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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

 ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.9 no.1 Juiz de fora jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Constituição especular do desejo e sua atualização no adulto

 

Wish specular constitution and its up date in adult

 

 

Maria Emilia Sousa Almeida1

Universidade de Taubaté

 

 


RESUMO

Nesse artigo, examina-se a constituição especular do desejo da criança a partir do desejo de seus objetos primários. Assim, as representações, afetos e vazios representacionais da criança se articulam as representações, afetos e vazios representacionais de seus pais. Esse processo favorece o bloqueio na atualização do desejo do adulto. Vários fatores contribuem para isso: os vazios representacionais no desejo dos objetos primários e do sujeito, sua identificação e contra-identificação com eles, a formação do objeto idealizado e do objeto imaterial-simbólico, as alterações no sistema das representações no trauma do absoluto. Portanto, uma série de hipóteses de trabalho são propostas pela autora, para tentar entender esse fenômeno. O método clínico psicanalítico permite, afinal, que o sujeito, quando adulto, possa atualizar seu desejo no mundo. O pensamento de alguns psicanalistas favorece a reflexão da autora sobre essas questões.

Palavras-chave: representações, afetos, desejo, vazio representacional


ABSTRACT

In this article, the specular constitution of a child's wish is related to his/her primary material wishes. In this case, the child's representations, affects and representational voids are linked to his/her parents' representations, affects and representational voids. This process favors the block in the adult's wishes' update. Several factors contribute to this: representational voids in primary objects wishes and in the subject, his/her identification and counter-identification with them, the idealized object and symbolic-immaterial object, alterations in the representational system regarding absolute trauma. Therefore, a series of work hypotheses are proposed by the author in order to understand this phenomenon. The psychoanalytical clinical method allows the patient, when adult, to update his wishes in the world. Some psychoanalysts' thoughts favor the author's reflection regarding these questions.

Keywords: representations, affects, wish, void representational


 

 

Torna-te quem tu és.

(Nietzsche)

Insista em si mesmo. Não copie.

(R. W. Emerson)

 

INTRODUÇÃO

Neste artigo, a autora propõe algumas hipóteses de trabalho sobre a constituição especular do desejo, com base na clínica, a partir de conceitos de psicanalistas da vertente transgeracional e de outras escolas. Entre eles encontram-se Kaës (2001), Eiguer (1998), ao lado de Racamier (1991) e Green (2008), por exemplo. O método clínico psicanalítico sustenta a articulação entre um caso clínico e as hipóteses da autora, apresentadas no decorrer do trabalho.

No sujeito, em sua infância, a constituição especular do desejo remete a sua construção como uma espécie de espelho entre representações, afetos e vazios representacionais de seus objetos primários e dele. Esse processo retrocede, no mínimo, à geração dos pais de seus pais, sob o prisma das relações transgeracionais.

A vertente psicanalítica da transmissão da vida psíquica entre as gerações da família tem se dedicado ao estudo dos objetos psíquicos, de suas representações e afetos, entre outros. Assim, para Kaës (1998), os membros do grupo transmitem configurações de objetos psíquicos (representações, afetos e fantasias) munidos de seus vínculos, incluindo relações de objeto. Certos membros do grupo que precede o sujeito mantêm-no numa matriz de investimentos, predispõem sinais de reconhecimento, designam lugares, apresentam objetos de satisfação, oferecem meios de proteção e ataque, traçam vias de realização e enunciam limites e interditos. Sustentam o recalcamento de representações, a supressão de afetos e a renúncia pulsional no herdeiro. O sujeito é nomeado, representado segundo o desejo dos porta-vozes do desejo, interditos e ideais do grupo.

A partir dessa herança psíquica, o eu do sujeito é impregnado pelo objeto em seus primórdios de formação e, nele, tendem a se constituir aspectos do não-eu.2 Em virtude da transmissão psíquica na família, no mais das vezes, ocorrem distorções do material psíquico herdado pela criança. Nessa medida, podem imperar nela desde aspectos do não-eu até aspectos do profundamente não-eu. Neste caso, a transmissão comporta distorções graves na mente de seu herdeiro. Assim sendo, a via intersubjetiva de constituição do desejo do sujeito pode ser marcada pelo registro do fake, com suas diferentes gradações. Em meio a isso, a sucessão geracional imbrica avós, pais e sujeito, em sua infância. Como formação psíquica fake, interliga sujeito, objetos primários e objetos secundários, em sua vida adulta.3 Os objetos secundários do sujeito são aqueles escolhidos pelo adulto: humanos e objetos imaterais-simbólicos, como música, literatura, cinema, escultura, entre outros. São constituintes de seu sistema das representações, formado em sua infância.

O sistema das representações constitui um aparato psíquico do sujeito, capaz, a priori, de representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais.4 Ele é constituído por diferentes camadas ou estratos psíquicos. Em seus estratos inconscientes são produzidas as representações ou seus rudimentos prérepresentacionais. A função desse sistema de representar as vivências do sujeito não se desenvolve de per si. Depende dos sistemas representacionais de seus objetos primários e, assim, se submete ao seu desejo. Este se realiza de modo mais "fluido" ou fica paralisado, no adulto, com base nas representações e afetos parentais projetados, nele, por seus pais, quando criança. Essa projeção compreende: ser designada como inteligente ou imbecil, flor ou verme, especial ou insignificante - no plano consciente - além de suas projeções inconscientes. Esses conteúdos psíquicos introjetados pela criança têm relação com o material psíquico disseminado por seus pais, igualmente herdado de seus genitores.

Entre esse legado psíquico, o trauma do absoluto pode se constituir no sistema das representações. O trauma do absoluto se caracteriza pelo sobreinvestimento de ódio e horror em certas representações: ser desamparado, ser abandonado, ser rejeitado, ser fracassado, ser devedor, ser perdedor, ser não amado, ser invulnerável ao amor, entre outras.5 Em contraposição a estas, outras representações favorecem a realização de seu desejo. São elas: ser amado, ser inteligente, ser competente, ser valorizado, ser bem-sucedido, ser vitorioso, ser ganhador, ter méritos próprios, investidas por amor. Elas estão radicadas em seus estratos inconscientes, ao passo que as representações do absoluto tendem a se fixar no estrato consciente do sistema.

Nesse trauma, há uma falha funcional do sistema, no que se refere à produção, ao manejo, à organização e à integração das representações e afetos coerentes com o desejo.6 Portanto, as representações do absoluto atuam como vazios funcionais no sentido de dificultar a realização do desejo do adulto. A despeito do trabalho de análise, as representações do absoluto tendem a se manter no estrato consciente do sistema, enquanto as representações solidárias ao desejo tendem a permanecer no estrato inconsciente. Faz-se longo o tempo de análise até que o sujeito integre as representações harmônicas com seu desejo, ao estrato consciente do sistema. O sistema comporta, assim, representações que funcionam como vazios representacionais no âmbito do bloqueio na atualização do desejo do adulto. O irrepresentável sob o absoluto remete às representações de ser amado, ser acolhido, ser bem-sucedido, ser vitorioso, ser autônomo em seu desejo. Elas podem integrar-se ao estrato consciente do sistema, com a análise do desejo do sujeito.

No tocante a isso, Eiguer (1998) considera que a teoria de relação de objeto da transmissão psíquica entre as gerações descreve a representação e o irrepresentável. A representação de objeto transgeracional liga-se à falta de representação, ao vazio, ao oco. Na clínica, o irrepresentável é concebido na falta de uma representação que um dia será conhecida. Kaës (2001) propõe que a transmissão psíquica pode apoiar-se no que falha e falta e, numa negatividade radical, na ausência de inscrição e representação e no material psíquico sob estase, sem estar inscrito. Há a falha da metabolização psíquica do que liga sujeito ao conjunto e o essencial da transmissão escapa à atividade de representação.

Com as representações do absoluto que funcionam como vazios representacionais contra a realização do desejo no adulto, os vazios representacionais no desejo dos objetos primários contribuem para a paralisia na satisfação do desejo desse adulto. Foram herdados por ele e constituem seus próprios vazios representacionais no sistema. Com isso, o trabalho de análise para a assunção de seu desejo é bastante difícil.

Além disso, o sistema das representações pode criar uma clausura psíquica ou um lócus de proteção a esse sofrimento traumático. Nesse caso, acaba por perpetrar o ódio do sujeito às suas conquistas ao longo do tempo, inclusive na análise. Sua criação se mescla com a ruptura do tempo e do espaço conscientes, favorecendo alterações nas representações do tempo e espaço. Com isso, surgem outras representações do absoluto: ser submetido para sempre ou por séculos ao sofrimento psíquico, não ter espaço no mundo. Podem surgir outras representações de tempo e espaço: o tempo parou, minha vida ficou em suspenso, entre outras. Estas constituem depósitos do tempo e do espaço no sistema, sem serem representações do absoluto. Logo, esse trauma do sujeito faz com que seus conteúdos infantis sejam projetados em seus objetos secundários. Nesse caso, quanto maior a radicalidade das defesas do sistema ante a dor psíquica associada a esse trauma, maior será a distorção lógica de suas representações. Assim, o sofrimento representado pelo sujeito como ad aeternum rompe logicamente o tempo real de sua existência real.

Nesse contexto, ser membro e partícipe de uma família implica aceitar sua forma de organização. O estatuto da família é formado pelo conjunto de ideais, valores, preceitos, ditames, injunções e interditos que demarcam seu funcionamento. Seu estatuto pode ser mais saudável/construtivo ou mais patológico/destrutivo. Com seu diapasão ancestral, repercute sobre seus componentes e, desse modo, favorece sua saúde ou sua patologia.

Na patologia ancestral do trauma do absoluto, uma espécie de umbral de destrutividade pode definir o "proibido absoluto" da família contra o desejo singular do sujeito. O proibido absoluto se refere a aspectos de seu desejo alçados a um nível de satisfação impossível, p. ex.: sucesso no amor, sucesso no mundo das relações humanas, exercício prazeroso e saudável da sexualidade, relação bem-sucedida com dinheiro, entre outros. Desse modo, o umbral designa a travessia do sujeito entre o proibido absoluto do desejo na família e sua possibilidade de efetivação no mundo, quando adulto. Essa efetivação depende da transição por diferentes momentos de sua elaboração em análise, visando realizar o desejo do sujeito em sua singularidade. A idealização do objeto e a persecutoriedade do desejo do sujeito são elementos desse umbral: passagem entre o quase e o nunca,7 pois a efetivação do desejo do adulto no trauma do absoluto situa-se na borda entre o quase e o nunca.8

O quase sinaliza a lacuna entre o passado - sobrecarregado de sofrimento - e o futuro -eivado de terror que paralisa o desejo, como na frase: quando tudo cair, desabar, desmoronar. O quase situa-se, ainda, na fronteira entre o presente - no qual ele pode realizar seu desejo -e o futuro - no qual ele projeta representações sobreinvestidas de amor no objeto desse desejo: ser magnífico, ser poderoso, ser absoluto. Com isso, os atributos projetados nesse objeto idealizado adquirem valor supremo, que minimizam o valor do sujeito. O desejo do sujeito torna-se persecutório, visto que seus atributos são investidos de ódio: ser desprezível, ser insignificante, ser nada. Ele se representa, inclusive, como incompetente para lidar com as demandas da realidade, de modo a atualizar seu desejo. Enfim, ele se representa aquém de suas possibilidades na vida. Seu objeto idealizado-persecutório torna-se avassalador, sendo o depositário dessa lacuna temporal entre passado, presente e futuro. Por sua vez, o nunca demarca a realização de seu desejo como impossível e inatingível: representações do interdito da família contra sua singularidade. São representações antagônicas à atualização de seu desejo, enquanto adulto. O umbral do proibido absoluto do desejo do sujeito se articula aos vazios representacionais de seus pais: aos aspectos de seu desejo que eles não puderam representar e, tampouco, realizar no mundo.

No absoluto, o ódio e o horror constituem afetos fundamentais da interdição ao desejo do sujeito, mantendo a interdição familiar. Entre os congêneres afetivos derivados do ódio, a clínica revela o horror, o pavor e o desespero. A despeito de seu sofrimento na família, certo membro pode sentir desespero diante da sensação de estar inexoravelmente preso a essa estrutura, mas sentir pavor de romper seus ideais e ditames. Eles contribuem para fixar o pathos da família. Essa conjuntura contribui para o vazio representacional de representações coerentes com o desejo do sujeito.

Quanto a isso, Green (1998) lembra que o ódio é expressão da pulsão de morte. Afirma que a pulsão de vida está ligada à função objetalizante e a investimento e, ainda, que a pulsão de morte está ligada à função desobjetalizante, de desligamento e de desinvestimento. Green (2008) aponta que a meta da pulsão de morte é realizar a função desobjetalizante, mediante o desligamento dos objetos. Nesse caso, a relação com o objeto e o ego é atacada, sendo o ego o único lócus do investimento, haja vista o desligamento dos objetos. Aborda ainda o desejo do não-desejo como parte do processo de desligamento provocado pela pulsão de morte. Além disso, aponta que o desinvestimento é marcado por um oco, um vazio de representações.

Esses aspectos do ódio são discutidos ao longo deste trabalho, permitindo pensar a complexidade desse afeto no sistema das representações do sujeito.

Outra formação psíquica faz parte do trauma do absoluto e dificulta a realização do desejo do sujeito: o paradoxo. Portanto, o paradoxo entrelaça o sujeito, seus objetos primários e seus objetos secundários. O paradoxo se revela mediante representações contraditórias do sujeito quanto a si e a seus objetos, investidas por ódio.

Com relação a isso, Racamier (1991) conceitua o paradoxo como uma formação psíquica singular, que liga indissociavelmente duas proposições inconciliáveis, mas que não necessariamente se opõem. O paradoxo é uma agressão ao eu, suscitando na vítima um ódio intenso, que procede de suas autodefesas.

O trauma do absoluto é propagado, ainda, mediante a identificação e a contraidentificação dos filhos com seus pais e, destes, com seus genitores.

No que concerne à identificação, Kaës (1998) propala que ela é o processo fundamental da transmissão psíquica. Por sua vez, a autora propõe que a contraidentificação constitui um processo de formação do sujeito e um mecanismo de defesa em seu desenvolvimento: facetas do mesmo movimento psíquico do sujeito. Este se contraidentifica com características odiadas de seus pais em sua infância, aos quais atribui seu sofrimento. Contudo, elas predispõem à satisfação de seu desejo em sua vida adulta. Um filho pode se contraidentificar com a determinação, o empreendedorismo e o sucesso de seu sádico e odiado pai, traços aos quais atribui seu abandono e seu desamparo. Ao sobreinvestir de ódio as representações de ser abandonado e ser desamparado, não investe de amor, ser empreendedor, ser determinado e ser bem-sucedido como o pai. Tão somente essas representações e afeto favorecem a efetivação de seu desejo no presente, atingido pelo trauma do absoluto em seu passado.

 

A clínica do absoluto

Filha mais velha, a paciente recebe forte carga de ódio de seus pais, com base em sua infância e em seu casamento.

Sua mãe foi a segunda filha, sendo que sua irmã mais velha engravidou, numa aldeia de um país conservador, há setenta anos. O ódio, o desgosto e a vergonha da mãe de ambas foram enormes e uma forte carga de ódio foi depositada nessa segunda filha, que passou a ter horror a sexo e amor. A descoberta de uma segunda família do marido fez a avó da paciente chorar lágrimas de sangue e dizer: parentes só meus dentes e ainda assim me doem. Ademais, com a segunda guerra, a mãe da paciente teve de mudar de um país - no qual sua família era abastada - para outro - em que se tornou costureira - e, afinal, para outro - no qual se tornou empregada doméstica, numa casa em que a comida era controlada. Casou-se com o primo. Na posição de mãe, apresenta-se como pobre, trabalhadora incansável, mas esgotada. Esmaga a filha/paciente sob regras rígidas quanto a sua sexualidade, que se opõem ao seu prazer de viver. Educou-a sob a tortura da submissão à crítica alheia: o que outros vão pensar? Esta frase retoma a vergonha pública de sua família com sua irmã grávida.

Nascido noutra aldeia, o pai da paciente também foi o segundo filho. Foi visto como ovelha negra em relação ao irmão mais velho, modelo de trabalho e de obediência aos pais. Todavia, condições específicas de seu nascimento permitir-lhe-iam ser diplomata e navegar ao redor do mundo: desejos arrebentados pela segunda guerra. Quis ser locutor de rádio, mas foi impedido pelo pai, para quem ser artista era ser depravado e ser imoral. Cabia, assim, a ele trabalhar, casar e ser um respeitável pai de família. Casou com a prima, moça muito bonita, mas com horror a amor e sexo. No início do casamento, ela buscava o marido nos bailes, em nome da filha/paciente e sob terríveis brigas, recriminações e vergonha. No caos familiar, imperavam ódio, assim como dominação paterna e submissão materna.

Tomando para si os feitos de um heróimártir, esse self-made-man vitorioso se lançou ao trabalho e amealhou, com sacrifício, um bom patrimônio. O sádico e pretenso poderio paterno sobressaía à custa do intenso trabalho da sofrida figura materna. Trabalhando à exaustão, sua mãe nunca chamou a si o mérito de seu trabalho, que sustentava o poder masculino sobre ambas. No início da análise da paciente, seu pai detinha grande poder, sendo evidente o paradoxal apoio valorativo da paciente nele. Posteriormente, fica claro seu ódio à figura paterna.

Em sua infância, seu pai a chama de débil mental e doente mental em público. Face às explosões de ódio da filha, diz: eu dou tudo, faço tudo e recebo nada; cê vai ser um nada na vida; cê não presta pra nada; filhos trocados por m... ainda saem caro; criei você pra me fazer feliz e cê faz da minha vida um inferno. O imperceptível investimento amoroso de seu pai nela deteriora-se ainda mais por se revestir de um tom de intrusão sedutora, na adolescência. Diante da sua beleza, ele diz: nenhum homem vai amar você mais que eu e outros homens vão ter por você só desejo. Afora esse desmentido radical e paradoxal, sobressaía, em sua percepção, o ódio de seu pai a ela. Ao pedido dela de dirigir, queria que ela o fizesse do jeito dele. Ela não aceitava fazê-lo. Ele dizia, então, para ela dirigir o peruzinho/carrinho de jardim: símbolo de seu poder fálico-narcisista. A despeito de ser orgulhoso e vaidoso no que se refere aos seus feitos, ele vive cheio de sofrimento e ódio. Conta à filha que o chupim põe seus ovos no ninho do tico-tico e come os ovos dele. Refere-se a um duplo parasitismo, que se dirige a ela.

Com as inúmeras dificuldades pessoais e financeiras de sua profissão, a paciente adulta faz ver à analista o poder econômico de seu pai, bem como sua total impossibilidade de ter acesso a ele. Quando a analista aumenta o preço da análise, a paciente sai dela, dada sua precariedade mental de ganhar seu próprio dinheiro. Esvai-se em choro diante da impossibilidade de contar com o dinheiro de seu pai e tampouco com uma amiga. Procura a "acolhida" impessoal de uma grande árvore seca. Tão somente em outra fase de sua vida a paciente retoma sua análise, ao se lançar a um novo trabalho.

Ela fez uma radical retirada do mundo dos vivos, inclusive quanto a amor e sexo. O ódio e o horror maternos a eles foram repassados a ela. A morte na ligação com seu desejo e com o mundo levou o sistema a criar um lócus de proteção contra o padecimento psíquico. Quase tão somente a leitura a ligava ao mundo dos vivos, sendo a literatura a produção humana usada como defesa e ataque contra os demais objetos e o mundo. Sua mirada quanto a eles ficou paralisada num paradoxo de interação: afastando-se dos vivos buscava abolir sua dor que, paradoxalmente, ficou fixada no tempo infinito do ódio.

A afetividade da paciente é percebida por ela como extremamente caótica e envolve as figuras parentais bastante agressivodestrutivas. Seus intensos investimentos inconscientes de ódio a elas levaram-na a se desligar das demais pessoas, em geral, e a estabelecer especial distância afetiva da figura masculina. Ela odeia ainda seus aspectos masculinos e femininos, cindidos e projetados nos objetos imaterial-simbólicos: leitura e escrita. Ao serviço das defesas do ego, o exercício passivo e solitário da leitura e, em maior grau, o exercício ativo da escrita marcam sua diferença e sua exclusão da família e do mundo. A literatura representa sua masculinidade, tendo como função defendê-la de sua afetividade, associada a sua feminilidade/sexualidade.

Com a análise, sua sexualidade adquire um tom menos caótico, mas o olhar público ainda a fragiliza, porquanto o mundo é o espaço dos homens: grandes, poderosos e sádicos. Representa-se, então, como uma bonne-vivant talentosa, que não precisa buscar com vigor os objetos de seu desejo. Por tudo o que já sofreu com os pais, teria direito a viver no bem-bom e morar com regalia numa propriedade deles. Ela fez um voto de ódio perpétuo às figuras parentais e à figura masculina. Tal voto foi erigido por ela como decreto irrevogável para extirpar de si a loucura familiar. Porém, vivia o pavor de enlouquecer, caso desistisse de seu voto de não amar um homem. E, ainda, seu sucesso dependeria do fracasso, da derrota e do massacre absoluto das figuras parentais. Todavia, tortura-se por ser fracassada.

Em certo momento, irrompe em sua mente a frase de Ricardo III: "Até as feras têm compaixão; eu não, eu sou humano". Fera remete-a ao sadismo, à crueldade e à insensibilidade do pai poderoso, que não teve compaixão dela, tão boazinha e frágil. Fera remete, igualmente, a ser excelente na profissão. Para tanto, ela deve ser firme, determinada e persistente. Contudo, buscar com vigor seu lugar no mundo seria um ato sádico, dado seu pavor de ser cruel como o pai. Com a continuidade da análise, o ápice da ruptura de suas defesas ocorre quando ela se apaixona por uma figura masculina/depositária do objeto idealizado. Numa paradoxal reviravolta afetiva, nesse homem, ela deposita seu ideal de imunidade ao amor, mas, nele, busca refúgio amoroso em face de seu ódio ao amor.

Seu ódio a si e aos objetos primários, bem como seu horror às demais pessoas são intensos. Desse modo, seu amor é investido nos objetos secundários: objetos imateriais e objeto humano/suporte do objeto idealizado. Seu dom de escrever constitui, para ela, um objeto imaterial absoluto: emblema do asseguramento de sua identidade e garantia de invulnerabilidade absoluta contra o amor. Contudo, sua capacidade de criação literária também é investida de ódio. Fica impedida de usufruir esse dom de modo absoluto, ao representá-lo como parte da herança parental odiada. Assim, ela representa seu talento para escrever como garantia de ser invulnerável ao amor; sobrevalorizado, mas amaldiçoado e perdido "para sempre". Esse processo caótico resvala para a idealização do objeto humano "absoluto". Para ela, o monopólio da escrita pelo objeto humano/suporte da idealização resultaria de uma genealogia familiar privilegiada, a ser exibido como dom e signo de saúde. De modo paradoxal, subtrai o poder votado a ele, pois seu dom adviria de mera herança familiar. Contudo, representa-o como ser magnífico, absolutamente brilhante, detentor absoluto da arte de escrever e invulnerável ao amor. Na paciente, seu dom derivaria de uma degeneração familiar, sendo sintoma de ela ser mórbida e louca, demandando ser escondido e ser proibido. Assim sendo, ela se paralisa diante de seu desejo de lançar sua própria obra no mundo. Para fazê-lo, requer uma garantia de ser amada por todos, de modo absoluto. Em meio a isso, suas autorrepresentações são sobrecatexizadas por ódio: ser um nada, débil mental, louca, absolutamente incompetente para escrever e vulnerável ao amor. O fascínio pelo objeto emerge com toda a carga de idealização e perseguição, ligadas a seus impulsos eróticos e agressivos. Tão somente o trabalho com esse objeto possibilita a reconstrução de seu eu, sob a condição de amá-lo. Fratura em seu sistema representacional, tal idealização gera tanto caos quanto potencial crescimento psíquico.

Logo, seus paradoxos envolvem a persecutória figura paterna, a figura masculina idealizada-persecutória e os objetos externos não humanos de investimento. Há evidentes conexões entre os objetos humanos - objetos primários e secundário/idealizado - e os objetos "imateriais" investidos por amor e ódio: capacidade literária e dinheiro. O dinheiro é o objeto simbólico deveras valorizado pela família da paciente e de forma contraditória por ela, que o adora e o odeia. Entre esses objetos, a produção literária recebe maior gradiente de amor e ódio do que o dinheiro. A malha de representações e afetos dos objetos humanos e imateriais é parte de seu ódio ao seu desejo, permitindo-lhe manter o ódio aos pais internos.

As representações do absoluto na paciente são absurdas à luz de sua consciência. Era absurdo que ela não pudesse integrar representações de seus dons e usufruílos. Em momentos de lancinante dor mental com seus pais internos, imperavam as autorrepresentações do absoluto. Para assimilar os atributos sobrevalorizados no objeto humano, como seus, devia reconhecer os aspectos positivos da herança parental. A isso, ela se recusava. Perdoar e amar seus pais eram representados como absolutamente impossível. Seu ódio às figuras parentais era representado como incomensurável e insaciável. A morte de seus pais reais não poderia saciar seu desejo de vingança e tampouco uma indescritível tortura com eles, ainda que durasse para sempre, seria a revanche proporcional a sua dor. Esse tratamento absurdo do tempo como ad aeternum para curar suas feridas narcísicas, aprisionava-a sob a representação de ser impossível realizar seu desejo: tornar-se uma grande romancista, bem como viver um grande e sublime amor.

Essa trama remetia a uma área do sistema envolta pela penumbra das falhas da representação, devido ao investimento de ódio e horror. A possibilidade de se descolar de seu ódio aumentava-o, como reação de sobrevivência de seu frágil eu. O horror à intersubjetividade era notório em seu distanciamento das pessoas, em geral, e em sua paixão pelo objeto imaterial/literatura. Esse horror constituía uma espécie de versão do ódio desmedido às figuras primárias, generalizado para os objetos secundários. Seu distanciamento desses objetos e do mundo fazia com que o mundo da escrita e dos grandes escritores fosse representado como um não lugar mental. Outras facetas de seus paradoxos implicavam o horror de ter que amar o objeto humano/suporte da idealização para ter acesso a seu próprio dom. Descolar-se da fusão com a figura idealizada enchia-a de pavor e paralisia, como ameaça de lançá-la a assumir seu desejo.

 

DISCUSSÃO

O luto de si mesma é o processo que permite à paciente realizar seu desejo, alienado a partir das relações de objeto parentais e ancestrais. Essa modalidade de luto mobiliza o núcleo de identidade construído a partir de exacerbados investimentos de ódio aos objetos primários. Ele produz efeitos disseminados pelo sistema das representações da paciente como a formação de objetos secundários de investimento ‒ humano e imaterial-simbólicos idealizados ‒, bem como a inibição de sua criatividade. Essa inibição ocorre em virtude da projeção de seus aspectos valorizados nos objetos e da dificuldade de reintegrá-los ao estrato consciente do sistema.

No sistema, o objeto idealizado concentra representações e afetos arcaicos da paciente, em contraidentificação com seus pais. Ele é o depositário de representações valorizadas por ela, mas impossíveis no tocante a serem integradas pela paciente. O objeto idealizado tanto constitui uma formação cristalizada, que a impede de fruir de seus dons, quanto encerra a possibilidade de resgate de aspectos exilados de si. O sobreinvestimento de amor nesse objeto a impede de utilizar os recursos de seu eu. Seus aspectos identitários idealizados foram construídos contra os limites da realidade.

Nesse entremeio, há falhas absurdas da capacidade de representar do sistema, dado que talentos inerentes a ela lhe são inacessíveis. Uma corrente estagnada de representações e afetos do trauma do absoluto remete umas às outras, num circuito psíquico quase sem saída. Elas a mantém numa circularidade mental contra novas representações de seus talentos e méritos: ser simpática, ser amorosa, ser divertida, ser escritora. O luto de si mesma permite elaborar os investimentos destrutivos contra as ligações amorosas para consigo mesma, com o outro e contra sua capacidade literária.

As representações do proibido absoluto contra a realização de seu desejo revelam determinantes psíquicos supraindividuais e se ligariam ao lugar de sustentáculo da ordem familiar. Seu brilho como romancista e seu sucesso no amor destituiriam o sádico poderio paterno, romperiam o bloqueio de seus desejos amoroso-eróticos por parte de sua mãe e "explodiriam" autorrepresentações: ser boazinha, comportada, educada, contida, econômica, sóbria, casta e decente. Flagra-se, nos conflitos da paciente, um longo processo especular de sua família, cujo estatuto patológico deveria ser mantido por ela.

Ao prorrogar o luto quanto ao objeto humano e imaterial, retoma movimentos de idealização e perseguição envolvendo seu desejo. Volta a se colar ao núcleo de identidade arcaico e ao objeto idealizado, diante da iminência assustadora de novas representações de si e de novas modalidades de relação objetal. Por fim, tal duelo do desejo permite a ela sair da indiferenciação relativa ao objeto idealizado, que bloqueia outras representações que viabilizam seu desejo. Desconstruir essa trama e resolver seu conflito transgeracional viabiliza o luto do impossível para seu desejo.

No tocante ao conflito transgeracional, este pode ser conjugado ao aparelho psíquico grupal na família. A esse respeito, Kaës (2001) aponta as redes de representações que circulam no aparelho psíquico grupal e as flutuações das quantidades de excitação ligadas a elas.

No sistema representacional da paciente, entrecruzam-se representações, afetos e vazios representacionais de si e de seus objetos primários, bem como representações e afetos valorizados por ela e projetados em seus objetos secundários.

Com relação a seus objetos primários, uma trama complexa se apresenta. Seu pai detém as representações de ser sádico, ser cruel, ser poderoso, ser bem-sucedido nos negócios, ser autoritário, ser arrogante e ser superior. Na relação com seu pai/avô da paciente, ele introjetou que ser artista era ser depravado e ser imoral. À sua mãe cabem as representações de ser masoquista, ser dominada, ser pobre, ser submissa, ser humilhada e ser inferior. Na relação com sua mãe, a paciente introjetou que ser mulher junto a um homem era ser depravada e ser imoral. Sob essa dupla identificação com seus pais, à paciente cabia ser sóbria, ser decente, ser assexuada, ser casta, ser contida.

Dadas as perdas e interdições do desejo sofridas por seus objetos primários, seu vazio vivencial na realização de seus desejos gerou, neles, um vazio representacional. Os vazios de ambos incluem a impossibilidade de eles serem autorrealizados, bem-sucedidos no amor, amorosos, empáticos, felizes. Falta a essas representações, inclusive, serem investidas por amor por eles. O desejo da filha/paciente é impregnado por esses vazios representacionais de ambos os genitores.

No que se refere a seu pai, ser importante e ser valorizado no mundo constituem vazios representacionais. A despeito de seu pai ser representado pela filha como ganhador e bem-sucedido nos negócios, ser perdedor e ser fracassado são marcantes em seu desejo mais íntimo. Na relação pai-filha, ele detém o lugar de ser ganhador e ela fica reduzida a ser perdedora. Todavia, ele é perdedor e fracassado na realização de seu desejo mais verdadeiro. Ser ganhador e ser bem-sucedido nos negócios associa-se a ser sádico e ser mau para com o outro. No caso de sua mãe, ser rica e ser ganhadora constituem vazios representacionais, sobrepujados pelas representações de ser pobre e ser perdedora. Assim, ser perdedor e ser fracassado, no caso de seu pai, assim como ser pobre e ser perdedora, no caso de sua mãe, constituem representações fake de seu desejo mais essencial. Isso acarreta consequências psíquicas na paciente.

Em momentos da análise nos quais a paciente atravessa seu umbral do proibido absoluto do desejo, vê ressurgir seu ódio a si e às figuras parentais, envolvendo ser rica, ser pobre; ser ganhadora e ser perdedora e, ainda, ser bem-sucedida e ser fracassada. A partir da relação com seu pai, ela se envolve em paradoxos do tipo "ganha ou perde", que resvalam para decisões que envolvem "perde mais ou perde menos". No final, ela sempre perde mais do que ganha com certa conquista realizada por ela. Nessas vivências paradoxais, em seu triunfo edípico sobre a figura paterna, revive culpa e punição, ao produzir, para si, perdas materiais consideráveis. Por exemplo, a cada vez que compra um carro novo, sempre raspa, esfola e bate o carro antigo. Assim, diante da possibilidade de ganho/superioridade esmagadora sobre seu pai ao comprar um carro novo, acaba perdendo mais do que ganha. Perde com a desvalorização do carro antigo, bem como, repetidamente, com seu conserto e pintura: perda de tempo, dinheiro e bem-estar. Cabe lembrar que seu pai dizia para toda a família que ela seria incapaz de dirigir e que deveria dirigir o "peruzinho".

Além disso, o paradoxo central da paciente é enlouquecedor, pois o mesmo pai que a odeia na infância, diz que a ama na adolescência. Ele se designa como representante absoluto do amor num tempo condicional, pois "...ele a amaria mais que qualquer outro homem". Com isso, ele nega de forma onipotente as percepções obscuras da filha sobre seu ódio a ela. Ele faz uma cisão entre amor e desejo sexual, fazendo de si e dos homens elementos perigosos. Sua existência como filha deve submeter-se à felicidade de seu pai e a singularidade de seu desejo constitui um elemento infernal.

Por conseguinte, a paciente representa perdoar e amar seus pais como absolutamente impossível. Seu ódio às figuras parentais é incomensurável e insaciável, paralisando a capacidade representativa de seu sistema das representações. Uma indescritível e eterna tortura de seus pais remete ao ad aeternum de seu desejo de vingança contra eles. Assim, continua a lhe ser impossível realizar seu desejo, em seus fundamentos mais essenciais. Seu horror à intersubjetividade faz parte dessa trama.

No que tange aos seus objetos secundários de investimento, seu talento para escrever é representado por ela como ser invulnerável ao amor e sobrevalorizado, mas amaldiçoado e perdido "para sempre". Portanto, deve ser escondido e ser proibido. Lançar seus contos no mundo demanda ser amada por todos, de modo absoluto. Em meio a isso, suas autorrepresentações são sobrecatexizadas por ódio: ser vulnerável ao amor, ser um nada, débil mental, doente mental e absolutamente incompetente para escrever. Para ela, seu dom de escrever é sintoma de ela ser mórbida e ser louca. Em contrapartida, atribui ao objeto idealizado, ser invulnerável ao amor, ser magnífico, ser perfeito, absolutamente brilhante, detentor absoluto do dom de escrever: aspectos impossíveis na realização de seu desejo. O dom da escrita, nesse objeto, é signo de ele ser saudável e deve ser exibido no mundo.

Assumir seu desejo envolve intensa confusão entre representações e afetos: entre ser arrogante e ser superior, como seu pai e ser humilhada e ser inferior, como sua mãe. Sofre com seu desejo de ser superior aos objetos humanos poderosos, em especial os objetos masculinos que, a sua revelia, a reduziriam a ser inferior. Portanto, sofre com fantasias sadomasoquistas de sofrer com seus pares e fazê-los sofrer, de estar à mercê de seu ódio, inveja e ataques. Defende-se deles, ao escamotear seu desejo. O mundo é lugar exclusivo dos homens: grandes, poderosos e sádicos. Seu ódio perpétuo às figuras parentais e à figura masculina a impediria de ser louca. Ser bem-sucedida associava-se a seus pais serem fracassados, derrotados e massacrados. Todavia, ela se representava como fracassada. Ser perdedora era ser boa, enquanto ser ganhadora era ser má como seu pai. Ser fera era ser sádica e ser insensível como seu pai. Contrapunha a isso ser boazinha e ser frágil. Ser fera, porém, é ser excelente na profissão. Para tanto, ela deve ser firme, determinada e persistente em seus projetos de vida. Para ela, ser bonne-vivant talentosa significava ser indolente quanto a seu desejo. Contudo, ser vigorosa ao buscar seu lugar no mundo seria ser sádica como seu pai.

Logo, ela investe de amor: ser boazinha, ser concessiva, ao passo que investe de ódio: ser pobre, ser chupim, ser débil mental, ser pior que m... Esse segundo grupo é das representações autodepreciativas, que se contrapõem às representações de seu pai, ser sádico, poderoso, vitorioso e rico, que merece ser extorquido. E, mais, sobreinveste de ódio ser abandonada, ser rejeitada, ser odiada, ser fracassada, para sempre, sem lugar no mundo: representações do absoluto. Ser fracassada é uma representação aparentada a ser chupim. Ser bem-sucedida entra em conflito com ser generosa, ao perdoar as figuras parentais. Ser generosa ao perdoá-las é igualada a ser derrotada por elas. Ela sobreinveste de ódio: ser o nada em oposição a ser magnífico; ser débil mental e ser psicótica opõem-se a ser inteligente; e ser neurótica, ser sórdida destitui-a de sua representação de ser decente. Identifica-se com representações associadas a seus pais - ser cruel consigo - e se contraidentifica com outras - ser determinada e ser vigorosa em seu trabalho.

A mudança de ser boazinha para ser competente e ser amorosa com seus pares, igualmente, é difícil para ela. Não obstante, entre ser arrogante e ser humilhada - investidas por ódio -afinal investe de amor: ser segura e autoconfiante. Por fim, centra seu desejo em si mesma, incluindo novas representações de si. São representações de seus talentos e méritos: ser simpática, ser afetiva, ser divertida, ser escritora. Juntam-se a ser grande, ser autêntica, ser competente, ser bem-sucedida, ser vitoriosa, ser segura e ser adulta. Ao final, ao rever as identificações e contraidentificações com os objetos primários, surgem: ser amada, ser cuidada, ser importante, ser excelente, ser determinada, ser persistente, buscar o melhor para si e colocar-se em primeiro lugar. Elas são investidas de amor, favorecendo a realização de seu desejo no mundo das relações.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se examinar a constituição especular do desejo do sujeito em relação com o desejo de seus pais, suas dificuldades de atualização no adulto são explicitadas. A relação entre sujeito, objetos primários e secundários, igualmente, é delineada.

Para as dificuldades de realização do desejo do sujeito, contribuem os vazios representacionais no desejo de seus pais, sua identificação e contraidentificação com eles, bem como a idealização e a persecutoriedade associadas ao objeto idealizado. Ao lado dos vazios representacionais no desejo de seus pais, as representações do absoluto funcionam como vazios representacionais que inviabilizam o desejo do filho. Esses fatores se articulam ao trauma do absoluto, na qualidade de trauma no desejo, permitindo pensar essas dificuldades em sua efetivação no mundo.

Na análise do trauma do absoluto, as representações que aprisionam o desejo do sujeito sofrem desinvestimentos, percorrem novas vias associativas e originam novas representações, que abrem para sentidos inusitados. Novos afetos investem as novas representações e, igualmente, são trazidos ao estrato consciente do sistema das representações. Desarticular a associação entre desejo, proibições absolutas contra sua realização e vazios representacionais permite quebrar o sofrimento infindável oriundo da família. Elabora-se, então, a conexão mundosofrimento e articulam-se mundo-prazer-realidade.

Na paciente, o luto de si mesma caracteriza uma operação mental complexa, que remete a um período longo de análise em que se desinveste de ódio as representações do absoluto e se reinveste de amor novas representações coerentes com seu desejo. Trabalha-se com significados distorcidos de uma representação, pois ser determinada em seu desejo confundia-se com ser sádica; ser fera remetia a ser sádica e a ser insensível, mas significava ser excelente em sua profissão. Nesse âmbito, ser a última no desejo de seu pai pode, afinal, ser transformada em ser a primeira para si mesma, em seu desejo. Esse duelo entre representações solidárias e antagônicas ao seu desejo teve como consequência centrar seus méritos e capacidades, em si mesma. Uma nova dimensão da intersubjetividade permitiu a ela amar a si e aos outros, a despeito das diferenças e dos limites de ambos. Desenvolveu uma garantia de ser a si mesma, para além da relação malograda com o objeto humano e com o objeto imaterial. A desmontagem dessas figuras permitiu-lhe elaborar essas factícias formações de seu desejo. Com isso, ela diferenciou seu desejo do desejo dos objetos e pode utilizar suas potencialidades intelectuais e afetivas.

Ademais, a assunção de seu desejo demandou interpretar a tessitura dos paradoxos que enfeixavam seus objetos humanos e imateriais. Para tanto, fez-se necessário trabalhar suas identificações - ser cruel consigo como seus pais o foram -e contraidentificações com seus objetos primários - ser indolente em oposição a ser determinada como seus pais, bem como trabalhar as oposições extremas atribuídas a si - ser um nada - e ao objeto idealizado -ser magnífico. Com isso, o amor, o ódio e demais afetos ligados a eles foram trabalhados. Fez-se necessário transformar em amor a idealização do objeto e protegê-lo de seu ódio, bem como transformar o ódio às figuras parentais em agradecimento e reconhecimento a elas. Nesse trabalho, o ódio pode ser dirigido a certa pessoa no presente, de forma consciente e diferenciada daquele dirigido aos objetos primários no passado.

A elaboração dessa intrincada problemática implicou uma paradoxal derrocada de seu rígido sistema defensivo e do fracasso de ser a si mesma. Nesse sentido, fez-se necessário um rearranjo saudável dessa teia de representações e afetos, permitindo-lhe recapturar sua capacidade amorosa e artística como rendimentos de seu desejo. Sua potência amorosa e artística, então, viabiliza-se a partir do complexo processo de reorganização do sistema das representações. Nesse curso, a criatividade e a capacidade de criação são investidas por amor no sistema. Com isso, o desejo da paciente adquire uma dimensão de riqueza e grandeza como potencial de autorrealização, sem se associar à agressividade, arbitrariedade e destrutividade sobre seus pares. No entanto, esse processo a leva a uma consciência da densidade ontológica de ser a si mesma e de tomar a si o próprio desejo.

Ao sistema representacional cabe fazer essa mudança psíquica, que se complica muito quando o ódio prepondera sobre o amor, a vergonha sobre o orgulho de si, a tristeza sobre a alegria - nos investimentos do filho por seus pais. Ainda nesse sentido, a culpa de ser a si mesmo - na qualidade de espécie de raiva dirigida a si como autorrecriminação - tende a dar lugar à raiva e à indignação dirigidas aos objetos do presente, junto com a consciência de seu valor como sujeito. Todavia, a culpa tem sua importância no sistema, quando o sujeito rompe certos princípios na relação com seu objeto de amor. Logo, uma ampla reorganização dos afetos está em questão numa análise do trauma do absoluto.

Sua mudança psíquica quanto a representações e afetos demandou transitar por vários momentos críticos em análise, nos quais se deparou com os vazios representacionais de seu desejo. Estes se alicerçavam nos vazios representacionais de seus pais e seus com relação ao objeto idealizado. Eram eles: ser amada, ser valorizada, ser importante, ser competente, ser autorrealizada, ser feliz. Além disso, à medida que as representações do absoluto foram desinvestidas de ódio, deixaram de funcionar como vazios representacionais contra a realização do desejo. Deixaram de se fixar no estrato consciente do sistema das representações e as representações coerentes com o desejo se integraram a esse estrato. São elas: ser amada, ser inteligente, ser competente, ser valorizada, ser bem-sucedida, ser vitoriosa, ser ganhadora, ter méritos próprios, investidas por amor.

Atravessar o referido umbral, em diferentes momentos, provocou inúmeras contendas no plano das representações e afetos da paciente. Seu umbral era a baliza entre o quase - possibilidade de realizar seu desejo -e o nunca - proibição absoluta de realizá-lo - e demarcava a travessia entre passado, presente e futuro. Coube, pois, à análise alterar representações de si, dos objetos primários e dos objetos secundários imaterial e humano, imbricadas a amor e ódio. Assim sendo, do ódio, horror e pavor houve uma longa transição até se chegar a amor, atração pelo sublime e segurança nas relações. Assim, seu desejo em seus fundamentos mais essenciais pode ser realizado, no mundo das relações.

 

REFERÊNCIAS

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Freud, S. (1915b/2006). A repressão (Vol., XIV, p.141-158). (Edição Standard). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

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Winnicott, D, W.(1987). Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 23/02/2015
Aceito em: 30/05/2016

 

 

1 Contato: maealmeida@yahoo.com.br
2 Winnicott (1987) aponta que, no período de dependência relativa, o bebê vive estados de integração e não integração, formando conceitos de eu e não - eu, de mundo externo e interno.
3 Freud (1915a/2006) designa os pais como os objetos primários da criança.
4 O sistema das representações é um termo de Herrmann (2001) interligado a conceitos do autor. Não foi desenvolvido, por ele, como um conceito em si. A autora desenvolve sua concepção sobre ele em face das questões transgeracionais que instigam seu trabalho teórico-clínico.
5 Esse constructo hipotético se articula a quatro correntes da psicanálise. A princípio, o absoluto filia-se à teoria das representações de Freud (1915b/2006). Porém, embora Freud destaque os investimentos libidinais nos representantes ideativos, não considera os investimentos de ódio. Por outro lado, ainda que enfoque o ódio, Klein (1932) aborda os ataques destrutivos aos objetos internos – e não os investimentos de ódio nas representações. Índice de traumas para além da relação primária, o absoluto liga-se à transgeracionalidade de Eiguer (1998) e de Kaës (1998). Essa corrente investiga a transmissão da vida psíquica entre as gerações, os efeitos do trauma sobre a representabilidade psíquica, os segredos, as criptas, as pragas, a vergonha, entre outros. Termo cunhado por Herrmann (2001), o sistema das representações adquire uma concepção própria no contexto do absoluto. Desse modo, essa hipótese da autora não se associa, em particular, a nenhuma dessas abordagens. Portanto, dialoga-se com elas, sem desrespeitar suas diferentes bases metapsicológicas.
6 Afetos, no contexto, da clínica da autora, se referem a amor, ódio, horror, pavor e outras emoções que fornecem uma carga energética às representações ou ideias relativas ao desejo.
7 Segundo Klein (1932), o objeto persecutório é formado a partir do aumento do ódio dirigido ao objeto, devido às frustrações do ego com ele. Por sua vez, o objeto idealizado permite defender o ego contra o objeto persecutório.
8 Em português, "quase" é advérbio de intensidade e "nunca" é ora advérbio de tempo, ora de negação. Contudo, ambos funcionam como representações do tempo das gerações numa análise.

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