção de práticas inventivas. O engessamento da agenda de trabalhos das equipes SF foi algo observado em nosso cotidiano, produzindo certo desconforto e incômodo nos componentes do NASF.
Dessa maneira, a utilização do projeto terapêutico singular, como também de outros instrumentos que compõem o arsenal teóricometodológico dos profissionais da saúde, em especial do NASF, não nos dá a garantia de modificações nos processos de trabalho em saúde. Nas palavras de Ferreira Neto (2011, p.15), "alterar, instituir novas práticas, mesmo sendo inevitável, não garante avanços inexoráveis". Pelo contrário, pode apenas apontar para as mudanças produzidas nos regimes discursivos das políticas de saúde, mas não nos seus modos de trabalho. Podemos ter, assim, "novos" discursos e tecnologias encobrindo "velhas" práticas. Nesta direção, Sundfeld (2010, p. 1094) comenta que "a reforma da assistência pressupõe a reforma do pensamento de seus atores: profissionais e comunidade e, sobretudo, um sim às incertezas e inventividade do cotidiano".
Retomando a discussão sobre os modos das equipes (NASF e ESF) se relacionarem sobressai a necessidade de se criar, frequentemente, um espaço de escuta e de reflexão dos profissionais, que compõem as unidades saúde da família, para assim compreender melhor suas decepções e suas insatisfações em relação ao processo de trabalho das equipes citadas, além de auxiliá-los no entendimento das diretrizes e metodologia do NASF, buscando deste modo fomentar a instauração do diálogo e do trabalho conjunto. Notamos que para os componentes da equipe de apoio esses momentos sempre foram difíceis de vivenciar e por isso quase não aconteciam. Isto porque, problematizar o cotidiano das equipes e serviços não é uma tarefa fácil, pois coloca em evidência nossas dificuldades e fragilidades, mobilizando assim afetos, exigindo de nós sensibilidade para escutar o outro e a si mesmo. Ao mesmo tempo, tal problematização pode provocar desestabilizações entre as equipes de trabalho, desestabilizações estas capazes de produzir rupturas nas condutas engessadas e automatizadas, dando lugar a novas possibilidades de intervenção. Nessa direção, corroboramos com Machado e Lavrador (2009, p. 518) quando defendem uma clínica que coloca em análise "as nossas posturas, as nossas concepções, os nossos preconceitos, os nossos endurecimentos [...] e a própria instituição clínica".
Aventuramo-nos, assim, em formular algumas hipóteses em relação às dificuldades e impasses surgidos no trabalho das equipes supracitadas. A nosso ver, os tensionamentos cotidianos são frutos de um processo, não podendo entendê-los separadamente dos diversos elementos que compõe a trajetória grupal do NASF pesquisado. A primeira hipótese concerne à forma como o NASF foi implantado no município baiano. Ora, mesmo não participando desse momento inicial arriscamo-nos em compartilhar algumas ideias suscitadas mediante a nossa inserção no programa. A implantação deste ocorreu sem haver nenhuma preparação prévia dos técnicos para o trabalho do NASF, sendo este programa uma política de saúde recente, além de inovadora no campo da atenção básica. Podemos dizer que os integrantes do NASF, com exceção de um componente do grupo, iniciaram suas atividades em cinco equipes da saúde da família sem de fato conhecerem a proposta daquele serviço e ainda sem terem alguma vivência nas políticas públicas, mais especificamente, na saúde coletiva.
Ferreira Neto (2011, p.31) nos ajuda a esclarecer esse último ponto dizendo que trabalhar no âmbito das politicas públicas é pisar em um campo minado, complexo e carregado de paradoxos. Acrescenta ainda que para se desenvolver um trabalho ético-político é preciso "sustentar uma postura menos ingênua e realizar um diagnóstico bem-feito das relações de poder, onde o mesmo está sendo desenvolvido". De outro modo, como diz Fuganti (2009), podemos tornar-se cúmplice do poder que nos captura, contribuindo dessa forma para o enfraquecimento dos usuários das políticas de saúde, ao invés da potencialização da vida. Nessa ótica, "desconstruir a cumplicidade em nós é essencial" (Fungati, 2009, p.672).
As queixas dos profissionais no tocante à fase inicial do grupo referem-se à falta de formação dos mesmos para atuarem no matriciamento das equipes de referência, assim como a falta de apoio da gestão local no momento da chegada do grupo às unidades de saúde. Sobre a gestão, a expectativa da equipe mencionada naquele instante era que tivesse sido realizada uma sensibilização inicial entre os programas (NASF e ESF), no sentido de favorecer uma aproximação destes, buscando entender as expectativas dos envolvidos nesse processo, bem como elucidar a metodologia de trabalho do núcleo de apoio, relacionando-a com o fazer cotidiano dos trabalhadores em saúde e com a realidade local em que estão inseridos. Essas narrativas levam-nos a crer que os acontecimentos experimentados pelo coletivo podem ter despotencializados o seu caminhar, afetando e interferindo em seu modo de agir, pensar e sentir. Isso é posto em relevo no momento em que o grupo relata, numa das reuniões de equipe do NASF, que se sentiu perdido, desmotivado e inseguro quando se iniciaram as atividades nas unidades de saúde. Talvez, o NASF tenha deixado rastros desses afetos em seus encontros com as equipes SF.
Outro aspecto relevante sobre o esse momento diz respeito à análise do território. Ou seja, compreender as particularidades locais, incluindo aqui as suas necessidades e potencialidades, facilita a construção das ações conjuntas entre os programas NASF e ESF, ou melhor, a criação de uma prática que se articula com o espaço urbano. Sendo assim, o reconhecimento do território pela equipe de apoio é de suma importância, tornando a sua atuação mais efetiva e adequada às necessidades da população (Brasil, 2014). Esta deve ser inclusa nesse processo, visto que é preciso dar voz a ela, e não falar em nome dela, como nos ensinou Foucault (2011), a partir da sua experiência no Grupo de Investigações sobre as Prisões (GIP). Nesse sentido, são os próprios moradores, os quais compõem um determinado território, que devem narrar a sua história, permitindo nos aproximar de seus modos de vida.
Ainda sobre a relação equipe e comunidade, importa ressaltar outro ponto observado durante a nossa atuação. Além da coleta de informações, as equipes também vão à busca dos usuários, vinculados ao serviço, no afã de inseri-los nas atividades desenvolvidas por elas. Mas, a participação da comunidade, nesse caso, se limita a fazer parte dos projetos desenvolvidos nas unidades de saúde, e que já se encontram prontos, sem de fato haver o envolvimento dos usuários na construção daqueles. Para mobilizar e garantir a presença dos mesmos em tais atividades, as equipes lançam mão de alguns artifícios, como por exemplo, de brindes e de lanches. Na perspectiva foucaultiana, essas ações acabam funcionando mais como mecanismos disciplinares e de controle, tutelando e enfraquecendo os sujeitos, ao invés de disparar modos singulares de existência. Ou seja, as políticas públicas em nome da vida podem ditar aos seus usuários modos de ser, de estar e de viver no mundo, assujeitando-os com suas práticas normalizadoras e reguladoras. Verificou-se, então, que há ainda uma necessidade de aprofundar esta reflexão, provocando as equipes mencionadas a pensar sobre o significado da participação e da autonomia na produção do cuidado em saúde.
Nossa segunda hipótese acerca dos fatores que facilitaram o aparecimento de alguns entraves no processo de trabalho das equipes concerne às certas particularidades da metodologia do NASF. Ocorre que o seu fazer não é algo que se encontra pronto, com ações e estratégias definidas, bastando então cada profissional aplicar o seu instrumental teórico-conceitual e tudo estará resolvido. Pelo contrário, este trabalho precisa ser construído, inventado, não de forma isolada e confinada a um só saber, mas por todos os atores, sobretudo, pela própria comunidade para que sejam promovidas de fato ações potencializadoras da vida. Cabe ressaltar que não temos a intenção de demonizar a questão da técnica, ou ainda, de avaliar se ela é boa ou ruim, mas sim de pensar a intervenção nas políticas públicas para além de um conjunto de métodos ou procedimentos.
Considerações finais
Vários foram os fatores que interferiram nos modos de intervir da psicologia no NASF, dentre os quais destacamos alguns aspectos relevantes. O primeiro consiste na preponderância, ainda hoje, de uma prática de cuidado pautada por formas hegemônicas e tradicionais, fazendo prevalecer a lógica do consultismo no cotidiano de trabalho em saúde. O segundo refere-se à dificuldade dos profissionais das equipes ESF/NASF em trabalhar de forma integrada e articulada, compartilhando saberes e práticas, o que compromete a proposta da clínica ampliada. O terceiro concerne ao uso de novas ferramentas na gestão do cuidado, sem necessária mente romper com os modelos tradicionais e hierarquizados de se produzir saúde. O quarto diz respeito à burocratização no planejamento das ações em saúde, contribuindo assim para a instauração de práticas endurecidas e pouco participativas. O quinto refere-se às tensões produzidas no processo de trabalho NASF/ESF, sendo elas experimentadas por ambas as equipes como impedimentos e obstáculos, ao invés de serem vivenciadas como disparadores de ações éticas e políticas. Por último, o distanciamento entre os usuários e os trabalhadores envolvidos, dificultam o desenvolvimento de práticas potentes para a produção de subjetividades singulares e autônomas.
É importante frisar que os fatores mencionados também produziram interferências nos modos de vida da população atendida. Ademais, ficou evidente que é necessário avaliarmos, de forma incessante, o que temos produzido com as nossas práticas no cuidado em saúde, pois elas podem estar a serviço da expansão da vida ou do seu constrangimento.
A nosso ver o grande desafio dos profissionais (equipes-gestores-rede assistencial), envolvidos nas práticas do cuidado em saúde, é construir junto com o outro (usuário-família-comunidade), ações cotidianas que não sejam meras reprodutoras de modos de vida homogeneizados e preestabelecidos. Acreditamos que o cotidiano seja "lócus em potência de transformação das práticas, pois que é sobre ele, e com ele, que os diferentes sujeitos (re) inventam e afirmam processos de autonomia em seus modos de vida-trabalho" (Campos & Guerrero, 2010, p. 818). Apostamos então nos encontros potencializadores, capazes de produzir novas formas de relação consigo mesmo e com os outros.
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Recebido em: 13/05/2015
Aceito em: 25/08/2015
1 Agradeço ao Professor João Leite Ferreira Neto pela disponibilidade, pelo interesse e pelas sugestões feitas ao trabalho
2 Contato: ana.carolina.perrella@hotmail.com
3 A portaria nº 3.124, de 28 de dezembro de 2012, estabelece que o NASF, na modalidade 1, deverá estar vinculado a, no mínimo, cinco e, no máximo, nove equipes de Saúde da Família e/ou equipes de Atenção Básica para populações específicas (consultório na rua, equipes ribeirinhas e fluviais).
4 As equipes NASF, de acordo com a portaria 2.488, podem ter em sua composição os seguintes profissionais: assistente social, nutricionista, farmacêutico, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, profissional de educação física, fonoaudiólogo, psicólogo, sanitarista, educador social e médico (do trabalho, acupunturista, pediatra, homeopata, ginecologista/obstetra, psiquiatra, geriatra, veterinário e clínico).